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Costa, Sandra, “O Islão em Portugal”, in Maria do Céu Pinto, O Islão na Europa, Editora

Prefácio, Lisboa, 2006, pp. 155-174.

O Islão em Portugal

Introdução

A visibilidade que as comunidades muçulmanas têm vindo a adquirir nas principais


cidades europeias resulta não só do seu crescimento demográfico, mas também da sua
crescente afirmação social e cultural. A formulação de políticas sociais, culturais, educacionais
e urbanísticas por parte de governos e autoridades locais têm de considerar estes grupos
minoritários, de modo a garantir a sua adaptação, efectiva integração no meio circundante e
respeito pelos seus direitos. A comunidade muçulmana a residir em Portugal é pequena, se
comparada com as existentes em alguns países da Europa ocidental, e com uma origem
recente. Os primeiros Muçulmanos chegaram a Portugal na década de 1950, mas a grande
massa veio após a instauração do regime democrático no país. Desde então, a comunidade
tem crescido em termos numéricos, mas a sua característica mais marcante é a sua evolução
ao incorporar uma cada vez maior diversidade de nacionalidades e culturas.
Contudo, a interacção de Portugal com o mundo muçulmano e o Islão não se resume à
presença de Muçulmanos nas suas ex-colónias durante o seu percurso colonial, ou às
comunidades islâmicas em Portugal na actualidade. É, pelo contrário, uma história longa e
complexa. A própria formação do país deriva deste processo, o qual muitas vezes é contado
como sinónimo de lutas, conflitos e desejo de domínio sobre o Outro. Mas se olharmos para
além das histórias de guerras e movimentos expansionistas de Muçulmanos e Cristãos,
encontramos testemunhos de um passado conjunto que envolve troca de saberes, alianças,
influências e intercâmbios entre dois mundos diferentes. São numerosos os vestígios deixados
por este passado, cuja contribuição para a formação da nossa identidade nacional é hoje
amplamente reconhecida e valorizada.
Ao poderem contar com a presença de Muçulmanos no seu território do século VIII ao
século XV, os países ibéricos beneficiaram dos contactos estabelecidos com as partes dessa
vasta civilização, e desta com o resto do mundo. Estes séculos contrastaram com o
obscurantismo dos Visigodos, presentes na Península Ibérica à data da invasão muçulmana,
sobretudos em aspectos relacionados com o dinamismo cultural e intelectual. De igual modo,
com a chegada dos Muçulmanos inicia-se um novo capítulo da história europeia, cujas
consequências se fazem sentir quer no seu percurso cultural e artístico, quer no
desenvolvimento e aplicação prática de diversas ciências.
Na primeira parte deste texto, será abordada a presença islâmica no Gharb-al-Andalus,
essim como a herança desse período histórico. Na segunda parte, será feita uma análise da
comunidade muçulmana em Portugal, nos nossos dias.

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Os Muçulmanos no Al-Andalus

Após a morte do Profeta Maomé, em 632, os Muçulmanos iniciam a sua expansão para
territórios como a Síria, o Iraque, o Egipto e Norte de África. Em 711, chegam à Península
Ibérica sob o comando do general berbere Tariq ibn Zyad. Por esta altura, ainda não eram a
civilização avançada em que se tornariam, embora já tivessem absorvido um vasto património
1
intelectual . O seu avanço foi bloqueado em Poitiers, n sudeste de França, em 631, ficando na
Península Ibérica por dominar apenas as Astúrias.
Este novo povo caracterizava-se pela sua heterogeneidade. A maioria eram berberes do
Norte de África, ainda não completamente islamizados, seguidos de uma minoria de Árabes,
que viriam a constituir a aristocracia dominante. Esta diversidade de nacionalidades dificultará
o estabelecimento de um estado coerente e territorialmente estável. A sua chegada e
expansão foi facilitada por uma série de condições existentes. A Hispânia visigótica vivia
envolta em lutas dinásticas e revoltas populares. As degradantes condições sociais e
económicas a que o povo estava sujeito, fomentavam um clima de opressão e desigualdades
crescentes. No plano religioso, professava-se um Cristianismo de pendor arianista, hostil às
concepções trinitárias do rito e liturgia romana. Por outro lado, a minoria judaica era vítima de
grande hostilidade e perseguições. Compreende-se, por isso, a aceitação por parte da
população de um novo poder político.
A islamização do al-Andalus ficou-se a dever a um longo processo de aculturação das
populações, especialmente as urbanas, a uma nova realidade cultural e religiosa, a qual foi
acompanhada pela abertura de novas rotas marítimas e de novos mercados. Os mercadores e
artesãos que se instalavam nos espaços urbanos foram o veículo não só de novas
mercadorias, mas sobretudo de novas ideias e de uma nova fé.
Num primeiro momento, a arabização da sociedade parece ter sido mínima,
principalmente nas regiões periféricas como o Gharb, palavra que significa Ocidente, neste
caso da Península Ibérica. Com o Califado de Córdova, este processo vai sofrer uma
aceleração, possibilitada pela relativa acalmia social naquelas regiões.
O Gharb assume-se como um território individualizado e com algumas particularidades
no contexto do Al-Andalus. Estando afastada dos centros decisórios de Córdova, Granada e
Sevilha, esta região resiste às tentativas de centralização por parte dos emires e califas. A
tentativa de preservar as suas liberdades políticas e económicas, deu origem a diversas
2
revoltas da população autóctone, com o objectivo de unificar politicamente aquela região.
O Tejo era a linha separadora entre o norte, menos islamizado e arabizado, e o sul, com
uma maior presença de populações muçulmanas. A incorporação dos territórios do Norte em
regiões islamizadas correspondeu a uma prática muito generalizada no al-Andalus: a
negociação do estatuto das populações residentes. Para garantirem a sua autonomia, aquelas
viam-se obrigadas ao pagamento de tributos: o kharaj, para conservarem as suas terras e

1
Adalberto Alves, O Meu Coração é Árabe, Lisboa: Assírio & Alvim, 1998, 3ªEdição, p. 34.
2
Ver Claúdio Torres, “O Gharb al-Andaluz”, in José Mattoso (dir.), História de Portugal, Vol. I, Lisboa,
Estampa, 1993, p. 417.

2
bens, e a jizya para manterem a sua religião. Os que aceitavam sujeitar-se à dominação
islâmica, mas continuavam a professar a sua fé, designavam-se por moçárabes. Até ao século
XII foram uma presença constante em todo o território peninsular.
A sul do rio Tejo, os processos de islamização e arabização foram mais intensos. Este
território, mais próximo do mar Mediterrâneo, torna-se mais receptivo a todo o tipo de
influências vindas do exterior. A região de Lisboa e Algarve constituíram os principais pólos
económicos do Gharb e as zonas mais densamente povoadas.
A presença muçulmana no Gharb pode ser dividida nas seguintes etapas, delimitadas
por importantes datas que marcaram a história do al-Andalus:
- De 711 a 1031: início da invasão berbero-árabe, representada tradicionalmente
pela batalha de Guadalete, até à queda do Califado do Córdova;
- De 1031 a 1091: proliferação dos reinos taifas até à queda do reino Abádida;
- De 1091 a 1250: domínio das dinastias magrebinas até à conquista do reino de
Faro por Afonso III, que assinala o fim da islamização no Gharb.
Quando os exércitos de Tariq submeteram os Visigodos, o império muçulmano tinha o
seu centro em Damasco, onde reinavam os Omíadas. Em 750, esta dinastia é vítima da revolta
dos Abássidas e o centro do mundo muçulmano é transferido para Bagdade. O neto do Califa
Omíada, tendo escapado ao massacre que vitimou toda a família, chega ao al-Andalus em 755.
Aqui, o príncipe Abd al-Rahmān proclama-se emir independente e funda a Dinastia Omíada de
Córdova.
Por essa altura, o Gharb era dominado por clãs iemenitas e sírios, que ao verem a sua
posição em risco, fomentam uma série de revoltas para tentarem resistir ao poder cordovês.
Em 763, o chefe do clã dos Yahsubi proclama-se representante da dinastia de Bagdade no Al-
Andalus, numa rebelião que se estende a todo o território ocidental. Esta acaba por ser
esmagada pelo emir, tal como outras que lhe seguem.
Durante os séculos IX e X, é organizado um outro movimento de resistência por uma
família de muladis, isto é, convertidos ao Islão. Os Banu Marwan conseguiram importantes
concessões da parte do emir, nomeadamente o poder de recepção de impostos. Tal veio
consagrar a soberania dos muladis na região. Para garantir o seu poder e autonomia, Ibn
Marwan fomentou uma série de alianças, quer com o poder de Córdova, quer negociando com
os cristãos do Norte. Contudo, a invasão de Évora pelo rei Ordonho II, em 913, e consequente
ajuda oferecida por Abd ar-Rahmān III, garante a este califa o poder numa região que sempre
havia rejeitado qualquer domínio externo. Durante o período califal, o Gharb permanece
ofuscado pelo brilhantismo de outras cidades do al-Andalus, não assumindo grande expressão.
A deterioração do Califado, a partir de 1008, tem um forte impacto no futuro do ocidente
peninsular, o qual volta a adquirir expressão política e cultural. A manifestação de diferentes
interesses regionais conduz à fragmentação do território em diversos reinos politicamente
independentes entre si – as taifas. Este será um período politicamente frágil, mas rico artístico
e cientificamente, verificando-se uma multiplicação dos centros de poder e de cultura.

