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Struggle for Synthesis

A Obra de Arte Total nos Séculos XVII e XVIII


TheTotal Work of Art in the 17th and 18th Centuries
Simpõsio Internacional

Azulejaria e vivência exterior na


segunda metade do século XVIII:
os exemplos de Queluz
e da Quinta dos Azulejos
Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara

INSTITUTO
PORTUc;UÊS DO
PATRIMONIO
~ ARQUITECTÓNICO
Azulejaria e vivência exterior na segunda metade
do século XVIII: os exemplos de Queluz
e da Quinta dos Azulejos

Maria Alexandra Trindade Gago da Câmara


Universidade Aberta, Lisboa - PortuBal

resumo abstract

o tema a apresentar neste encontro procurará abrir- This paper is designed to open up an avenue for re-
-se como campo de ensaio de hipóteses, conjectu- search into the question of concepts and ideas in the
ras e questões numa linha de investigação em aberto field of Portuguese XVIII century tiles (azulejos), more
na área da azulejaria portuguesa setecentista, espe- specifically between 1750 and 1790, a chronological
cificamente entre 1750 e 1790, ciclo cronológico que period which corresponds to the final phase of the Great
corresponde à fase final da designada Grande Pro- Production (1750-1755), and that of the Post-Earth-
dução (1750-1755) e ao período Pós- Terramoto (1755- quake period.
-1780). The study begins by Iisting pictorial themes of some tile
Partindo do inventário de alguns temas iconográficos paintings (when integrated into architecture), and goes
na pintura azulejar (quando integrados na arquitec- on to cover taste and fashion of the period Le. the re-
tura) e alargados ao gosto da época - ostentando o finement of high society as a way of life, and the evo-
refinamento da sociedade galante como modo de cation of XVIII century everyday life. It is then possible
viver e de evocar um quotidiano setecentista - será to work through the more significant phases in the cor-
possível trabalhar diferentes momentos significativos pus azulejar of the period in question, by the system-
no corpus azulejar do período em questão numa aná- atic analysis of images, symbols and gestures set by
lise sistemática de imagens, símbolos e gestos fixa- the ornamental and decorative language of the rococo,
dos pela gramática ornamental e decorativa do rococó and so establish a Iink between the plurality of these
estabelecendo a ponte entre a plural idade de tais representations and their interpretative models, leading
representações e seus modelos interpretativos com to a broader discourse on Portuguese art and culture
um discurso mais vasto da arte e da cultura portu- of the time.
guesa deste período. This paper focuses on an approach at the levei of exter-
A nossa leitura incidirá numa abordagem ao nível nal use of space, emphasizing interaction between archi-
da vivência dos espaços exteriores, privilegiando a tecture and mural painting, primarily in gardens, using
interacção entre arquitectura e pintura parietal, nomea- examples such as the gardens of the Palácio de Que-
damente em jardins (exemplos em questão: os jar- luz and the Quinta dos Azulejos, Paços do Lumiar, which
dins do Palácio de Queluz e o conjunto da Quinta present a continuous spectacle for the senses: the inti-
dos Azulejos no Paço do Lumiar), propondo a cria- mate and dreamy qualities of the rococO.
ção permanente de um espectáculo de representa-
ção dos sentidos: valores intimistas e oníricos do
rococó.

Apesar da importância vincadamente atribuída à azulejaria da segunda metade de Setecentos, temos


que reconhecer forçosamente que este assunto ainda não mereceu um estudo específico, nem uma
análise sistematizada.
Apercebemo-nos à priori da fascinante variedade e riqueza deste período em termos de produção
azulejar, na criação de uma multiplicidade assinalável de temáticas e modelos, que coexistem e
entrecruzam em contemporaneidade três variantes de gosto: o barroco de inspiração joanina, o
rococó e o pombalino.

