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A ideia
1 Antecedentes
Nos princı́pios da década de noventa do século passado, andava
eu preocupado em demonstrar que a inclusão da Estatı́stica como
novo tema nos então novos programas do ensino básico não con-
stituı́a uma inovação propriamente dita, mas antes uma adequação
(e já fora de tempo) a uma necessidade social e polı́tica sentida,
exterior e contrária aos interesses e desejos de uma parte signi-
1
2 1 ANTECEDENTES
2 A entrevista.
Convém esclarecer que, antes desta entrevista, as minhas ideias so-
bre a educação matemática e, de um modo geral, sobre as ciências
da educação, eram marcadamente diferentes das que partilho hoje
e marcadas por uma impressão negativa. A mudança nas crenças
ficou a dever-se muito aos contactos e discussões mais ou menos
formais, em volta de currı́culos e assuntos relacionados, com Raul
Carvalho, mas também com Paulo Abrantes, João Pedro da Ponte
ou, de modo diferente, com a actividade de Eduardo Veloso e
Jaime Carvalho e Silva. E é, por isso, que ao revisitar a con-
versa com Raul Carvalho entendo homenagear aqueles que in-
fluenciaram mudanças nas minhas convicções e concepções. De
certo modo, passei a ter contacto com pessoas que, para além
de se preocuparem com a Matemática, se preocupavam todos os
dias com aquilo que era preciso aos professores, entendendo que
o ensino da Matemática não dependia só da formação inicial em
Matemática e que uma boa parte da aprendizagem estaria na ca-
pacidade de dar aos estudantes tempo para fazer e reflectir sobre
as situações e problemas que tornavam a Matemática uma des-
coberta necessária.
A melhor homenagem que posso prestar a Raul Fernando Carvalho
ou Paulo Abrantes está em assumir a influência que podem ter tido
sobre o meu trabalho de professor. Sem que isso signifique que,
em algum momento, estivesse em completo acordo com as ideias
4 3 SOBRE OS MANUAIS ESCOLARES.
nacional, isto é, foi um livro que durou muito tempo, durou mais tempo
do que é normal um livro destes durar, não é? (. . . ) É evidente que
foram feitas certas remodelações, certas lavagens da cara, alterações
de formato, nunca sendo feita uma alteração de formato como nós
gostarı́amos por uma teimosia da editora, que nos tem mantido em
conflito permanente, que tem a ver com a forma do livro, do papel que
ocupa, porque de facto o formato actual não é um formato que nos
agrada e nós, já desde 82, há mais de dez anos, que andamos a propor
um formato que outras editoras estão a fazer, . . . , como outras editoras
estão a fazer formatos modernos que são aqueles que se usam no es-
trangeiro. Desde 82, nós, que vamos ao estrangeiro todos os anos, que
vamos a congressos, que compramos livros no estrangeiro, (. . . )
Raul Carvalho estabelece bem o ambiente da altura na produção
dos manuais escolares. Apesar de se terem passado alguns anos so-
bre o 25 de Abril, a situação que descreve é reveladora do domı́nio
de concepções retrógradas nesse domı́nio. E revela também a
influência das propostas internacionais e o predomı́nio das im-
portações dos formatos de publicação.
daquilo que se ensina e não com a quantidade das coisas que se ensi-
nam, não é?
(. . . ) se nós virmos as recomendações dos “Standard” do NCTM, as
recomendações do encontro do ICME sobre a matemática dos anos 90,
as recomendações do relatório Cockcroft . . . que já é, salvo erro, de
89, tudo aponta para um aumento da qualidade e uma diminuição da
quantidade das coisas que se vão dando. É necessário escolher o que é
que não se dá. E é necessário escolher o que se dá mais em termos de
qualidade.
Ontem como hoje, a extensão dos programas é medida pela quan-
tidade e diversidade dos assuntos matemáticos tratados, isto é,
pela quantidade de informação cientı́fica explı́cita de que é exigido
tratamento em detalhe. A escolha de um reduzido conjunto de
temas tem vindo a ser caracterı́stica das decisões curriculares, ao
mesmo tempo que se recomenda a gestão cuidadosa da informação
detalhada de cada um dos conteúdos matemáticos, substituindo
o detalhe da (in)formação matemática pelo desenvolvimento de
competências que são transversais e podem ser adquiridas de for-
mas variadas e durante as abordagens dos diferentes temas. A dis-
cussão sobre a excessiva extensão dos programas e a sua exequibil-
idade já começa a estar deslocada para a duração da aplicação de
metodologias activas e experimentais, com base em apreciação de
situações realistas e resolução de problemas pelos estudantes.