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A primeira taifa do Gharb teve origem em Badajoz, onde, em 1022 toma o poder Ibn al-
Aftas, um berbere que inicia a dinastia dos Aftácidas. Este era um dos reinos mais importantes,
cobrindo todo o território do rio Douro a Beja, cidade que disputaram com a dinastia sevilhana.
Quando o fundador desta dinastia morre em 1045, sobe ao poder o seu filho, al-Muzzafar, o
qual fez a paz com o reino de Sevilha, seis anos mais tarde. Em 1057, uma série de perdas
territoriais obriga o rei a pagar tributo aos cristãos. Este soberano assume-se como protector
das artes e dos intelectuais, rodeando-se de poetas e filósofos, a quem atribuía cargos
políticos. Destaca-se o filósofo Ibn al-Sid al-Batalyawsi, autor de inúmeras obras, entre as quais
o Livro dos Círculos, que viria a influenciar muitas obras judaicas. Um dos poetas mais
destacados do Gharb, Ibn ‘Abdûn, dedicou mesmo uma elegia a este soberano, seu amigo e
patrono. Segundo alguns autores, o próprio al-Muzzafar terá sido o autor de uma enciclopédia
de quarenta volumes, a qual se encontra perdida.
A taifa de Ossónoba, actualmente Faro, foi dirigida por uma família da região, os Banu
Harun, com a ajuda dos muladis da região. Em 1052-54, este reino é absorvido pelos
Abádidas.
Da taifa de Ibn Tayfur, em Mértola, apenas se sabe que terá durado cerca de quinze
anos, após o que se aliou à dinastia de Badajoz com o fim de enfrentar o poder crescente de
Sevilha. Em 1044, também este reino cai sob domínio desta última.
A última taifa surgiu em Silves, uma das cidades mais importantes do Ocidente, e que
terá grande destaque na fase final da islamização. Em 1063, é anexada pela taifa de Sevilha,
sendo nomeado governador al-Mutamid, filho do soberano sevilhano.
Na segunda metade do século XI, as ambições territoriais de al-Mutadid, da dinastia de
Sevilha, levam-no a controlar quase todo o Gharb. Após a sua morte, em 1069, sobe ao trono o
seu filho, al-Mutamid. Até então responsável pelo governo de Silves, deixa naquele cargo o seu
amigo e poeta, Ibn Anmâr. Também este será, posteriormente, chamado a desempenhar
funções em Sevilha. Apesar de ser o reino mais forte, saiu debilitado pelas lutas constantes
com os Aftácidas e pelas pressões crescentes dos reinos Cristãos.
Os Cristãos tentavam enfraquecer os reinos muçulmanos através da celebração de
acordos, com os quais impunham o pagamento de tributos. Tanto al-Muzaffar, como al-
Mutamid, tiveram de pagar a Afonso VI de Castela para manterem a paz. Isto não impediu os
reis cristãos de continuarem a atacar os seus territórios.
Para os enfrentar, al-Mutamid vê-se obrigado a pedir auxílio a Yûsuf Ibn Tâshfin, emir
almorávida no Norte de África. Este desloca-se à península, e acaba mesmo por vencer o rei
de Leão e Castela. Mais tarde, o medo que o crescente poder de Yûsuf Tâshfin inspira nos
soberanos das taifas, leva a que estes tentem fazer uma aliança com Afonso VI. No âmbito
desse acordo, Al-Mutamid dá àquele rei cristão a sua filha Zaida em casamento, ao que o
soberano cristão responde com o envio de um exército. Contudo, al-Mutamid sai derrotado
pelos Almorávidas e como represália pela traição, o soberano e toda a sua família são
deportados para Marrocos, onde morrerá em Agmat, em 1095.

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A morte deste rei e notável poeta, com fortes ligações ao Gharb, marcou o
desaparecimento de um dos exponentes máximos da cultura do Al-Andalus. Foi mecenas de
outros poetas, filósofos e artistas, estimulando a produção cultural e artística. Ainda em Silves,
destacou-se pelo seu espírito de tolerância, o mesmo que atraiu a Sevilha os escritores e
intelectuais que viveram sob sua alçada. A sua corte fervilhava de actividade cultural! À
semelhança do soberano de Badajoz, nomeou muitos destes sábios para cargos políticos.
A nostalgia que sente da sua juventude vivida em Silves transparece na poesia que
envia a Ibn Anmâr, onde evoca a cidade e o Palácio das Varandas, onde teria albergado outros
poetas:

“Saúda por mim, Abû Bakr, os queridos lugares de Silves


E diz-me se deles a saudade é tão grande quanto a minha
Saúda o Palácio das Varandas
3
Da parte de quem nunca o esqueceu.”

Deste regime de autonomias locais ficaram muitos vestígios. Apesar de ter sido um
período de grande agitação e conflitualidade, as taifas permitiram o fortalecimento dos circuitos
e trocas económicas inter-regionais e a proliferação dos espaços de cultura, à semelhança dos
que tinham outrora existido em Córdova. A deslocação de escritores, artistas, intelectuais e
artesãos é intensa, o que possibilita uma constante troca de saberes e vivências.
Embora tivessem existido alguns períodos mais problemáticos, Muçulmanos, Cristãos e
Judeus haviam coexistido neste espaço sem grandes tensões. Ao chegar ao al-Andalus, os
Almorávidas impuseram um clima de maior intolerância religiosa: estes novos senhores
exercem pressões sobre as minorias religiosas por razões ideológicas, políticas e económicas.
A nível cultural, este foi um período mais estéril já que as manifestações artísticas e literárias
não recebem os incentivos de outros tempos. O poeta e historiador, Ibn Bassâm, autor de uma
antologia de poesia da sua época, terá sido um dos perseguidos por esta dinastia.
Os Almorávidas exerceram um domínio frágil e curto. Entre 1091 e 1117, várias
campanhas militares permitiram a tomada de Sevilha, Lisboa, Badajoz, Santarém e de
importantes posições em torno de Coimbra, naquilo que foi a derradeira tentativa de expansão
para Ocidente desta dinastia. A unificação política empreendida permitiu o incremento da
circulação monetária e uma intensa actividade económica nos portos do Gharb. Por seu lado,
as populações, sujeitas a pesados impostos, alimentaram um estado de rebelião constante.
Este facto impulsionou construções de cariz militar, como a reparação e reforço de muralhas,
mas também obrigou o emir a fazer concessões. A progressão da reconquista cristã foi um
sinal claro da decadência desta dinastia. Por volta de 1143, apareceram novos reinos
independentes, que ficariam conhecidos pelas segundas taifas.
Por esta altura, um muladi de Silves, Ibn Qâsi, empreendeu uma nova tentativa de
unificar toda a região do Gharb. Pensador e poeta, este sufi fundou um grupo religioso