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Azulejaria e vivência exterior na segunda metade do século XVIII: Struggle for Synthesis Profane spaces
os exemplos de Queluz e da Quinta dos Azulejos

Nos últimos quarenta anos, o estudo da azulejaria portuguesa tem revelado uma maior preocupa-
ção e rigor especificamente no entendimeno desta arte aquém da suas formas exclusivamente deco-
rativas, avançando-se com ideias mais elaboradas sobre este género artístico; de qualidade insuperável
e que constitui uma das expressões maiores da arte portuguesa do século XVIII.
É especificamente em relação à azulejaria da segunda metade de Setecentos - período que nos
interessa abordar - que uma periodização e arrumação cronológica tem levantado alguma pro-
blemática. Esta questão prende-se com a definição do estilo rococó e com a sua emancipação rela-
tivamente ao período barroco 1; polémica que nos transportaria para lá do âmbito deste trabalho.
Só recentemente se caracterizou este ciclo artístico com características distintas e com uma evo-
lução própria, não sendo de estranhar que parte dos principais historiadores do azulejo, como
Santos Simões e Reinaldo dos Santos, desaparecidos antes desta renovação conceptual, se tenham
mantido alheios à mesma, devendo por isso sempre entender os seus estudos em relação a este
período com uma certa distanciação crítica.
Há ainda a acrescentar trabalhos recentes de cariz monográfico que paulatinamente vão compondo
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uma panorâmica estética e cronológica mais sólida e coerente da arte deste períod0 .

Podemos hoje admitir que existem três fases individualizadas aplicadas ao azulejo rococó: a Jase
inicial - compreendendo os anos que antecederam o terramoto de 1755 - onde as inovações do
período joanino final são desenvolvidas. Este é o período marcado pelo arrojamento decorativo,
individualidade e liberdade criativas. AJase intermédia (entre 1755 e 1775), que coincide com a
designada por "pombalina", mais sistematizada em termos criativos, mas também mais exuberante
na sua força decorativa e pictórica, e a última Jase que se prolonga até 1790, onde a decoração vai
ganhando cada vez mais expressão gráfica, antecipando a linearidade do estilo neoclássico.
No entanto, grandes lacunas e algumas imprecisões continuam a persistir, pois, como sabemos,
nem todas as obras estão inventariadas, o que nos coloca sempre o considerável problema das
metodologias mais aprofundadas, mais eficazes ou, mais recentemente, necessárias. O campo de
trabalho continua aberto a hipóteses, conjecturas e linhas de investigação, cada vez mais urgentes,
a desenvolver nesta área da História de Arte Portuguesa.
Longe de ser um trabalho concluído, o tema que nos vincula a este encontro procura abordar algu-
mas propostas de leitura mais sistematizadas sobre a relação entre a vivência da espacial idade exte-
rior e a sua própria representação, privilegiando a interacção entre arquitectura e azulejaria,
trabalhando dois exemplos significativos do corpus azulejar nacional.
Procurou-se valorizar uma pedagogia do olhar e da observação em articulação com modelos inter-
pretativos da cultura portuguesa da época.
O azulejo assume ao longo deste período uma função estrutural que se coaduna com a sua própria
linguagem: a criação de um espaço virtual capaz de transmitir a ideia de registo e prolongamento de
uma imagem. Enquanto código de representação de determinado acontecimento real ou imaginário,
o azulejo eterniza personagens, situações, comportamentos e acções impondo uma espacialidade con-
creta à semelhaça de cenários para teatro. Perdidos em universos de paredes, homens, mulheres, ideias
e mundos mostram-se ao nosso olhar enquanto personagens de programas narrativos encadeados.
Ao longo da segunda metade do século XVIII, o azulejo caminha para algo mais do que um simples
suporte pictórico. Versátil como material, ele é o indicador das evoluções do gosto, modas e vivên-
cias que nos chegaram da Europa.

