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Princípios e Métodos da Autoeducação

OLAVO DE CARVALHO

Aula 01: Educação e autoeducação


01 de outubro de 2012

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

Boa tarde ou boa noite a todos, sejam bem-vindos. Vamos começar explicando o título deste curso, que
eu coloquei como “Princípios e Métodos da Autoeducação”.
O termo autoeducação, de certo modo, tem um duplo sentido, ou contém em si, uma contradição, um
paradoxo, na medida em que, por um lado, toda educação é autoeducação: porque o sujeito ativo do
processo educacional é sempre o próprio estudante e jamais o professor. O professor apenas fornece
uma ocasião, uma oportunidade ou alguns meios; mas o sujeito criador do processo educativo é o
próprio estudante, sempre e necessariamente, caso exista algum sujeito ativo; às vezes, não tem
nenhum. Por outro lado, não existe nada que se possa chamar plenamente de autoeducação, quer dizer,
um indivíduo que se eduque a si mesmo, sem nenhuma ajuda de fora; isso nunca existiu e jamais
existirá.
Mais contraditório ainda seria o termo autodidatismo, porque essa raiz grega significa propriamente
instrução, treinamento ou doutrina, que é uma coisa que jamais um indivíduo pode fornecer para si
mesmo. Assim, de algum modo, toda educação está colocado entre esses dois extremos: por um lado,
quem quer que esteja estudando, está se autoeducando; e por outro lado, o auto educar-se
completamente, é impossível; você sempre precisará de alguma ajuda externa.
O que se entende universalmente como educação sempre depende de alguma meta ou modelo, que é
colocado como termo final do processo educativo. Em qualquer escola existe um programa de estudos
durante o ano, existe um exame final, ao qual o aluno deve se submeter, e que, idealmente, medirá o
seu aproveitamento durante o ano. Esse aproveitamento, tal como é medido ou pode ser medido por um
exame, seria a meta daquele ano. No conjunto, existe sempre alguma meta ou modelo ideal. Esse
modelo pode ser extremamente modesto, no sentido da aquisição de determinadas habilidades
específicas que, em princípio, não afetarão muito, no conjunto, a sua personalidade ou a sua vida, até,
por outro lado, um modelo integral de ser humano a ser idealmente reproduzido ou transmitido para o
aluno.
Por exemplo, nas escolas técnicas, podemos perfeitamente aprender computação, corte-e-costura ou
qualquer outra coisa desse tipo, sem que isso seja a passagem de um modelo de conduta, quer dizer,
isso não vai alterar a estrutura da sua inteligência, da sua consciência; vai apenas introduzir um
elemento de conduta que pode mexer um pouquinho no conjunto mas sem alterá-lo profundamente. Por
outro lado, você pode ter algo, como por exemplo, a educação jesuítica, baseada em modelos fixos de
conduta intelectual, moral e social, que deveriam, idealmente, ser transmitidos aos alunos de modo a
poder garantir que a ordem jesuítica companhia de jesus fosse composta inteiramente de pessoas que
no essencial, coincidissem em uma certa estrutura de personalidade.
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Assim, não é possível nem mesmo pensar em um projeto educacional (seja para educar os outros, seja
para educar você mesmo) sem você pensar na questão da meta ou modelo, quer dizer, aonde nós
queremos chegar? Não é possível fazer um manual de autoeducação, um manual do autodidata, que
sirva para todas as pessoas; para isso seria necessário conceber um modelo de meta final que fosse
adequado para todas as pessoas, em todos os ambientes sociais, culturais etc, e isso é absolutamente
impossível. Portanto temos que limitar severamente o nosso campo e deixar claro, desde o início, para
quem este curso é dirigido e para quem estes princípios e métodos podem funcionar. E a resposta [00:05]
não é tão difícil assim, este curso foi feito para um público muito específico que é o público dos meus
alunos, seja aqueles que frequentam atualmente o curso do Seminário de Filosofia, seja aqueles que o
frequentaram ou pretendem voltar a frequentar, isto é, há um público mais ou menos formado e
estabilizado em torno deste trabalho; e os preceitos e métodos que eu vou fornecer aqui servem para
essas pessoas, e não para quaisquer estudantes.
O que define, idealmente, pelo menos, o aluno do Seminário de Filosofia? Desde o início, eu deixei
muito claro que o meu propósito não era simplesmente educar pessoas de modo geral, mas educá-las
para uma finalidade muito clara, muito definida e muito vinculada a presente situação histórico, social
e cultural de um país determinado, que é o Brasil. Este curso foi feito para pessoas que pretendem
desempenhar um certo papel dentro do panorama cultural brasileiro. Esse papel é definido pela própria
situação que é a de uma devastação cultural que já vem há mais de vinte anos e que, por incrível que
pareça, começa a dar alguns vagos e débeis sinais de recuperação com um outro livro que se publica
aqui ou ali, onde podemos ver uma espécie de retomada de um esforço sério de compreensão da
situação.
Mas durante vinte anos podemos dizer que a cultura superior praticamente desapareceu do Brasil. Isso
não quer dizer que não houvesse em nenhuma faculdade, nenhum professor dando um curso muito
sério de alguma coisa; é claro que esses professores existem e nem são tão poucos assim. O problema é
que o trabalho deles se desenvolve estritamente dentro de um quadro pedagógico determinado,
versando sobre assuntos determinados da sua área profissional e pedagógica, sem ter um alcance
cultural mais geral, ou seja, sem poder se incorporar em uma espécie de debate cultural nacional; sem
entrar, portanto, na história das ideias brasileiras.
Então, não é apenas porque o trabalho deles não chega a um público maior, mas porque não versa sobre
assuntos e temas que sejam de importância para a compreensão da situação real na qual estamos
vivendo. Por exemplo, se um sujeito fizer um belo trabalho de tradução e notas das Odes de Píndaro;
será um trabalho intelectual louvável etc, porém, a distância entre isso e a situação existencial do
momento, é muito grande. É claro que um homem de gênio pode estudar qualquer tema por mais
remoto que seja e ele saberá vinculá-lo às questões existenciais fundamentais do momento. Se você
leram os ensaios literários do Otto Maria Carpeaux, vocês sabem do que estou falando. Não importa de
qual autor ele está falando, pode ser de qualquer época ou lugar, sempre àquilo é encarado desde o
ponto de vista dos problemas vitais do ser humano que está vivendo naquele momento; mas é evidente
que nem todo professor de Literatura ou de História pode fazer isso. Então o que essas pessoas farão, é
um trabalho respeitável dentro da sua área específica, mas sem nenhum peso para o entendimento dos
problemas colocados pela viva mesma, neste momento. E é justamente isso que define a alta cultura em
um país, são criações culturais de alta qualidade e que são uma resposta de algum modo as angústias,
temores e perguntas existenciais daquele momento.
Como as questões fundamentais são de algum modo vivenciadas por todo mundo, ainda que nem todo
mundo saiba expressá-las corretamente; essas questões são o eixo, o centro unificador da cultura
nacional em um determinado momento[00:10]. Por exemplo, tomando a literatura soviética de todo o
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século XX, não um único grande trabalho, nenhuma única obra de criação literária, de meditação
filosófica, sociológica ou histórica que não tenha nada a ver com a situação vivida pelos cidadãos da
União Soviética naquele momento, alguma referência aos prisioneiros do Gulac, aos vinte milhões de
mortos etc tinha que ter, não havia como escapar disso.
A preocupação de todos, seja do Soljenítsin, Zinoviev, Bulgákov e uma infinidade de escritores; a
preocupação de todos eles era entender o que era a sociedade soviética, o que significava viver ali e
quais eram as possibilidades que um ser humano tinha dentro daquele ambiente. Não importava qual
era o assunto nominal do qual eles estivessem falando, essas questões básicas eram o centro.
É claro que para buscar respostas a essas angústias do momento, você pode buscar inspiração em fontes
remotíssimas, você pode, por exemplo, buscar uma resposta no teatro grego, nas obras de Homero, de
Shakespeare ou na literatura chinesa, quer dizer, não importa o assunto nominal, o que importa é o
ângulo existencial desde o qual você está enfocando a questão; e é nesse sentido que eu digo que a
cultura superior desapareceu do Brasil, pelo menos nos últimos 20 anos (na verdade 30 anos).
Não há nenhuma tentativa, nem a mais tênue possível de responder a questão: dentro da escala da
humanidade, em geral, o que significa ser brasileiro nesse momento? Quer dizer, o que é a vida humana
no Brasil no momento que estamos vivendo e como medi-la dentro da escala de valores universais?
Não estou dizendo que as pessoas fracassaram, elas nem tentaram.
Anteontem, conversando com um grupo de alunos em casa, eu dei um exemplo de fenômenos sociais
de importância enorme que passaram simplesmente despercebido, que não há a menor reação
intelectual àquilo, não há a menor tentativa de entender aquilo e de avaliar o que aquilo representa para
o conjunto da população brasileira ou, pelo menos, para as pessoas mais sensíveis dentro da população
brasileira. Esse tema era o seguinte (é apenas para dar um exemplo): eu notei que na cidade de São
Paulo, a classe mais rica, a classe chamada classe dominante, sempre se mostrou incapaz de defender o
seu território. Primeiro eles desbravam uma certa área, constroem os seus casarões e vão morando lá;
mas à primeira invasão de uma classe mais baixa, eles se retiram e vão para mais longe, e mais longe e
mais longe.
Eu me lembro, por exemplo, de uma época em que uma rua chamada Rua Augusta ainda era uma rua
elegante, depois virou uma rua de comércio, depois virou uma rua de prostituição e depois virou uma
rua de mendicância; e aonde foram parar as pessoas que estava ali? Até a década de 80 elas iam para
um lugar chamado Morumbi (que era longe pra caramba) e se refugiavam no Morumbi. Hoje em dia o
Morumbi também já está invadido e eles foram parar mais longe, e mais longe e mais longe.
Então observe, se uma classe não exerce um domínio territorial, em que sentido você pode dizer que
ela é dominante? O Brasil parece ter uma classe rica, mas não uma classe dominante. É apenas uma
classe que possui mais dinheiro do que os outros, mas não tem poder efetivo, não tem poder sequer
para determinar onde ela própria deve morar. É claro que, tão logo eu digo isso, vocês veem que as
coisas foram realmente assim – para aqueles que conhecem a cidade de São Paulo; deve ter havido
fenômenos similares em outras cidades.
Imaginem, por exemplo, o que aconteceria aqui nos Estados Unidos se um comércio de bugigangas, um
bando de camelôs ocupassem [00:15]Wall Street e expulsassem os bancos? Todo mundo entenderia que
aquilo seria uma crise nacional; no entanto, no Brasil, isso já aconteceu várias vezes e ninguém
percebeu; esse é o ponto. Nós, que somos gente de estudo, podemos interferir muito pouco no que
acontece. A nossa obrigação não é fazer com que as coisas aconteçam ou impedir que elas aconteçam,
mas é registrar que aconteceram e tentar compreendê-las; e passar uma compreensão daquilo para as
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próximas gerações, para que elas tenham uma ideia de qual é o pano de fundo histórico dentro do qual
elas surgiram. Isso quer dizer que, no Brasil, há, pelo menos, três gerações (calculando uma geração
com mais ou menos 15 anos), as pessoas estão nascendo e sendo jogadas dentro de um panorama onde
não têm nenhum fundo histórico, elas não sabem em que capítulo da história estão entrando, elas não
sabem qual é o enredo do qual fazem parte; e ninguém lhes diz isso.

Não é apenas esse processo que descrevi, mas muitíssimos outros aconteceram como no filme
Escalibur, quando o mago Merlin se transforma em dragão; e ele diz: “A transformação tem que se dar
no escuro e no meio da névoa, para que ninguém perceba o que está acontecendo”. Houve um processo
desse tipo, e evidentemente isso tem, literalmente, um efeito mágico na cabeça das pessoas: como elas
não sabem o que estava acontecendo antes, elas não tem medida do que está acontecendo agora; e
portanto elas também não sabem qual é o papel delas próprias no conjunto. Se você não sabe qual é o
enredo da história, você é como um ator que fosse jogado de repente no meio do palco, sem que as
pessoas lhe informassem se ali estão representando Hamlet, Rigoletto, teatro grego ou qualquer outra
coisa; ou seja, você não sabe qual é o enredo, não sabe qual é o seu papel, não sabe o que você deve
dizer e não entende as respostas dos outros.

Um dos efeitos mais óbvios disso é a total insegurança, as pessoas não sabem o que a sociedade está
exigindo delas, não sabem quais são as regras de conduta que as levarão ao sucesso ou ao fracasso, não
sabem se estão agradando ou desagradando, não sabem se são aceitas ou não, e, como resultado, vivem
em uma permanente insegurança; mas não sabem que isso é insegurança, porque nunca sentiram outra
coisa. A insegurança se tornou uma espécie de estado natural do brasileiro, e naturalmente, a busca de
alívio, a busca de proteção, a busca de alguma coisa na qual você possa se agarrar, é a preocupação
mais constante que nós observamos nas presentes gerações.

De modo geral, são pessoas sem valores claros, sem caráter, sem coragem, sem fibra, e, nas últimas
gerações, o que a nós observamos é um show de covardia como eu nunca esperei ver na minha vida.
Para vocês terem uma ideia da superfície de contraste, eu posso lhes dizer que na minha geração
(quando nós chegamos à idade adulta, à primeira juventude, por volta dos 18 ou 20 anos, em meados
dos anos 60) um sujeito covarde destoava horrivelmente, e não era bem-aceito. Por exemplo, em uma
briga de rua, fosse você forte ou fraco, se os seus amigos se metiam em uma briga de rua, você tinha
que ficar lá e apanhar junto com eles, se você não conseguisse bater em ninguém devia pelo menos
apanhar honradamente. Isso era normal.

Para aqueles que se envolveram, por exemplo, em militância política (como eu mesmo e como muita
gente fez), a exigência de coragem era muito maior. Eu me lembro que quando houve o golpe de 64,
existia uma entidade chamada União Paulista dos Estudantes Secundários, onde eram todos
comunistas, evidentemente. E aquela entidade foi cercada pela polícia e um amigo meu (que se não me
engano, já falecido) chamado Oto Maracajá Branquinho [00:20], foi pelo muro de trás, ludibriou a
polícia, saltou o muro e roubou todo o arquivo para salvar de uma ameaça de prisão, de repressão,
milhares de estudantes que ele nunca tinha visto na vida dele. E ninguém mandou ele fazer isso, ele
simplesmente percebeu que a coisa ia acontecer, que havia um risco, e foi lá e fez a coisa certa.

Quando as pessoas estão inseguras e com medo, a preocupação de fazer a coisa certa nunca aparece na
mente delas. A primeira preocupação é “como eu vou me preservar”; ora, nós sabemos que o “se
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preservar” é impossível, que a vida é constituída de riscos o tempo todo. Quer dizer, fazer a coisa certa
é possível, preservar-se não é possível. Aqueles que resolvem arriscar e fazer a coisa certa acabam
fazendo alguma coisa e adquirem ao longo da vida, ao longo da sucessão dos seus atos, uma história, e
um senso de identidade. Então quando perguntam “Fulano, quem é você?”, a resposta é “eu sou o cara
que fez isso, mais isso, mais isso e mais isso”, a resposta é contar uma história, e essa história é
constituída dos seus feitos, e os feitos são aquelas coisas que você fez em resposta à pergunta: “Qual é
a coisa certa a fazer?”. Claro que dentro de uma escala onde há muitas diferenças, e podendo ser até
que a coisa certa não fosse objetivamente aquela que você fez, mas foi a que lhe pareceu sinceramente
ser a coisa certa.

