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«... se ao cérebro da cabeça lhe ocorreu a ideia de uma pintura, ou música, ou escultura, ou literatura, ou boneco a A Patrícia Lopes e a Nuno Santos
(Mosteiro de Sta. Clara-a-Velha
de barro, o que ele faz é manifestar o desejo e icar depois à espera, a ver o que acontece. Só porque despachou uma - Coimbra) expressamos a nossa
ordem às mãos e aos dedos, crê, ou inge crer, que isso era tudo quanto se necessitava para que o trabalho, após gratidão por terem acedido a realizar
o tratamento de todas as imagens
umas quantas operações executadas pelas extremidades dos braços, aparecesse feito. Nunca teve a curiosidade de que ilustram este texto
1 José Saramago, A Caverna,
se perguntar porque razão o resultado inal dessa manipulação (...) se assemelha tão pouco ao que havia imaginado
Lisboa: Editorial Caminho, 2000,
antes de dar instruções às mãos. Note-se que, ao nascermos, os dedos ainda não têm cérebros, vão-nos formando p. 82-83.
2 Cf., por exemplo, Ribeiro, s.d.
pouco a pouco com o passar do tempo e o auxílio do que os olhos vêem. O auxílio dos olhos é importante, [1924?] e Peixoto, 1899-1903.
tanto quanto o auxílio daquilo que por eles é visto. Por isso o que os dedos sempre souberam fazer de melhor foi 3 Byzantine Glazed Ceramics...,
1999, p. 17-56 e 158-186 (Grécia,
precisamente revelar o oculto.»1 sécs. XI-XIII), p. 115-117 (Itália,
sécs. XIV-XVI) e p. 249-265 (Gré-
cia, séc. XVI).
Muita da olaria e da cerâmica vidrada portuguesa, na diversidade tecnológica, nas formas e nos cambiantes
ornamentais que se lhe conhecem, desde um passado que começa no im da Renascença e são reconhecíveis, em
maior ou menor grau, ainda presentemente, é o repositório de várias diferentes estéticas eruditas.
Autores como de Rocha Peixoto (1868 - 1909) e, depois, Emmanuel Ribeiro, chamaram a atenção para a
persistência de formas da Antiguidade Clássica na olaria.2
Precisemos que tais formas, clássicas ou pré-clássicas, remontando alto no tempo, são perpetuadas, exactamente
como eram outrora, sem que a sua transmissão tenha sequer sido apoiada e isso é o mais notável em quaisquer
livros de padrões. São disso exemplo hidrocerames como o asado do Carapinhal (Miranda do Corvo) e a ânfora do
Barlavento algarvio, mas também um tipo de taça do Redondo, carenada à maneira de uma forma da tipologia de
Dragendorf para o estudo da cerâmica romana que, no presente contexto, não nos parece indispensável precisar,
e o cantil, disseminado um pouco por todo o país.a
No que respeita a aspectos ornamentais, e cingindo-nos a um caso, parece-nos evidente que a técnica empregue
na decoração, após vidragem das peças enchacotadas, mas anterior à cozedura do revestimento vítreo, praticada
nas olarias do Redondo, deriva do esgraito que foi profusamente praticado, entre os séculos XI e XVII, na
área geográica dos mundos bizantino e post-bizantino, de onde se disseminou para o ocidente da bacia do
Mediterrâneo.3
Para além desta iliação, e à medida que o nosso interesse sobre a olaria e a cerâmica portuguesas foi aumentando,
fomos reunindo intuições várias sobre uma outra fonte, por assim dizer, das características deste artesanato, a
saber, o estilo barroco. Tendo olhado, mais atentamente e sob esse prisma, não só a dita produção cerâmica, mas
igualmente outros objectos artesanais hodiernos, fomos acumulando elementos que parecem legitimar a asserção
4 Queirós, 1907, Cap. II («In- segundo a qual se observa, nas Artes Decorativas portuguesas, uma sobrevivência nítida dos cânones barrocos.
fluências das formas romanas e da
cerâmica árabe»), p. 31-32 Assim sendo, urgia rever a formação das características da produção cerâmica popular - não temamos o termo
«popular» -, pondo em equação não só o legado antigo, mas também o do barroco histórico.
