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Princípios e Métodos da Autoeducação

OLAVO DE CARVALHO

Aula 04: Conhecimento e autoconsciência


04 de outubro de 2012

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

Então vamos lá, aqui todo mundo sabe que a palavra educação vem do latim ex ducere, que significa
“conduzir para fora”. A ideia que está aí sugerida é de uma ampliação dos seus meios de aquisição de
informações, de participação e de ação em círculos sociais cada vez maiores. Isso quer dizer que a
capacidade de ação do ser humano começa restrita ao seu próprio corpo, que é o máximo que você
alcança quando você é um bebê, e pode se estender até, praticamente, o planeta inteiro ou a
humanidade inteira. Tudo isso existe. A ação também se diversifica num outro sentido: tem o sentido
temporal da ação fugaz que se esgota nela mesma, naquele momento, e a ação duradoura, cujos efeitos
podem se prolongar ao longo de séculos ou milênios. Abrir para o ser humano a possibilidade dessa
ampliação da sua participação e ação, é exatamente nisto que consiste a educação.

O primeiro elemento da educação consiste em que cada ser humano ocupa um lugar no espaço, tem um
corpo e nesse corpo recebe sensações e informações que são somente dele, que não são compartilhadas
e que são enormemente diversificadas conforme a estrutura do seu corpo, a sua hereditariedade, toda a
sua conformação pessoal. A possibilidade da comunicação meramente corporal entre seres humanos é
estritamente limitada. Se você pensar assim, qual é a possibilidade que dois bebês recém-nascidos têm
de se comunicar um com o outro, você verá que eles conseguem dizer muito poucas coisas. A
comunicação entre um bebê e a sua mãe é constituída de meia dúzia de sinais elementares e o bebê não
vai conseguir dizer nada mais do que isso. Aqueles de nós que têm filhos conhecem a angústia de você
ver um bebê chorando e você não sabe onde está doendo, não sabe qual é o problema e ele também não
consegue explicar. Aí você pode ter uma imagem da impotência do ser humano quando nasce e a
educação visa a ajudá-lo a superar essa impotência, gradativamente.

Como é que se faz isso? Se faz através de instrumentos que foram criados ao longo dos séculos pela
cultura e transmitidos de geração em geração. Entre esses instrumentos, o mais importante,
evidentemente, é o que nós chamamos de linguagem. Porém, a palavra linguagem é um pouco ambígua
porque ela significa, por um lado, o conjunto de signos que você vai receber com determinados
significados que você vai decorando e aprendendo a usar, mas, através da linguagem, você não está só
obtendo um instrumento de comunicação. Junto com a linguagem, você obtém o acesso a toda a cultura
ambiente. Sem isso, a linguagem, simplesmente, não seria possível. Vamos distinguir essas duas coisas.

Convencionalmente, nós vamos chamar de língua aqueles instrumentos materiais que você adquire
através do ouvido e, também, da visão quando aprende a escrever; e de linguagem o conjunto inteiro
dos significados a que você tem acesso através dessa linguagem, mesmo aqueles que você não conhece
ainda, mas que, através dessa linguagem, são potencialmente acessíveis. Tanto a língua como a
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linguagem são elementos de ordem social, coletiva, que não foram criados especificamente para você.
Eles são patrimônio comum e, quando você aprende, você adquire, em parte, esse patrimônio comum,
mas você começa a fazer parte dele também. É como se dissesse: a língua entra dentro do seu cérebro,
mas você entra dentro da linguagem, entra dentro do universo da cultura. [00:05]

Como esse produto que você recebe é de ordem coletiva e impessoal e não foi amoldado a você, isso
significa que, no começo, você só adquire os meios de dizer aquilo que os outros já disseram, ou seja,
você vai por imitação. É claro que a sua expressão é muito pouco personalizada nesse sentido. Você só
consegue transmitir sensações convencionais, sentimentos convencionais, desejos convencionais e
assim por diante. Frequentemente, você vê no aprendizado da linguagem por uma criança que ela não
sabe dizer o que quer ou dá a uma coisa o nome de outra. A linguagem da criança é sempre genérica,
não é específica. Quando a criança aprende um nome de uma coisa, ela usa aquele mesmo nome para
todos os objetos análogos até aprender os nomes específicos de cada um, o que pode levar muito
tempo.

Em geral, a linguagem das pessoas continua sendo genérica durante muito tempo. Somente umas
poucas pessoas conseguem ter uma expressão personalizada e, justamente, no instante em que adquire
isso, é que você consegue meios de ação mais amplos sobre toda a sociedade. A personalização da
linguagem corresponde à aquisição de um poder e aí a coisa toma um rumo mais ou menos paradoxal
porque quanto mais genérica é a sua linguagem, ou seja, quanto menos você tem acesso a uma
linguagem personalizada, mais você está preso no mundo das suas sensações e emoções individuais, ou
seja, você não consegue compartilhar, não consegue trocar. Se você não consegue dizer o que sente, o
que deseja, então você não pode compartilhar, então você está preso, por assim dizer, dentro do seu
corpo, mais ou menos como um bichinho que, quando ele tem uma dor, não vai conseguir expressar
aquilo. É uma espécie de um sofrimento mudo, de um sofrimento incomunicável ou só comunicável
genericamente. Por exemplo, quando um bebê chora, você sabe que ele está se sentindo mal, mas você
não sabe se ele está com sono, está com fome, se está com dor, qual é o problema.

Isso quer dizer que a capacidade de ação num círculo maior da sociedade depende, inversamente, da
personalização da linguagem. Isto aqui é uma observação simples, básica, que deveria orientar todo o
processo educacional. Ou seja, para conseguir personalizar a sua linguagem e a sua atuação, você
precisa ter adquirido um domínio enorme da linguagem e de todos os sinais e símbolos que percorrem a
atmosfera cultural onde você vive, ou seja, a ampliação da referência é, ao mesmo tempo, uma
personalização e uma individualização da linguagem e uma coisa não pode vir sem a outra.