Passado quase meio século, nós observamos reações de covardia como sendo quase obrigatórias no
Brasil de hoje; eu digo “bom, alguma coisa aconteceu”. Mas o que aconteceu? Aconteceram
inumeráveis processos histórico-sociais que não foram sequer descritos, não foram conscientizados, de
modo que as novas gerações entram no panorama da existência sem nenhum script. Ou seja, você pode
até rejeitar o script, mas você tem que saber qual é o script que você está rejeitando. Se não existe
absolutamente nada, então você pode copiar modelos fortuitos que você viu na televisão naquela
semana, e naquele momento aquilo vai lhe parecer um papel que corresponde a sua pessoa e a sua vida,
e que faz um sentido (eu uma vez conheci um rapaz em São Paulo que fazia 2 meses que ele havia
descoberto um negócio chamado surf, e ele disse assim: “O surf é a minha vida”, e eu disse “que bom,
uma vida de dois meses, como é que você sabe?”. Vamos ver se passados 10 anos você vai dizer
“aquilo foi a minha vida”, talvez já tenha largado, arrumou um emprego e largou o surf). Quer dizer,
você pode se apegar a esses modelos de curta duração, modelos passageiros, mas isso não vai aplacar o
seu temor, não vai aplacar a sua insegurança, e não vai lhe dar nenhuma sensação de ser alguém.

Quando você sente que você não é ninguém, então o desejo de ser alguém se torna uma coisa dramática
e urgente. Mas você não sabe quem você quer ser, você não tem os modelos, você não tem os scripts,
você não tem um repertório de escolhas, você só tem uma coleção de pessoas que estão tão incertas
quanto você, mas que pelo número delas você imagina que elas são mais fortes do que você, você tem
uma coletividade. Então, o desejo de ser aprovado por essa coletividade, o desejo de parecer normal, se
torna uma verdadeira obsessão neurótica, e essa obsessão neurótica é o objetivo de vida de quase todos
os brasileiros da presente geração.
Mas acontece o seguinte, aquelas pessoas perante as quais você está tentando parecer que é alguma
coisa, em primeiro lugar, não estão interessadas em você de maneira alguma, então você entra naquela
dialética do tímido. O tímido entra numa festa e age como se todo mundo estivesse prestando atenção
nele, quando na verdade ninguém está, [00:25] e este é precisamente o problema: se estivessem prestando
atenção em você, é porque você teria alguma importância para eles (não para você mesmo); mas como
ninguém está prestando atenção, você sente um vazio em torno, e neste vazio a necessidade de ser
aprovado pelos outros se torna ainda mais intensa para você ter alguma referência e saber o que fazer.
Isso aqui é um círculo vicioso, que é como você amarrar uma salsicha no rabo de um cachorro, ele vai
ficar correndo atrás da salsicha pelo resto da vida e não vai alcançar.

Eis porque o Brasil é hoje o recordista mundial de casos de depressão. Se você falasse isso 30 anos
atrás, seria impossível. Em épocas em que as pessoas eram muito mais pobres, em épocas até em que
havia menos liberdade e havia menos oportunidades de emprego etc, as pessoas não eram tão infelizes;
ao contrário, turistas, viajantes que vinham da Europa e dos Estados Unidos, sempre notavam que o
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brasileiro, em média, era um povo muito feliz (aliás, por falar em surf, eu conheci um americano que
era campeão mundial de surf, e que para escapar do serviço militar, saiu correndo dos Estados Unidos e
foi parar em uma praia no Brasil – onde só tinha gente pobre, caiçaras – e ele disse “nunca vi um
pessoal tão alegre quanto aqueles”). Você não pode mais dizer isso no Brasil de hoje, o país que era
alegre se tornou um campeão mundial de depressão.
Se você procurar algum estudo sério de porquê isso aconteceu, você só vai encontrar respostas
estereotipadas. Por quê? Porque essas respostas são buscadas por estudiosos que se atêm aos métodos e
conceitos da sua ciência em particular, quando para entender uma coisa dessas, precisamos de uma
amplitude de informação que vai desde as estatísticas até a compreensão das mudanças de linguagem,
dos estilos de vestir etc; ou seja, você precisa ser um verdadeiro historiador para contar uma coisa
dessas, e não um sociólogo formado na PUC ou um economista da Fundação Getúlio Vargas. Quando
aparece alguém tentando diagnosticar qualquer coisa que esteja acontecendo no Brasil, o diagnóstico
surpreende pela sua pobreza, pela sua estreiteza mental e pela sua absoluta incapacidade de explicar o
que quer que seja. Às vezes, essa incapacidade é ainda duplicada pela intervenção de preconceitos
ideológicos que já determinam de antemão o tipo de causa que o sujeito deve encontrar; aí as distorções
e fantasias não tem mais limite; isto é, você tem, por um lado, pessoas bem-intencionadas, mas sem o
aparelhamento intelectual necessário para estudar aquilo que estão estudando, para investigar aqueles
fenômenos que estão estudando, e por outro lado, pessoas que não querem investigar nada, que querem
apenas produzir mais um reforço de imagem do seu partido, da sua facção ou do seu grupo de
referência.

Isso quer dizer que, há duas ou três gerações, o Brasil está vivendo no escuro, as pessoas não sabem o
que está acontecendo e não entendem. Por exemplo, se você acompanhar o que aconteceu na literatura
brasileira, o Brasil é um país que ficou 30 anos sem literatura superior, isso nunca aconteceu em
nenhum país do ocidente, por mais pobre que fosse. Veja que países que estão vivendo na miséria,
atormentados por guerras, por epidemias etc, justamente nesses lugares, a criação literária é uma reação
do espírito, onde você percebe que alguns indivíduos não se deixam submergir na miséria geral e
tentam reagir dentro daquela pequena escala onde eles tem algum poder “qual é o meu poder? O meu
poder é apenas o de entender o que está acontecendo e eventualmente representá-lo”.
Se observarmos a riqueza da literatura soviética durante o século XX, ou a riqueza da literatura que
vem de tantos países da África, e comparamos com o que aconteceu no Brasil, é uma [00:30] coisa que
nos deixa profundamente envergonhados; ou seja, não aconteceram coisas tão ruins no Brasil, muita
coisa no Brasil melhorou. Ou digamos, por mais anti-petistas que nós sejamos, não podemos deixar de
reconhecer que a economia brasileira não vai tão mal, não vai tão mal quanto seria de esperar. Por
exemplo, a questão da escolaridade; quando eu tinha 20 anos e fui trabalhar na mídia, eu sabia que,
naquela época, apenas 30% dos brasileiros tinham acesso à instrução primária. Hoje em dia não temos
uma criança fora da escola, temos vagas sobrando. Por pior que seja a educação que ali se transmite,
não podemos negar que, pelo menos do ponto vista quantitativo, foi uma melhora extraordinária. Isso
quer dizer que do ponto de vista puramente material ou econômico, a coisa não piorou tanto. Também
não houve nenhuma epidemia, não houve nenhuma guerra, não houve nenhuma revolução, nenhum
morticínio, não houve nada disso.
Então por que as pessoas estão assustadas? E por que elas não conseguem reagir intelectualmente à
situação? Eu digo: “Bom, elas não conseguem reagir intelectualmente porque elas nunca reagiram
intelectualmente, e porque a geração anterior também não reagiu intelectualmente.” Ou seja, a
atividade normal do espírito humano que é tentar apreender o que está acontecendo e representá-lo de
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acordo com os instrumentos que você tem, simplesmente cessou. Então, eu não posso negar que houve
nisso uma certa interferência de um elemento ideológico, na medida em que uma esquerda militante
tomou posse do aparato universitário, do aparato educacional de um modo geral, então isso quer dizer
que eles treinaram pessoas apenas para repetir o mesmo discurso que convém a sua facção, ao seu
partido, e isso implica, necessariamente, não estudar certas coisas, não ver determinados fatos; não
falar de determinadas coisas; em suma não perceber uma série de coisas. Não nego que isso aconteceu,
mas pergunto, isso se explica? Claro que não! Porque quantos homens de talento são necessários para
escrever um bom romance? Um. Portanto, nenhum fenômeno coletivo pode explicar a falta desse um. A
única coisa que explica é o seguinte: ninguém fez porque ninguém quis, e ninguém quis porque
ninguém teve ideia de fazer. Então, aí nós entramos na seguinte constante histórica: não há causas para
o que não aconteceu. O que não aconteceu, não aconteceu porque ninguém fez acontecer. Não há
explicação para isso. O que houve foi uma omissão generalizada, uma desistência, uma demissão
generalizada.
Claro que você pode descrever fatores externos que desestimularam as pessoas, mas desestimular é
uma coisa, e impedir é outra coisa, completamente diferente. Ninguém o impediu de fazer. Apenas não
havia, aparentemente, nenhuma recompensa externa que estimulasse você a fazer isso. Porém, quando
algum grande romancista, artista ou filósofo precisou de uma recompensa externa para fazer o que
queria fazer? Nunca! [Quero dizer] às vezes sim, por exemplo, Virgílio escreveu Eneida porque o
governo pagou ele para escrever. Mas se não pagasse ele escreveria do mesmo jeito. Veja que, em geral,
as grandes obras da literatura, do teatro, das ciências e das artes não receberam prêmios ou estímulos
externos. E, justamente a inexistência de estímulos externos era um estímulo a mais para essas pessoas.
Por isso eles dizem: “Olha, eu já estou aqui ferrado mesmo, a minha situação não vai melhorar, mas
então pelo menos intelectualmente vou fazer alguma coisa que preste, porque isso não depende de
ninguém, não depende da minha situação social, depende apenas de um negócio muito barato como
papel e lápis, por exemplo”. Se você é um pintor, vai precisar de um pouquinho mais de dinheiro para
comprar tinta, mas isso aí também não é muito. [35:00] Então, são coisas que podem ser feitas com um
mínimo de recursos.
Vamos supor que você seja um compositor, que você tenha ideias maravilhosas: sinfonias e óperas que
você vai compor; então você diz: “Bom, não há estímulo externo, ou seja, ninguém vai encenar a minha
ópera, ninguém vai tocar a minha sinfonia…”. E eu digo “e daí? A sinfonia existe a partir do momento
em que ela está escrita, não a partir do momento que alguém a tocou”. Todo mundo conhece a história
de Beethoven… Beethoven não podia ouvir o que ele mesmo compunha. Ele parou de compor por
causa disso? Não, ele compôs mais ainda; pois poderia ter pensado “eu não posso nem ouvir, mas eu
posso inventar”. Portanto, isso quer dizer que o estímulo à criação intelectual ou artística não vem de
fora; mas algum sinal de que aquilo existe você precisa receber.
Por exemplo, quem jamais tivesse visto um teatro ou ouvido falar de uma peça de teatro não poderia
escrever a primeira peça; porque para isso ele precisaria inventar não a peça de teatro, mas precisaria
inventar o gênero teatral inteiro; e isso não é possível. Assim, digamos, se em uma civilização, em uma
cultura, não existir a pintura, alguém vai ter que inventá-la, e os outros nem vão entender o que ele está
fazendo. Mas você não vai encontrar nenhuma civilização assim, nenhuma cultura assim, algum sinal
externo você precisa receber para despertar o desejo, e foi isso o que faltou.
Isso quer dizer que, em todo o ambiente educacional e em todo o ambiente de mídia brasileiro, não
houve nenhum estímulo a que ninguém tentasse investigar o que quer que fosse. Por exemplo, a
hipótese de que um negócio chamado Ciência Social exista, para entender o que está acontecendo,
parece não ter passado pela cabeça dos professores de Ciências Sociais ao longo dos últimos trinta
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anos; porque eles estudam tudo menos o que está acontecendo, a não ser quando aquilo que está
acontecendo já venha catalogado em conceitos costumeiros e possa ser descrito por técnicas já usuais e
costumeiras também.
Por exemplo, considere as taxas de criminalidade. Ninguém precisa inventar uma técnica estatística
nova e formidável para fazer estatísticas do aumento da criminalidade; isso um sociólogo pode fazer,
mas ele não irá muito adiante disso. Outra coisa que ele também pode fazer é continuar estudando os
mesmos temas que já foram estudados há 30 ou 40 anos atrás, mais ou menos dentro das mesmas
linhas, principalmente se essas linhas tiverem um certo prestígio político-ideológico. Por exemplo,
houve uma época (não sei se ainda é hoje) que Antonio Gramsci era o autor mais citado nos trabalhos
universitários brasileiros. Antonio Gramsci escreveu muito pouco: são 6 volumes apenas. Qualquer
pessoa com um treino rudimentar de marxismo entende mais ou menos o que ele está falando e, pior,
você recebe do exterior uma bibliografia oceânica a respeito desse autor. Então o que você vai
descobrir a respeito de Antonio Gramsci? Nada. Você vai falar o que já foi falado, e isso é muito fácil.
Trabalhos desse tipo existem de monte.
Uma vez eu me lembro que ― e isso já faz bastante tempo ― fui como jornalista assistir uma reunião
da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência e, como tinha muitas conferências ao mesmo
tempo, eu tive que escolher um assunto e ficar nele, para não me dispersar; assim escolhi os trabalhos
de Psicologia. Haviam 102 comunicações, das quais 91 eram estudos sobre ratinhos que já tinham sido
milhares de vezes em universidades americanas e europeias. Esse pessoal ia repetir os mesmos estudos,
chegava às mesmas conclusões, e confirmava que, em tais ou quais circunstâncias, os ratinhos se
comportavam de tal ou qual maneira. Então, se esses trabalhos não existissem, não fariam a menor
diferença, porque ninguém no universo acadêmico internacional lê trabalhos científicos brasileiros;
[40:00] esses trabalhos quase nunca são citados. Para os próprios autores desses trabalhos, em que isso
afetou as suas vidas? Em absolutamente nada, porque o que eles descobriram já tinha sido descoberto.
Então aquilo foi feito apenas para cumprir uma obrigação escolar, e tudo aquilo (isso é muito
importante) que é feito com finalidade escolar não tem finalidade alguma. Porque, o que é uma escola?
Uma escola é um ambiente teatral, artificial, onde tudo é fingido, nada é pra valer, tudo é apenas para
você aprender e ser testado. Isso quer dizer o seguinte, por exemplo, se você errar um cálculo, em um
curso de Matemática, qual é o efeito que isso tem? Isso exerce efeito sobre quem? Apenas sobre você.
Porque aquilo é para o seu aprendizado e para medir o seu aprendizado. Aquilo não é para ser usado na
realidade; e isso vale da escola primária até a universidade, isto é, tudo aquilo que é exclusivamente
escolar, é imanente, é interno e só vale para as finalidades daquele ensino, sem ter efeito nenhum no
mundo real. Claro que há exceções, mas em geral a escola é assim.
Isso quer dizer que a totalidade dos trabalhos publicados no Brasil, sobre o que quer que seja, nos
últimos 30 anos, teve apenas finalidade escolar; não serviu para nada, não modificou a ordem das
coisas, não foi usado por ninguém, não foi sequer lido por ninguém. Você acha que alguém vai ler
algum trabalho científico apenas para saber se o autor da coisa está à altura das exigências escolares?
Você acha que algum cientista no mundo tem tempo para ler esse tipo de coisa? Ninguém lê esses
negócios, nunca. O seu trabalho científico tem importância se ele transcender a finalidade escolar, e
então entrar no fio da história daquela ciência. Você precisa dizer: “Eu descobri algo que esse pessoal
não sabia antes e está aqui!”. Essa contribuição pode ser muito modesta, e sempre é; qualquer
contribuição científica de qualquer natureza é modesta, porque você sabe que em seguida vai vir outra
pessoa que vai acrescentar outra coisa, e outra coisa, e outra coisa.
Porém, a sua contribuição é como um elo em uma corrente, o seguinte vai precisar de você. No fim das
contas você vai ser esquecido como todo mundo, mas você terá contribuído para essa sucessão, para
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essa escalada de descobertas que constituirá o patrimônio científico, erudito, que será passado à
geração seguinte. Se as suas investigações científicas, sociológicas, históricas etc., efetivamente nada
acrescentam, então você não fez nada. Você só mostrou para sua mãe que é um bom estudante; e isso é
o máximo! Quando as pessoas chegam a fazer isso, Nossa Senhora! No Brasil já é uma glória. O filho
já é considerado um gênio. Isso significa que há trinta anos, o pessoal estava produzindo apenas
trabalhos escolares. Agora, naqueles setores que não constituem propriamente uma atividade escolar
como, por exemplo, a literatura de ficção ou teatro, o que aconteceu? Não aconteceu nada, zero, zero,
zero, durante trinta anos.
Bom, então nós estávamos perguntando quantos estudos apareceram na universidade brasileira sobre a
obra do Bruno Tolentino: nenhuma até agora. Quer dizer, é uma total incapacidade de reagir mesmo
àquilo que é supremamente esquisito, e que num primeiro momento chama a atenção. Você não pode
esquecer que o Bruno apareceu no Brasil através de uma matéria de página inteira em O Globo,
assinada pelo Arnaldo Jabor, e em seguida concedeu mil entrevistas, ganhou prêmios etc. Mas isso é
apenas uma reação social, não uma reação intelectual. Só por esse fato, você veja o estado de total
letargia mental em que caiu o Brasil. [45:00] Não se reage nem mesmo a uma obra dessas dimensões.