3
Alves, op. cit., pp. 242-243.

5
conhecido por “muridines”, reunindo intelectuais, devotos e massas populares descontentes.
Em 1144, ele e os seus discípulos assumem o controlo de Mértola, Beja, Silves, Faro, Huelva e
Badajoz. Posteriormente, Ibn Wazir de Beja retira-lhe a liderança do movimento. É, então, que
Ibn Qâsi procura ajuda junto do califa almóada que acabara de tomar o poder no Norte de
África.
Os Almóadas substituem os Almorávidas em Marrocos a quem criticam a sua
religiosidade dúbia e conduta decadente, fruto dos contactos com a sociedade andaluza. Ao
assumir o poder, impuseram a sua intransigência e rigidez religiosa, ao mesmo tempo que
procuraram seguir os impulsos expansionistas dos Almorávidas. Para isso, militarizam a
sociedade, através da reorganização dos exércitos, da frota naval e da construção de
fortalezas. O pedido de Ibn Qâsi é o pretexto para a sua intervenção no al-Andalus. O exército
almóada conquista várias cidades, sendo o governo de Silves entregue àquele sufi. Ainda
assim, Ibn Qâsi recusa-se a prestar vassalagem ao soberano almóada, ligando-se a Afonso
Henriques, o que estará na origem do seu assassínio em Silves, em 1151.
Deste período ficam a recuperação de várias fortalezas, com vista à protecção das
cidades portuárias, e a edificação de algumas obras arquitectónicas de grande valor nas
principais cidades do sul. A Mesquita de Mértola é o melhor destes exemplos.
As derradeiras tentativas de progressão no território do Gharb são conduzidas por Abû
Yûsuf Ya’qub al-Mansûr, com a conquista de Torres Novas, Alcáçer do Sal, Palmela e Almada.
A derrota dos Almóadas em Naves de Tolosa, em 1212, marcou o avanço final dos reinos
cristãos sobre o Alentejo e Algarve. A debilidade militar daquele império originou uma nova
vaga de estados muçulmanos independentes. Sem grande dificuldade, os Cristãos ocuparam
as principais cidades do sul. Em 1249, Afonso III conquista Faro, Loulé, Albufeira e Aljezur,
marcando o fim do Portugal islâmico.
Como religião minoritária, o Islão permanecerá em Portugal até ao século XV,
organizados em comunas nas mourarias ou aljamas das cidades do centro e sul de Portugal.

Apogeu e declínio da cultura hispano-árabe: o legado islâmico no Gharb

Embora a presença islâmica no Gharb não tivesse deixado um legado tão significativo
como em outras regiões da Península Ibérica, deixou um contributo indelével na cultura
portuguesa.
A concentração de artistas e poetas durante os tempos áureos do Califado, em Córdova,
tornaram o Ocidente peninsular quase invisível em termos culturais e artísticos. As taifas
vieram permitir um revivalismo daquelas áreas, tomando como exemplo a corte califal. Estes
pequenos focos de cultura resultaram em obras originais em diversos campos, fruto da mistura
de influências orientais com elementos indígenas. As actividades culturais e intelectuais
assumiram novas expressões, impregnando todas as vivências do Gharb.
Os Almorávidas interromperam este ciclo devido ao seu rigorismo e preceitos religiosos.
Quando, finalmente, se verificou um certo desanuviamento da sua austeridade, alguns poetas,

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filósofos e cientistas puderam retomar as suas actividades, mas sempre sujeitos à condenação
4
dos líderes religiosos em caso de desvio.
Da dinastia almóada ficaria o nome do segundo califa, Abû Ya’qûb Yûsuf, o qual
conciliou as campanhas militares com a protecção das artes e a realização de obras
arquitectónicas de vulto. É durante o domínio desta dinastia que o poeta e cronista de Beja, Ibn
Sâhib as-Salâ, redigiu uma obra onde relata a história e revolta dos Muridines, a qual não
chegou até nós. Outra obra da sua autoria, que chegou parcialmente ao nosso tempo, foi a
história do Califado Almóada.
A língua árabe assume-se como língua internacional do comércio e da cultura, estatuto
que perduraria mesmo após o final do domínio islâmico. Língua literária e religiosa, difunde-se
entre a camada culta da população, enquanto entre o povo alastram algumas variantes
dialectais, fruto da interacção com os falares romances. De igual modo, novos vocábulos foram
adoptados, o que se relaciona com a necessidade de verbalizar novas realidades. Durante o
reinado de D. Dinis (1279-1325), foram traduzidas importantes obras do árabe por intelectuais
portugueses e muçulmanos. No século XV, ainda se encontram escrituras públicas elaboradas
naquela língua, prática que D. João I acabou por proibir.
A cultura hispano-árabe assume a sua expressão maior no Gharb através da literatura e
poesia. Os poetas assumem um lugar de destaque nesta sociedade, como aliás em todo o al-
Andalus. A diversidade de etnias existentes fez com que a literatura hispano-árabe adquirisse
alguma especificidade no contexto da civilização muçulmana. A mistura das formas poéticas
tradicionais árabes com os modelos específicos da região penínsular, originou formas como o
zajal e o muwashshaha, particularmente evidentes no final do califado e durante as taifas. Não
tendo produzido tantos poetas como outros territórios peninsulares, numerosos relatos referem
que a população do Gharb versejava com alguma naturalidade. Silves é referida como exemplo
maior deste facto. Nesta cidade, residiram dois dos maiores nomes da época – al-Mutamid e
Ibn Anmâr – os quais influenciaram gerações sucessivas de poetas. Entre os temas cantados
estavam a natureza e seus elementos, os animais, a paisagem do deserto. A forma e os temas
das cantigas de amigo e das cantigas de amor parecem ter recebido algumas influências deste
período.
A presença muçulmana também se reconhece em vestígios arquitectónicos no Sul do
país. Nalgumas cidades são ainda visíveis as muralhas, ou parte delas, construídas para sua
protecção. Em muitas casas, sobretudo alentejanas, são evidentes as influências hispano-
árabes nas chaminés, nos arcos de ferradura (já utilizados com os Visigodos), nas casas
viradas para o interior, com um pátio, privilegiando o tijolo, estuque ou azulejo.
A mesquita era um dos elementos mais importantes dos meios urbanos. Existem várias
referências a estes edifícios em cidades como Lisboa, Évora ou Silves, mas como tantas
outras, terão sido destruídas pelas guerras da reconquista, ou pela acção dos séculos. Outras,
como a Mesquita de Mértola, cederam lugar a igrejas de culto cristão. Esta chegou até aos

4
Adel Sidarus, “Religião e Cultura no Extremo Gharb al-Ândaluz”, in Portugal Islâmico – Os últimos sinais
do Mediterrâneo, Lisboa, Instituto Português de Museus, 1998, p.261.

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nossos dias, mantendo as suas medidas exteriores e alguns dos seus elementos decorativos.
Apesar de não se saber ao certo a data da sua construção, estes elementos apontam para um
edifício da época almóada. O mihrab, indicando o local da oração, encontra-se ainda em
razoável estado de conservação.
Finda a reconquista, a arte múdejar será o reflexo da colaboração entre Cristãos e
Muçulmanos que, ultrapassando divergências religiosas, criaram uma arte tipicamente
hispânica.
Outras heranças recebidas deste período foram os conhecimentos em vários e diversos
domínios: medicina, astronomia, geografia, historiografia e matemática. Durante séculos, os
Portugueses beneficiaram destes saberes, não só a nível prático, mas também como base
para o desenvolvimento de vários ramos do conhecimento.
As inovações náuticas árabes muito contribuíram para o sucesso português durante os
Descobrimentos. O astrolábio, a bússola e as cartas árabes foram recursos valiosos para levar
a cabo tal tarefa. A própria caravela é uma evolução do kârib, o barco mediterrânico utilizado
pelos Árabes. Ao longo das costas do Gharb, existiram importantes estaleiros navais, que
foram oficinas de inovação e aperfeiçoamento de novas técnicas naúticas. Os conhecimentos
geográficos, transmitidos por autores como Ibn Said e Ibn Kaldun, foram outro suporte
imprescindível àquela aventura.
Outro sinal da prolongada presença islâmica em Portugal refere-se à introdução de
novas técnicas agrícolas, como os moinhos a vento, as azenhas, os moinhos de tracção animal
e a nora. Também na área do artesanato, existem algumas técnicas herdadas destes
antepassados, sobretudo nas áreas da olaria e tapeçaria. No sul do país, são numerosos os
vestígios cerâmicos, cuja produção se verificou sobretudo durante os períodos almorávidas e
almóadas.
A sociedade do al-Andalus caracterizou-se pela sua diversidade, coexistindo num
mesmo espaço Cristãos, Judeus, Esclavões, Berberes e Árabes. Durante oito séculos,
verificaram-se períodos de grande harmonia e tolerância, intercalados por outros de maior
tensão e intransigência religiosa.
A chegada dos Muçulmanos motivou a fuga de alguns Cristãos, sobretudo os ligados às
hierarquias religiosas, para as Astúrias e outros reinos vizinhos. A maioria, porém, antes sujeita
à exploração das elites visigodas, permaneceu nos seus territórios de origem. Durante o
domínio muçulmano, esta população divide-se entre moçárabes, os que continuavam a
professar o Cristianismo, embora sujeitos ao domínio político islâmico, e muladis, os que se
convertiam ao Islão.
Os Muçulmanos não impunham a sua religião aos Cristãos e Judeus. Tal como eles,
estes povos tinham recebido a mensagem de Deus, pelo que eram chamados de Gentes do
Livro. Era-lhes concedido o estatuto de dhimmis, isto é, protegidos, o que lhes permitia,
mediante o pagamento da jizya, conservar a sua identidade religiosa e cultural. Tratava-se de
uma estrutura legal que assegurava a regulamentação das relações entre os Muçulmanos,