Entre a Antiguidade e os séculos XVII-XVIII medeia um extenso período de História no decurso do qual
avulta, no domínio da cultura material, o legado islâmico. Viemos a apurar que o Islão manteve e desenvolveu
uma atmosfera artística que viria a proporcionar a poderosa expressão do barroco e o arreigar do gosto pelo
mesmo, tendo, por isso, sedimentado a propensão para estéticas complexas - ou seja, barroquizantes - nas épocas
subsequentes a este.
Não temos encontrado, nos escritos dos autores estrangeiros da actualidade, relativamente à cerâmica dos seus
países, a consciência desta iliação nem do barroquismo que lhe é inerente. Além-Pirinéus, foram os do século XIX
que, compreensivelmente, apreciaram devidamente os aspectos do exotismo de que está imbuída esta produção.
Quanto aos estudiosos da cultura material do Sul da França, não demonstram tal noção, e desconhecemos o
que a este respeito possa ter sido assinalado em Itália. É nos textos de autores espanhóis, e nos de alguns outros
estudiosos da cultura islâmica, que o assunto é nitidamente expresso. Ouçamos Owen Jones:
«La luz que entra atravñes de vidrios o celosías proyecta dibujos sobre las supericies interiores ya en si decoradas
y borra la separación entre lo lleno y lo vacio.»
A propósito do trabalho dos metais, que a cerâmica muito imitou, escreveu o mesmo:
« [...entre as diversas técnicas do trabalho dos metais sobressaíram]... el arte de incrustar dibujos en oro y plata,
en bronce o latón.»
Sobre a importância do jogo de luzes e tocando o tema barroco do horror vacui, notou que o
«damasquinado, que viene a relacionar este trabajo com Damasco... El trabajo musulmán de incrustación en
metales alcanzó su perfección a mediados del siglo XII, y continuó con la misma calidad durante dos siglos.»5
Ao damasquinado, porque ele orna em profusão, ou «renda», as superfícies das peças equivalem, na cerâmica,
a decoração com palhetas de mica e a decoração por incrustação de grãos de quartzo, ou de mármore, que
encontramos, respectivamente, na olaria minhota e na de Nisa. Pois não se chama «rendeira» à mulher que orna
a olaria empedrada alentejana?
Sinais dos tempos, já que só recentemente - na post-modernidade, como usa dizer-se -, o barroco histórico foi
reabilitado, e foi considerado o seu prolongamento, como néo-barroco, ou barroco post-moderno, para cá dos
séculos XVII-XVIII. Sinal público, mais evidente talvez do que a investigação levada a cabo nos meios académicos,
embora deles emergente e, de resto ligado, em primeira instância, à análise literária, foi a publicação, ainda que
efémera, nos anos oitenta do século XX, da revista Claro-Escuro – Revista de Estudos Barrocos.
Não barroca ao mesmo título a que falamos de barroco a propósito, por exemplo, da Arquitectura dos sécs. XVII
e XVIII, outrossim revestida de pendor barroquizante nos aparece, pois, a cerâmica portuguesa contemporânea,
embora não seja detectável, nos estudos dos nossos primeiros etnólogos, que foram etnólogos-ilólogos, asserções
das quais se desprenda tal noção. Todos, com excepção de Teóilo Braga (1843-1924), evitaram, inconsciente ou
intencionalmente, o uso, sequer, do termo «barroco». Nos textos de Teóilo Braga, lográmos lobrigá-lo quando
escreve, sobre a ourivesaria, que ela
«...foi entre nós o relexo passivo da Arquitectura, imitando mesmo a sua policromia nos esmaltes; o gosto ou estilo
bisantino (sic), as criações da construção gótica ou ogival, o misto da renascença greco-romana produzindo o
gótico lorido (a que em Portugal se chama o estilo manuelino), o barroco e rococó da época jesuítica e pombalina,
tudo isto aparece imitado nos inúmeros produtos da Ourivesaria portuguesa...». 6
«Barroca» e «rococó», mas também «bisantina»: ora não é verdade que estética bizantina e estética islâmica só
diicilmente são destrinçáveis ?
Rocha Peixoto notou, ao referir-se a certas estatuetas das olarias de Prado, que os
«seres ictícios»
e as
«monstruosidades»,
no seu
«naturalismo ingénuo»,
7 Peixoto, 1967, p. 121. por elas representadas, concordavam bem com os homólogos do século XVIII,7 mas não assinala que, em última
8 Peixoto, 1967, p. 135.
9 Peixoto, 1965, p. 119, 135, 162. análise, tais seres ictícios e monstruosos foram bem ao gosto do barroco histórico, que assim passa em silêncio, ao
10 Peixoto, 1967, p. 122 – O autor mesmo tempo que reforça a tendência para procurar, em matrizes mediterrânicas muito recuadas, tal inspiração.
vê nelas uma marca da «tradição
cristã paganizada». Omite, consequentemente, um elo da cadeia do gosto pelas formas bizarras, da Antiguidade aos nossos dias.