O que nós falamos da linguagem não se refere somente à língua, mas ao conjunto da cultura que é todo
feito de signos. Quando eu, ontem, dei para vocês essas técnicas de tentar mapear o universo cultural
no qual vocês desejam penetrar, antes de você percorrer qualquer caminho específico dentro dele – ou
seja, você ter a ideia do território inteiro para depois você saber qual é o caminho que você vai
percorrer –, a ideia foi exatamente esta: as suas ideias, as suas percepções só adquirem um significado
real e um significado culturalmente válido quando você sabe onde elas estão dentro de um universo
inteiro da cultura. Fora disso, todas as suas ideias, sentimentos, convicções etc., não ultrapassam a
esfera da sua existência pessoal e não tem significado para mais ninguém [00:10]. Isso quer dizer que a
sua capacidade de ação estará terrivelmente limitada. Frequentemente, você estará falando apenas com
você mesmo, ninguém vai ter o mínimo interesse por aquilo e, se tiver interesse, será fugaz, por dois
minutos, depois esquece o que você disse.

Sem aquele mapa do território cultural, você não sabe o significado que as coisas possam ter para o
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conjunto da sua sociedade e muito menos para a humanidade em geral. Isso quer dizer que você não
sabe para quem está falando, não sabe como vai ser ouvido e não sabe qual a imagem que está
transmitindo. Em suma, você está como um cego em tiroteio. Isto é a mesma coisa que dizer que, sem
este mapa total da cultura, tudo o que você faz não tem significado algum, a não ser subjetivamente.

Você imagina o número imenso de teses universitárias que são publicadas anualmente e que caem
precisamente sobre essa classificação. São discursos subjetivos que nada significam para ninguém, que
nunca serão lidos, que nunca ninguém vai se interessar por aquilo – e que não devem se interessar
mesmo – e que só têm algum interesse em função de uma obrigação administrativa que o professor tem
de aprovar ou desaprovar aquela porcaria. Essa é uma imensa produção de discursos sem sentido.

Uma tese universitária, que é uma coisa que pretende entrar no universo da alta cultura, só pode
adquirir algum significado se o indivíduo tiver a linguagem total da cultura dele, o que não acontece,
evidentemente. Aquele indivíduo vai adquirir uma linguagem – e com linguagem eu não estou falando
só de meios de expressão, estou falando de meios de aquisição de informações, de meios de
participação no mundo e meios de ação – que funciona dentro do estrito âmbito escolar onde ele está. É
o código que ele compartilha com o seu professor, com alguns outros alunos, com a administração da
Universidade e, na verdade, com mais ninguém.

Mais ainda, como a “atividade intelectual” dessas pessoas está presa, por assim dizer, a sua existência
corporal e não vai para muito longe disso, e como ela não tem significado para mais ninguém, ela ajuda
a prender o indivíduo ainda mais dentro do seu próprio universo imediato e individual, ou seja, isto é o
que eu quero dizer quando digo que a universidade fabrica idiotas. Isso não é uma ofensa. Isso é no
sentido etimológico da palavra idios, que quer dizer “o mesmo”, o indivíduo só está falando com ele
mesmo, ele só entende ele mesmo e quem for muito parecido com ele. Isso não só no sentido espacial,
quer dizer, a expansão daquilo pelo mundo é limitado, mas no sentido temporal também, ou seja,
decorridos dois dias ninguém mais vai lembrar disso. É por isso que a “produção científica” das nossas
Universidades simplesmente não é consultada no mundo.

O número de citações de trabalhos acadêmicos brasileiros no mundo é ínfimo, ninguém se interessa por
aquilo. No entanto, você vai ver que não falta na Universidade alguma instrução sobre como você
redige um trabalho científico. Eu acho que todo mundo teve um pouco disto na Universidade, às vezes
com o incrível nome de Metodologia Científica. O sujeito disse: vou dar um trabalho de metodologia
científica e te dá um trabalho de como redigir uma tese acadêmica. Você sabe que isso também, no
Brasil, é norma, ou seja, eles não conseguem distinguir normas de redação de metodologia científica.
Este tipo de instrução específica – que é para você fazer o trabalho – não falta e, por isso mesmo, eu
não vou falar nada disto aqui.

Se quiserem uma instrução um pouco melhor [00:15] sobre estas técnicas de como você pesquisar e
redigir um trabalho, eu recomendo o livro do Jacques Barzun, The Modern Researcher, o Pesquisador
Moderno. Está tudo lá. Até o livro do Umberto Eco, Como se faz uma tese, serve para isto. Ele vai te
dar uma série de cânones e preceitos que servem para você tornar a sua tese aceitável para o seu
professor. Isso não vai garantir, absolutamente, que ela tenha alguma importância porque mesmo
supondo-se que você seja um sujeito muito criterioso, um pesquisador escrupuloso e se documente
muito bem, se você não tiver esse mapa geral da cultura, você não saberá o que está falando porque
será apenas a sua linguagem ou a linguagem e o universo de referência do seu grupo. Você não saberá
historicamente, sociologicamente e culturalmente onde está e é justamente para suprir isto que existem
as universidades e se chamam universidades por causa disto, ou seja, elas deveriam educar o indivíduo,
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trazê-lo para fora, fazer com que cresça até ele poder ser um habitante consciente do universo da
cultura e não apenas um habitante do seu departamento, no qual, também, ninguém mais sabe onde
está.

Você vai ver que na USP, em São Paulo, tem um obelisco e em volta dele tem uma frase do Miguel
Reale, que fala do universo da cultura que vai em todas as direções. Isso só existe no obelisco porque a
ideia de que existe uma cultura no sentido geral, da qual todos participamos, permanece um negócio
idealístico e inacessível. Não tem a técnica para você penetrar lá. Eu estou acabando de lhes dar esta
técnica. É muito simples. Só que, para adquirir esta técnica, você terá que dedicar a ela, pelo menos,
um ano da sua vida e vai ter que ter uma paciência e anotar todos os dados e classificar tudo, sabendo
que ali você anotará títulos e locais de informações, as quais, provavelmente, você nunca vai ter acesso
pessoal. Se a pessoa disser assim: eu não preciso fazer esta cronologia porque ela já está no livro. Ela
está no livro com outra finalidade e não com a sua finalidade. Você vai ter que rearticular de acordo
com o que você vai precisar. Por isso não tem outro jeito, você vai ter que fazer as listinhas mesmo. Se
você disser: Ah, mas nós podemos fazer em grupo, cada um faz um pedaço. Eu digo: se cada um fizer
um pedaço, cada um só vai conhecer um pedaço. Esse é um trabalho estritamente individual, você vai
ter que fazer sozinho. Claro que depois você pode até mostrar para os outros e mais tarde você pode até
pedir informações para os outros, mas não pode fazer em grupo.