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Cristãos e Judeus. Contudo, o próprio estatuto de dhimmi colocava Judeus e Cristãos na base
da escala social.
Os moçárabes constituíam uma comunidade extensa, sobretudo em cidades como
Lisboa, Coimbra e Faro. O pacto que aceitavam acarretava algumas obrigações para com o
grupo dominante. Eram obrigados a dar hospedagem gratuita a Muçulmanos nas suas casas,
por três dias e três noites; eram proibidos de se vestirem do mesmo modo que aqueles; tinham
de pagar um imposto para manterem as suas terras; não podiam manifestar a sua religião fora
das igrejas.
Existem, contudo, numerosos exemplos de tolerância e aceitação entre as três
comunidades. Muitos Judeus e Cristão desempenharam importantes papéis na sociedade
muçulmana. Sinal do seu prestígio, é a presença de intelectuais de ambos os grupos na corte
de Córdova e Sevilha, no exercício de importantes funções. As comunidades judaicas,
fortemente implantadas nas cidades, tinham alguma autonomia administrativa e judicial para
resolver os litígios internamente e falavam fluentemente árabe. Foram um povo tolerado quer
durante o domínio islâmico, quer após a reconquista, mas muitos optaram por ir para o Norte
de África, onde são bem recebidos pela dinastia no poder.
As relações de parentesco entre Cristãos e Muçulmanos eram frequentes: o califa Abd
ar-Rahmān III era filho de uma princesa cristã; Afonso VI casou com Zaida, filha de al-Mutamid;
o soberano almorávida Ali Ibn Youssef era filho de uma escrava espanhola; Afonso Henriques
teve um filho com uma muçulmana, Martim Afonso Chicoro.
Por outro lado, a relação entre as comunidades foi pautada por alianças e acordos.
Figuras como al-Mutamid e Ibn Qâsi pedem socorro a reis cristãos para combater outros
Muçulmanos. O rei al-Mutawakkil de Badajoz tenta manter a independência, ora apoiando-se
em Afonso VI, ora negociando com os Almorávidas. Afonso IX de Leão pediu ajuda ao
soberano almóada para defrontar a coligação dos outros reis católicos contra si. Geraldo Sem
Pavor, tanto pôs as suas campanhas de pilhagem e terror ao serviço dos Cristãos, como dos
Muçulmanos. Neste contexto, a figura de Sisnando David assumiu grande importância. Este
moçárabe proporcionou uma plataforma de diálogo entre as duas comunidades, numa altura
em que as tensões se agudizavam, devido à pressão dos Cristãos sobre os territórios do sul.
Quando Coimbra foi conquistada e Fernando I o nomeou governador da cidade, já tinha
exercido funções de vizir de al-Mutamid e embaixador de Afonso VI, o que mostra a estima que
os soberanos e membros das duas comunidades nutriam por ele.
A partir do século XI, este clima de relativa aceitação e tolerância, que deixará profundas
marcas culturais, artísticas e filosóficas, é posto em causa pela rigidez das posições das
dinastias magrebinas. A isto corresponde a radicalização dos Cruzados que passavam pelo
território português a caminho da Terra Santa. Assiste-se à degradação das relações entre as
diversas comunidades religiosas e a um recrudescer da intolerância. Geram-se um clima de
desconfiança e agressividade mútua.
Após a reconquista final, os Muçulmanos permaneceram na Península Ibérica, como
religião dominada, até ao decreto de expulsão D. Manuel em 1496. Nos subúrbios das cidades,

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agrupam-se em comunas nas mourarias ou aljamas, enquanto que no sul se encontram
mouros forros que trabalham como assalariados rurais. O seu estatuto social, económico e
religioso é semelhante àquele dos Cristãos durante o domínio muçulmano. São-lhes impostas
várias obrigações: os tabeliães muçulmanos e judeus eram proibidos de utilizar a própria língua
no exercício das suas profissões; estavam proibidos de saírem das suas áreas de residência
durante a noite; deveriam utilizar vestuário e outros sinais distintivos; eram obrigados a dar
hospedagem gratuita a Cristãos, em termos semelhantes aos que tinham imposto durante o
seu domínio.
Ainda em 1170, durante o processo de alargamento dos territórios cristãos para sul, um
foral de D. Afonso Henriques reconheceu estatuto jurídico às comunas muçulmanas de Lisboa,
Almada, Palmela e Alcácer do Sal, ao mesmo tempo que as submete à maioria cristã. Este
documento define as obrigações fiscais desta comunidade e defende a autonomia dos
Muçulmanos, perante tentativas de ingerência nos seus assuntos por parte de Cristãos. Em
1217, Afonso II confirma estes direitos e deveres, proibindo a aposentadoria nas residências
muçulmanas, depois de ouvir relatos de abusos. Em 1269, um diploma idêntico é consignado
aos mouros forros de Faro, Silves, Tavira e Loulé.
Em Dezembro de 1496, o rei D. Manuel assina um decreto em que coloca Muçulmanos e
Judeus perante a alternativa da expulsão ou conversão. Os Muçulmanos que aceitam a
conversão passam a designar-se por Mouriscos. Muitos continuam a praticar o Islão na
clandestinidade mas, a partir do reinado de D. João III, serão vítimas da Inquisição. Ao longo
dos séculos seguintes, a sua presença em Portugal foi rareando, até deixar de existir relatos
sobre a sua existência.

A Comunidade islâmica em Portugal hoje

Nas primeiras décadas do século XX, verifica-se a existência de seguidores de outras


religiões em território nacional. Portugal era então um país colonizador, cujo domínio se
estendia por África e Timor. Em territórios como Moçambique, Guiné e Timor existiam
significativas franjas populacionais a professar o Islão. Estes anos não foram livres de tensões.
Os Muçulmanos eram olhados como uma ameaça para a unidade nacional por um Portugal
profundamente católico, conservador e fechado ao mundo.
Na actualidade, os assuntos relacionados com o Islão têm sido objecto de um crescente
interesse, contribuindo para isso um conjunto de razões. Estas são por norma condicionadas
por acontecimentos do foro da política internacional, embora não possa ser menosprezada a
gradual consciencialização do passado atrás referido. Este interesse tem motivado uma maior
exposição da comunidade islâmica a residir em Portugal, embora ainda pouco se conheça
sobre ela. Durante muitos anos, esta não foi alvo de grandes atenções por parte dos órgãos de
5
poder, dos meios académicos, nem da própria sociedade. Como parte de uma corrente

5
Ver Nina Clara Tiesler, “Novidades no terreno: Muçulmanos na Europa e o caso português”, Análise
Social, vol. XXXIX, nº 173, Inverno de 2005, p. 832.

10
migratória intensa, a grande massa de imigrantes muçulmanos que chegaram na sequência da
descolonização passaram quase despercebidos. Antes de serem identificados pela religião,
este imigrantes foram primeiramente caracterizados com referência ao elemento nacional e
étnico. Por outro lado, a própria comunidade sempre foi bem sucedida ao integrar-se na
sociedade dominante, não estando conotada com os problemas sociais que muitas vezes
afectam outras minorias.