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A vida era cada vez mais - sem excepção do que se passou em Portugal - entendida sob o signo
da representação, num apogeu do savoir vivre, traduzido em modelos e idealizações de diferentes quo-
tidianos, numa exibição puramente hedonista. A emergência de um pensamento inspirado nas "luzes"
do Iluminismo e de uma nova inteligência alimentada por uma burguesia ascendente deram origem
a reflexões sobre a colectividade e a natureza, impondo, estabelecendo e teorizando matrizes com-
portamentais. Ao conceito de cortesia sucede o conceito de civilidade: um roteiro de condutas, que
cada homem recomenda aos outros e impõe a si próprio.
Esta nova arte de estar foi acompanhada no plano artístico pela divulgação de um estilo diferente e
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moderno, o rocaiIle , caracterizado pela assimetria, desproporção, fluidez, ritmo e abstratização
num jogo puramente decorativo.
No interior do Palácio, da Casa Nobre, da Quinta de Recreio e nos espaços abertos que lhe estão
adjacentes, a vida quotidiana partilhava do sentido de espectáculo reflectindo-se na própria ence-
nação de comportamentos e nas várias manifestações festivas que animavam o lazer da aristocra-
cia. As caçadas, o teatro, os jogos de salão e de jardim, os passeios, os bailes, os serões musicais e
literários desenrolavam-se em cenários pontuados pelo artifício explanados na profusão decorativa
dos objectos e equipamentos, ocupando a azulejaria um lugar cada vez mais preponderante.
Partindo da análise de dois conjuntos notáveis da azulejaria setecentista nos arredores de Lisboa e
da utilização deste material na decoração dos jardins do século XVIII, foi possível fundamentar e
rever estas novas atitudes de encarar a vida e a arte - onde o prazer e o lúdico ganham um espaço
cada vez maior nas mentalidades - e iniciar um trabalho de recolha sistemática de imagens e ges-
tos impostos e fixados pela gramática decorativa do tardo-barroco e rococó que traduzem a base
da análise deste universo vivencial transportado para a pintura de azulejos.
Uma leitura mais atenta de descodificação destes signos não verbais permitiu uma arrumação em
dois níveis de conceptualização, onde se pretendeu definir um percurso visual:
1. o A vivência do espaço exterior como suporte da pintura parietal, através da descrição dos núcleos
e análise dos programas decorativos e iconográficos; e
0
2. A representação pictórica, num repertório diverso de cenas-tipo: jardins, arquitecturas e inte-
riores, quase sempre acessórios cénicos para o preenchimento do espaço. Reside neste ponto a
chave da nossa proposta de leitura: entender a duplicação de um real apreendido na sua totalidade,
como transposição e prolongamento do mundo vivido para o outro, espelho permanente de modos
de conduta social.
Durante os séculos XVII e XVIII, a teoria e a arte dos jardins constitui um tema com alguma polé-
mica na cultura portuguesa da época, questão que passa pelo entendimento da concepção de jar-
dim como natureza organizada, com um sentido autónomo ou como numa mera continuação do
espaço interior do edifício.
Neste enquadramento, o que está em jogo é a variedade das experiências estéticas e as diferentes
organizações do mundo natural no espaço urbano, teorizadas pela profusa circulação de tratados
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de divulgação sobre a Natureza . Este clima mental leva-nos a entender o jardim setecentista, pela
sua variedade de programas iconográficos e iconológicos como o palco de muitos espectáculos de
diversão, de artifício, de exaltação espiritual, de mística ou de devaneio. É no apelo sistemático à
visualidade que se explicam as cenografias e a multiplicidade de programas, onde estão sempre
implícitas inúmeras propostas, opções e leituras.