Isso tudo, sinceramente, não é normal, não pode acontecer e, no entanto, está acontecendo, e este
próprio fenômeno, por esquisito que seja, também não chama a atenção, ou seja, quanto mais insensível
você fica, menos percebe que está insensível. Em geral, os cadáveres não percebem que estão mortos.
Dizem que a alma do sujeito sai; ela pode perceber, mas o cadáver mesmo não, está sabendo de nada.

Isso tudo eu estou dizendo para explicar para vocês qual o tipo de pessoa a que se dirige este curso. São
as pessoas que percebem isto e que acham que devem fazer alguma coisa. O curso se dirige,
exclusivamente, a estas pessoas, que têm um certo sentimento de dever para com o País e a sua história,
e que sentem que isto não pode continuar assim: “Então, por mais burro que eu seja, tenho de fazer
alguma coisa, não posso deixar a bola cair completamente”. Aliás, a bola já caiu, nós temos é que pegá-
la no chão. O curso se dirige, portanto, às pessoas que pretendem desempenhar algum papel na vida
intelectual. Porém, desempenhar um papel na vida intelectual não é a mesma coisa que “ser um
intelectual no sentido brasileiro da coisa”, ou seja, desempenhar certas funções, publicar em certos
lugares, ser entrevistado pela Folha de São Paulo, aparecer no programa do Paulo Ghiraldelli e assim
por diante. Não quer dizer isto.

Para que a efetividade da vida intelectual correspondesse aos papéis sociais, assim denominados, seria
necessário, precisamente, que nada do que estou dizendo que aconteceu tivesse acontecido, ou seja,
seria necessário ter um panorama de uma vida intelectual mais ou menos normal, no qual você tem um
público, relativamente qualificado, para julgar o que é melhor, o que é pior, e para discutir as novas
situações que se apresentam.

Por exemplo, se vocês acompanharem o movimento de ideias na França (deveriam fazer isso), notarão
que a literatura francesa está em uma crise enorme pois há muito tempo não aparecem obras literárias
que mantém o padrão de cinquenta anos atrás. Porém, isso é objeto de constante investigação e debate
e, note bem, isso não quer dizer que não haja obras literárias de valor; há. Elas apenas não se comparam
àquelas obras de cinquenta anos atrás: Malraux, Mouriac, Bernanos etc; houve uma baixa de qualidade,
e isso é suficiente para que eles fiquem muito preocupados.

Mas no Brasil não houve uma baixa de qualidade, houve a extinção total, e por isto mesmo ninguém se
preocupa. É claro, quando o sujeito está doente, você se preocupa com ele, mas depois que morre, você
não se preocupa mais: “Coitado, está tão falecido, o que nós vamos fazer” ― ninguém coloca esse
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problema. É esta, mais ou menos, a situação do Brasil.

Mas a prova de que não morreu por completo é que vocês estão aqui, têm alguma sensibilidade para o
problema e querem encontrar um caminho para poder fazer alguma coisa. Isso quer dizer que este
curso, decididamente, não se dirige ao mero cidadão privado que quer ser apenas um consumidor de
cultura. Ele se dirige a pessoas que pretendem criar e fazer alguma coisa. Dentro disso, eu posso, então,
estabelecer alguns princípios, métodos, técnicas etc, que possam ajudá-los a se realizar nesse aspecto.

Para isso, nós temos que colocar, muito claramente, o problema da meta ou do modelo [50:00]. Quando
você é pequeno e começa a receber os rudimentos da sua educação, você já tem modelos que lhe foram
dados de graça e que você não escolheu, que são o seu pai e sua mãe; ou sua vó, sua tia, quem quer que
tenha criado você. A primeira coisa que você tem que aprender é fazer as coisas do jeito que eles
fazem. Você não consegue inventar uma outra. Você pode inventar depois que aprendeu a fazer como
eles, mas isso demora muito tempo. A aquisição das primeiras palavras, por exemplo, quantas vezes seu
pai e sua mãe tiveram que repetir “papai e mamãe, papai e mamãe” para você aprender a falar essas
palavras tão simples? Foi difícil.

Assim, você recebeu o modelo pronto, e a primeira coisa que você tem de fazer é simplesmente copiá-
lo; e isso não é nada fácil. À medida, porém, que você progride e chega ao ponto de se colocar o
problema da autoeducação, é precisamente porque você não tem modelo nenhum. Pois se houvesse
esses modelos, eles seriam os dos seus professores; e você estaria aprendendo dentro daquela linha e
não haveria grande dificuldade. Por exemplo, é interessante vocês lerem as recordações do Otto Maria
Carpeaux ou do Stefan Zweig sobre o ambiente universitário de Viena nos anos dez, vinte do século
XX. Ali tinham tantos modelos, tantos cientistas, filósofos, matemáticos ilustres; modelos não
faltavam, existiam vários e você poderia compor o seu próprio, misturando um com outro, não havia
escassez disso e isso deveria ser a situação normal.

Quando você não tem isso no seu ambiente imediato, você vai ter que procurar através de leitura; mas
aí vem o problema: “Que leituras? Eu não sei por onde começar?”. E isso significa o seguinte: estão
faltando os modelos. Uma simples lista de livros que você deveria ler é um modelo ― não é um
modelo integral, mas é uma parte do modelo. O número de cartas e e-mails que eu recebo com a
pergunta “que livros eu devo ler?” daria para compor vários livros. Evidentemente, eu não posso
responder todas essas perguntas, seria impossível. Mas eu posso dar este curso e ele certamente vai dar
algumas sugestões nisso. Isso quer dizer que você vai ter que adquirir os modelos indiretamente, ou
seja, através de leituras. Não vai haver um corpo de professores que represente ou personifique para
você distintas virtudes intelectuais com as quais você possa compor aquilo que você quer ser quando
crescer.

Por exemplo, eu vejo que o Carpeaux teve um modelo na área da história da arte, que foi Marx Vorjack,
que transformou a história da arte em história cultural. Carpeaux viu aquilo e disse: é mais ou menos
isso aí que eu quero fazer. Mas isso compôs o modelo dele? Não, era uma virtude que ele copiou de um
sujeito, que personificava aquela virtude, aquela qualidade em escala máxima. O Carpeaux, ao mesmo
tempo, era um sujeito sensível à situação política do momento e aos perigos que cercavam o seu país, a
Áustria, que estava ameaçada desde dentro por duas revoluções simultâneas: uma revolução nazista e
uma revolução comunista e no meio estava o Governo do chanceler Dollfuss tentando escapar de uma
maneira ou de outra. Não escapou, foi assassinado, os nazistas invadiram o país e o próprio Carpeaux
teve que fugir; mas ele, enquanto achava que era possível fazer alguma coisa, tentou atuar em uma área
que era totalmente estranha [55:00] à Marx Vorjack, que era o jornalismo político, e escreveu dois livros
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importantes sobre a política da Áustria: um se chama Caminhos para Roma e o outro A Missão
Européia da Áustria. Mas para isso ele tinha um outro modelo completamente diferente, que era Karl
Kraus, que era um eminente jornalista e humorista austríaco e uma espécie de filósofo esporádico; ele
era um sujeito que tinha uma capacidade extraordinária de captar as transformações mentais do país
através das mudanças de linguagem. Ele escreveu uma peça inteira, que se chama Os Últimos Dias da
Humanidade, que é toda composta por coisas que ele leu nos jornais: um anúncio, uma notícia, um
discurso de um político etc. Ele vai encadeando aquilo e mostrando, através da linguagem, que as
pessoas estão usando, as mudanças do ambiente sóciocultural. O Carpeaux desenvolveu uma
capacidade enorme de fazer isso, uma coisa que ele não poderia ter aprendido com Marx Vorjack.
Houve também outros modelos, se vocês lerem os ensaios do Otto Maria Carpeaux, verão que ele
procede muito através de jogos dialéticos, de oposições que tenta formular e resolver. Com quem ele
aprendeu isso? Ele aprendeu com Benedito Croce, que é outro sujeito que ele reconhece como um dos
seus mestres. É uma dialética que vem de Hegel, mas ele aprendeu Hegel através da versão Benedito
Croce. Então, você vê que o Carpeaux teve essas três fontes totalmente diferentes uma das outras, que
foram compondo a imagem mental daquilo que ele queria ser e que ele sabia que podia ser.

Na medida em que você reconhece esses modelos e os vai compondo, você vai descobrindo quem pode
ser, e essa é uma das características mais importantes e, ao mesmo tempo, inquietantes do processo de
autoeducação. A forma da sua consciência e da sua inteligência, você só vai conhecendo na medida em
que você a inventa; mas ela nunca sai do jeito que você queria e você acaba sempre descobrindo que
era alguma outra coisa. Essa constante remodelação dos modelos é um elemento fundamental da
educação, sobretudo da autoeducação. Isso significa que os modelos que você toma têm uma função
inspiradora e estética; não é como uma camisa de força que deve vestir para imitar exatamente aquilo.
Por quê? Porque nenhum modelo individual corresponderá, exatamente, ao que você quer e pode ser.
Você precisa de vários, e precisa compor, e, ao compor, você vai alterar todos eles.

Um teste absolutamente formidável para isto, quase infalível, para você saber onde pegar algum
modelo com o qual deve aprender alguma coisa, é quando você ler um livro e pensar assim: “Eu
adoraria ter escrito este livro”. Tem muitos livros que você gosta, mas que não pensa uma coisa dessa.
Por exemplo, eu adoro A Divina Comédia, mas eu nunca pensei “gostaria de ter escrito isso”. Eu não,
eu não gostaria não, eu gostaria de ler. Se o Dante já escreveu, melhor para mim.

Mas eu me lembro, por exemplo, quando li as explicações de um autor chamado Eric Weil (que era um
filósofo alemão, judeu; quando começou o nazismo, ele não apenas abandonou a Alemanha, mas
abandonou a língua alemã, começou a escrever em francês e virou um escritor francês maravilhoso).
Ele não é um grande filósofo por si mesmo, mas é um maravilhoso expositor da filosofia alheia, e a
compreende, às vezes mais do que o próprio autor dela. Quando eu lia Eric Weil explicando Hegel ou
Kant, [01:00:00] eu dizia “adoraria ter escrito isto, porque isto é inteligência pura”, o sujeito realmente
entendeu o que ele leu, ou seja, aquilo não é mais mistério para ele, e, isso quer dizer que ele entendeu
a filosofia de Kant ou Hegel não tal ela está nos textos, mas como está numa dimensão muito mais
profunda da qual os textos apareceram, ou seja, ele mostrou o seguinte: “Eu saberia criar a filosofia de
Kant ou Hegel, eu só não crio porque eles já criaram, mas eu sei aonde eles estavam, e o que eles
estavam pensando, e o que eles estavam percebendo na hora em que criaram isto”.

Outro livro que eu senti também a mesma coisa foi o livro de Paul Friedländer sobre Platão, que é uma
coisa que só falta você ver o que Platão estava vendo. Ele vai mostrando as cenas e situações reais de
onde as ideias de Platão…em respostas às quais as ideias de Platão foram aparecendo, o que é uma
coisa que não aparece completamente nos escritos do próprio Platão, tem que ser, por assim dizer,
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adivinhando nas entrelinhas; e Paul Friedländer ia lá, enxergava nas entrelinhas e falava “ah, mas aqui
ele está falando de tal coisa, que aconteceu tal dia, que aconteceu assim, assim e assim”, não é só uma
ideia solta, houve um acontecimento, houve uma situação a qual ele está respondendo. Então, quando
eu li isso eu falei “ah, eu adoraria escrever esse livro”.

Claro que eu não vou escrever, porque o Paul Friedländer já escreveu e, provavelmente, eu não teria
capacidade de escrever aquilo. Ele dedicou 20 anos da vida dele às obras de Platão, eu só de pensar em
dedicar 20 anos da minha vida a um autor só, eu já fico agoniado; mas eu posso dedicar uns 2 ou 3
anos, como eu fiz com Aristóteles. Eu fiz aquele estudo sobre Aristóteles com a ideia do seguinte:
existe um problema e eu vou resolver a porcaria do problema. Não é o maior dos problemas, não é uma
interpretação integral da filosofia de Aristóteles, mas é um problema que existe e que eu até hoje
acredito que eu resolvi perfeitamente bem. Por que eu sei disso? Porque mais tarde, outras pessoas em
outros lugares, trabalhando com toda a boa intenção e, às vezes, até com um aparato erudito melhor que
o meu, foram chegando às mesmas conclusões; então eu fiz alguma coisa.

Isso quer dizer que, quando você tem ess impressão ao ler um livro, e dizer “eu gostaria de ter escrito
esse livro”, ou, às vezes, até “eu daria a minha vida para ter escrito esse livro”, ou reagir como Étienne
Gilson, o grande erudito tomista, quando leu o livro sobre São Tomás de Aquino do Chesterton.
Chesterton não era um filósofo de profissão, nunca foi professor de filosofia, era apenas um jornalista,
e o Étienne Gilson leu aquele livro e disse “eu daria um braço para ter escrito este livro”. Isto quer
dizer o seguinte, este cara, com relativamente pouco estudo dos textos de São Tomás de Aquino,
entendeu São Tomás de Aquino mais profundamente, mais na fonte do que eu que estou aqui lidando
com isso há 30 anos. Então isso quer dizer que o esforço de Étienne Gilson era um esforço de
compreensão real, ele não se limitava ao trabalho de erudição, ao trabalho, por assim dizer, técnico e
braçal do estudioso, mas ele queria chegar uma compreensão filosófica real de São Tomás de Aquino; e
ele viu que o outro, de fato, passou na frente dele.

Então esse dizer “eu daria um braço” ou “eu daria a minha vida para ter escrito esse livro”, mostra
quem você realmente quer ser. Então você pode começar, a partir de hoje, a fazer a coleção dos livros
que você gostaria de ter escrito. Outro teste, evidentemente, às vezes, não é um livro inteiro, mas
algumas páginas que você leu e que você disse “eu gostaria de escrever assim”, [01:05:00] não
necessariamente igual, mas obtendo o mesmo efeito; isso é absolutamente fundamental para o início da
sua formação. Isto quer dizer que durante um tempo da sua vida você vai ficar apenas coletando
modelos, você vai ficar apenas coletando imagens do que você quer ser quando crescer, isto vai ser o
começo da sua autoeducação e isto nenhuma escola do mundo vai poder te dar, isto só é possível na
autoeducação.