Estrutura comunitária e tendências religiosas

Embora seja impossível saber com exactidão o número de Muçulmanos existentes em


Portugal, as diversas fontes apontam um número entre os 35 e os 40 mil, dos quais
6
aproximadamente 70% terão cidadania portuguesa. A actual presença muçulmana é
essencialmente um fenómeno pós-colonial, sem qualquer relação étnica ou de nacionalidades
com a presença histórica referida anteriormente. O número de convertidos é baixo.
Até 1974, em Portugal existia apenas uma pequena comunidade de cerca de duas
dezenas de imigrantes muçulmanos, provenientes de Moçambique e de origem indiana.
Pertencentes a uma classe média instruída, deslocaram-se para a metrópole por razões
académicas. São estes elementos que desempenharam um papel de enorme relevo ao
fazerem os contactos necessários e ao identificarem os processos burocráticos conducentes
ao estabelecimento da sua comunidade no país. Com a revolução de 1974 e a descolonização,
milhares de pessoas afluem à ex-metrópole e, entre estas, encontram-se alguns Muçulmanos,
que se fixam em Lisboa e arredores. Muitos destes trabalharam para o Estado português e
eram membros das forças militares portuguesas durante a guerra colonial. Tal como todos os
refugiados, fogem da situação confusa em que mergulharam os seus países de origem,
buscando melhores condições de vida e, em alguns casos, com a esperança de poderem
reclamar as pensões que lhes eram devidas. O facto de serem provenientes das ex-colónias e,
conhecedores da língua portuguesa, foi decisivo para facilitar a sua chegada e integração na
sociedade.
O grupo mais numeroso chegou de Moçambique, sendo muitos de origem indiana. São
maioritariamente Sunitas, mas existe também uma pequena minoria de Chiitas, pertencentes
ao ramo ismaelita nizari. No seu país de origem, estas pessoas trabalhavam em actividades
ligadas ao sector terciário e ao comércio, acabando por apresentar boas condições para se
integrarem profissionalmente.
Pela mesma altura, começam a chegar imigrantes da Guiné-Bissau, um grupo
numericamente inferior ao primeiro, mas que constitui hoje o maior grupo nacional entre a
população muçulmana. São na sua maioria Sunitas, de étnia Fulani e Mandiga. Os primeiros a
7
chegar são estudantes e veteranos das forças armadas portuguesas. Com o crescimento da

6
Tiesler, op. cit., nota da pág. 828.
7
Alexandra Prado Coelho, Muçulmanos em Portugal: Onde fica Meca quando se olha de Lisboa?, Lisboa,
Público, 2005, p. 55.

11
imigração guineense ao longo da década de 1980 e 1990, acentuam-se as diferenças socio-
económicas entre a população de origem indiana e a da Guiné. Este fluxo mais recente é
constituído principalmente por jovens do sexo masculino que procuram emprego no sector da
construção civil.
Durante este último período, começaram também a chegar Muçulmanos oriundos de
outros países, como o Senegal, alguns países árabes, Índia, Paquistão e Marrocos. Ao longo
dos anos 90, novos movimentos migratórios trazem até Portugal imigrantes do Bangladesh,
que contribuem para diversificar ainda mais a presença islâmica. Estes últimos enfrentam mais
dificuldades em integrarem-se social e profissionalmente e mesmo em conseguirem um
estatuto legal, pelo facto de não conhecerem a língua e não terem quaisquer laços com o país
de acolhimento. Vivem com algumas dificuldades económicas, trabalhando como vendedores
ambulantes, em estabelecimentos de conterrâneos que cá chegaram primeiro, e na construção
civil. Estas correntes migratórias são geralmente constituídas por grupos de homens, em idade
activa, frequentemente partilhando uma casa alugada entre vários. O objectivo da maioria é
pouparem dinheiro suficiente para trazerem a família para junto de si, o que em alguns casos já
se começa a verificar. A diversificação étnica, cultural e de vivências que estes grupos trazem,
reflecte-se na variedade de práticas religiosas observadas no seio da comunidade e no
aparecimento de novos locais de culto por todo o país.
Como é normal acontecer em situações de integração em novos ambientes, verificou-se
que alguns destes imigrantes se tornaram mais conscientes da sua religião, e como tal,
frequentadores das mesquitas e centros islâmicos após a sua chegada a Portugal. Tal constitui
uma tentativa de adquirir um sentimento de pertença a um grupo, o que ajuda os recém-
chegados a recuperar e renegociar as suas identidades numa sociedade que lhes é estranha.
O Islão é para muitos, sobretudo os chegados no seguimento dos novos fluxos migratórios,
sinónimo de lar, pois é a única coisa que têm como certo numa situação nova que para eles é
repleta de incertezas.
A discussão sobre a sucessão do Profeta originou a cisão do Islão em duas vertentes: a
Sunita e a Chiita. Os primeiros, mantendo-se fiéis à Sunna, apoiaram Abu Bakr, o qual se
tornou o primeiro Califa. Os segundos, defendendo que deveria ser alguém da família do
Profeta a suceder-lhe, deram o seu apoio a Ali, genro e primo daquele. Para os Chiitas, a
nomeação de alguém que sem laços de sangue com Maomé constituía um afastamento dos
ideais daquele. Esta dissensão, tal como todas as vagas que se seguiram, ocorreu num
contexto socio-político específico. Ambas as tradições religiosas do Islão marcam presença em
Portugal, embora com uma expressão numérica bastante diferente.
Tal como no resto do mundo, a maioria dos Muçulmanos em Portugal é Sunita. São
estes que têm maior visibilidade dentro e fora da comunidade, estão na base da sua criação e
na liderança da maioria das suas instituições.
Os Sunitas constituem um grupo heterogéneo, podendo ser identificadas algumas
correntes e práticas distintas no seu interior. Geralmente, estas correntes distinguem-se pela
oposição de ideias no que respeita às fontes doutrinárias, ao papel do Profeta, à aceitação dos

12
santos e às práticas religiosas. Em Portugal, marcam presença as tendências Ahle Sunnah wa
Jamaat e Tabligh Jammat, para além de uma ou outra confraria característica da África sub-
8
sahariana, como é o caso da corrente senegalesa de tradição sufi, os Mourides.
Os membros do Ahle Sunnah wa Jammat, de influência sufi, praticam o culto do Profeta
Maomé e a adoração dos santos e dos mestres sufis. A ortodoxia dos segundos rejeita tais
práticas: nenhum ser humano poderá ser objecto de culto, nem mesmo o Profeta.
O Tabligh Jammat consiste num movimento missionário islâmico com origem na Índia,
na década de 1920, que depressa se difundiu pelo mundo. A sua abordagem do Islão é
baseada no Alcorão e na Sunna, de modo a distinguir o que é normativo e secundário. Grupo
conservador, têm como exemplo a seguir o modo de vida e os hábitos do Profeta. Defendem
uma completa separação entre os aspectos religiosos e os elementos culturais ou tradicionais,
os quais são acusados de distorcer a natureza do Islão. Cada um dos seus membros tem a
obrigação de dar três dias por mês e quarenta dias por ano à pregação ou dawa. Esta é feita
junto de outros Muçulmanos, através de visitas a mesquitas e outros locais de culto, mas
também junto dos mais desfavorecidos, expondo a sua concepção de Islão e práticas
islâmicas. Os tablighis começaram a ganhar expressão em Portugal no início da década de
1980, com ligação a alguns Moçambicanos descendentes de indianos. Esta tendência é,
actualmente a que mais importância vai adquirindo entre os Muçulmanos do país, verificando-
se um interesse crescente em conhecer o pensamento desta corrente. Tal poderá ser
interpretado como consequência da revitalização de algumas práticas religiosas entre uma
população imigrante oriunda de contextos culturalmente diferentes. É notória, por exemplo, a
influência deste movimento entre a crescente população do Bangladesh.
Os Tabligh Jammat, por defenderem uma religião mais restritiva e rejeitarem alguns
aspectos da vida ocidental, acabam muitas vezes por se verem confrontados com algumas
desconfianças. Nalguns países europeus, este movimento transnacional já foi acusado de
9
fomentar um ambiente propício à divulgação de ideais mais extremistas. Estas desconfianças
10
baseiam-se no facto de pessoas como Zacarias Moussaoui ou Djamel Beghal, acusados e
condenados por ligações a actos de terrorismo, terem passado pelo movimento antes de
evoluírem para grupos defensores de uma ideologia extremista. Não existe, contudo, nenhuma
ligação entre este grupo e actos radicais.
Em número bastante menor, os Chiitas em Portugal dividem-se em dois ramos: os
septimamicos Ismaelitas e os duodécimamicos Isna Ashari. Estes resultam de uma segunda
divisão entre os Muçulmanos, que teve lugar no século VIII. Os duodécimamicos, como o nome
indica, reconhecem doze imãs como descendentes directos de Ali, o genro do Profeta

8
Confraria com origem no Senegal, ligada à etnia Wolof. Nasce no final do século XIX através da reunião
dos discípulos de Amadu Bamba. Este é considerado um homem santo no Senegal. Adepto da não-
violência e tido como possuidor de uma fé inabalável, são-lhe atribuídos alguns milagres.
9
“French Islamic Group Offers Rich Soil for Militancy”, International Herald Tribune Online, 29 de Abril de
2005 (http://www.iht.com/articles/2005/04/28/news/muslim.php).
10
Zacarias Moussaoui foi condenado nos EUA pelo seu envolvimento nos atentados de 11 de Setembro
de 2001. Djamel Beghal, membro confesso da al-Qaeda, foi condenado pelo envolvimento numa tentativa
de atentado à embaixada americana em Paris. Ambos foram seguidores do movimento tabligh em
França.