Você não pode abranger somente aquelas áreas do conhecimento, na qual você tem um interesse direto
ou profissional. Você tem que pegar as áreas contíguas e, naturalmente, você pode usar, para isso, o
próprio princípio dos graus de credibilidade dos quatro discursos. Você tem que começar com a cultura
do imaginário, as obras de arte. Vamos supor que eu fosse ouvir todas as músicas importantes. Quais
seriam? Se você pegar Uma Nova História da Música do Carpeaux, ele dá uma listinha. Essa está
pronta, você não precisa fazer. Na verdade, a lista das músicas importantes é a mais simples que existe
e não é utópico você dizer: eu vou ouvir tudo isso. Você pode até pegar esta cronologia do Carpeaux e
tentar realizá-la: eu vou comprar todos estes discos e vou ouvir tudo, então eu terei a história da música
ocidental [00:20] na minha cabeça sob a forma de sons que eu vou recordar, não sob a forma de nomes e
datas. Isto faz uma diferença brutal.

Hoje mesmo eu estava lendo no livro do próprio Jacques Barzun, que escreveu uma biografia de Hector
Berlioz, um compositor, e ele diz o seguinte: “circula uma imagem, um slogan de que o Réquiem de
Berlioz é um negócio muito exagerado e elefantino, grotesco”. Isso aí é repetido, passa de boca em
boca desde a morte de Hector Berlioz e, evidentemente, quem vê isso perde o desejo de ouvir o
Réquiem. Finalmente, quando este conceito apareceu na enciclopédia Grove, que é uma das
enciclopédias mais reputadas na área de música, o crítico do New York Times escreveu assim: não é
nada disso, eu sei disso pelo seguinte, eu ouvi o Réquiem e vocês só leram a respeito. Vocês
entenderam a diferença que isso faz? Isso aqui é uma coisa básica: a história da música não é uma
história verbal – tem elementos verbais, é claro, de suporte da música, a teoria na qual o sujeito se
baseou, as ideias dele etc. Mesmo que você leia, por exemplo, os escritos de Wagner sobre como ele
entende a ópera ou do próprio Berlioz – tem muitos músicos que foram teóricos também – não está
garantido que, nas obras, ele realizou exatamente aquilo. Ele pode ter uma teoria, mas na hora agá ele
só conseguiu fazer outra coisa que também deu certo. Você não vai desprezar os elementos verbais da
história da música, mas o essencial se constitui de sons e é melhor ter a história da música na sua
memória com os sons do que somente as palavras, a não ser que você seja surdo, daí terá que se
contentar com as palavras.

Você pode começar com o essencial das artes. Se não são as artes a área específica do seu interesse,
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então significa o seguinte: você vai ali, neste ponto – no qual você não tem o interesse pessoal nem
profissional notável –, se ater somente às fontes primárias. Por exemplo: quais são os quadros e as
obras de arte que eu deveria ver? Quais são os monumentos que eu deveria ver? Se eu não posso ir lá
pessoalmente, pelo menos ver em fotografia e ter uma ideia da sua cronologia e do seu lugar. As
músicas que eu deveria ouvir. No caso da música, de fato, você não precisa fazer a cronologia, o
Carpeaux já fez. São cem músicas. Para ouvi-las, quanto tempo você vai levar? Em um ano você ouve
as cem e estará completa a sua cultura musical, que não será de músico, de teórico da música, de crítico
da música, mas de um ouvinte informado que – se você não tem interesse específico na coisa – é o
máximo que você quer ser e que você será.

Às vezes o ouvinte informado pode chegar a entender tanto de música que ele dá lições para os
músicos. Eu vi isso acontecer, o Daniel Brilhante de Brito – que foi o homem mais culto que eu
conheci na minha vida – era o sujeito que conversava com você e fazia citações no original, em grego,
russo, malaio, sânscrito etc e depois traduzia. Ele costumava reunir os amigos na casa dele para ouvir
música e depois dizia duas ou três palavrinhas sobre a música, mas ele tinha ouvido tanta música que
nenhum maestro conhecia tudo aquilo porque o maestro tinha instrução técnico-profissional, não a
abrangência cultural. Isso quer dizer que o Daniel entendia as músicas melhor do que os músicos
profissionais, porque eles só sabiam tocar aquilo, e ele sabia onde estava e qual era o peso relativo dos
valores que estavam envolvidos.

Você pode se tornar esse ouvinte qualificado e deve se tornar esse ouvinte qualificado. Se você não
tiver ninguém que selecione as músicas para você, como eu, na minha adolescência, felizmente tive –
era um tio de um colega meu, que costumava reunir [00:25] a molecada na casa dele, tocava as músicas e
dava lá umas explicações, fizemos isso durante anos, ele já me deu a coisa toda mastigada –, você pode
fazer sozinho, partindo da lista do Carpeaux.

Não é importante que você adquira, imediatamente, uma compreensão cultural mais profunda das
músicas que você está ouvindo; é importante que você as tenha na memória, apenas. Com o tempo,
essas formas musicais, que você guardou na memória, mostrarão uma fecundidade enorme em todos os
setores do conhecimento. O senso da forma musical facilita as suas intuições na ordem matemático-
científica, facilita a sua intuição da forma literária quando você lê ou escreve e assim por diante. Ou
seja, guardar músicas na memória é absolutamente fundamental. Você não quer ouvir nenhuma
explicação sobre a música, você não precisa entender nada. Só guarde na memória. Daqui a uns anos
você vem me contar o efeito.