E, mais ainda, é importante quando você disser isso “eu gostaria de escrever assim”; a hora que você
colocar isso, você terá inventado ou descoberto uma régua para medir o seu aprendizado. Se você
disser “eu gostaria de escrever assim”, isso significa o seguinte: enquanto você não conseguir assim,
não está bom. Porque se você disse isso, você marcou uma capacidade que você tem, um potencial que
você tem. E se é isso que você tem, isso significa que você não tem muitos outros. Se você lê um autor
e diz “eu gostaria de escrever assim”, então significa que escrever assim é uma das poucas coisas que
você realmente é capaz de fazer. Não é dizer “eu gostaria de escrever assim, mas eu jamais chegarei a
escrever assim”. Não! É o contrário, se você diz que gostaria de escrever assim, significa que jamais
você vai conseguir fazer outra coisa.
Então, isso quer dizer que, intelectualmente, para efeitos da sua convivência consigo mesmo e da sua
orientação na vida, a modéstia é péssima conselheira. Qualquer coisa que você tenha admirado neste
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sentindo, não simplesmente para efeitos de contemplação, como eu admiro a Divina Comédia, ou uma
Catedral Gótica, mas admiração de um modelo, isso aqui é a única indicação que você jamais vai ter, é
a única indicação que vai ter sobre quais são as suas possibilidades reais, não há outra.

Você pode, por exemplo, fazer teste vocacional. Mas um teste vocacional vai ter responder o quê? Com
um nome de profissão, e um nome de profissão não diz absolutamente nada sobre quem você vai ser, só
diz onde você vai trabalhar. Então isso quer dizer que, no quis diz respeito à vocação pessoal, às suas
possibilidades pessoais, não existe nenhum método científico para você descobrir; mas existem alguns
métodos e técnicas pragmáticos entre os quais esse. Aquilo que você tomou como modelo se torna ao
mesmo tempo sua medida de aferição, e essa medida de aferição será sempre parcial. Se você diz, por
exemplo “eu gostaria de escrever como Graciliano Ramos ou Camilo Castelo Branco”, isso não quer
dizer que você gostaria de ser Graciliano Ramos ou Camilo Castelo Branco, você não está admirando
as virtudes morais deles, nem olhando as vidas deles e dizendo “eu gostaria de viver esta vida” – que
de fato foram vidas horríveis se você quer saber.

Assim, não se trata de um modelo integral de pessoa, mas um modelo de uma qualidade específica que
você realmente pode desenvolver, você não pode se contentar enquanto você não chegar lá: “pelo
menos isso eu devo que ser capaz de fazer”. Isto resolve meu problema? Não, porque você vai precisar
de outras coisas para compor, por assim dizer, a sua personalidade intelectual; e é esse museu de
modelos que eu acho que é o começo da autoeducação. Claro que você vai introduzir outros depois
mais tarde,[01:10:00] outros que talvez depois superem os primeiros.

Mas note bem esse negócio de superar, você supera um sujeito quando você consegue fazer mais do
que ele, não antes, não é porque você simplesmente desistiu daquilo que você o superou. Eu posso
dizer que o Brasil está repleto de ex-estudantes dos meus cursos que acreditam que superaram Olavo de
Carvalho, porque eles se tornaram incapazes de continuar aprendendo com Olavo de Carvalho,
decidiram partir para outra e superaram. Não, isso não é superar, você simplesmente cansou e decidiu
fazer outra coisa. Superar é na hora que você fizer uma coisa equivalente ao que eu fiz, aí sim. Claro
que ninguém fez, nem vai fazer, porque quando você pega uma linha de aprendizado, você tem que
percorrê-la até o fim, e até o fim significa você tornar-se capaz de fazer algo do mesmo nível, aí você
completou o seu aprendizado, fora disso, não.

Portanto se vocês tiverem que estudar comigo durante 20 ou 30 anos, não há novidade nenhuma nisso,
isso sempre foi assim. Você vê que os grandes estudantes acompanharam seus professores por 20 ou 30
anos. Aristóteles ficou 18 anos na academia de Platão, e você acompanhar, por exemplo…é interessante
você estudar a história de uma escola filosófica, e você ver que aquilo é um aprendizado em contínua
autocorreção que se prolonga realmente por 20, 30 ou 40 anos; isso é o normal.

Isso quer dizer que o que eu estou falando aqui não tem nada a ver com o mero estudo universitário,
claro que isto pode ser feito dentro de um quadro universitário, mas não no simples curso regular. Pode
ser que seja em um instituto de pesquisa que funciona anexo à Universidade, que continua trabalhando
ali com o mesmo cara, aprendendo com ele durante 20, 30 anos, isto é inteiramente normal. Mesmo
porque, se você estuda comigo há 5 ou 6 anos, você tem certeza que eu já disse tudo que eu tinha para
dizer para você? Sempre tem algum truque que a gente não ensinou ainda, e pode ser também que eu
tenha aprendido alguma coisa nesse ínterim. Então, por exemplo, nas escolas de artes marciais não
existe a menor dúvida quanto a esse ponto, quer dizer você simplesmente decidiu largar aquela escola,
quer dizer que você superou aquele professor? Não, evidentemente. O objetivo é que você supere
realmente, esse é o objetivo. A gente ensina as pessoas para que elas façam algo melhor do que nós
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fizemos, se é para fazer a mesma coisa, não precisa fazer porque eu já fiz, se é para fazer pior, é melhor
não fazer nada. Então o objetivo é produzir pessoas capazes de fazer algo melhor do que eu fiz, é claro
que é um objeto idealístico, e que pode levar muito tempo, mas essa evolução por patamares onde você
vai subindo no que foi feito antes para você fazer algo mais, isso é processo normal da cultura, mas isso
é desconhecido no Brasil, isso é desconhecido até mesmo fisicamente.

Se vocês estudarem a história da cidade de São Paulo, vocês verão que a cidade foi construída e
destruída 100 vezes, de modo que você não tem… é impossível você observar na cidade de São Paulo
traços da história da arquitetura paulista, a história sumiu, só sobraram os últimos edifícios, você não
sabe o que tinha antes, só se você procurar fotografias. Isso quer dizer que a história da arquitetura só
existe no papel, não existe mais na arquitetura. [01:15:00]

Eu me lembro quando eu fui para a Romênia, eu fui num lugar chamado museu das aldeias, onde um
grupo de arquitetos percorreu as várias regiões da Romênia e copiou exatamente um modelo de casa ou
de cabana popular de cada lugar. Então você vê ali a história e a geografia da arquitetura romena, a
evolução dos vários estilos nas várias regiões, e esse modelos que eles copiaram ainda estão lá. Você
tem os edifícios novas, e você tem os antigos, só que quando você vai criar um edifício novo, você tem
a consciência da história da arquitetura, então você sabe mais ou menos onde aquele edifício novo se
encaixa na evolução dos estilos anteriores, existe um diálogo entre o novo e o antigo.

Em São Paulo não tem nada disso, o sujeito teve ideia de uma coisa nova, arbitrária, que saiu da cabeça
dele ou que ele copiou de um modelo estrangeiro, ele vai mete aquilo no meio de uma rua sem nem
olhar o que tem em volta. Então conseguiram criar uma monstruosidade arquitetônica como nunca
existiu no mundo. Vocês que estão vindo aqui para os Estados Unidos, vocês veem… vocês não estão
em uma região de gente rica, mas isso aqui tem estilo, ou não tem estilo? Salta aos olhos. Nesta coisa
dos modelos vocês também precisam levar em conta o seguinte, como vocês estão em um lugar que
não tem história (não é que não tem memória, memória é quando as pessoas esqueceram, mas se você
não tem sequer a presença física dos sinais do passado, não é que não tem memória, não tem como ter
memória), eu me lembro quando me mudei para o Rio de Janeiro nos anos 80, foi uma emoção
tremenda, porque ali ainda tinha sinais da história. Eu me lembro que eu estava passando na praia de
Copacabana e tinha um marco “Aqui morreu Siqueira Campos”, e eu tinha acabado de ler o romance
do Josué Montello, A Coroa de Areia, que é a história das revoluções brasileiras. Eu falei “epa, o
negócio aconteceu mesmo, foi aqui, eu estou nesse lugar”; em São Paulo você não pode ter essa
experiência, e em outras cidades do Brasil também não.

Assim, não é só uma questão de feiura, mas é uma questão da ausência de qualquer forma identificável,
e isso é a pior circunstância que você pode ter quando você pretende se educar, porque você não tem
uma base física de onde você construiu o seu mundo imaginário, seu mundo intelectual etc. Então quer
dizer que você vai ter que construir tudo por imaginação. Por exemplo, a história brasileira, o que quer
que você estude sobre história brasileira, parece tão distante, tão remoto e tão carente de interesse para
você, justamente porque não há continuidade. Aquilo que você está lendo sobre o século XIX não tem
nada a ver com o que está acontecendo agora – ou pelo menos parece não ter nada, porque os marcos
da continuidade desapareceram.

Então não que aquilo seja desinteressante, não é aquilo não tenha importância vital para você agora, é
que os sinais dessa importância vital desapareceram, e você está, por assim dizer, solto no espaço. Mas
isso significa que todos os sinais desapareceram? Não, os sinais escritos permanecem. Então, por
exemplo, você pode apreender alguma continuidade, por exemplo, da história da literatura brasileira –
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enquanto houve continuidade, até o ponto que houve continuidade e você vai perceber claramente o
ponto de ruptura, que foi nos anos 80. Eu percebi isso, tudo de uma vez, em uma experiência que quase
me intimidou. [01:20:00] Eu estava fazendo um serviço para a Top Books e o Zé Marco Pereiro, o editor,
me encarregou de escrever orelhas de livros. Escrevi várias orelhas de livros, e havia os quatro livros
melhores de todos, absolutamente espetaculares; e quando acabei de escrever a orelha do quarto, eu
percebi “epa, todos esses autores são octogenários, o que aconteceu? Não se encontra nada deste nível
escrito por um sujeito de 60 ou de 40 anos”. Foi naquele momento que eu falei acabou, porque esses
caras vão todos morrer.

Anos depois deu eu ter viajado, quando voltei e encontrei aqueles velhinhos, eles já estavam realmente
gagás; ai já não dava para fazer mais nada, e alguns tinham morrido. E da geração seguinte não veio
nada. Eu não posso dizer que eu não vi esse desenvolvimento histórico, eu vi; mas eu também vi que
ele parou em um certo momento. Essa experiência foi umas das que me induziram a pensar a seguinte
coisa: para que o fio da meada não se perca completamente, é precioso que alguém faça a ponte entre
uma geração e outra; e só tem uma pessoa capaz de fazer isso, que sou eu. Porque, ao mesmo tempo eu
me lembro de tudo e sou capaz de falar com a geração mais nova, eu entendo a linguagem de uns, e
mais ou menos, a linguagem dos outros; então é possível eu fazer isso.

Foi em vista disso que eu criei o estilo no qual eu escrevi o Imbecil Coletivo, por exemplo. Que é um
estilo onde certos requintes de erudição se misturam às piadas mais bregas e grosseiras que você pode
imaginar. Tem aqui um americano que leu isso e disse “mas esse negócio é barroco, ele mistura tudo”.
Sim, eu fiz isso de propósito, para que as pessoas lendo isso, transitem entre uma época e outra. Então
esse livro foi uma maneira de tentar juntar essas duas épocas, mas foi só um esboço. Quando eu
concebi este curso foi com a ideia de mostrar como é que se faz isso, como é que a gente emenda as
coisas, não em um livro, mas na nossa mente, ou seja, como é que nós mesmos incorporamos em nós
uma história que nos foi sonegada de alguma maneira. Sob um certo ponto de vista é uma situação
extremamente desfavorável, mas para fins de autoeducação não poderia ter coisa melhor, por quê?
Porque a educação sumiu e só sobrou a autoeducação. Então o que você não fizer por este meio, você
não vai fazer por meio nenhum – esta é uma chance única.

Note bem que transcorridos 20 ou 30 anos desse processo, aos poucos começam a aparecer alguns
produtos melhores, um livro aqui, às vezes até um site, uma coisa assim… eu penso, “opa, está dando
sinal de vida”. Mas em nenhum desses [livros, sites etc] você deixa de observar alguma influência deste
curso ou dos meus livros; e se não tivesse isso, simplesmente não teria continuidade. Tudo que eu
escrevi no Imbecil Coletivo, por exemplo, foi para documentar uma coisa que estava acontecendo, que
já é de uma outra época, dos anos 80. E hoje a situação é imensamente mais degradante do que na
época, mas esse livro de algum modo ele faz a ponte entre o Brasil que tinha uma vida cultural normal
até os anos 60, 70, e o desastre total que nós observamos hoje em dia. [01:25:00]

Mas é claro que essa documentação não adianta se você, de certo modo, não percorrer esse trajeto ao
contrário, quer dizer, você vem desde a situação de hoje, passando pela do imbecil coletivo até [chegar]
ao que tinha antes. Por exemplo, se vocês simplesmente fizerem a lista dos escritores brasileiros que
estavam vivos e atuantes nos anos 60, vocês vão ficar impressionados com a imensa riqueza da
literatura brasileira naquela época. E não era uma riqueza constituída de amostras soltas, aquilo tinha
uma organicidade, as pessoas liam umas as outras, sabiam o que elas estavam fazendo; assim as
criações de um inspiravam as criações de outro. Havia um diálogo e isso é uma alta cultura nacional;
sem esse diálogo e essa inter participação, não existe nada. Isso quer dizer que um professorzinho
fazendo um trabalho excelente numa universidade aqui e outro fazendo outra trabalho completamente
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diferente noutra universidade lá, não forma uma cultura nacional. Esse diálogo aparece nas próprias
obras.

Nos anos subsequentes, quando desapareceu a alta cultura nacional, surge em substituição a ela, um
diálogo de mídia; é uma época em que ser um intelectual é escrever na Folha de São paulo, e participar
do debate interno das esquerdas nacionais. Então isso já é uma caricatura do verdadeiro diálogo.
Antigamente o diálogo não se travava em mídia, as próprias obras refletiam essa interpenetração. Você
pode observar ao ler, por exemplo, Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, João Cabral de
Melo Neto, que um está de certo modo respondendo ao outro; e quando desaparece esse diálogo mais
profundo, então aparece um diálogo superficial na mídia e, evidentemente, isso estará limitado aos
interesses de um determinado grupo que tem o domínio daquela mídia.

Isso cria, evidentemente, a figura daquilo que hoje se chama o intelectual no Brasil. Por exemplo,
aquele encontro que ocorreu na USP a respeito da direita, onde cinco sujeitos de esquerda discutiam o
ressurgimento da direita. O ressurgimento da direita quer dizer meia dúzia de blogs, quer dizer, o que
eles estão discutindo como direita é a prova viva de que não existe direita nenhuma. Como eles não
sabem exatamente o que é uma direita, eles pensam que isso é. Então aquilo é, evidentemente, um
diálogo de equívocos, onde existe um grupo de pessoas encarregado de representar os intelectuais.

Não é preciso dizer que essas pessoas se consideram a própria definição do intelectual. Quando ele fala
assim “os intelectuais precisam fazer isso ou aquilo”, significa o seguinte “aqueles intelectuais, aquele
grupo esquerdista da USP, da PUC etc, precisa fazer alguma coisa”. E a ideia de que, por exemplo, para
se fazer um estudo sobre a direta, seria preciso um diálogo com os intelectuais da direita, nem lhes
ocorre. Porque eles não acreditam que existem intelectuais na direta, porque eles são “os intelectuais”,
eles são a classe intelectual por autodefinição. Pois bem, é claro que tudo isso é uma palhaçada, tudo
isso é um circo, isso não tem nada a ver com a vida intelectual realmente; e o simples fato, vamos dizer,
o simples predomínio ostensivo da seleção ideológica sem nenhum atenuante, já prova que acabou a
alta cultura, sem sombra de dúvidas.

Mas então se você perguntar, por exemplo, quando aconteceu de na França, na Inglaterra ou nos
Estados Unidos, um filósofo não encontrar editor porque ele é de direita? Isso nunca aconteceu, e
nunca vai acontecer! Mas no Brasil acontece. Quer dizer, publicar um autor de direita é considerado
ofensivo; em nenhum país civilizado se pensa assim. Mas no Brasil quer dizer que o interesse
partidário (não é nem o ideológico, é o partidário, [01:30:00] mais grosseiro e mais imediato) virou o
critério da vida intelectual. Isso é mais uma prova de que acabou.