13
nomeado califa em 656. Os septimamicos aceitam os primeiros seis imãs, mas não acatam a
decisão do sexto de retirar o título ao seu filho Ismail. Decidiram seguir este último, o que deu
lugar a uma nova seita denominada de Ismaelita.
Em Portugal, os seguidores do culto dos Doze Imãs, a forma de Chiismo mais comum,
não ultrapassarão as duas centenas de crentes. Muitos são indianos provenientes de
Moçambique; outros estão ligados à embaixada do Irão; há aqueles que vieram para Portugal
porque se casaram com cidadãos nacionais; existem, ainda, alguns convertidos ao Islão chiita.
Os Ismaelitas Nizaris contam com cerca de sete a oito mil membros, número elevado se
analisado numa perspectiva comparativa europeia. O seu líder espiritual é o príncipe Aga
Khan, o 49º Imã, tido como descendente do Profeta Maomé. É considerado o único nos nossos
dias com autoridade para interpretar o Alcorão, e responsável por ditar as orientações pelas
quais os membros da comunidade deverão reger as suas vidas. Os Ismaelitas começaram por
deslocar-se, ainda no século XVIII, da região do Gujarat para Moçambique e, depois de 1974,
vieram para Portugal. Conseguiram integrarem-se socialmente e mantêm boas posições
profissionais. Em termos económicos, são o grupo mais bem sucedido entre os Muçulmanos
portugueses. Fixaram-se em Lisboa, são poucos no Porto, e mantêm uma forte ligação a
outras comunidades ismaelitas, sobretudo com a britânica e a canadiana.

Institucionalização, Integração e Interacção Sócio-Política

As várias instituições islâmicas existentes são o reflexo da cada vez maior pluralização
cultural, demográfica e socio-económica que caracteriza esta comunidade.
No processo de institucionalização da comunidade muçulmana no nosso país, os poucos
Muçulmanos que aqui se instalaram nos anos de 1950 e 1960 exerceram um papel
preponderante. São estes que, em 1968, criam a Comunidade Islâmica de Lisboa (CIL),
instituição que os representaria junto da sociedade e do poder político. Os dois únicos
presidentes que a CIL teve até hoje saíram deste seu núcleo fundador: Valy Mamede, a quem
se seguiu, em 1988, Abdool Magid Karim Vakil.
O Estado Novo havia-se apropriado do conceito de lusotropicalismo, teorizado por
Gilberto Freyre, adoptando-o como ideologia oficial durante a última fase do regime colonial.
Este estabelecia o reconhecimento das raízes islâmicas de Portugal, ao mesmo tempo que
servia os intentos de cativar as populações muçulmanas das colónias. É socorrendo-se desta
ideia, que o presidente da CIL defende a criação de uma comunidade islâmica lusófona, unindo
as várias populações muçulmanas dos países sob domínio português. Tal projecto conta com o
cepticismo de alguns membros da sociedade e do poder, que o encaram como um perigo para
a unidade nacional e cultural. Embora a desconfiança em relação aos Muçulmanos fosse
diminuindo com o passar dos anos, a criação da CIL levantou ainda algumas dúvidas, num
regime com fortes ligações à Igreja Católica e com grande receio de possíveis ligações a
países terceiros. Neste âmbito, Valy Mamede vê-se obrigado a ter de prestar declarações à

14
PIDE, por diversas vezes, de modo a reafirmar o não envolvimento da comunidade em
actividades que colocassem em risco o regime.
Se até 1974 há uma tentativa de controlar/instrumentalizar as várias comunidades
islâmicas, após a revolução, o regime democrático tenta aproximar-se da CIL tendo em vista
fins políticos. O Estado está interessado em fomentar boas relações políticas e económicas
com os países árabes, e nesse sentido acha que a comunidade islâmica pode servir como elo
11
de ligação. Por outro lado, há uma preocupação evidente em se demarcarem e afastarem do
catolicismo salazarista. Nesta conjuntura, o presidente da CIL acaba por encetar uma série de
contactos com as delegações dos países árabes. É bem sucedido ao conseguir apoios
financeiros e logísticos destinados à própria comunidade. O embaixador do Egipto cedeu a
cave da sua casa para as orações de sexta-feira. Por iniciativa da delegação de Marrocos, que
conta com o apoio das outras representações diplomáticas de países islâmicos, é criado o
12
Centro Islâmico de Portugal em 1977. Os apoios financeiros conseguidos foram canalizados
para a edificação de uma mesquita. O pedido para a sua construção datava de 1966, mas a
aprovação do projecto só foi concedida em 1978. A CIL beneficiou de generosas contribuições
de países como a Arábia Saudita (cujos cofres estatais iam enchendo na sequência da crise
petrolífera, permitindo-lhes financiar grandes obras por todo o mundo), Kuwait, Emirados
Árabes Unidos, Líbia, Irão, Iraque, entre outros. Algumas destas contribuições, com o tempo
foram-se tornando mais escassas na sequência de vários conflitos no Médio Oriente. Com o
início da construção da mesquita, começa a ganhar forma uma velha aspiração da
comunidade: possuir um local de culto próprio, onde se pudessem reunir para as suas orações
e festejar as datas e eventos importantes do Islão. Finalmente, era-lhes permitido expressar a
sua identidade religiosa e assinalar a sua presença. Entretanto, em 1979 o Primeiro-Ministro,
Mota Pinto, facultou um edifício, que funcionaria como local de culto provisório. Este é
abandonado em 1985, quando a Mesquita Central de Lisboa é inaugurada.
Porém, já em 1982 havia sido fundada a Mesquita do Laranjeiro por iniciativa da
Comunidade Islâmica do Sul do Tejo. Desde 1996 que esta inclui uma madrassa (escola) para
o ensino do Alcorão a crianças e jovens. No ano seguinte nasceu a sala de culto de Odivelas, a
qual se viria a tornar, em 1991, na Mesquita Aicha Siddika. Ainda em Odivelas existe, desde
1997, o Darul-Ulum Kadria-Ashrafia, um centro de cultura e educação islâmica. De notar que,
tanto a Mesquita do Laranjeiro, como este último estão ligados à corrente Ahle Sunnah wa
Jammat.
Entretanto, o crescimento de comunidades em várias outras cidades do país mostrou a
necessidade de criar novos espaços, onde aquelas se pudessem reunir. Nos locais em que
existiam meios e o número de crentes o justificava, criaram-se mesquitas onde pudessem fazer
as orações diárias com os respectivos imãs. Quando esta situação não se verificava, tratava-se
de assegurar as condições necessárias para a realização dos ritos básicos, como as reuniões

11
AbdoolKarim Vakil, “Do Outro ao Diverso – Islão e Muçulmanos em Portugal: história, discursos,
identidades”, Revista Lusófona de Ciências das Religiões, Ano III, 2004, nº 5/6, p. 301.
12
Nina Clara Tiesler, “Muçulmanos na Margem: a nova presença islâmica em Portugal”, Sociologia –
Problemas e Práticas, nº 34, Dezembro de 2000, p. 127.