Eu comecei por sugerir aos alunos apenas canções – não a grande música do Ocidente – que eu botei lá
na página do Seminário: listas e listas de canções curtinhas, fáceis de guardar etc. Essas não visavam a
este efeito; visavam, apenas, a um efeito psicológico de saneamento da sua atmosfera: no que é que
você deve pensar quando o ambiente em torno está muito fecal? Quando você está no meio da feiura,
do caos, lembra as canções e pensa nelas e tenta recordá-las: isso só lhe fará muito bem e você
conseguirá, mais ou menos, se isolar do ambiente sem estar perdido nele. Você pode fazer isso, por
exemplo, quando está dirigindo um automóvel, nada impede. Se você pode ouvir uma música, você
pode recordar outra também. É uma coisa que você pode fazer com atenção periférica e que te protege
da atração hipnótica da feiura porque aquilo que é feio e deprimente também atrai a nossa atenção. Essa
coleção de canções não tinha essa finalidade que eu estou falando.

Quando você tiver adquirido, tiver na memória a história da música ocidental, você terá um conjunto
das formas sonoras correspondentes à estruturação de toda a cultura de todas as épocas. Por exemplo,
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quando você percebe a transição do Período Clássico para o Romântico, se você tem as músicas da
época na sua memória, tudo se torna muito mais claro quando você vai estudar essa mutação na esfera
política, social, na filosofia etc. Existe uma certa analogia entre as formas artísticas e as formas de
pensamento de todas as épocas. Se é para assimilar essas formas, vamos começar pela mais fácil. Qual
é a mais fácil? A musical porque é só ouvir e guardar na cabeça. Estão entendendo a importância
prática disso aqui?

Isso quer dizer também que ter ideia da sucessão das épocas – não apenas num papel que você marcou
as datas, mas como uma sucessão de sons, de estilos sonoros – dará para você uma percepção muito
mais vívida da cultura das diferentes épocas e dos conflitos e dificuldades etc. Você vai conseguir
imaginar muito mais facilmente a substância da vida humana naquelas épocas a partir desse simples
truque de ter guardado a música daquela época na memória.

Algumas pessoas podem ter feito isso por uma coincidência. Por exemplo, o sujeito fez um curso de
história, mas ele gosta de música e ouvia as músicas. Ele não fez isto com a intenção de estruturar a
inteligência dele. Ele fez porque fez. [00:30]

Eu estou passando esse exercício para vocês como uma espécie de exercício disciplinar. Isso é para
fazer mesmo. Não é só para ouvir o que eu disse aqui. Tudo que eu disse aqui nesse curso, se não for
feito, não adiantará nada. Isso aí é que nem você ler um manual de ginástica e dormir, não fazer
ginástica: eu já li, já sei tudo.

Se você passar para a história da pintura, da arquitetura ou da escultura, a coisa já é mais complexa
porque o universo de obras importantes é muito maior e você vai ter que, naturalmente, fazer uma
seleção e ficar com aquelas que realmente marcaram determinadas épocas. Aí, talvez, você precise de
alguma ajuda extra de alguém que te ensine a examinar essas obras, em que você deve reparar e alguns
princípios da construção das obras. Para isso existem dois livros que eu te recomendo: um é do crítico
brasileiro Carlos Cavalcanti, que se chama Como Entender a Pintura Moderna. Ele tem um outro livro,
que é sobre pintura – o título agora me escapa, mas que não é tão importante. O segundo é o do Max
Friedlander – não é o Paul Friedlander, não sei se é parente –, que se chama On Art and
Connoisseurship. Connoisseurship é a arte do connaisseur, é uma palavra inglesa feita de uma raiz
francesa, uma palavra horrorosa.

Aluno: Qual é o nome Olavo?

Olavo: Max Friedlander, On Art and Connoisseurship. Eu não sei nem se os americanos pronunciam
assim, mas a palavra raiz é connaisseur, é uma palavra francesa e quer dizer “o conhecedor”, o sujeito
que conhece.

O Connaisseur não é um historiador da arte, não é um crítico de arte. Ele é, simplesmente, um


empregado ou dono de uma galeria, encarregado de examinar as obras e ver a sua autenticidade e o seu
valor. Max Friedlander foi estudar Arte e foi também aluno de Max [inaudível, [00:32:35]] como o Otto
Maria Carpeaux, e ele achou que ficar numa Universidade dando aula não seria muito proveitoso para a
sua carreira, seria muito chato, daria pouco dinheiro e ele decidiu virar um connaisseur e trabalhar em
galerias de arte, de maneira que ele não tem carreira acadêmica alguma, mas ele escreveu o melhor
livro de introdução à contemplação das obras de arte – não sei se a palavra é essa, contemplação é um
pouco exagerado. A palavra connaisseur é perfeita, é o sujeito que conhece. É como o sujeito que
conhece vinhos, por exemplo. Ele tem que tomar um vinho e sabe distinguir, pelo gosto, a marca, a
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região, a época etc. O connaisseur sabe fazer exatamente isso.

Mas somente esses dois livros, não leia muito mais sobre isso senão vai te atrapalhar. O que interessa é
você ter essas imagens na memória e saber qual é a época e o lugar. Você não precisa saber mais nada,
não precisa saber a vida do pintor, não precisa ter lido grandes apreciações sobre a obra. Guarde só as
imagens. Leibniz dizia o seguinte: o sujeito que tivesse visto mais figurinhas e guardado na memória,
mesmo que as figurinhas fossem todas fictícias, seria o sujeito mais erudito de todos. Ver as figurinhas
e guardá-las na memória, assim como ouvir as músicas. Depois você pode fazer a mesma coisa com a
arte do teatro e com a literatura de modo geral. É claro que uma obra de arte literária não pode ser
apreciada tão rapidamente quanto uma música, você pode levar dois ou três ou quatro ou cinco dias ou
um mês para você ler um livro e, naturalmente, o mostruário de obras que você vai obter vai ser bem
menor, mas aí você vai ter que suprir com a pura cronologia e com uma espécie de bibliografia crítica
[00:35]. Para isso aí, a melhor maneira que você tem de fazer, a coisa mais simples e rápida é você pegar
a História da Literatura Ocidental do Carpeaux e anotar todos os autores. Têm muitos autores menores
que ele trata lá que para nós não tem interesse, nós não somos profissionais das Letras, a não ser que
você queira ser. Você simplesmente fazer a lista dos autores e obras que deveria ler para chegar a
conhecer a Literatura tanto quanto se você fosse o Otto Maria Carpeaux. Se um cara fez – e ele era um
homem ocupado –, outro também pode fazer.