Então, esse processo de absorção, de encontro, de procura, e de absorção dos modelos, imita de algum
modo, a própria dialética interna da formação da consciência mesmo. Isso que você chama de eu;
desde que você nasce, certamente, você é uma pessoa dotada da capacidade de falar em seu próprio
nome, e esta capacidade nós chamamos de eu. O que é “eu”? É a minha história tal como vista pela
minha própria lente. Isso quer dizer que você nasce com um “eu” meramente potencial. Esse “eu” está
lá, mas ele não tem nenhuma história para contar; então, por outro lado, ele também não existe. Ele
existe, mas não existe. E você vai torná-lo existente, aos poucos, ao longo de tentativas de ser você
mesmo e de marcar sua presença de algum modo. Porém, essas tentativas, evidentemente, por um lado
elas são parciais, muito limitadas e sempre vai sobrar algo que as suas ações e as suas palavras não
expressam, que não dão conta. Então, vamos dizer, é aquela dimensão íntima e secreta do eu. Aquele eu
que ninguém conhece, só você conhece. É só a partir deste momento que você tem realmente um eu, ou
seja, que você tem uma história indizível, uma história que não dá para você contar. Não porque você
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esteja escondendo, mas porque o seu conjunto de experiências interiores, as suas memórias, os seus
sentimentos etc, formam uma constelação demasiado complicada para que a sua linguagem de conta
disso.

Então, é curioso que o eu se forma nas tentativas de se exteriorizar, mas ele se constitui sobretudo
daquilo que não é possível exteriorizar, daquilo que você falhou em exteriorizar, e que constitui então o
seu mundo. Desse mundo, você vai conseguir, através das suas ações e palavras, sempre exteriorizar
apenas um pouquinho. Mas, esse pouquinho tem que ser muito bem selecionado, porque ele representa
a marca que você realmente quer deixar, ou seja, aquilo que você quer fazer de tal modo que as coisas
não sejam mais as mesmas depois da sua passagem por esse lugar.

Isso não significa, necessariamente, que as pessoas vão ter uma boa imagem de você; não é disso que
se trata, a imagem é uma segunda coisa, isto é, a ação efetiva que muda o estado de coisas é uma coisa,
e o que as pessoas pensam disso é outra coisa completamente diferente. Você pode até cuidar da sua
imagem se quiser, mas antes de cuidar da imagem, você tem que ser imagem de alguma coisa, e você
tem que fazer essa coisa. O “fazer essa coisa” que é importante.

Me parece que essa perspectiva (que é tão básica para a história, para a formação psicológica dos
indivíduos) se perdeu na sociedade brasileira, as pessoas hoje tem só tem ideia da imagem, de quem
elas querem parecer, não do que elas querem fazer. Você entende a diferença? Você pode fazer uma
coisa extraordinária da qual ninguém ficou sabendo, nem por isso aquilo deixou de acontecer e de ser
real, e também pode ser que você espalhe uma imagem para todo mundo, que todo mundo pense que
você fez algo que você não fez absolutamente.

Essa coisa da imagem se torna tanto mais importante na vida brasileira atual, justamente por causa da
insegurança e do vazio de critérios. Quando você não sabe o que é para fazer, o que é o certo e o
errado, o que funciona e o que não funciona, você está inteiramente dependente do olhar dos outros, e
da aprovação. Mas essa aprovação, como essas pessoas também não sabem o que fazer, é totalmente
aleatória, é totalmente anárquica. Qualquer coisa pode funcionar ou não funcionar, isso significa que o
esforço de você obter uma boa imagem vai deixá-lo ainda mais inseguro. E você só vai sair dessa
insegurança quando tiver, em você mesmo, o critério [01:35:00] do que fez e do que não fez, quando tiver
consciência da sua própria história e das suas próprias ações e puder dizer “eu sou o sujeito que fez
isto”. Isso tem que ter sido feito realmente.

Veja que o que move todo esse maquinário da autoeducação é este desejo de ser e fazer alguma coisa, e
o que você é, é exclusivamente aquilo que você fez. O resto você apenas pensou, ou seja, isso quer
dizer que a sua autoimagem não tem muita importância nessa história, o que tem importância é a sua
história real, a história que você pode contar. Porque a autoimagem é uma coisa altamente deslizante,
isto qualquer um pode testar: quantas vezes por dia você se considera uma pessoa maravilhosa
injustiçada pelo mundo? E quantas vezes por dia você o pior dos pecadores e criminosos, alguém que
não vale a atenção de um mosquito? Isso para mim acontece todo dia, eu penso essas coisas todo dia.
Penso uma, depois penso a outra, depois volto à primeira. Então, autoimagem é isso, ela é um negócio
deslizante; não dá para você pegar, é como que tentar segurar água. Então para que cuidar da
autoimagem se ela vai mudar mesmo? O que interessa, vamos dizer, são as ações reais que vão
compondo uma história real que você não pode apagar mais.

Existem duas palavras básicas que tem que entrar no seu critério de autoeducação desde o início, essas
palavras são para “para sempre” e “nunca mais”. Quem não leva a sério essas palavras, nunca vai
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conseguir fazer nada que preste, nada que dure e nada que valha a pena; nada que valha a pena nem
para ele mesmo. Porque “nada” é “para sempre”. O sujeito que acredita que “nada é para sempre”, é
porque ele não sabe da existência de um treco chamado morte. E o sujeito que não sabe o que quer
dizer “nunca mais”, também não sabe o que é morte.

Você perceber que certas coisas são irreversíveis, ou seja, que nada do que você fizer vai consertar
aquilo, é uma coisa básica; mas é também uma impressão da qual todo mundo foge. Muito bem,
existem coisas más que não podem ser consertadas, mas também existem coisas boas que foram feitas e
não serão desfeitas. Aquilo que foi feito pode ser esquecido, mas não pode ser desfeito, isso é básico.
Para você perceber a distinção entre o que é dimensão de realidade e o que é dimensão de mero
imaginário, note isto: houve coisas que aconteceram e foram esquecidas, mas elas foram desfeitas?
Foram feitas ao contrário? Voltaram ao nada? Então, digamos, isto para mim é uma regra de ontologia:
o que quer que tenha entrado na esfera do ser, ainda que por uma fração infinitesimal de segundo, não
pode voltar ao nada. Porque nada sai do nada e nada volta ao nada. Então, vamos dizer, é a regra do
Parmênides: o ser é eterno. Se o ser é eterno, o que quer que tenha existido, que tenha entrado na esfera
do ser, ainda que da maneira mais fugaz, pode ser esquecido, seus efeitos podem ser anulados, mas a
coisa mesma não pode ser desfeita, não existe retorno ao nada. Então, a realidade é constituída de tudo
aquilo que não pode voltar ao nada, o resto é só imaginação.

Se as coisas serão lembradas ou não, isso é realmente secundário. Porque, por exemplo, suponha que eu
nunca tivesse descoberto a obra do Mário Ferreira dos Santos [01:40:00]. Eu tenho uma verdadeira loucura
por esse negócio de cavar, encontrar tesouros escondidos, eu adoro isso: no meio de um monte de lixo,
eu encontrar alguma coisa maravilhosa. Isto aconteceu muitas vezes na minha vida. Ninguém
encontrou a obra do Mario Ferreira dos Santos porque ninguém estava procurando, mas eu estava. O
que eu li de livros ruins de filosofia brasileira vocês não imaginam… tudo quanto é porcaria. Eu li
muitos livros do Frei Betto, eu li muitos livros do Leonardo Boff, eu li um bocado de Paulo Freire, eu li
tudo que tinha. O Pe. Ladusãns, meu mestre, organizou no Rio de Janeiro, uma das melhores
bibliotecas filosóficas que já existiu no Brasil, e dentro dela havia uma seção de filosofia brasileira, que
tinha tudo que se havia publicado de filosofia no Brasil desde o século XVIII. Eu não li tudo, mas li
muito daquilo; e quando achava alguma coisa boa, fazia questão de mostrar para todo mundo, e foi em
uma dessas que eu descobri o Mário Ferreira do Santos.

Quando eu descobri aquilo, eu não resisti, eu falei “tenho que contar isso para as outras pessoas, esse
negócio existe”. Suponhamos que eu não tivesse descoberto nada. Agora eu digo, se não tivesse
descoberto, também ninguém descobriria. Por que? Porque no Brasil quando os sujeitos descobrem
uma coisa boa, eles querem esconder. Para dizer “não, esse cara aqui é melhor do que eu, é melhor
esconder, assim eu pareço um pouco melhor aos meus próprios olhos”. É ou não é assim? Então, seu eu
não tivesse descoberto Mario Ferreira do Santos e até hoje ninguém soubesse da existência dele, nem
por isso essa obra deixaria de ter existido e continuar existindo. Mesmo que todas as cópias
desaparecessem, aquilo foi feito, aquilo aconteceu realmente na esfera da realidade. E o que é a
realidade? A realidade é a memória de Deus, não é a sua memória. A sua memória passa, a Deus não
passa. Então aquilo está gravado na eternidade, nada pode apagar; o que pode ser apagado é a memória
humana, apenas.

Agora, se a memória humana é falha, as falhas da memória humana são ainda mais falhas. Isso quer
dizer que se todo mundo esquecer uma coisa, não é nenhuma garantia de que ninguém vai lembrar
daquilo amanhã ou depois. É muito difícil enterrar alguma coisa de uma vez para sempre. Sempre pode
aparecer um sujeito curioso que vai lá e descobre aquilo de novo. Isso quer dizer que aquilo que está na
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memória coletiva ou individual, não tem importância; e só importa o que está na realidade. E a
realidade é aquilo que não pode ser desfeito, a realidade é o fato. O que é o fato? Factum é aquilo que
foi feito. Assim, a única maneira possível de você construir uma vida intelectual descente, que valha a
pena, é você fazer que ela se constitua de fatos, de coisa que foram realmente feitas, não de coisas que
você pensou, não coisas que você quis fazer.

Eu decidi, entre outras coisas, começar a dar esses cursos, porque eu estava pensando muitas coisas e
tendo muitas ideias que eu jamais na minha vida conseguiria escrever; eu precisaria escrever 50
páginas por dia para registrar aquilo. Então, já que não é possível escrever, vou falar e gravar – graças
a Deus tem esses meios de gravar hoje. Isso foi feito e também não pode ser apagado mais. Mesmo que
as cópias desapareçam, eu posso dizer “bom, já foi feito” – mas as cópias não desaparecem. Assim,
você deve fazer uma vida intelectual constituída de atos, que depois você possa contar para você
mesmo. E quando você perguntar “quem sou eu?”, em vez de você ficar tentando resolver um problema
de autoimagem, tentando saber se você é um grande cara ou um ser desprezível… você não é nem uma
coisa, nem outra. Você é o cara que fez isto, mais isto e mais isto; isso é a sua história. [01:45:00] Claro que
também existe uma história dos pensamentos, uma história puramente interior, mas essa é uma coisa
mais sutil que pode ficar para mais tarde. Só quando você souber a história dos seus feitos e estiver
muito seguro dela, é que você pode refazer a história dos seus pensamentos; como Santo Agostinho fez
nas Confissões, onde ele conta até o que ele pensava no bercinho. Mas não tente fazer isso antes de
você ter a segurança de uma história composta de fatos e obras, ações, coisas que foram feitas.

E essas coisas que foram feitas têm que atender o critério de exigência colocado pelos seus modelos. O
modelo significa “eu tenho que fazer no mínimo isto”. Então, por exemplo, você dificilmente
encontrará algum modelo completo, o modelo completo é só Nosso Senhor Jesus Cristo, os outros
modelos são sempre parciais e condicionados por situações que não eram exatamente a sua. Isso
significa que não tem jeito de você ser uma outra pessoa porque ele já foi isso, essa possibilidade já
esta gasta, você vai ter que ser uma outra coisa. Mas, do que você absorveu das aulas que você assistiu,
dos livros que você leu etc., você tem que pegar pontos específicos que constituam modelos para você.

Esses modelos não são o que você conheceu de melhor, têm coisas melhores que você simplesmente
não quer fazer. Assim, quando você vê um objeto bem-feito, uma obra de arte, uma coisa assim, aquilo
pode ser o melhor do gênero, mas não é necessariamente o que você quer fazer. Então existe essa dupla
modalidade de participação, você vai participar, digamos, como um consumidor ou como um produtor;
essa distinção deve ficar muito clara. Então, há os pontos que você deseja imitar, e há aqueles que você
simplesmente admira; sabendo que você não pode, não quer e não deve imitar. Essa constelação de
modelos é o começo da autoeducação.

Mas há ainda o seguinte problema, para eu ter uma constelação de modelos, preciso ler alguma coisa,
preciso ter informação. Então que informação eu devo obter para isso? Parece um círculo vicioso: para
progredir, você precisa de um modelo; mas para obter um modelo, você precisa progredir. Então
entramos no dilema do Tostines. Sempre que você entrar nisso, lembre-se da seguinte coisa: todos os
dilemas desse tipo só existem na esfera lógica, na esfera do pensamento. Na realidade material, que é
aquela que transcorre no tempo, eles não existem. Esse é um outro truque, por assim dizer, que será
bom você aprender desde o início. Existem muitas coisas que nós não sabemos resolver
intelectualmente, isto é, você equaciona a situação, trava-se tudo e você percebe que não há saída.
Nessas horas você tem que dizer “ah! Que bom que não sou eu o administrador do mundo, não sou eu
que crio a realidade, porque se fosse eu já não saberia o que fazer no próximo capítulo”.
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Isso significa que, se eu não sei como resolver, a realidade sabe, então deixa por conta dela. Você vai
continuar com aquele dilema na cabeça, mas estará consciente de que aquele dilema é uma construção
artificial que você mesmo fez e que expressa somente a contraposição entre os seus pensamentos,
[01:50:00] e não entre as forças reais que estão operando na realidade. A realidade sempre tem mais
alternativas do que nós conseguimos pensar. É por isso que o Roberto Campos dizia que na prática tudo
é mais fácil do que na teoria. Tem coisas que você não sabe resolver, mas que se resolvem por si
mesmas.

Essa desistência de dominar as situações intelectualmente é um dos elementos fundamentais da


autoeducação, isto é, você saber qual é a diferença entre seu pensamento e a realidade; e tomar a
realidade como sua mestra, e não os seus pensamentos. Observe que o pensamento humano tende a se
estruturar de uma maneira fechada, por assim dizer, geométrica; e está tudo bem que seja assim.
Acontece que nenhuma construção mental humana abarca todas as dimensões da realidade; assim, as
vezes, quanto mais perfeita é a sua construção, mais você está se afastando da realidade. Então você
precisa aprender a operar em aberto: você leva o seu exame das questões até um certo ponto e diz
“olha, eu cheguei até aqui”. Quando você chegar nesse ponto sabe o que você faz? Esquece tudo e vai
dormir, e confia que a realidade vai te dar solução daquilo mais cedo ou mais tarde, as vezes,
totalmente diferente do que você esperava. Não transforme a sua inteligência em uma arma contra você
mesmo.

Observe que a arte da lógica se constitui inteiramente de pensamentos possíveis sobre coisas
meramente possíveis, não sobre coisas reais; o conceito de real não existe em lógica. Existe, por
exemplo, o conceito de proposição verdadeira, mas o interesse é na verdade da proposição e não dos
fatos correspondentes a ela. Isto quer dizer que quando você aprimorar o seu aparato lógico até o
máximo, você terá se capacitado para articular ideias possíveis sobre coisas meramente possíveis; e
você não vai saber se alguma coisa daquilo é real. Isso quer dizer que, usando de estrita lógica, para
você chegar a conclusões reais sobre o mundo real, seria preciso ter um número infinito de premissas.
Deus tem, Deus tem todas as premissas e domina a lógica completamente. Nós sempre temos alguma
precisa faltando, tem alguma coisa que você não sabe, e portanto não é que o seu raciocínio esteja
errado, mesmo que ele esteja certo, ele pode não ter nada a ver com a realidade, e na maior parte dos
casos não tem.