Tudo o resto são abstracções. O ponto não existe. O plano não existe,
a recta não existe. O que existe é tudo espaço que nos envolve e é a
partir do espaço que nos envolve que a gente pode partir para as tais
abstracções, o que é o plano e tal. E esse esforço que o programa faz e
que eu penso que os nossos livros cumprem e os outros livros também no
sentido de partir das três dimensões do nosso quotidiano, da observação
que se faz daquilo que nos envolve, dos prédios, pronto num prédio a
gente vê planos, vê curvas, vê rectas, vê polı́gonos, vê. . . pronto. . .
uma série de ângulos, vê tudo isso e é a partir dessa observação, mais
do que estarmos com definições: ângulo - ângulo é não sei quê, não
sei que mais. Ninguém fica a perceber o que é isso. Os jovens não
percebem, mas eles são capazes até de falar de ângulos, olha ali aquelas
duas esquinas estavam com um ângulo não sei quê, ou o cotovelo é um
ângulo. Tudo por observação e percebem isso. Ao passo que um certo
tipo de ensino partia de exposições decoradas e tal. Bom: é um pouco
ajudar os jovens a perceber um pouco o meio que os rodeia e partir
desse meio que os envolve para abstracções que também nos interessam
na Matemática a um nı́vel um pouco mais elevado. Penso que o pro-
grama aponta para a manipulação, para a utilização das calculadoras e
até dos computadores, aponta para partir do concreto para o abstracto,
permanentemente, aponta para novos conteúdos da Matemática rela-
cionados com a realidade que nos envolve, nomeadamente a questão
da Estatı́stica, aponta para uma diminuição da carga que havia com
o trabalho com números fraccionários, com fracções. . . qual o interesse
daqueles que a gente chegou a fazer do tipo três dezassete avos mais oito
quinze avos menos sete terços. Quer dizer. . . Se se pedisse a um profes-
sor de Matemática para inventar um problema em que se utilizasse esta
conta, seria ridı́culo. O que é que ele ia dizer? Parti um bolo em dezas-
sete partes, não é? parti outro em quinze partes e outro em três partes.
Mas como é que eu vou explicar os sete terços? Afinal não era bem um
bolo só. Tinham de ser pelo menos três bolos. Qual é o interesse disto,
prático? Não tem interesse prático nenhum. Portanto, somar um meio
com um quarto tem interesse, sim! tem interesse!, somar um terço com
cinco sextos? pode ter interesse, mas aquelas perguntas . . . para uti-
lizar o mı́nimo múltiplo comum. . . Mas para que é que serve o mı́nimo
múltiplo comum? Para resolver problemas desses? Então não serve
para nada. Ou então arranjar problemas em que o mı́nimo múltiplo
comum e o máximo divisor comum são, de facto, instrumentos impor-
14 6 SOBRE AS INOVAÇÕES NO BÁSICO.
Penso que estas são as coisas que, a nı́vel do sétimo ano de escolar-
idade mais distinguem este programa de programas anteriores. Que
me diga que . . . eu gosto do programa, gostava que ele fosse mais pe-
queno, fosse mais pequeno . . . especificamente retirar rotinas que são
. . . podem ser feitas de outra forma, continuar a diminuir o trabalho
com as fracções, utilizar, por exemplo, nas transformações geométricas
muito mais questões de pavimentações que ainda não saı́u. Ainda não
saiu no nosso programa nada sobre pavimentações. Temos de facto
translacções, mas pavimentações não temos. E quais são as figuras
que pavimentam? Quais são as figuras que não pavimentam? Porque é
que não pavimentam? E todos os dias a gente olha para as praças do
paı́s, exemplos de figuras interessantes com polı́gonos que pavimentam e
polı́gonos que não pavimentam, figuras geométricas que não polı́gonos,
com curvas e tal, umas que pavimentam outras que não pavimentam.
Porquê?
No domı́nio dos exemplos, das coisas que faltaram a Raul Car-
valho, intervenções exteriores aos programas e adequações provo-
cadas pelo DEB produziram alterações. Algumas publicações do
PET (Programa Educação para Todos), que, por serem oficiais,
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7 Constrangimentos
7.2 . . . no manual
Em relação à editora, bom,. . . há constrangimentos.. . . Primeiro grande
constrangimento que nós tivemos: trabalhámos a duas cores, o que fez
com que, por exemplo, o nosso livro tivesse uma quebra em relação
ao anterior fabulosa, da ordem dos quinhentos por cento. Estamos a
recuperar agora no segundo livro. Pelos dados que tenho, há muitas
escolas que não aprovaram o nosso livro, o Aventura Sete, mas que o
oito já aprovaram. O oito tem uma qualidade gráfica muito diferente, é
7.2 . . . no manual 17
trapassar isso, através da formação . . . Então, por via disso, ele acham
que os livros não podem nunca ser inovadores, ou seja, não podem
transmitir muita inovação. . . Dou-te um pequeno exemplo. Quando
nós lançámos o M7, lançámo-lo com um pequeno livro de actividades
ou exercı́cios. O M7 de exercı́cios tinha, no final de cada capı́tulo, uma
rubrica chamada “Esta agora!” que era um problema, um problema que
podia não ser cientı́fico, éum problema que não tinha uma rotina que
o pudesse resolver. . . não havia um sistema de equações para resolver,
não havia nada . . . o problema tinha de ser resolvido como o problema
das moedas— põem-se não sei quantas moedas num dos pratos de uma
balança e depois não sei quê. . . depois há uma moeda falsa, uma série de
coisas que tinham a ver com o raciocı́nio, com uma série de estratégias
que se tinham que seguir, tinham a ver com o que é de facto a res-
olução de problemas. Mas o que sucedeu foi que houve professores que
vieram ter comigo para tirar dúvidas. Porquê? É pá é que um aluno me
chateava e eu não sei resolver aquilo .E depois como não posso dizer
que não sei resolver tenho que os enganar, dizer que na próxima sem-
ana resolvo isso e não quê. . . Isto é uma realidade, professores do . . .