Aluno: O Senhor vai contar como são os períodos literários Barroco, Modernismo (…)

Olavo: Aí você já entrou na teorização. Não é com esses conceitos gerais que você vai aprender a
literatura. Você vai aprender com a memória das obras. Naturalmente, você vai ter de ler poucas, você
vai ter de ler só as mais representativas. Elas marcarão as épocas. Por exemplo, nada substituirá a
experiência de você ler Dom Quixote e depois ler o Wilhelm Meister, do Goethe; porque Dom Quixote
é uma figura, um personagem altamente reconhecível – você o reconhece há dez quilômetros de
distância – só que ele é o mesmo, à partir do momento em que aparece até o momento em que morre.
Então, marcou um tipo. No caso do Wilhelm Meister, não há tipo algum, há a progressiva formação da
personalidade do sujeito, personalidade que continua e no fim você ainda não sabe definir como ela é.
Não é um tipo como o Dom Quixote. Se você tiver essas duas imagens, você saberá muito mais sobre
essas épocas do que se tiver lido milhares de livros sobre estilos de época porque, na verdade, estilos de
época não existem. Essa é uma generalização científica de valor muito relativo. O que há são estilos
individuais e existem algumas coincidências entre estilos e são essas coincidências que vão marcar o
estilo de época, mas você não sabe se essas coincidências acontecem nos pontos mais significativos das
obras. Uma grande obra pode ser parecida com outra não pelas suas altas qualidades, mas apenas por
certos cacoetes que estão lá. Se o sujeito começar estudando literatura por esse negócio de estilo de
época ele nunca vai entender coisa alguma, mesmo porque o fato bruto que existe diante de você são as
obras. Estilos de época já é um conceito científico feito por um outro sujeito que não é o autor das
obras. É uma interpretação, significa que pode tá certo ou pode estar errado, mas a existência da obra é
notória, é um fato inegável e ela é objeto de experiência direta sua.

No caso da literatura, quanto menos você estudar os teóricos e quanto mais você ler as obras
diretamente, melhor para você. Isso não quer dizer que a crítica literária não seja importante, ela é
importantíssima, mas para outra coisa. A crítica literária não vai te ajudar a entender obra nenhuma e a
finalidade dela não é essa. A crítica literária vai tentar extrair o conteúdo intelectual e cultural de um
conjunto de obras. Ela vai tentar pesar o valor e a importância de uma determinada obra dentro do
contexto cultural tal como o crítico o entende. O crítico é, geralmente, um sujeito de enorme cultura, é
um cara que fez tudo isso que eu estou falando para vocês. Ele é capaz de ler uma obra, tendo como
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superfície de contraste toda a cultura que ele acumulou.

Aluno: Olavo, é uma espécie de Sociologia da Literatura?

Olavo: Não, Jamais! Sociologia da Literatura pretende ser uma ciência: têm métodos e critérios
estabelecidos e é uma atividade que, em princípio, pode ser [00:40] compartilhada coletivamente, tem
vários sociólogos e as conclusões têm que ser validadas coletivamente. A crítica literária não; a crítica
literária é uma atividade exclusivamente individual. É um homem inteligente e monstruosamente culto
que, quando lê um romance, um poema, aquilo ecoa nele de uma maneira muito mais rica do que num
eleitor comum porque ele tem mais elementos de comparação e superfície de contraste, ou seja, a
sensibilidade dele está muito mais diferenciada. Ele tem milhões de símbolos na cabeça. Aquilo ecoa
para ele de uma maneira mais rica e mais diferenciada do que para o leitor comum.

Imagine que você nunca leu nenhuma obra literária importante. Aí você começa a ler a história do
Carpeaux, por alto, rapidinho, sem prestar muita atenção, pegando só as informações básicas sobre
cada autor e montando a sua cronologia e, no fim de um ano, você tem a cronologia inteira e depois
você vai ler pela primeira vez uma obra de arte literária: ela vai ecoar dentro de você com muito mais
riqueza. É isso que é educação. É o ex ducere, levar para fora, fazer com que você sinta as coisas não
somente com a sua estrutura biotipológica, mas como uma alma que foi ampliada pela aquisição desse
referencial cultural e que sabe se orientar no território inteiro da cultura. Estas informações e
cronologias que você vai fazer se tornarão instrumentos de percepção. É para isso que elas servem. Isto
vai dar muito trabalho e, como eu disse para vocês, isto não é “cultura geral”, isto é uma especialidade,
que se chama informação cultural. Tudo isto é anterior a qualquer estudo específico que você queira
fazer sobre qualquer coisa.

Você vai fazer essas cronologias, obedecendo, mais ou menos, a estrutura dos quatro discursos, dos
quatro graus de credibilidade. Então, vamos começar com o imaginário. Em seguida, você vai passar
para o domínio retórico. O que é o domínio retórico? É o domínio da persuasão coletiva, é o domínio
da ação dos seres humanos um sobre os outros. É todo o domínio da política, da pregação religiosa, dos
valores sociais, conscientemente admitidos por certas coletividades. Você vai fazer a mesma coisa, essa
mesma cronologia, com as ideias políticas e doutrinas políticas, as correntes religiosas etc.

No começo, você vai ter que ser sempre sumário, não vai detalhar muito. Você vai continuar o resto da
vida acrescentando elementos a estas listas que você fizer. Vamos supor que, após concluir a primeira
lista das obras literárias importantes, você tenha conseguido chegar a cem títulos, cujas épocas você
conhece e cujo conteúdo você tem alguma informação de almanaque que você tirou lá do Carpeaux.
Passados vinte ou trinta anos, você terá dois mil, três mil, dez mil. A elaboração dessas listas é só para
começar.

Em terceiro lugar, você entra no reino dialético, reino da possibilidade razoável e este é o reino próprio
da discussão filosófica. A discussão filosófica só acontece dentro de um meio onde já existem crenças e
onde já existe uma sensibilidade pública, portanto onde existe arte e onde existem crenças políticas,
crenças religiosas etc. Sem isto não existe filosofia. Se você não passou primeiro pelos dois outros
níveis, você não vai entender o que é que os filósofos estão falando, não vai entender nada [00:45], por
mais que você estude Filosofia. Por exemplo, se você passa a vida estudando a filosofia de Hegel, mas
não sabe da carreira de Napoleão, não vai entender uma palavra do que Hegel está dizendo, por mais
que você estude. É claro que se você for estudar seriamente e partir para a bibliografia secundária,
estudo especializado, alguém vai te chamar a atenção para isso, mas seria melhor se você já soubesse
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desde o começo.