Isso quer dizer que todas as estruturas que nós formos gerando por pensamento lógico, nós temos que
fazê-las de desfazê-las, o tempo todo. Isso não significa que você vai fazer, por assim dizer, uma
concessão ao irracional; não se trata de ser racional ou irracional. Claro que o seu pensamento é
racional; mas ele escapa do real, por quê? Porque ele não tem todas as premissas. Se você tivesse todas
as premissas sobre tudo que existe, você colocaria tudo em um computador, ele te forneceria toda a
ciência universal em seguida. Mas o problema é: que quem vai colocar lá dentro as premissas? Um
outro computador? E outro, e outro, e outro? Não, vai ter que existir um ser humano no começo; e esse
ser humano também não possui todas as premissas, ele só possui aquelas que ele possui. Então, isso
quer dizer que o raciocínio lógico é muito bom para você articular as coisas que você já sabe. [01:55:00]

Mas, a articulação do que você já sabe, é assim, é como você arrumar os livros na estante. Você arruma
tudo bonitinho, no dia seguinte você compra mais livros e a ordem da sua estante foi para as cucuias
novamente, é sempre assim. Se vocês forem lá em casa, vocês vão ver. Hoje mesmo tive que pedir para
o Alessandro me arrumar um exemplar do livro do Gilbert Highet, The Art of Teaching, que eu queria
citar aqui, porque eu compro um montão de livros na intenção de ter sempre os livros a minha
disposição, mas acontece que eu compro tantos livros que depois não consigo achá-los.
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Tomar a realidade como sua mestra significa você entender que ela não é um produto da sua mente, é
saber que você existe dentro dela, que ela já está organizada faz não sei quantos bilhões de anos – não
sei quando o mundo começou, nem isso a gente sabe, não é? –; se eu disser “ah, faz não sei quantos
bilhões de anos exatamente”, mas nem isso nó sabemos. E que é ela que contem todas as estruturas da
ordem, da razão, do conhecimento etc., é ela e não você. Por exemplo, se você pegar um tratado de
mineralogia, verá que nele existe muito conhecimento sobre os minerais; mas o próprio mineral possui
mais conhecimento de mineralogia embutido ali do que todos os livros de mineralogia. É apenas
conhecimento que ainda não foi extraído pelo ser humano. De onde os mineralogistas extraem os
conhecimentos de mineralogia que eles têm? Não é observando os minerais? Eles captam ali a
estrutura, a fórmula, o lugar etc.. Aonde estava essa informação? Estava no próprio mineral; e tudo que
a gente sabe é realmente assim.

Portanto, essa prioridade dos primados da realidade sobre o nosso pensamento é básico para a
autoeducação, porque ela permite que você esteja sempre aberto e sempre querendo mais, sem ficar
com medo quando todas as estruturas que você criou vem abaixo, porque elas virão abaixo todo dia. No
processo de elaboração das ideias, e no processo de formação da sua própria autoconsciência, você
sempre partirá primeiro de uma síntese confusa, de uma vaga impressão que você tem de alguma coisa.
Essa vaga impressão, ao longo dos tempos irá se desmembrando nos seus elementos constituintes, e nas
suas várias articulações internas, e por fim, você criará uma nova síntese mais diferenciada e mais
nítida. Quando você chega nisso, há, evidentemente, uma grande satisfação, e a inteligência encontra
aquele estado de repouso ao qual ela aspira “ah, isso aqui eu já sei”. Acontece que você só encontra
esse estado de repouso com relação a muito poucas coisas no mundo.

Quando Santo Agostinho disse que, para Deus, nós só encontramos repouso nele, isso quer dizer que
esse pleno estado de equilíbrio da inteligência só existe em Deus, nós não temos isso. Então quando
você chega a uma conclusão e diz “ah, entendi, é assim”, é porque você só entendeu dentro do quadro
dos limites que você formulou; mas sempre pode haver outros elementos externos que vão interferir
naquilo e modificar tudo. Todas essas estruturas que nós criamos, nunca devemos dar muito valor a
elas, nós registramos aquilo por escrito ou dizemos numa conferência, numa aula, está certo? Mas, em
seguida, devemos esquecer, passar adiante, e ir estudar outra coisa, e outra coisa, e outra coisa.

Isso manterá você em um estado de criatividade, que é uma coisa que, se é para nós cumprirmos as
finalidades que foram propostas desde o início desse curso, será absolutamente [02:00:00] necessário,
porque nós não temos tradições ou retaguardas nas quais possamos nos apoiar, nós vamos precisar, de
certo modo, andar no ar. Então é voar sem ter onde pousar, como esses pássaros que atravessam o
oceano – existe um filme maravilhoso sobre migrações de pássaros, como é que chama aquilo… um
dos filmes mais lindo que já foi feito sobre migração de pássaros, pássaros que voam, sei lá, 40 mil
milhas sem poder parar. É mais ou menos a nossa situação. Bom, hoje vamos parar por aqui, se tiverem
perguntas, podem fazer.

Aluno: Professor, o senhor define o objeto da filosofia como algo do ser humano concreto, e o senhor
hoje estava dizendo que o senhor mesmo é também um sentido da sua obra no mundo, como realidade.
O senhor poderia discorrer um pouco sobre essas duas visões? Como é que elas se harmonizam?

Olavo: Bom, o que você faz, as suas ações e suas obras, elas são um marco no seu caminho, são
capítulos da sua história e são o que você realmente é. Mas, não quer dizer que nada disso seja
definitivo para os outros e para ou mundo. Quer dizer, não há uma realização final a ser contemplada,
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tão logo termine uma coisa, você tem que fazer outra, e outra, e outra, até morrer. Quer dizer, uma
forma final só é alcançada quando você morre, porque aí a sua história acabou, e assim pode ser
contada com começo, meio e fim; tem um fim. Enquanto não tem um fim, não tem forma, não sei se
você percebe, o que está em aberto não tem uma forma, tem uma orientação interna, tem uma certa
continuidade, mas não tem uma forma total.

Observe que, muitas vezes, a pessoa no desejo de se conhecer, quer apreender a sua própria forma,
saber quem sou eu, no fechado, isso não dá para fazer. A única coisa que você sabe é o que você já fez,
mas o que você já fez está incompleto porque você continua fazendo. Então, mesmo aquilo que você já
fez, só adquiri sentido em função do que você está fazendo e do que você vai fazer em seguida. Por isso
mesmo a ideia de um plano, de um objetivo de vida, é uma ideia eminentemente móvel, que você tenta
realizar, e na medida que tenta, você exterioriza uma parte de você mesmo; e aquilo que está
exteriorizado, está feito. Uma etapa que foi vencida, se incorpora a sua história, mas ela só se incorpora
mesmo se você já estiver fazendo uma outra coisa, se não aquilo perde toda a importância.

Existem vidas maravilhosas que, as vezes, passam por mutações tão fantásticas, em que o sujeito
inaugura uma nova etapa completamente diferente. Mas para ele fazer isso, ele precisa ter o
fundamento daquilo que ele já fez; ate mesmo para você renegar: “tudo o que eu fiz estava errado”.
Você precisa ter consciência do que você fez. Vocês viram a entrevista do Ferreira Gullar que saiu essa
semana? Ferreira Gullar é um excelente poeta que foi comunista a vida inteira; agora ele diz que tudo
aquilo estava errado. Mas o que estava errado? Ele sabe do que ele está falando, porque ele estava lá,
então aquilo existiu realmente.

Aluno: Professor, na sua visão da autoeducação, está incorporada a ideia de assimilação e


acomodação de Piaget, onde precisamos assimilar as formas existentes como são conhecidas que tem
um reflexo, que tem um [inaudível [02:04:37]] em nossa mente, para depois acumular elas em uma
espécie de nova síntese?

Olavo: Isso acontece, mas esse processo que ele resume nesses dois termos, eu acho que está muito
melhor descrito no Louis Lavelle, A Formação da Consciência, a consciência se [02:05:00] encontra e se
faz ao mesmo tempo. Por exemplo, quando o Piaget descreve essa assimilação – você assimilar uma
forma externa, mas, ao mesmo tempo, você também adaptar-se a ela – o que ele chama de acomodação,
isso existe, mas isso na verdade está até muito simplório, a dialética do negócio é muito mais rica do
que isso.

Aluno: Professor, a autoeducação dentro desse sentido podia ser interpretada através do pensamento
de Johannes Fichte [Johann Gottlieb Fichte] do “eu” em contato com um “não eu se autolimitando”,
o eu se autocoloca (…)

Olavo: É o mesmo tema do Louis Lavelle, só que ainda insisto, o autor que melhor descreveu isso foi o
Louis Lavelle. O Fichte coloca o “eu” como sendo o único centro de iniciativa, quando na verdade um
“eu” assim não existe, só se for o “eu divino”. Não podemos esquecer que, quando Moisés pergunta
para Deus “quem é Você?”, Ele responde “Eu Sou o Eu Sou”. Isso quer dizer que o “eu”, no sentido do
centro puramente ativo, só Deus tem. O nosso “eu” é um “eu” imprestável, um eu delegado, e eu não
tenho a menor dúvida de que a medida que você vai tomando consciência disso “o ‘eu’ que eu tenho é a
marca de Deus em mim, eu só tenho ‘eu’ porque Deus quer que eu tenha; não existe explicação para
isso”. Só uma força infinitamente criadora pode delegar para mim uma parte da sua força criadora, quer
dizer, eu tenho a capacidade, de certo modo, de me criar a mim mesmo a medida que também me
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encontro a mim mesmo; isso é um negócio miraculoso. Mas de onde vem essa capacidade humana?
Não tem como você dar uma explicação naturalística para isso, isso não pode ser um objeto.
Você não pode se desligar do “eu” para examiná-lo, você só pode examiná-lo executando-o, fazendo-o.
Então, muitas vezes, o desejo de se autoconhecer paralisa isso, é o que Louis Lavelle chama de “o erro
de Narciso”. Narciso quer se ver no espelho, não há “eu” no espelho, só existe “eu” na história e na
ação.

Aluno: O Schelling [Friedrich Wilhelm Joseph Schelling] é muito superior ao (…)

Olavo: Muito, muito, o Schelling vai muito além (…)

Aluno: (...) [inaudível, [02:07:48]].

Olavo: (…) Mas não há nem dúvida, ele vai infinitamente além do Fichte. O Fichte pega uma noção,
por assim dizer, quase poética do eu; você não sabe de que “eu” ele está falando, e Schelling sabe
perfeitamente “não, Isto é Deus, não tem outra”. É como Hegel [Georg Wilhelm Friedrich Hegel]
falando do tal do espírito; mas que espírito é esse? É o espírito seu? É o espírito meu? É o espírito de
Deus? É o espírito de porco? O que é? Vira um fetiche na realidade. O “espírito” (o geist de Hegel) e o
“eu” de Fichte, são fetiches; e o Schelling colocou as coisas na ordem mais correta: é realmente Deus,
cuja criação se desdobra em uma criação subjetiva – que é o nosso eu, a nossa consciência – e uma
objetiva, que é o mundo que está dentro de nós; a segunda existe sem a primeira, mas a primeira não
existe sem a segunda. E essas duas coisas só se reunificam perfeitamente no próprio Deus, não na nossa
consciência. Não sei se vocês estão entendendo o que eu estou falando aqui os (…)

Aluno: Professor, só uma (…)

Olavo: Na verdade, essa é uma questão filosófica cabeluda, mas ela é colocada diariamente pela prática
da autoeducação; é como dizia o Raul Seixas “é uma metamorfose ambulante”. Mas essa metamorfose
ambulante, existe uma parte dela que já foi e uma que em si mesma é fixa, não pode ser mudada, o que
pode ser mudado é a maneira de você incorporá-la no presente. Aquilo que você já fez está feito, mas
agora, o que eu vou fazer com aquilo [02:10:00] que eu já fiz? Então, por um lado, é uma coisa estática,
um fato, já está feito; por outro lado, é um potencial atual para o futuro. Ela é as duas coisas ao mesmo
tempo, mas isso não quer dizer que o presente modifica o passado. Ele não modifica o passado, o que o
presente faz é reencaixar o passado no futuro; mas não vai modificar retroativamente o passado, não é o
Exterminador do Futuro.

Esse jogo dialético do encontrar-se e do fazer-se pode induzir a essa confusão, e você, usando uma
figura de linguagem, diz “o presente modifica o passado”, mas é apenas uma figura de linguagem. Se
você pensar “o que essa frase quer dizer?”. Isso quer dizer que eu posso desfazer aquilo? Por exemplo,
Napoleão já morreu, mas eu quero estudar a vida de Napoleão, então eu chamo Napoleão de volta e
fico vendo o que ele está fazendo; não é possível fazer isso. Você não pode modificar o passado, o que
você pode é dar a ele uma nova função dentro do presente, ou pode descobrir aspectos dele que na
época não lhe pareceram tão claros. Por exemplo, na ciência histórica atual – a ciência histórica é um
negócio cada vez mais maravilhoso – por exemplo, sabemos que acontecem determinados fatos na
política, e esses fatos, por sua vez, criam interpretações míticas da parte dos seus protagonistas ou dos
seus antagonistas. Esses mitos, por sua vez, se incorporam entre os elementos motivadores das ações
seguintes – então aquilo que era mito começa a agir na esfera dos fatos, e cria novos fatos. Todos esses
elementos podem ser perfeitamente distinguidos pela pesquisa histórica.
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Por exemplo, eu li recentemente um livro que fala sobre o mito da inquisição. Vocês sabiam que nunca
existiu uma entidade chamada inquisição? Existiam pessoas que eram nomeadas como inquisidores,
que era o nome de uma função e não de uma entidade. Uma entidade central chamada inquisição nunca
existiu. Então, ela existe no campo do mito, um mito inventado, em grande parte, pelos protestantes; e
depois por outros inimigos da Igreja Católica. Esse mito começa a ter uma certa força persuasiva sobre
as gerações subsequentes e então ele se torna um fato histórico também. Mas ele não modifica os fatos
aos quais ele indiretamente se reporta, mas dá essa impressão porque a mescla cria em nós uma
impressão do tipo Exterminador do Futuro.

E você vai ver, as vezes, muitos filósofos dizendo “o presente modifica o passado”. É uma frase sem
sentido na verdade; a relação entre presente e passado é muita mais sútil do que isso. Mas você nunca
entenderá nada se você não entender o que é um fato, isto é, uma coisa que não pode ser mudada. Você
pode pensá-lo de maneira diferente, você pode continuá-lo ou prossegui-lo de algum modo, você pode
valorizá-lo nas distintas maneiras de encaixá-los em planos de futuros; mas modificá-lo, você não pode.

Existe um elemento móvel que é modificável, que é a imagem desse passado e, portanto, a função que
essa imagem do passado vai desempenhar no presente e no futuro; e existe uma parte fixa e imutável –
que é aquilo que realmente transcorreu e não tem como “destranscorrer” – marcado sobretudo pela
morte. O sujeito dizer que podemos modificar o passado é, de certa forma, negar a morte. Isso quer
dizer que se eu quiser, eu ressuscito Júlio César para eu aprender a história de César como testemunha
ocular, eu não posso… existe até um ditado em inglês “nenhum de nós está ficando mais jovem”. Então
ninguém fez isso voltar atrás, jamais. A própria expressão rejuvenescimento quer dizer apenas que você
vai ser um velhinho mais saudável, não que vai voltar a ser jovem. Você pode, enquanto velho,
recuperar algumas possibilidades que você tinha quando era mais jovem, mas você não vai se tornar
mais jovem.

Aluno: Professor, então no curso de uma espécie de “prêambulo das coisas”, [02:15:00] é a gente que
não se faz voltar. Se a gente começa a pegar o passado e ele fica nos condenando, seja por motivação,
sei lá, traumática (…)

Olavo: Veja, qualquer julgamento que fizermos sobre nós mesmos – qualquer um, favorável ou
desfavorável – é sempre errado, e geralmente é invertido. Os nossos sentimentos a respeito de nós
mesmos, e também a respeito dos outros, na maior parte dos casos, são invertidos. Por exemplo, existe
um sentimento (…)

Aluno: (…) Então a religião faz um desfavor nesse sentido.