de escolas conceituadas, professores conceituados que nos pediram para
retirar dos livros isso. Pronto e agora tu ficas numa situação que. . .
ou retiras ou não retiras, não é? Se não retiras, é muito provável que
no ano seguinte o livro não seja escolhido naquela escola, não é? E se
retiras ficas de mal com a tua consciência, porque achavas que estavas
a prestar um serviço à Matemática, a ajudar as pessoas a . . . aquilo
não é curricular, não é nada,. . . mas caramba a Matemática não tem
que ser curricular só, tem que ser desenvolvimento das capacidades de
raciocı́nio do individuo, não é? Aquilo não é Matemática, porque a
Matemática,. . . só é Matemática quando conduz o pessoal a sete quin-
tos com oito vinte e quatro avos, não é? Se não, não é Matemática,
estás a ver?
critério, há muita gente que escolhia o nosso livro, porque eram nossos
conhecidos, como há muita gente que escolhia o nosso livro, porque
achava que o livro era bom, como há muita gente que escolhe outro
livro, porque acha que o livro é bom, analisa o livro e acha que o livro
é bom. Pelo menos.
. . . Não há um critério, não há uma definição . . . continuam, por
exemplo, a escolher-se livros que afirmam, no 7¯oano de escolaridade
e no 8¯o ano de escolaridade, que dois ângulos de lados paralelos são
iguais. Está escrito no livro. Quer dizer, não distingue sequer se os
ângulos são agudos ou se são ambos obtusos. . . ou se são um agudo e
outro obtuso. . . . Quer dizer, afirma isso no 7¯oano e volta a afirmá-lo
no 8¯oano,. . . não é lapso, é mesmo ignorância, não é? E esses livros
continuam aı́, continuam a ser utilizados.
O que de facto acho é que os livros apareçam com erros e não sejam
criticados, o que eu acho mal é que não haja malhas de observação
dos livros obrigatórias, e quando se escolhe um livro escolar seja feita
uma acta da escolha do livro escolar em que essa grelha que devia ser
estudada por uma equipa, do Ministério ou por equipas regionais com
a presença de professores, que chamassem professores das escolas que
fizessem passar uma grelha experimental um ano e experimentar com
um livro e depois no ano seguinte tal e cada grupo, ao escolher um
livro, fosse preenchida aquela grelha . . . escolhemos o livro tal porque
foi aquele que teve melhor pontuação nesta . . . nas grelhas. . . E por
isso é que as editoras mandem os livros para lá. . . O livro tem erros
cientı́ficos ou não tem erros cientı́ficos, quais?
Bom indicam . . . têm que provar que é erro cientı́fico, não vale a pena
dizer que o livro tem erros cientı́ficos, mas quais, quais são . . . assim
é que era um processo claro, fácil de fazer. . . não se percebe porque
é que não se faz. . . Eu nunca o fiz, nunca propus isso, porque sou au-
tor de livros, aliás não me compete a mim fazer. Eu e o Paulo nunca
quisemos encetar essa discussão porque somos fundadores da APM e
porque quisemos que a revista. . . há muitas pressões para que a revista
da APM tratar esse assunto e nunca quisemos que esse assunto fosse
tratado na revista com medo que isso fosse conotado com a nossa pre-
sença na. . . e há imensas pressões de muitos professores que queriam
ver isso tratado na revista. . . .
20 9 A COR NOS LIVROS
10 E a cor da vida. . .
Acabei por disponibilizar neste texto, a quase totalidade da en-
trevista. Espero que sirva para refrescar as memórias e refrescar
a memória sobre o conversador Raul Fernando Carvalho. Para
mim, esta conversa (e outras também) foi agradável e inspiradora.
Não só pelo seu conteúdo e pelas opiniões divergentes das minhas
opiniões de então o que tornaca a conversa ainda mais aliciantes,
mas pelo tom e pela energia que brotava do Raúl. Só lamento não
saber despejar essa cor por dentro deste texto.
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Afrontamento. 253,
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meios de produzir inovação - O caso da formação de professores.
Universidade do Porto.
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da Educação. 18: 83,
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