Utiliza, todavia, o termo «brutesco»8 por «grotesco», vocábulo que faz equivaler a «bárbaro»,9 e ambos são evocados
a) Cálice. Renânia. Séc. IV. In
Florilège…, s.d. [c. 1965], est. s.n. quando se trate de realizações materiais da época de transição que foram os séculos XVII e XVIII, verosimilmente
b) «Fidalgo». Estremoz . Fotografado com o intuito de diminuir a arte e o artesanato do período barroco.
pela autora em Portalegre.
Lê-se na descrição, de Rocha Peixoto, de uma tabula votiva do século XVIII:
«As iguras contornam-se como títeres parados, em atitudes cuja intenção dramática se volve em postura
grotesca.»10
Eugenio d’Ors, delim catalão do regime de Franco cujos interesses andaram, embora, muito arredados da arte
popular, deixou como principal legado, no que toca ao que nos interessa, duas ideias fulcrais:
a) o barroco não foi unicamente o estilo dos séculos XVII e XVIII, já que uma
tendência barroquizante remonta à Antiguidade Oriental;
b) a expressão «acabada» do barroco histórico (séculos XVII-XVIII) é a janela
manuelina do Convento de Cristo de Tomar.
Fenómenos artísticos como a decoração, por adição sucessiva de matéria, como o que se observa nos cálices
romanos renanos com decoração dita vermicular, e polícroma, do Baixo Império, e nos «Fidalgos» de Estremoz
(ig. 1a e 1b), parecem apoiar a teoria da intemporalidade, senão do barroco tout court, pelo menos do mesmo
espírito que veio a informar o barroco histórico. Quanto à janela de Tomar, a profusão decorativa que nela é
observável justiicará a segunda das ideias aduzidas por d’Ors.
As peças com que vimos exempliicando a ideia de um verosímil barroco intemporal, no seio das artes do fogo, não
são barrocas, naturalmente, ao mesmo título a que falamos de barroco a propósito das criações da cultura material,
imóvel como móvel, dos séculos XVII e XVIII; outrossim, surgem revestidas de roupagens barroquizantes.
Rocha Peixoto, ele, não havia podido impedir-se de execrar a Arquitectura dos santuários de Lamego e de Braga,
como, aliás, deplorara a Escultura11 (barrocas, adjectivo que não emprega). Ora a Arquitectura (e a Escultura que
a ela anda associada) é a referência primeira de qualquer Arte Decorativa. Por isso não surpreende encontrar, na
cantaria de uma casa de Tomar, a mesma cadeia de anéis contíguos que aparece, no séc. XVII, no vidro de Veneza,
ou façon de Venise, e na faiança e na olaria empedrada de Nisa, no presente como no passado (ig. 2c-d), de diversas
estações arqueológicas e, designadamente, na olaria dessa índole do Convento de Sta. Clara de Moura.12
Não terão efectivamente os Portugueses, como quer Eugenio d’Ors, uma propensão natural para barroquizar?
Parece-nos é que o fenómeno, por assim dizer, nunca foi analisado fora do contexto do barroco histórico, e ainda
menos quando se lida com mobiliário doméstico geralmente pouco sumptuoso, pelo menos na óptica dos tempos
em que vivemos, como são a olaria de vermelho e a olaria de negro.
VI Encontro de Olaria Tradicional de Matosinhos
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Muito vulgar é igualmente, de facto, uma casa na praia da Vieirinha, no Sudoeste alentejano, que alguém 11 Peixoto, 1967, p. 129 e 162.
12 Rego e Macias, 1993, p. 155,
(construtor ou proprietário, ou terceiros, pouco importa) decorou de forma, em última análise, controversa. Os nº 18.
motivos que nas paredes se observam (ig. 2a), só aparentemente alusivos apenas ao mar, tornam-na uma criação 13 « José Saramago, un Nobel
Baroque» in Le Soir, 9.10.1998,
naïve exactamente como as criações do Facteur Cheval, tanto mais que a obra foi inclusivamente assinada, e p. 11. É citada uma passagem
justificativa do texto do júri sueco :
exemplo de barroco naïf pela sobrecarga, ou excesso, de elementos ornamentais. Alguns destes são próprios do
«… grâce à ses paraboles soutenues
barroco erudito (albarradas), organizados em concomitância com símbolos privilegiados do lirismo português par l’imagination, la compassion et
l’ironie, rendu sans cesse à nouveau
(guitarra). tangible une réalité fuyante».