Olavo: Mas ela não diz que é para você não julgar para não ser julgado?

Aluno: Está certo.

Olavo: Quando perguntarem para você “o que você acha do fulano de tal?”, diga “não acho nada”. Não
é a melhor coisa? “qual é a sua opinião a respeito?”, “para quê tem que ter opinião a respeito de
pessoas?”. Só em casos extremos, por exemplo, se o indivíduo tem uma atuação pública, sobretudo se
ele ocupa um cargo eletivo, ele está pedindo para você ter um julgamento a respeito dele. Então você
faz o julgamento no dia da eleição, mas com relação a pessoas privadas, eu não vejo o menor sentido.
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Esses enganos de julgamento que se expressam através dos sentimentos humanos, eu estou observando
isso vai fazer 40 anos. Quer dizer, eu observando, por exemplo, meu próprio autoengano e o dos outros,
eu virei uma espécie de enciclopédia do autoengano.

Por exemplo, eu vejo quando uma pessoa se sente injustiçada – é um dos sentimentos mais comuns no
Brasil – vou dar uma regra geral: quando você se sente injustiçado é porque você cometeu uma
injustiça. Porque a verdadeira vítima de injustiça, ao contrário, ela se sente culpada. Ela sofre uma
injustiça tão brutal que ela diz “o que eu fiz?”, ela fica procurando a sua culpa. Essa é a verdadeira
vítima de injustiça, ela fica traumatizada e se culpa. Em geral, aquele que se sente vítima de injustiça, é
porque alguma ele fez e ele não se lembra. Claro que existe exceções, mas digo para vocês, 99% dos
casos é isso. Então já lhes dou uma recomendação, nunca se sinta injustiçado, nunca fique injustiçado,
nunca fique magoado, isso é perda de tempo.

Aluno: Quando o senhor fala de uma busca de um modelo na vida intelectual, isso remete ao que o
Viktor Frankl diz sobre a busca de um sentido?

Em parte…tem algo a ver com isso, mas o modelo não é o sentido da vida, o modelo é um instrumento
para você realizar o sentido da vida. O modelo já uma coisa um pouco mais concreta do que o sentido
da vida. O sentido da vida, diz ele “é aquilo que você tem que fazer porque só você pode fazer”. Saber
isso já é alguma coisa, mas quando você fala em autoeducação, você já está falando de autorrealização
efetiva. Então você está falando dos instrumentos e dos canais concretos pelos quais você vai tentar
realizar o sentido da vida. Claro que o sentido da vida também é uma imagem móvel, ele também vai
mudando, aperfeiçoando, e, as vezes, descobre que tudo aquilo que você fez não faz o menor sentido, e
isso também faz parte do sentido da vida.

Mas na autoeducação, esses modelos já são meios e instrumentos; por exemplo, aquilo que você admira
no sentido de querer fazer igual ou melhor. Então em geral existe uma inibição nesse ponto, o sujeito
admira aquilo e diz “não, eu jamais conseguirei fazer assim”. Como eu disse, existem dois modos de
admiração: a admiração de pura contemplação e a admiração de imitação, ou de emulação, ou de
aprendizado. Por exemplo, você está aprendendo a tocar violino, o professor vai lá e toca muito melhor
do que você; mas para quê ele toca melhor do que você? É para você dizer “Oh que maravilha! Jamais
conseguirei fazer isso”? Não! É precisamente o contrário, ele quer que você faça exatamente aquilo.
Mas têm coisas que você quer apenas admirar [02:20:00], você não quer fazer aquilo. Porque alguém já fez
e não é a sua área, não é a sua vida, aquilo não faz parte do sentido da sua vida.

Então é uma distinção fina, mas a pergunta é: é isso que eu gostaria de ter feito? Se você disser que
sim, então isso é precisamente o que você pode fazer – se você não puder fazer isso, então você não
poderá fazer nada. Observe que essa é outra característica da sociedade brasileira, na qual, em geral, as
possibilidades reais são consideradas separadamente dos anseios da pessoa. Eu sei por experiência
psicológica que você só consegue fazer aquilo que você realmente quer fazer, aquilo que você não quer,
não adianta, você não vai conseguir fazer; se conseguir fazer algo, é o que você quer. Porque é
evidente, a vontade é a força que unifica a personalidade inteira. Quer dizer, se não existe uma
verdadeira força motivadora… a vontade vai atrás do quê? Da imaginação, a imaginação gera o desejo,
e o desejo, quando assumido a sério, vira vontade – ele não é mais apenas uma fantasia, ele vira
vontade; então a vontade unifica tudo. Se não existe a imagem do objeto de desejo, e esse objeto não se
torna constante ao ponto de se transfigurar em uma decisão de vontade, você não vai conseguir fazer
coisa nenhuma.
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Por exemplo, se você quer ser uma coisa, mas seu pai acha que você deve ser outra, das duas uma, ou
você absorve aquilo que ele está querendo – e passa a querer aquilo – ou você não vai conseguir fazer
nem uma coisa nem outra – ou você faz a sua, ou você absorve a dele. Agora, fazer o que ele quer
continuando querendo outra coisa, aí não vai dar…é claro que você pode negociar “vou fazer uma
coisa primeiro e a outra depois”, é sempre possível, mas mesmo isso eu acho arriscado. Eu acho mais
fácil e melhor você seguir a linha daquilo que você realmente quer. Aquilo que você realmente quer, é a
medida do que você pode.

Agora, preste atenção, existe o querer a sério e existe o querer hiperbólico, imaginário: você deseja ter
tanto dinheiro quanto o George Soros. Mas você quer realmente isso aí? Ou você apenas gostaria? Se
gostaria, é apenas um desejo, e o desejo não marca capacidade, o que marca capacidade é a decisão de
vontade “eu quero realmente isto”, e é isso que eu vou dedicar minha vida até conseguir. A gente perde
muito tempo fantasiando desejo, porque não diz logo “eu não quero esse dinheiro todo do George
Soros, nem saberia o que fazer com isso, o sujeito pode gastar o quanto quera, estou feliz que ele tenha
todo esse dinheiro”. Seria melhor uma pessoa melhor que ele ter, mas já que ele tem, faça bom
proveito.

Também você não pode… veja, um elemento que confunde tudo aí, é a inveja, a inveja não é um desejo
real. Por exemplo, se eu vejo um outro cara fazer uma coisa que eu gostaria de fazer melhor que ele, eu
quero competir com ele; isso não é inveja. A característica da inveja é que ela não faz nada para obter
aquilo que você inveja, ela só fica se corroendo. A inveja é, por assim dizer, competição passiva, faz
mal para você e faz mal para o outro. Então, se você inveja alguma coisa, pare de invejar e passe a
querer aquilo [02:25:00] realmente, leve aquele negócio a sério – desde que esteja dentro do padrão moral
que você aceita, com a ressalva que o padrão moral no Brasil hoje é muito baixo, praticamente tudo é
permitido.

Já dizia Dr. Meira Penna [José Osvaldo de Meira Penna] que existem quatro tipos de regime: existem
os regimes autoritários, nos quais tudo é proibido, exceto o que é permitido; existem os regimes
democráticos, onde tudo é permitido, exceto o que é proibido; existem os regimes totalitários, onde
tudo é proibido, inclusive aquilo que é permitido; e existe o regime brasileiro, onde tudo é permitido,
inclusive o que é proibido.

Quando eu digo que o padrão moral é muito baixo, quanto mais baixo o padrão moral, mais você tem o
sentimento de injustiça e o desejo de acusar. Nós só temos o desejo de acusar quando nós estamos
culpados, se você não está culpado, se você não fez nada, o que lhe interessa a culpa alheia? Então,
onde existe muito julgamento moral em circulação, é porque as pessoas estão todas muito culpadas, e
estão culpadas porque o padrão moral baixou. Veja, toda a moral foi feita para a gente dirigir a nossa
conduta, não para julgar a alheia, julgar a alheia só quando você tem uma boa razão para fazer isso.

Por exemplo, se o sujeito é seu filho, é menor de idade, e você é responsável por ele, então, você vai ter
que saber se ele agiu certo ou errado, porque a responsabilidade é sua; mas se o sujeito é o seu vizinho,
você não tem nada a ver com isso, você não… a culpa dele não passa para você, que interessa dizer se
ele é culpado? Tomara que não seja. Veja que tudo isso são obstáculos psicológicos a educação, é uma
coisa terrível.

O ser humano tem um sentimento de culpa que é inerente – é o que a Igreja chama de “o pecado
original”, todos nós temos, e vamos morrer com ele – e não adiante você se perguntar de que é culpado,
você nunca vai saber. Agora, existem atos objetivos que você fez e não deveria ter feito, e existem, as
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vezes, pensamentos que você teve com relação a Deus, por exemplo, que você não deveria ter pensado;
mas tudo isso é uma coisa estritamente objetiva, não tem nada a ver com os seus sentimentos. Eu não
consigo conceber o arrependimento verdadeiro como sendo um sentimento, o que é um sentimento é o
remorso – o quer dizer remorder-se, o sujeito se morde, se morde, se morde. Mas quando você está no
remorso existe… tudo na psique humana é constituído de oposições, é todo um negócio dialético,
então, onde existe o remorso, existe, evidentemente, o desejo de se aliviar do remorso, e, portanto,
declarar que você não tem culpa nenhuma, ao passo que na hora que você diz “a culpa foi essa, fiz isso,
isso e isso”, acabou o remorso. Porque você vai pedir perdão a Deus, e você vai pedir perdão para quê?
Para ele te castigar? Não, é para ele te perdoar. Então não vai te acontecer nada, e por quê você está
triste? Quando no ritual da missa você declara “minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa”, é um
ritual, não é um sentimento. [02:30:00] Você está aceitando que a culpa foi inteiramente sua; e você está
aceitando isso perante Deus, para quê? Para que ele elimine a sua culpa. Então, se for um
arrependimento verdadeiro, o pesar que você pode ter pela sua culpa não pode ser separado da alegria
que você tem porque aquela culpa vai sumir daqui a pouco, então não pode ser uma tristeza muito séria,
a não ser quando o seu pecado é de tal natureza, que o seu arrependimento não é suficiente para
consertar o mal que foi feito. Por exemplo, se você matou uma pessoa, então você vai, confessa, e pode
ser absolvido, mas isso não elimina o pecado. Por isso que a Igreja diz “não elimina as penas
temporais”, seja de ordem objetiva – você pode ser preso –, seja de ordem subjetiva. Se você matou
uma pessoa, você não pode desmatá-la; então você vai carregar isso para o resto da sua vida. É claro
que você pode trabalhar isso, transmutá-lo em uma outra coisa, mas não vai apagar. Mas na maior parte
dos casos, a maior parte dos nossos pecados, simplesmente não deixam marcas; e quando Deus apaga
aquilo, apagou tudo, não sobrou nada, não há realmente consequências, nem espirituais, nem materiais.

Aluno: Então várias vezes é a gente que fica estérico à toa com os nossos próprios pecados?

Olavo: Claro, porque a pessoa não entende realmente qual é a natureza do pecado, do que se trata.
Existem, evidentemente, os pecados recorrentes, aqueles dos quais você não consegue se livrar por
mais que você queira, o que São Paulo Apóstolo chamava de “espinho na carne”. Eu não sei porque
isso acontece, mas isso acontece, e todo mundo têm algum. Mas se você não tivesse isso, se ninguém
tivesse o “espinho na carne”, o indivíduo teria uma impressão de santidade; e isso já falsificaria
completamente a perspectiva inteira, porque você estaria, segundo a teologia, salvo inteiramente pelas
suas obras. O que é ser salvo pelas suas obras? Significa “eu fiz isso, isso e isso, e quero pagamento
pelo que eu fiz”; você criaria uma obrigação para Deus; Ele estaria lhe devendo um treco; isso falsifica
completamente a situação. Como Deus pode me dever alguma coisa, se ele é a raiz da minha própria
existência, sem ele eu nem existo? Ele não é um sujeito de direito civil, então falsifica completamente a
estrutura da realidade. Por isso que tem o “espinho na carne”, que é para você lembrar: olhe, preste
atenção no que você está sendo, porque você vai precisar que Deus te perdoe, porque ele não te deve
nada, mas você deve, porque é da natureza das coisas você dever.

Você existe por um ato gratuito de Deus, Ele diz “Eu quero que esse fulano exista”; antes disso você
não poderia nem pedir para existir. Isso quer dizer que a dívida para com Deus é impagável; isso faz
parte da estrutura da realidade, por isso Ele deixa os seus defeitos, fica aquele negócio “quanto mais eu
rezo, mais assombração aparece”, todo mundo tem isso. Na vida, todo mundo também tem aquela
expectativa de se tornar perfeito; mas para quê nos serve a sua perfeição? O que interessa não é se você
é perfeito, só há perfeição na morte: e “perfez”, completou. [02:35:00]

Aluno: Anteriormente o que a gente falava por perfeição, nesse caso da vida humana, era uma espécie
de tentativa de ilustrar a autoimagem (…)
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Olavo: Sim, ilustrar a autoimagem. O melhor, vou dizer para você, é não ter autoimagem nenhuma, é
você não ter opinião sobre os outros e nem sobre você mesmo. Para uma vida de estudos, uma vida
intelectual, isso é fundamental; porque essas opiniões são parasitas da inteligência. Quando você julgar
a conduta alheia ou até a sua própria – até para julgar a sua própria conduta você precisa ter um critério
muito objetivo, saber dentre os dez mandamentos, o que você fez; se não fez, esqueça. E se você fez,
existem meios rituais de resolver isso, por que você está preocupado? Quero dizer, não é para gastar
muito tempo pensando nisso.

Claro, existem momentos de crise, em que a pessoa vê o mal que tem nela, mas é um tempo que você
passa isso, não vai incorporar isso para o resto da vida. Todos esses parasitas psicológicos, quanto mais
rapidamente você os abandonar, melhor. Então, evidentemente, existe uma ética e uma psicologia da
vida intelectual; assim como existem técnicas, por exemplo, para você coletar informação, para você
processar os dados, chegar à conclusões razoáveis, escrever etc, existe tudo isto. Mas esses elementos
éticos e psicológicos – é claro que a primeira aula tem que ser dedicada a isso, porque sem isso não dá
nem para começar – não quer dizer que eu abrangi todos, só dei algumas amostras, mas você pode
continuar pensando sobre o assunto.

Você pode pensar “o que em mim, como obstáculo psicológico, se interpõem entre eu e a realização
intelectual que pretendo alcançar?”. Porque alcançar uma realização intelectual é um direito e um dever
seu, porque é a sua vocação, e como se diz, a vocação será cobrada: “Eu te dei tais ou quais dons, o que
você fez com isso?”. Então você tem que fazer isso, não é vaidade, não é nada. Agora, a vaidade entra
no momento que você está pensando na repercussão que aquilo vai ter.

Nesse sentido, eu aprendi muito porque, o começo da minha vida estava tão difícil até os 30 anos, que
eu tive que desistir de tudo. Eu queria saber alguma coisa, mesmo que eu não conseguisse contar para
ninguém. Isso quer dizer que eu desistir de qualquer aos 30 anos; e tendo desistido, curiosamente, eu
fiquei livre para aprender o que eu quisesse aprender, eu não tinha satisfações a prestar, não tinha um
chefe de departamento, não tinha um público, não tinha um chefe de redação, não tinha ninguém para
eu agradar ou desagradar, ninguém estava ligando para o que eu fizesse.