15
de sexta-feira e os encontros durante o mês do Ramadão. Em 1991, aparece a mesquita de
Coimbra, onde se juntam algumas famílias e estudantes para as suas orações.
A mesquita do Porto tem uma história mais tardia, bem como a sua comunidade.
Durante muitos anos, foram poucos os Muçulmanos a residir nesta cidade. Em 1999, já com
cerca de dois mil Muçulmanos na região, dá-se a criação formal da comunidade. O local que
fora um ginásio, e onde a comunidade já se costumava reunir anteriormente, foi transformado
numa mesquita. Hoje, esta é frequentada por cerca de quatro mil pessoas, devido ao
incremento da população imigrante em busca de melhores condições de vida. Muitos
Guineenses, Marroquinos e Bangladeshianos procuram trabalho na construção civil ou
dedicam-se ao comércio. Muitos destes começaram como vendedores ambulantes pelas ruas
da cidade e arredores, vendendo diferentes produtos que compravam a distribuidores
espanhóis. Entretanto, alguns conseguiram abrir o seu próprio negócio, onde continuam a
vender o mesmo tipo de artigos. Este é o caso de um pequeno grupo de Marroquinos existente
13
em Aver-o-Mar, na Póvoa do Varzim.
Para além destes locais, existem numerosas salas de culto islâmico espalhadas por todo
o país, que servem as pequenas comunidades que estão afastadas ou impossibilitadas de irem
às mesquitas existentes. O crescimento do número de salas de culto durante os últimos anos
mostra bem o crescimento da comunidade, a sua maior dispersão geográfica e a diversificação
de nacionalidades e de práticas religiosas. Assim, é mais cómodo ter um local de reunião junto
das suas residências ou do local de trabalho, onde se possam deslocar para fazer as cinco
orações diárias. Estas existem em grande número na região de Lisboa – por exemplo no
Martim Moniz, Póvoa de S. Adrião, Portela de Sacavém, Santo António dos Cavaleiros,
Carnaxide, Loures, Barreiro, Colina do Sol, Vialonga e Fetais –, mas também em Évora,
Albufeira, Portimão, Faro e até na Madeira.
Em 1989, Valy Mamede, já afastado da presidência da CIL, fundou em Lisboa o Centro
Português de Estudos Islâmicos e a Associação para a Educação Islâmica.
Para além destas instituições, destacam-se outras com ligação às diferentes correntes
religiosas. Os Ismaelitas constituíram a Comunidade Muçulmana Shia Imani Ismaili. O Centro
Ismaelita de Lisboa foi inaugurado nas Laranjeiras, em 1988, formando conjuntamente com os
de Londres e Vancouver, os três grandes centros Ismaelitas existentes. Aquele inclui a
Fundação Aga Khan, que se dedica a projectos de desenvolvimento, e a Casa da Comunidade,
onde os fiéis de tradição khoja (de origem indiana) se reúnem para a oração. Os Chiitas
duodecimamitas Isna Ashari organizam-se na Comunidade Chiita de Portugal, com sede em
Almada.
Para aprofundar as ligações no interior da própria comunidade, e entre estas e o mundo
não-muçulmano, foi determinante o surgimento de meios de comunicação criados pelos
membros da comunidade islâmica. O aparecimento de órgãos informativos sobre o Islão e a
comunidade permitiu que estes fossem representados através de um discurso com origem no

13
Paula Ferreira, “Jovens marroquinos em Portugal vivem cada vez mais o Islamismo”, Diário de Notícias,
17 de Outubro de 2004, p. 22

16
interior da própria comunidade. Assim, Muçulmanos portugueses escrevem sobre o Islão em
português, naquilo que para alguns são as únicas fontes de acesso à sua religião, no seu país
e na sua própria língua. A primeira destas publicações saiu por altura da formação da CIL. Até
1983, a revista Islão foi publicada anualmente, e não trimestralmente como estava planeado.
Em 1981, aparece a Al-Furqán, inicialmente ligada à CIL, mas que mais tarde se tornou
independente desta. Ainda hoje é publicada, tendo inclusive um site na Internet. A editora e o
corpo dirigente desta publicação são ainda responsáveis por alguns livros e panfletos sobre
questões islâmicas. Entre 1982 e 1984, a CIL teve como órgão oficial de informação a Al-
Qalam. Entretanto, a Comunidade Islâmica do Sul do Tejo passou a publicar a Al-Nur, a partir
14
de 1987, e a Al-Madinah desde 2001.
A criação destas instituições e veículos de informação foi decisivo para ajudar à efectiva
integração daquela que é a maior minoria religiosa no país. E embora assim seja, esta foi
frequentemente vítima de desatenção por parte das autoridades, o que se traduziu na ausência
de políticas facilitadoras da prática do Islão e da promoção de um estatuto legal mais favorável.
A nova Lei da Liberdade Religiosa, aprovada no Parlamento, em Abril de 2001, parece ter
vindo de encontro a algumas reivindicações. Esta altera a situação vigente até então em
aspectos relacionados com a celebração de casamentos religiosos, os quais passam a ser
considerados válidos perante a lei, a assistência a doentes em hospitais, a educação religiosa
nas escolas. Acima de tudo, esta lei garante às minorias religiosas o reconhecimento do seu
estabelecimento no país.

A convergência de dinâmicas globais e nacionais na comunidade islâmica

O estabelecimento num novo país, o contacto com Muçulmanos de outras origens e a


necessidade de reconstruir identidades num contexto social diferente, conduz necessariamente
a alterações no modo de praticar a religião. Desde meados da década de 1980, observa-se na
Europa a tendência para uma intensificação e diversificação das rotas migratórias, variando o
leque de países de origem dos imigrantes muçulmanos. Foram estes fluxos que trouxeram até
Portugal imigrantes do Paquistão, Senegal, Guiné-Conakri, Bangladesh, países magrebinos
(com destaque para Marrocos) e outros países árabes. A sua chegada cria a actual
diversificação de nacionalidades, etnias, condições socioeconómicas e culturais na presenca
islâmica em Portugal.
Durante muito tempo, existiu uma diferença fundamental entre a comunidade
muçulmana a residir em Portugal e as residentes em vários outros países europeus. Nos outros
países europeus, muitas delas são constituídas por elementos provenientes, se não de um
mesmo país, de uma mesma região geográfica, em qualquer um dos casos de países ou
regiões de matriz religiosa e cultural islâmica. É o caso dos tunisinos, marroquinos e argelinos
em França e na Bélgica; dos sul-asiáticos no Reino Unido; dos turcos na Alemanha. No caso
português, isto não se verificava. Quando as populações moçambicanas e guineenses se

14
Vakil, op. cit., nota da p. 304.

17
deslocaram para cá, tinham já experiência de viver numa sociedade religiosa e culturalmente
15
marcada pelo catolicismo, em que eles constituíam uma minoria. A chegada de imigrantes
provenientes de sociedades e países de maioria islâmica, a partir dos últimos anos da década
de 1980, implica a introdução de novos elementos e características no modo de viver o Islão,
até então com raízes essencialmente africanas. A convivência entre pessoas de várias
nacionalidades e realidades culturais tem vindo a operar transformações importantes no
panorama português. Ao chegarem, muitos destes imigrantes procuram nas comunidades e
instituições islâmicas existentes, um apoio à sua integração na sociedade portuguesa. Passada
a fase de adaptação, alguns avançam para formas de organização diferentes.
O facto de alguns destes novos imigrantes terem passado por outros países antes de se
estabelecerem em Portugal significa que, para além das suas tradições e culturas, transportam
consigo as influências adquiridas durante as suas experiências nesses locais. Alguns dos
bangladeshianos que se encontram em Portugal, por exemplo, têm na sua história pessoal a
16
passagem pela Arábia Saudita, antes de se deslocarem para a Europa. Com eles trazem
17
algumas práticas e elementos wahabitas, que até então apenas se tinham manifestado pela
proximidade dos tablighis a esta corrente.
Outro factor causador de transformações é o papel que as novas tecnologias
desempenham ao promover contactos com outras comunidades e populações muçulmanas.
Os Muçulmanos portugueses, sobretudo as gerações mais novas, vêem-se hoje perante uma
enorme diversidade de fontes de acesso ao Islão, o que produz ligações transnacionais
bastante diferentes das mantidas há alguns anos atrás. Isto possibilita a partilha de
experiências, de valores e ideias com elementos de comunidades localizadas noutros países. A
Internet tem importância considerável ao forjar um sentimento de consciência colectiva e
pertença entre os Muçulmanos dispersos nas várias partes do mundo, formatando uma visão
global do Islão.
Ainda não é completamente perceptível o impacto de acontecimentos como os atentados
de Nova Iorque e Madrid, e consequente crise internacional, na presença islâmica em Portugal.
A comunidade muçulmana, bastante respeitada a nível nacional, tem a preocupação de se