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os exemplos de Queluz e da Quinta dos Azulejos

Neste contexto, o azulejo surge como o elemento deco-


rativo que maior importância teve na animação e deco-
ração de espaços exteriores, na criação permanente de
um espectáculo de representação do poder dos sentidos;
dos valores intimistas e oníricos do Rococó.
A utilização deste material em jardins do século XVIII
deu origem a duas manifestações artísticas singulares:
O Canal no jardim do Palácio de Qyeluz e o jardim da Qyinta
dos Azulejos no Paço do Lumiar em Lisboa - exemplos a des-
tacar pela sua expressão arquitectónica preponderante,
originalidade de concepção e magnífica qualidade artís-
tica de execução.
Obras primordiais do período rococó, Queluz apresenta-
-se mais monumental e unitário, enquanto o Lumiar é
mais diversificado e complexo. Associando-se e sobre-
pondo os dois conjuntos de forma harmoniosa e bem
conjugada, cada um apresenta e documenta a evolução
da azulejaria rococó portuguesa.

Canal ou "lago grande" do Palácio de Queluz

Obra arquitectónica e paisagística de referência, cons-


truída "à moda" das cortes europeias, Queluz transmite
um conceito cripta-mágico do espaços.
Na enorme unidade de quinta de veraneio e de recreio,
o canal, também conhecido por "lago grande", insere-se
num conjunto de espaços autónomos cujo valor se revela
num usufruto vivencial, que constitui um dos mais inte-
ressantes e originais elementos do traçado destes jardins.
Fig.1
Jardins do Palácio de Queluz.
A construção e decoração do canal fez parte da pri-
Canal ou Lago Grande.
Vista do lado Norte.
meira fase das grandes remodelações da propriedade da Casa do Infantado empreendida por
Foto do autor.
D. Pedra e coordenada pelo arquitecto Mateus Vicente entre 1752 e 1755. O canal resul-
Gardens 01 Queluz palace.
The canal, ar lake. tou da regularização de um troço do leito da Ribeira do Jamor. A parte mais longa, com
View lrom north side.
Photo by the author. cerca de cento e quinze metros de comprimento, enchia-se de água através de um sistema
Fig.2 de comportas a jusante (1753), criando um enorme lago para barcos de recreio, onde a
Quinta dos Azulejos.
Paço do Lumiar. projecção dos azulejos oferecia um maravilhoso espectáculo, como se se tratasse de uma
Ala nascente.
Foto do autor. sequência filmada.
Quinta dos Azulejos. As comportas e uma ponte de ferro foram representadas numa pintura de 1901. Protegido do sol
Paço do Lumiar.
East wing. por uma alameda de amoreiras, todo o conjunto forma uma peça autónoma pelo seu revestimento
Photo by the author.
de azulejos, elegendo-se como lugar de passeio e conversa. Assente sobre um arco abobadado que
dividia o canal em duas metades, outrora erguia-se a Casa do Lago ou Casa da Música, pequeno

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pavilhão de que se conhece uma planta com corte e perspectiva. Com uma estrutura quadrangu-
lar, rematado por uma cúpula, este traçado aproximava-se do da capela do palácio, construída de
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acordo com o projecto de Mateus Vicente em 1752 .