Isso quer dizer que você pode fazer a sua vida intelectual transcorrer diante de Deus, só tem uma
testemunha, apenas Deus sabe que você sabe aquilo. Se depois surgir meios de falar para as pessoas, a
gente fala, senão, não. Agora, se você misturar isso com o problema da carreira, você está liquidado
“Ah! Preciso fazer uma tese de mestrado para não sei quê, preciso publicar um artigo na Folha…”.
Acabou! Normalmente essas coisas não deveriam fazer mal, porque os instrumentos de expressão
deveriam estar à disposição dos melhores, sempre; mas em uma situação como a do Brasil, onde esses
meios estão todos na mão do que existe de pior, melhor você já desistir logo.

Isso pode até ter uma dimensão religiosa se você quiser, quando você vira as costas ao mundo, [02:40:00] o
mundo não vai ter mais poder sobre você, ele não pode te chantagear, ele não pode te comprar, mas tem
que desistir 100%. Existem casos de pessoas que desistiram, mas não 100%. Se você ler a história de
Léon Bloy, ele decidiu não se vender, então eu não vou entrar no mercado, eu vou viver como um
mendigo. Mas ele ficou ressentido até o último dia – é um autor cristão, mas não é muito cristão. Assim
você pode dizer “vou viver como um mendigo e se ninguém ligar para o que estou fazendo, está tudo
bem, porque Deus está vendo, eu estou fazendo para ele, ele é meu público e eu estou satisfeito de
servir somente a ele”. Então você vai ser feliz, ninguém vai ligar para o que você faz, mas você vai ser
feliz. Eu passei por isso, eu fiz isso, posso dizer porque eu realmente fiz isso.
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Se, depois por uma série de circunstâncias, você é chamado a desempenhar uma função pública, então
você a desempenha com muita força, como eu estou fazendo. Eu não digo que eu não possa ser
comprado, mas vai custar muito caro. Eu não digo que eu não possa ser intimidado, mas que venha
pelo menos 100, e venham armados; menos que isso eu não fico com medo. Também não digo que eu
não possa ser seduzido, mas precisa vir umas 30 mulheres; e não é qualquer uma também. Tudo isso
pode, imune ninguém está, mas você pode estar defendido, guardar uma distância. Eu sei que, por
exemplo, quando eu deixo de dizer alguma coisa em público, é para não ferir ou não prejudicar alguém,
e é sempre alguém que está em uma posição inferior, alguém que não pode me ajudar. Eu nunca vou
ficar quieto porque para tal pessoa eu devo um favor, eu não posso falar isso, não. Por exemplo, estou
cheio de coisas que eu gostaria de escrever contra o Júlio Severo, mas não vou escrever. O que o Júlio
Severo pode fazer por mim? Nada. Então não vou prejudicar uma pessoa que está (...)

Aluno: Quem é?

Olavo: O Júlio Severo? É um rapaz protestante que faz um blog, muito bom o blog, está cheio de
informação excelente, ele é um cara muito valente, muito honesto, mas ele é tão moralista que, às
vezes, dá vontade de bater nele; não vou abrir a minha boca, estou falando aqui para vocês, em público
eu não vou falar. E outro me cobrando, você nunca falou nada do Pastor Silas Malafaia. Mas o que eu
tenho a ver com os pecados do Pastor Silas Malafaia? Não é da minha conta, eu falo do Bispo Macedo
porque ele é engraçado, só por causa disso.

Aluno: Ele tem valor, não é (…)

Olavo: Ele tem valor, claro (…)

Aluno: [inaudível [02:43:30]] (…)

Olavo: Pois é, alguma coisa ele fez; se ele pecou nisso ou naquilo, eu não sou o juiz dele, para que eu
deveria ter opinião sobre o Pastor Silas Malafaia? O outro lá também, o Caio Prado “o que você acha
do Caio Prado?”, “não acho nada”. O que eu acho de mim mesmo? Também não acho nada, e espero
que ninguém ache. Então, não criar opinião sobre pessoas faz um bem, e libera uma energia intelectual
que você não imagina.

Aluno: Professor, quando você fala de julgamento moral tem a ver com a avaliação para fazer uma
escolha num lugar que você vai entrar, vai passar a frequentar, alguma opinião você tem que ter sobre
aquelas pessoas, o que não pode estar errado (…)

Olavo: Não sobre as pessoas…

Aluno: Não seria o caso das opiniões serem provisórias, de você estar sempre aberto para o
aparecimento um dado novo.

Olavo: Não, mas é uma coisa meramente pragmática, não tem julgamento moral aí.

Aluno: Não tem (…)

Olavo: Convêm para mim estar lá? Não, você não tem nada contra as pessoas, mas eu não quero estar
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lá. É o tal negócio, por exemplo, você quer estar na igreja do Pastor Silas Malafaia? Não, eu não quero.
Não tenho opinião nenhuma, mas é para mim.

Aluno: Se te perguntarem “por quê?”, você vai ter que ter.

Olavo: Porque eu não tenho nada a ver com isso. Você está entendendo? [02:45:00] Assim, é como você ter
uma opinião sobre a mulher do próximo. Você vai comer a mulher? Não. Então o que interessa se ela é
boa ou má? Se você puder ajudar alguma coisa, ajude, senão, não.

Aluno: Espera aí Olavo, você está se parecendo com um sofista, você mesmo tem o seu bordão “lá vem
mais um de batedor de carteira porra!”.

Olavo: Não, mas eu acabei de explicar. Em primeiro lugar, sofista é mãe. Em segundo lugar, eu acabei
de dizer que só faz sentido você externar opinião quando se trata de pessoas que tem uma atividade
pública, e essa atividade está em julgamento. Por exemplo, você não pode não ter uma opinião política
sobre o seu governante, você tem que ter alguma, é obrigatório ter alguma. Não é isso?

Aluno: É verdade.

Olavo: Sobre pessoas que representam lideranças públicas e que manifestamente agem de maneira que
desgasta a sua posição, você tem que ter uma opinião. Porque o sujeito disputar uma função pública de
liderança, é pedir a sua opinião, ou não é? Ele está pedindo, mesmo que não seja um cargo eletivo,
vamos supor que fosse uma monarquia, o sujeito recebeu lá o cargo, ele é rei. Ele não é obrigado a
aceitar. Ele aceitou? Então ele assumiu um compromisso para com você, e ele tem que cumprir esse
compromisso, está entendendo? Então nesses casos você é obrigado a ter uma opinião. Agora, “ah, o
bispo é adúltero”. Pera aí, foi comigo que ele cometeu adultério? Não. Foi com a minha mulher? Não.
O que eu tenho a ver com isso, meu Deus do céu? Então a conduta pessoal das pessoas, você nunca
deve julgar, mas a conduta pública, ele está pedindo para ser julgada; e aí você não pode se abster.

Se você se abstêm de julgar a conduta pública dos governantes, seus representantes etc, você está
prejudicando os outros cidadãos. Então eu digo, julgar só quando você é obrigado a isso. Quando você
é obrigado? Por exemplo, no julgar uma conduta pessoal qualquer, se for seu filho ou alguém pelo qual
você é responsável, você tem que julgar. Se for alguém que por sua obrigação de ofício você tem que
julgar, por exemplo, se você é um juiz, o juiz não pode dizer “não julgueis, para não ser julgados” e “eu
quero o meu salário, mas não julgar ninguém”. Se bem que o meu pai, que era advogado, dizia o
seguinte “todo juiz podendo dar uma sentença inócua, ele dará, para não desagradar ninguém”. Então
isso mostra a fragilidade da posição, é uma responsabilidade muito pesada, e sujeito, mesmo estando lá,
tentará pular fora; mas é humanamente compreensível isso aí.

Em terceiro lugar, você é obrigado a julgar aqueles cuja posição dependem do julgamento público, por
exemplo, se todo mundo decidir não votar no sujeito, ele não tem mais o cargo; ou se não for um cargo
eletivo, o sujeito é um juiz de direito, um desembargador, e está lá roubando; se ninguém fizer nada
para ele parar de roubar, ele vai continuar roubando. Então é um cargo público, e você é obrigado,
como os outros cidadãos, a julgar; porque se você não quer julgar, então ele vai continuar a roubar e
prejudicar todo mundo. Então você como cidadão tem esse dever. Assim julgar apenas quando for um
dever, quando é obrigatório, fora disso, não.

No meu caso, o que eu estou fazendo? Qual é o meu serviço? É tentar sanear a vida intelectual
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brasileira. Como eu posso fazer isso sem julgar a atividade pública de seu fulano ou dona fulana? Não
pode, não dá para fazer. [02:45:00] Então é um dever de ofício. Mas, por exemplo, você já me viu criticar a
vida sexual de alguém? Para mim se o nego for para cama com um rinoceronte, eu não tenho nada a ver
com isso, felizmente eu não tenho. Então… ou sei lá, a vida conjugal das pessoas. Por exemplo, se o
nego bate na mulher, bom isso pode ser mal ou pode ser bom, depende. Ela quer que ele bata ou não?

Aluno: Vai que ela merece.

Olavo: Não, se ela merece já é julgamento. Eu não sei se ela merece, mas ela pode pedir para ele fazer
isso.

Aluno: Está na moda o livro Cinquenta tons de cinza.

Olavo: Nem sei o que é isso, como é?

Aluno: É um livro erótico…

Olavo: Eu conheci uma senhorita lésbica que só sentia atração se a mulher batesse nela, seriamente.

Aluno: É muito complicado…

Olavo: Não, é verdade, eu estou falando porque vi. Então ela não pode pedir para pessoa bater e depois
se queixar porque apanhou, aí não faz sentido…ir em uma delegacia e dizer “ela bateu em mim”, “Por
quê?”, “Por que eu pedi”.

Olavo: Vamos lá, diga…

Aluno: Isso é uma das práticas de algumas pessoas é tentar se colocar na posição do outro, a empatia,
então para você se colocar na posição do outro você tem que ter um julgamento, você precisa
imaginar aquela situação. Você pode até não externar o julgamento, não criticar publicamente, mas
você tem aquele pensamento “a Luma de Oliveira de novo, pelada de novo, fazendo isso de novo”,
você tem um julgamento para saber se (…)

Olavo: Não, não, não, se você tem a empatia, empatia significa o seguinte: você vai ter que sentir o
drama desde a posição dela, como todas as contradições que aquilo tem. Isto significa uma
impossibilidade de julgar.

Aluno: Por óbvio, você não pode ser a outra pessoa, você não está de posse de todos os elementos,
então…

Olavo: Você não precisa de todos os elementos, basta alguns.

Aluno: Vai ficar imperfeito.

Olavo: Mas é claro, mas você não sabe que é imperfeita a representação que você faz das pessoas? É
grande novidade? Se você mesmo está dizendo que é empatia, e que a representação é imperfeita, como
é que você vai julgar?
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Aluno: Você tem apenas que se colocar na situação, você vê uma pessoa falida e pensa “poxa, como é
que eu sairia de uma situação dessa?

Olavo: Ah muito bem, mas você não está julgando a pessoa.

Aluno: Não?

Olavo: Claro que não.

Aluno: Então seria mais compaixão do que julgamento?

Olavo: Claro! Porque, primeiro, porque você está fazendo isso? Por que você quer ajudar? Ou
simplesmente porque você tem medo que o mesmo lhe aconteça? São coisas completamente diferentes.
A primeira implica justamente que você não julgue, e a segunda não tem nada a ver com aquela pessoa,
tem a ver apenas com você, é uma questão de clareza, de entendimento das coisas. Você está chamando
tudo isso de julgamento porque está superpondo atividades mentais completamente diferentes. Claro
que se você percebe que não são a mesma, então verá não tem julgamento nenhum. Por exemplo, eu fiz
aquela gozação com a Preta Gil, eu estou julgando ela? Não, eu estou falando aquilo porque é
engraçado. A mulher faz um negócio que é intrinsecamente engraçado então eu não resisto, eu vou ter
que fazer a piada, mas não quer dizer que pense realmente mal dela.

Aluno: O cartão de crédito tem que ser vencido.

Olavo: Tem que ser vencido [risos]. Mas as pessoas todas que eu faço gozação delas, se eu tivesse raiva
das pessoas eu não conseguiria fazer gozação delas, de jeito nenhum. Para você fazer gozação, você
precisa estar livre – precisa estar igual um passarinho, dançando e achando tudo engraçado. E a pessoa,
se for inteligente, entenderá isso imediatamente, como o Caetano Veloso entendeu, eu falei coisas
horríveis dele, fiz una gozação com ele, ele nunca achou ruim, ele achou engraçado também. É uma
crítica, mas é uma crítica que não tem [02:45:00] propriamente um julgamento, ela não tem o julgamento
moral, ou não tem uma condenação.

Veja que também tem isso: criticar não é condenar, necessariamente. Você pode condenar em público
uma pessoa se ela cometeu um crime, ou se é uma conduta abjeta que te prejudica diretamente, como
aconteceu no caso do Quartim de Moraes. Ele se gabou em público de um crime que não tinha
cometido; eu reproduzi aquilo e ele me acusou de difamá-lo. Aí eu disse qual é… está pensando o que?
Ele de fato não tinha cometido o crime, mas foi ele que falou – tanto que o processo foi extinto,
acabou.

Existem outros casos que, mesmo quando você tem razão perante a lei, você não é obrigado a punir a
pessoa, você pode perdoar. Agora, as vezes… eu sugiro o seguinte, que você não perdoe tão de graça
assim, porque nem Deus perdoa de graça. Por exemplo, a pessoa fez um malefício para você e ela
continua sentindo que ela não fez malefício nenhum, você tem que cutucar até ela dizer “pô eu fiz,
sacaneei mesmo, você me desculpa?”, “está desculpado”; é só isso. Mas Deus perdoa os pecados que
você não confessa? Nem ele perdoa, como é que posso ser melhor do que Deus? Perdoar, eu acho que é
próprio dos juízes, dos reis, dos governantes e de gente poderosa. Se você não tem poder nenhum sobre
o cara de que adianta perdoar?

A não ser que seja no instante da morte, onde o seu depoimento pode danar ou salvar a pessoa; no caso
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do mártir, quando ele perdoa o seu carrasco. Naquele momento a palavra do mártir tem um peso
extraordinário. O mártir que perdoa o carrasco no momento da execução, porque ele sabe que a
salvação da alma daquele sujeito está nas mãos dele “Deus me deu essa autoridade, então eu…”.

Agora, as pessoas, em geral, têm muita pressa em perdoar porque elas tem medo de apanhar mais “ai,
eu te perdoo”. O melhor é assim: nem perdoar e nem condenar. É dizer assim “olha, eu não tenho nada
a ver com isso”, mesmo se a ofensa foi para você. Se você puder pensar assim “olha, eu não tenho nada
a ver com isso, foi ele que falou isso, problema dele”, é melhor. A não ser que você ache que você falar
aquilo pode ter alguma utilidade. Você agir mais pelo princípio da utilidade e do bem comum do que
sobre o princípio da justiça, é melhor.

Todo mundo pode fazer alguma coisa boa, agora, fazer justiça, é mais difícil, isso é próprio de Deus;
mas fazer algum benefício humano está ao alcance de todo mundo. Eu gosto muito daquela frase do
Goethe que os caras estavam linchando um sujeito e ele foi lá e mandou parar, e daí disseram “não, mas
ele cometeu um crime, é uma injustiça, ele tem que ser…”. Então Goethe falou “antes a injustiça do
que a desordem”. Se você deixar de fazer justiça em um caso específico, é ruim, mas e a desordem
geral? É muito pior porque ela faz injustiça para todo mundo. Então diga “não estou fazendo justiça,
estou apenas mantendo a ordem”. Eu penso assim: por que você manda um sujeito para a cadeia? É
para puni-lo? É para educá-lo? Isso é tudo besteira, você manda ele para a cadeia porque você não está
aguentando a presença dele. O cara é um assassino em série, ele não pára, temos que parar com isso,
vamos botar ele lá; pronto, acabou o problema.

Bom, então eu acho que por hoje acabou, então até amanhã, muito obrigado.

Transcrição: Antônio Lima, Diego Fernandes, Fábio Guerra, Michael e Silvio Sandro.
Revisão: Silvio Sandro [silviosiandro@gmail.com]

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