Aluno: Isso aí e o estudo da história stricto sensu (…)

Olavo: Tudo o que eu estou fazendo é o que vai preparar o seu estudo da história. Em primeiro lugar,
você vai usar esses livros de história como meras fontes de informação cronológica. Depois você pode
lê-los já acompanhando o fio das interpretações, os conceitos que o sujeito está usando, os métodos
etc., mas no começo não, no começo você só está interessado na cronologia. Por exemplo, você pega o
livro do Otto Maria Carpeaux e você não vai ler, vai dar uma lambida apenas, e vai anotando os nomes
dos autores e obras e, se precisar de uma ou outra palavrinha para efeito mnemônico de você saber,
mais ou menos, do que é que se trata, você anota aquilo ali.

Ou seja, você só vai entrar na cronologia filosófica depois de ter feito as duas primeiras: a das artes e
das ideias sociais, ideias políticas. Para as ideias sociais existem três livros que você pode usar: o livro
do Kurt Schilling: que chama História das Ideias Sociais; o livro do Leo Strauss, History of Political
Philosophy (História da Filosofia Política), que é uma obra coletiva feita por vários alunos do Strauss e
a própria História das Ideias Política do Eric Voegelin, que é uma obra incompleta, mas que chama
atenção para muitas coisas importantes.

Mas note bem, você não vai ler todas essas obras em profundidade agora. Você vai apenas dar uma
lambida. Você está usando como fonte de informação só. Mais tarde você pode voltar a elas e fazer
uma leitura decente, uma leitura em regra, mas ainda não. Porque se você fizer uma leitura em regra
agora, você vai pensar alguma coisa a respeito e vai querer julgar criticamente e querer analisar etc.,
mas você não pode fazer isso antes de ter esse mapeamento do território. Você não pode fazer isso
utilmente. Por exemplo, você pega um sujeito que não tem esse mapeamento e você dá para ele uma
obra do Eric Voegelin, alguma reação ele vai ter, mas é uma reação puramente subjetiva, que só
interessa a ele, não tem significado cultural e, se ele escrever, aquilo vai ser muito provavelmente uma
deformidade mental porque é apenas um sujeito com uma opinião esquisita.

Aluno: Professor, o senhor vai fazer o estudo das ideias políticas sem conhecer os acontecimentos
políticos da época?

Olavo: Sim.

Aluno: Não ficaria difícil de entender aquelas ideias (…)

Olavo: Não, com isso você vai ter uma armadura ou esquema formal dentro do qual mais tarde você
entenderá a sucessão dos acontecimentos políticos.

Uma cronologia dos acontecimentos políticos seria um negócio imenso, não acabaria nunca, mas das
doutrinas políticas, é uma coisa abarcável e, evidentemente, uma coisa tem a ver com a outra. Por
exemplo, você não vai conseguir entender o Maquiavel sem entender a situação política da Itália e
assim por diante. Você não vai poder entender o Jean Bodin sem entender nada da Monarquia Francesa
e assim por diante.

A história das ideias políticas – ou das doutrinas políticas ou das crenças políticas – é a armadura mais
geral e abstrata dentro da qual sucedem os acontecimentos políticos. Isso como preparação para o
estudo da História é absolutamente magistral. Não comecem a ler os livros de História ainda. Quando
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você for ler, use apenas [00:50] como subsídio para formar a sua cronologia.

Finalmente, você chega num nível do chamado discurso lógico-analítico, no qual terá a história das
ciências. A história das ciências, por incrível que pareça, é um treco muito mais fácil porque o número
das verdadeiras descobertas científicas é muito pequeno. A maior parte da atividade científica é uma
coisa predatória: são buscas inúteis, são conclusões irrelevantes etc. e, de repente, aparece algum treco
que funciona. Por exemplo, saiu no Brasil um livro, A História da Medicina, o autor é George Gordon,
– uma coisa assim, eu li faz muitos anos, não lembro direito. Ele dizia o seguinte, ao longo de toda a
história da Medicina só houve doze descobertas. Que bom, bom para mim, eu anoto as doze, fico
sabendo algo sobre cada uma e tenho, esquematicamente, o desenvolvimento histórico daquela coisa.
Eu não tenho ainda a compreensão de como é o processo efetivo da investigação científica. Eu não
tenho ideia da história das lutas intelectuais que resultaram nessas descobertas, mas eu tenho o esquema
geral do que sobrou, no fim das contas.

Só depois de fazer tudo isso é que você vai pensar: qual é a questão que realmente me interessa? Veja
como você formula essa questão agora e veja como você vai formulá-la de maneira diferente depois de
fazer todo esse trabalho. No presente momento, você vai formulá-la apenas nos termos da sua
linguagem privada e do seu grupo de referência, evidentemente; mas depois de fazer todo esse trabalho,
você vai ser capaz de equacionar a sua questão de tal modo que a significação dela para o universo
cultural inteiro se torna translúcida e imediata. Do mesmo modo, todas as leituras que você vier a fazer,
toda e qualquer informação cultural que chegue a você, vai repercutir na sua mente de uma maneira
totalmente diferente e imensamente mais rica.

Você vai continuar alargando este mapeamento inicial do território até morrer, isso nunca vai acabar.
Isso também significa que o que você disser, o que expressar publicamente, vai atingir muitas pessoas
em níveis diferentes porque cada uma vai ver um pedacinho do que você falou. Só vai entender a coisa
inteira quem tiver o mapa inteiro do território.

Isso aí é inevitável: quanto mais você sabe, menos você é compreendido. Isso é inevitável porque saber
algo é saber algo que os outros não sabem, e quando você disser o que descobriu, estará dizendo para
pessoas que não sabem daquilo e que, num primeiro momento, não saberão julgar. Se você deseja ser
compreendido, então procure um psicoterapeuta, arrume uma namorada bondosa e paciente e desista
desse negócio de vida intelectual. Você não está fazendo as coisas para ser compreendido, você está
abrindo caminho dentro do universo do conhecimento e colocando conhecimentos à disposição de
quem queira.