14 Jornal de Letras, Artes e Ideias,
ano XX, nº 776, Junho de 2000,
E, se à literatura contemporânea atendermos, notar-se que Aquilo Ribeiro, Mário Cláudio e José Saramago, pelo p. 17.
menos, são reconhecidos como autores «barrocos». 15 Jornal de Letras, Artes e Ideias,
ano XX, nº 775, Junho de 2000, p.
Sobre o primeiro escreveu o Nobel da Literatura, a quem, por ocasião da entrega do galardão, pela Academia 22-23.
sueca, certa imprensa estrangeira atribuiu o epíteto de «escritor barroco»:13 16 Cláudio, Mário, Rosa, Lisboa:
Imprensa Nacional, 1988, p. 93.
17 Idem, ibidem, p. 111.
18 Rego e Macias, 1993, p. 156,
«Aquilino é um enorme barroco, solitário e enorme, que irrompeu do chão no meio da álea principal da nossa lorida nº24.
e não raro deliquescente literatura da primeira metade do século. (...) Não o souberam geralmente compreender
os neo-realistas, aturdidos pela exuberância verbal de algum modo arcaizante do Mestre, desorientados pelo
comportamento “instintivo” de muitas das suas personagens, tão competentes no bem como no mal, e mais
competentes ainda quando se tratava de trocar os sentidos do mal e do bem, numa espécie de jogo conjuntamente
jovial e assustador, mas, sobretudo, descaradamente humano. Talvez a obra de Aquilino tenha sido, na história da
literatura portuguesa, um ponto extremo, um ápice...».14
De uma das obras mais emblemáticas de uma fase já revoluta da escrita de Mário Cláudio, a biograia recriada de
Rosa Ramalho, citaremos expressões fundamentais de um texto que, a nosso ver, e na esteira de Luiz Francisco
Rebelo,15 traduz nítida «barroquoilia»:
«Imagino no que redundariam, de resto, essas cerimónias fúnebres, de um grotesco capaz de novamente aniquilar,
se acaso ressuscitasse, o credor delas, com os três ou quatro amigos superstites do falecido, a arrastar seu mito,
ainda, de um Paris inexcedível, adossados às bengalas e às canadianas, como que ritualmente empalhados para o
ataúde de primeira. E já calculo no que descambaria o velório, com Lucinda a pontiicar, a submeter os presentes,
de parceria com as duas disformes primas da Barca, a uma série interminável de mistérios gozosos e dolorosos e
gloriosos, debitados numa voz tremelicante.»16
«E que, talvez, o dito monsenhor Nicotra, por ser enfatuado e pequenino, ao escancarar-se um guarda-roupa de
paramentos, cobiçara os baroquíssimos sapatos do passado Dom Rodrigo Moura Mendes, de seda bordada e tacão
alto, que lhe permitiriam descerrar bem os braços, sobre a assembleia do culto, a fazer ressoar, pelo côncavo das
abóbadas, aquela voz estentória de tenor consumado.»17
De design muçulmano, saídos dos tempos áureos do Islão, são os espigões que se erguem das asas dos hidrocerames
(ig. 2b), ou até de formas eruditas como é o caso do barroquíssimo açucareiro da ig. 2c. Daremos, como
exemplos da matriz barroca na cerâmica popular do século XX, duas, por assim dizer, jarras de altar empedradas
(ig. 3a) e uma torteira rectangular de faiança, moldada, artefacto alentejano a que abaixo voltaremos, enquanto
que as cantarinhas das ig. 2b e 5c-d constituem mostra da simbiose da estética islâmica com a da época do barroco
histórico: pois não é apanágio dos recipientes para líquidos islâmicos, o bocal em forma de taça? De raiz ainda
muçulmana é o motivo de olho que orna taças de peril sinuoso, do séc. XVII, do Convento de Sta. Clara de
Moura18 e do Mosteiro de Santa Clara-a-Velha de Coimbra. Entre outras fontes materiais disseminadas por boa
parte do país, as platibandas de muitas casas alentejanas guardam dele memória.