15
Tiesler, op. cit., p. 134.
16
Com a crise petrolífera de 1973, os estados do Golfo Pérsico, pouco populosos, começam a sentir a
necessidade urgente de importar mão-de-obra. Inicialmente, viram-se para outros países do Médio
Oriente na busca de trabalhadores. A partir do início da década de 1980, o medo das possíveis
implicações políticas que o acolhimento daqueles pudesse ter, aumenta o recrutamento de mão-de-obra
no Sul e Este da Ásia. Neste contexto, muitos indianos, paquistaneses e bangladeshianos, entre os quais
trabalhadores qualificados, dirigem-se para a Arábia Saudita, Oman, Qatar, Kuwait e Emirados Árabes
Unidos. Ver David Held [et al.], Global Transformations: Politics, Economics and Culture, Cambridge,
Polity Press, 1999, pp. 300-301.
17
O Wahabismo é um movimento religioso puritano e conservador com origem na Arábia Saudita, no
século XVIII. Mohammed Ibn ‘Abd al-Wahhab, o iniciador deste movimento reformista, considerava que a
mensagem de Alá transmitida por Maomé se encontrava subvertida pelo afastamento das fontes originais
do Islão. Os princípios seguidos pela primeira geração de Muçulmanos estavam a ser corrompidos,
nomeadamente pelo uso de talismãs, pelo papel atribuído aos santos, pela música e dança. Defendia que
todos os Muçulmanos deveriam observar rigorosamente as normas do Islão, de modo a realizar uma
sociedade islâmica justa. Perseguido na sua cidade de origem, o pregador ‘Abd al-Wahhab foi acolhido
pelo clã al-Saud, em Diriya, os quais se servem dos seus ensinamentos para se imporem às outras tribos
da península arábica. A expansão do poder político dos Saud anda a par com a disseminação das
crenças wahabitas, sendo o actual estado saudita resultado dessa aliança.

18
distanciar de questões políticas, sobretudo controvérsias ligadas a movimentos radicais. Ainda
assim, dados recentes referem a presença no país de elementos, que gravitando em torno de
imigrantes paquistaneses e magrebinos aqui estabelecidos há menos tempo, constituem
18
pequenos focos de radicalismo político e religioso. Estes escolheriam algumas das muitas
salas de culto criadas nos últimos anos, para exprimirem as suas opiniões. Como estes locais
estão fora da alçada da Comunidade Islâmica, não existe qualquer controlo sob o tipo de
discursos proferidos e de ideias defendidas. Existe, aliás, alguma discussão em torno da
possibilidade de eventuais tentativas de aproximação às comunidades islâmicas em Portugal
por parte daqueles, e sobre as consequências que daí poderiam advir. Algumas destas
pessoas possuem uma alargada rede de contactos, nomeadamente com indivíduos de
diversas tendências e sensibilidades religiosas, proporcionado pelo facto de muitos terem
residido em outros locais antes de aqui se estabelecerem.
Por outro lado, Portugal é muitas vezes referido com ligação a actividades criminosas,
19 20
como redes de falsificação de documentos e de apoio à imigração ilegal . Estas constituem
importantes instrumentos de suporte e financiamento ao terrorismo internacional. O
21
desmantelamento de algumas destas redes em território nacional, aliado às investigações a
decorrer em Espanha no âmbito dos atentados de 11 de Março, que conduziram à detenção de
22
suspeitos na posse de documentação falsa de elaboração portuguesa, lançam a suspeita que
Portugal se possa tornar uma base logística de apoio a grupos vinculados a redes de
terrorismo islâmico. A notícia inquietante de que os indivíduos que planeavam atentar contra a
Audiência Nacional, em Madrid, procuraram adquirir explosivos em Portugal fez aumentar este
receio.

Conclusão

Durante oito séculos, o território que hoje corresponde a Portugal pode contar com a
presença de povos oriundos do Médio Oriente e Norte de África. Estes trouxeram novos
produtos e artefactos, mas sobretudo uma nova religião, uma nova cultura e novos saberes. A
chegada destes grupos humanos à Península Ibérica, onde mantiveram um domínio político
efectivo durante cerca de seis séculos, correspondeu também à sua entrada em território da
Europa ocidental. Estes factos históricos acabaram por ser determinantes para a evolução

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Catarina Carvalho e Valentina Marcelino, “ Radicais islâmicos em Portugal escolhem mesquitas
clandestinas”, Expresso, 20 de Novembro de 2004, p. 19.
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Note-se a propósito das redes de falsificação de documentos, que na maior parte das vezes estas
envolvem cidadãos nacionais que estabelecem “parcerias comerciais” com outros grupos ou indivíduos
ligados a actividades criminosas, a troco de avultadas somas de dinheiro. Para mais informação sobre
este assunto ver José Van Der Kellen, “As redes de imigração ilegal e o fenómeno do terrorismo”, Politica
Internacional, nº 28, II Série, Julho de 2005.
20
“SIS desmantela rede em 2003”, TSF Online, 26 de Março de 2004
(http://tsf.sapo.pt/online/portugal/interior.asp?id_artigo=TSF144187).
21
“Operação Pandora desmantela rede de falsificação de documentos”, Polícia Judiciária, 10 de
Dezembro de 2004 (www.pj.pt/cgi-bin/news.pl?action=viewarticle&id=2022).
22
Margarida Pinto, “Dos arrestados por el 11-M compraram DNI falsos en Portugal”, El Pais, versão
online, 15 de Dezembro de 2004
(www.elpais.es/solotexto/articulo.html?xref=20041215elpepinac_1&type=Tes&ed=diario).

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científica e cultural de todo o continente, embora o legado islâmico e árabe tenda a ser
frequentemente esquecido ou desvalorizado quando se discutem as raízes culturais da Europa.
No contexto do al-Andalus – denominação dada ao território antes conhecido por Ibéria
ou Hispânia –, o Gharb assumiu um carácter próprio. O desejo de autonomia das populações
manifestou-se através das tentativas de resistência ao poder centralizador das grandes cidades
andaluzas. Se é verdade que as cidades do Ocidente peninsular nunca conseguiram atingir o
esplendor de Córdova, Granada ou Toledo, as marcas desta época existem ainda hoje no sul
do país.
A reavaliação deste passado islâmico e da sua contribuição para a formação de uma
identidade nacional, tem despertado um enorme interesse pelo universo muçulmano. Esta
curiosidade tem ainda outra razão de ser, mais imediata, no mundo de hoje. Os
acontecimentos de domínio internacional que tiveram os Muçulmanos como intervenientes
colocaram o Islão numa posição de destaque. Curiosamente, este interesse não assumiu como
objecto preferencial de estudo a componente islâmica da nossa sociedade actual. Apesar desta
ter adquirido uma maior visibilidade nos últimos anos, nomeadamente nos meios de
comunicação social, o seu reconhecimento e contributos enquanto parte do tecido social e
cultural continuam ainda ignorados.
A população muçulmana em Portugal na actualidade situa-se entre os 0.3% e os 0.4%
da população total. Os primeiros a chegar desenvolveram notáveis processos de integração, e
estão hoje presentes em vários sectores da sociedade: no comércio, indústria, medicina,
finanças e cultura. São eles os arquitectos da Comunidade Islâmica de Lisboa, a qual continua
a desempenhar um papel central nas ligações entre os Muçulmanos e a restante sociedade.
A progressiva abertura de Portugal ao mundo, em virtude do aprofundamento do
processo de integração europeia, e os movimentos migratórios globais atraem para o país mais
imigrantes muçulmanos, por razões económicas. Estes sentem maiores dificuldades de
integração, com os obstáculos decorrentes do factor cultural e linguístico e, muitos deles, vivem
em condições precárias. É nesta última fase, que a presença islâmica em Portugal adquire o
seu carácter multinacional, multicultural e no cruzamento de diversas correntes e tendências
religiosas. E Portugal confirma-se como sociedade pluralista em termos culturais e
confessionais. Estas dinâmicas não são livres de tensões. A Europa vive hoje com a certeza de
que células radicais se formaram no seu interior por indivíduos que se movimentam nas
margens das comunidades muçulmanas.
Por tudo o que foi dito, pode-se concluir que em Portugal não se verificam as condições
que em outras sociedades facilitaram a formação de agrupamentos radicais. Existem, contudo,
indícios que apontam para a passagem de extremistas pelo país, relacionados com questões
logísticas, de financiamento e mesmo de doutrinação.

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