Um país do tamanho do Brasil ter mil pessoas qualificadas para isso muda completamente o sentido de
tudo que acontece ali porque você passa a ter uma espécie de superfície onde todos os acontecimentos
começam a adquirir sentido e as coisas podem ser conectadas umas com as outras. Isso não quer dizer
que a população em geral vai começar a conectar, mas ela terá os meios de conectar se quiser. Ou seja,
se você tem uma coletividade assim, investigando, [00:55] fazendo trabalhos de compreensão profunda
etc., e publicando os seus resultados, você tem todos os instrumentos de compreensão do que se passa à
disposição de quem quiser, ou seja, se as pessoas não compreendem é porque elas não querem. Mas, no
presente momento, elas não compreendem porque não podem. Porque os fatos são muitos e não existe
nenhuma elaboração intelectual em cima, e o cidadão comum não pode fazer essa elaboração
intelectual porque ele não tem os instrumentos. Virou a cegueira obrigatória: ninguém pode entender
nada do que está acontecendo e essa é a tragédia brasileira do momento.
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É por isso que eu digo e repito, eu estou dando esse curso somente para pessoas que estão interessadas
em fazer esse trabalho e, realmente, ser um membro ativo de uma nova geração intelectual capaz de
produzir os instrumentos que deem ao restante da população os meios de entender o que lhe acontece
se ela quiser compreender. Se ela não quiser, não é problema nosso. Por quê? Se a pessoa entra aqui
com outro propósito, às vezes mais individual, ela vai entender as coisas que eu estou falando de uma
maneira diferente. Tem um ditado latino: Duo cum faciunt idem, non est idem, se duas pessoas dizem a
mesma coisa, não é a mesma coisa. Você pode dizer também: se duas pessoas ouvem a mesma coisa,
não é a mesma coisa.

Tudo que se diz, se diz para um público. Você pode ter uma imagem mais clara ou menos clara do
público, mas, de qualquer modo, esse público existe e se você não sabe para quem está falando, então
você não sabe como vai ser ouvido, e se você está falando para um público determinado, quem não faz
parte daquele público vai entender de outra maneira.

Quando alguém me pergunta: “Eu devo fazer esse curso?”. Eu respondo: Depende, que é que você quer
da sua vida? Você quer apenas aprender alguma coisa para você se orientar melhor ou você entende que
existe um problema na sociedade em torno, que existe uma massa imensa de sofrimento, ignorância,
confusão etc., e você quer fazer alguma coisa para aplacar isso aqui? Se você é movido por este intuito
– que é um intuito de caridade, na verdade –, então você é a pessoa certa para fazer esse curso.

O desejo de representar um papel importante no mundo da cultura é importante, é uma coisa decisiva
para o aluno desse curso. Se ele disser: “Não, mas eu quero apenas a minha vida pessoal, minha
profissão etc”. Então o seu lugar não é aqui meu filho. Claro que muita coisa que eu vou falar pode ser
útil para você, pode te ajudar etc., mas, no conjunto, você não vai entender o que estou fazendo. Eu não
estou dando este curso para pessoas, indivíduos – é claro que o alvo material são indivíduos –, mas eu
estou pensando em milhões de outros indivíduos, que nunca chegarão a entender o que nós vamos
entender, mas que precisam que alguém entenda por eles.

Se não há um número suficiente de intelectuais preparados para trabalhar intelectualmente as situações,


você não imagina como os debates públicos vão parar longe da realidade. O que as pessoas falam não
tem nada a ver com o que está acontecendo.

Quando você for trabalhar nos seus temas específicos – que eu sugiro que não o façam antes de ter
completado esse serviço –, então é claro que você vai encontrar uma série de livros que te ajudam na
arte da pesquisa, até na metodologia e na redação do trabalho etc. Mas tem um que é obrigatório para
todos vocês, esse livro chama-se A Produção de Informações Estratégicas [01:00]; em inglês: Strategic
Intelligence Production e o autor chama-se Washington Platt. Esse livro, por incrível que pareça, só é
relativamente acessível na sua tradução brasileira publicada pela Editora Agir, cinquenta anos atrás. Em
inglês, os exemplares custam US$ 2.000,00 [dois mil dólares]; é um livro que sumiu.

Aluno: No Brasil, custa uns R$ 200,00 [duzentos reais].

Olavo: No Brasil, custa entre R$ 100,00 [cem reais] e R$ 200,00 [duzentos reais]. Acabei de comprar
mais um exemplar por R$ 90,00 [noventa reais]. É o mais barato que tinha. Claro que eu sugiro que a
Vide Editorial publique amanhã.

Esse livro te explica como um oficial de informações coleta informações, analisa, testa e redige o seu
informe. A grande diferença entre esse livro e os outros – o livro do Umberto Eco ou qualquer desses
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de redação de trabalhos científicos etc. – é a seguinte: o sujeito que escreve trabalhos científicos na
Universidade escreve só para o professor ler, para ser aprovado, ele sabe que é quase impossível que
aquele trabalho se encaixe no fluxo da discussão científica mundial e acabe afetando alguma coisa.
Não, não vai afetar nada, ninguém vai ler aquela porcaria. Se ler, vai ler o resumo e dizer “Isso é
bobagem”, e passar adiante; mas o professor tem que ler para aprovar. É um trabalho que não tem
finalidade objetiva. A finalidade do trabalho acadêmico é inteiramente voltada para o benefício do
próprio aluno. Só o que ele quer é ser aprovado. Agora o oficial de informações tem que produzir uma
coisa objetiva que vai servir como base de decisões que, se a coisa dele estiver errada, pode ter efeitos
catastróficos e resultar na sua demissão ou até em coisa pior. O oficial de informações tem de ser
maximamente objetivo, mais do que qualquer cientista.