Depois de desaparecido este pavilhão mantiveram-se os dois largos arcos onde assentava, bem como
os dois conjuntos de escadas que lhe davam acesso pelo exterior e pelo interior do canal. As duas
metades (Norte e Sul) apresentam decoração nas paredes internas e na externa, virada ao palácio,
sendo esta última formada por alegretes salientes e volumosos alternando com reentrâncias fecha-
das por muretes que permitiam aos frequentadores do jardim uma melhor fruição deste espaço de
delicioso requinte.
O contraste de cor e ritmo entre o interior e o exterior assume aqui um curioso papel ao distin-
guir a parte interna, aquática, pela coloração do azul cobalto dos azulejos que se estendem por
vastos painéis contínuos, da estrutura arquitectónica exterior, onde predomina o roxo do manga-
nês e o ocre distribuindo-se em cenários galantes mais individualizados.
7
Admitimos, por dados confirmados documentalmente , que foram várias e distanciadas as enco-
mendas de azulejos para esta obra, o que leva a concluir que existiram diferentes campanhas de
revestimentos azulejares neste espaço.
A primeira encomenda de azulejos, datada entre 1755 e 1756, não completou a decoração do
canal, ficando interrompida possivelmente devido a problemas impostos pelo terramoto e pelas
orientações das campanhas de obras de Robillon. Datam, respectivamente, de 13 de Outubro e
27 de Novembro as notas de recibos de encomenda do
primeiro revestimento feito ao mestre azulejador João
Nunes de Oliveira, um pagamento faseado efectuado
pelo tesoureiro do infante D. Pedro, José Elias de Cam-
pos, com ordem de Luís António de Araújo, "por conta
do azulejo que tem assentado nos dois lagos da quinta" [... ]8.
Fazem parte desta primeira campanha os longos pai-
néis monocromáticos do interior do canal, o exterior
do corpo central - exceptuando os restauros realiza-
dos pelos pintores Pereira Cão e Alberto Nunes em
1902 - e toda a decoração policromada exterior do
9
lago Norte .

A azulejaria desta encomenda é fundamental para a análise


da primeira fase do estilo rococó, de que este conjunto
se destaca como baliza cronológica 10.

Azulejos para outra parte do canal foram encomen-


dados a Manuel Costa Rosado em 1775 e 177611, pos- Fig.3
Canal de Queluz.
Painel representando cenário de ar
sivelmente para a zona sul, numa tentativa mais tardia de completar a decoração, uma vez que livre, o passeio, a galanteria, temas
tipo da azulejaria do período rococó.
se trata de uma encomenda mais pontual. Foto do autor.
Podemos ressaltar desta fase a aplicação dos remates rectangulares dos alegretes dos muros inte- Canal, Queluz. Pane! representing
out-door scene, promenade,
riores que desenvolvem uma cartela rococó oval ao centro, ladeada por dois putti cujas pontas courtliness, very common themes
in rococo tiles.
terminam com pares de cornucópias de frutos e flores. Toda a composição está compensada pela Photo by the author.

fantasia das cercaduras concheadas. A deteorização de muitos azulejos e o desaparecimento da

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os exemplos de Queluz e da Quinta dos Azulejos

Fig.4
Parte central do canal onde
persistem as varandas que
circundavam outrora
a Casa da Música.
Abrem um espaço definido pelos
dois arcos que rematavam
a abóbada sobre o canal.
Foto do autor.
Central part of canal with the
verandas which previous/y
surrounded the Music Room,
opening onto a space defined by
two arches bordering the vaulting
over the canal.
Photo by the author.

Casa da Música levaram numa fase posterior o rei D. Carlos e D. Amélia de Bragança a solici-
tar ao pintor José Maria Junior (Pereira Cão) o restauro e acabamento da azulejaria do canal
como nos confirma a lápide inscrita ao centro.
Desta época ressalta toda a parte central onde se mantiveram as varandas que circundavam a Casa
da Música, abrindo um espaço definido pelos dois arcos que rematavam a abóbada sobre o canal.
A aplicação de pastiches rocailles em toda a parte da frente forma um conjunto único de cenários
interessante~, integrando-se no gosto historicista e revivalista da azulejaria desta época. Após a
inundação de" 1983 efectuaram-se restauros não se registando alterações chocantes.
Todas estas obras deram a este núcleo azulejar o aspecto que conserva na actualidade.
Conotado com a ideia de recanto de lazer do século XVIII, este espaço panorâmico expõe um reper-
tório múltiplo de cenas-tipo que espelham e cristalizam a imagem da sociedade setecentista.
Engloba-se neste âmbito a reflexão sobre a apresentação de diferentes cenários sociais num uni-
verso de situações, sucessão de momentos repartidos no espaço e no tempo que poderemos arru-
mar visualmente.
Distribuídos ao longo de vários metros de comprimento, as cenas do interior e exterior do canal
sucedem-se proporcionando jogos espaciais ilusórios, tais como:
- cenas de ar livre: a merenda, o passeio a pé, a galanteria, o par dançante, o pequeno concerto:
São lugares privilegiados e fantásticos que depressa associamos às ideias de sublime e maravilhoso,
conceitos difundidos na literatura e estética da época. Atmosferas de ar livre envoltas numa volun-
tária domesticação da natureza, que na sua forma estilizada (alinhamento das árvores e posiciona-

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os exemplos de Queluz e da Quinta dos Azulejos

mento das fontes) opunha à verdade do mundo natural um mundo construído, artificial, para ser
lido enquanto espectáculo;
- portos de mar, ruínas da Antiguidade, palácios, espaços que revelam uma expressiva escola de
pintura cerâmica. O tratamento da paisagem é minucioso; o bergantim que chega, o barco que se
avista ao longe, o barqueiro que desloca o bote ao impulso da vara;
- pontes, lagos, cisnes, pescadores e camponeses, habilmente recriados apresentam-se como variantes
de espaços "encenados";
- a caça ou montaria, cenas colocadas de preferênca em locais de acesso (escadas) assumem-se
numa exuberante movimentação.
Em suma, a escolha, aceitação e assimilação destes temas revela determinadas preocupações e
opções da mentalidade da corte portuguesa da época, do seu modo social de relacionamento com
os outros, da imagem que constrói e pretende projectar, não sendo Queluz o único exemplo de
tais inquietações.

A Quinta dos Azulejos no Paço do Lumiar

O singular conjunto azulejar desta quinta de lazer situada nos arredores da cidade de Lisboa (actual
Colégio Manuel Bernardes), não mereceu até hoje um estudo sistematizado, havendo, no entanto,
algumas excepções 12.

O seu notável valor como espaço exterior advém-lhe do requintado tratamento decorativo e da
sua concepção arquitectónica.
Rodeado de altos muros totalmente revestidos de azulejos, este jardim fecha-se sobre si mesmo
tornando-se no mais claro exemplo de jardim de estar português do século XVIII 13.
Logo à entrada, no pátio da casa, destaca-se uma referência cronológica: um painel de azulejos com
a cópia da inscrição de uma destruída lápide que tinha decorado a frontaria da quinta, mandada gra-
var pelo proprietário António Colaço Torres em 1760, comemorando uma visita que D. José I e
D. Mariana Vitória teriam feito a esta casa em 1753, e repetida, com toda a família real, em 1760.
Algumas referências biográficas sobre o proprietário da casa foram reunidas por Sousa Viterbol4.
Em termos de estrutura espacial, o jardim da Quinta dos Azulejos forma um quadrilátero irregu-
lar orientado pelos pontos cardeais: a sul, a casa, a norte outro recinto quadrangular hoje inca-
racterístico. A nascente e poente desenvolvem-se três alamedas ou passeios ornados de cerâmica
que, dada a sua profusão inacreditável, impõem um percurso ao visitante.
Todo o conjunto é inventiva, coexistindo uma multiplicidade de formas, uma grande variedade de
temas, uma diversidade de associações de cores e até mistura de materiais, onde evidentemente o
azulejo desenvolve um papel arquitectónico preponderante, modelando sabiamente os diversos
volumes dos arcos, colunas e ondulação dos bancos. A sua originalidade pode ser comparada a um
exemplo existente em Itália: o claustro do Convento de Santa Clara em Nápoles, realizado entre
1741-1742 pelos ceramistas Giuseppe e Donato Massa.
Analisemos o trajecto do jardim. Ao entrar, apresentam-se-nos duas alternativas de passeio que
poderíamos afirmar forçadas pela preciosidade do decor, obrigando-nos a voltar à direita ou à
esquerda e não a seguir em frente.

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