Não é preciso dizer que uma boa parte da produção científica mais qualificada no domínio de ciência
política, ciências humanas em geral, é feita por oficiais de informações, assim como, no domínio
científico, a quase totalidade das pesquisas importantes são pesquisas militares, não são universitárias.
Isso quer dizer que se você abolir as universidades, a história científica do século passado será
pouquissimamente alterada. Mas se você abolir os institutos de pesquisas militares e os serviços de
inteligência, não sobrará nada. Onde tem vida intelectual séria? Nos serviços de inteligência e nas
instituições militares. Comparado com isso, as universidades são coisa para criança; brincando de
cientista, de sociólogo, de cientista político, para mostrar para o professor ou, depois, para brilhar na
frente dos alunos etc. Não é uma coisa para ser usada. Claro que nas áreas técnicas têm muita coisa que
dá para ser usada, mas, por exemplo, na área de ciências humanas… meu Deus do céu! Acho que não
tem nenhum trabalho científico publicado no Brasil nos últimos sessenta anos que tenha servido de
base para nada, para nenhuma ação ou decisão ou plano estratégico nem coisa nenhuma. É uma
atividade imanente, ela não sai de si própria, é idiotice, é idios, é um sujeito escrevendo para ele mesmo
e para as suas finalidades.

Esse livro para mim teve uma importância formativa, esse é um livro para guardar para o resto da sua
vida. Talvez tenha sido publicado depois alguma coisa melhor no mesmo gênero, mas eu não conheço e
também não adianta procurar, você não vai precisar. Se você conseguir fazer aquilo que Washington
Platt explica – eu estou falando disso, mas é numa etapa posterior, quando chegar nas suas pesquisas
particulares –, você já chegou na altura máxima concebível da atividade intelectual no Brasil [01:05].

Partindo dos esquemas do Washington Platt, eu, depois, desenvolvi um outro esquema – mais adaptado
às nossas finalidades aqui – que eu vou passar para vocês depois. Eu não tenho uma explicação verbal
disso, eu só tenho o diagrama. Se vocês lerem o livro do Washington Platt, vocês vão entender o
diagrama dele e o meu também. Depois eu passo isso para vocês. Ele mostra todas as fases de uma
investigação: da formulação do problema até as suas conclusões.

Depois de estudar esse livro, muitos anos mais tarde, com esse negócio que tem no Brasil de investigar
os crimes da ditadura, o pessoal começou a publicar vários informes de agentes de inteligência a
respeito da esquerda brasileira. Quando eu li aqueles informes, eu disse: meu Deus, mas eram estes os
oficiais de informações do SNI? Eles não eram oficiais de informações, eles eram apenas informantes
ou dedo-duros. Nunca apareceu um verdadeiro informe de inteligência que eu lesse e dissesse: “isso
aqui está de acordo com as exigências”. Por exemplo, durante todo o tempo da ditadura, o Governo
Militar e os seus agentes no Serviço de Informações desconheciam completamente o Antônio Gramsci.
Isso quer dizer que eles tinham uma visão puramente material e conspiratória da atividade da esquerda,
conspiratória e até policial-militar. Foi por isso que depois de vinte anos de ditadura, acabou a ditadura
e, no dia seguinte, a esquerda estava no Poder, ou seja, aquilo que você tinha tentado evitar em 64
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aconteceu na década de 80. Fizeram o contrário do que prometeram. Disseram: vamos livrar o país do
comunismo. Não, você vai entregar o país ao comunismo. Por que? Não eram verdadeiros oficiais de
informações, eram pessoas de um baixo nível medonho.

Aluno: O ORVIL [O Livro Secreto do Exército] professor, é um exemplo disso?

Olavo: Ele é um pouquinho melhor, mas aquilo foi redigido muito tempo depois. Eu sei quem redigiu.

Se você perguntar ali quantos oficiais de informação, por exemplo, leram os livros da Escola de
Frankfurt. Nenhum. Eles tinham uma visão esquemática do comunismo, uma visão de 1920. Qual era a
falha deles? Falta de conhecimento especializado? Não, a falta de um mapeamento cultural, eles não
sabiam onde as coisas estavam: “Estou aqui interessado numa guerrilha. Então, por que eu vou ler
livros de uma escola de pensamento marxista que não era nem reconhecida, oficialmente, pela União
Soviética?”. Os caras pensam assim, então, não vão estudar nada.

Eles tinham uma visão, em primeiro lugar – esse é um erro que foi cometido, inclusive aqui [EUA] –
de todo movimento comunista como uma coisa que partia da União Soviética, ou seja, o movimento
comunista era um braço da União Soviética. Em parte era isso, mas acontece o seguinte: o movimento
comunista antecedeu a União Soviética e sobreviveu à União Soviética, então, ele não pode ser
entendido, evidentemente, em função só do governo soviético.

Segundo, tudo que o governo soviético fez, decidiu e provocou tem uma retaguarda cultural enorme
que veio, pelo menos, desde a fundação do movimento comunista em 1848. O oficial de informações
no Brasil [01:10] pode não estar interessado em ler O Capital, mas Stálin estava. Aquilo que Stálin falava,
dizia, decidia etc. tinha intenções mais complexas do que aquilo que ele estava dizendo e você só
captaria essas intenções se você tivesse a superfície de contraste, senão você vai entender a coisa no
sentido meramente material e praticista, por assim dizer, e aí mesmo que o comunista vai te enganar.

No Brasil, aconteceu isso, o que a esquerda fez com o governo militar foi o famoso “boi de piranha”.
Nós criamos uma guerrilha, sabendo que os guerrilheiros vão todos morrer, enquanto o governo vai
atrás da guerrilha o que é que nós fazemos? Nós ocupamos as escolas, os jornais, as instituições de
cultura, o movimento editorial etc., e a milicada não percebeu nada; ao contrário, eles achavam que se
afagassem a esquerda pacífica, eles criariam uma divisão no movimento. E o pessoal da esquerda até
fingiu uma divisão, uma ruptura, uma parte do pessoal rompeu com o Partido Comunista. Mas quando
você tem uma ruptura no Partido Comunista, isso é só para constar; no fundo, eles são todos
amiguinhos. O pessoal que partiu para a guerrilha com o Marighella não estava realmente rompido com
o Partido Comunista. É como se fosse uma divisão do trabalho: eu vou por aqui, você vai por ali, lá no
fim nós juntamos, o que der certo deu certo. E foi assim que aconteceu. Os guerrilheiros,
evidentemente, não derrubaram o Exército Nacional – seria impossível –, mas eles criaram a
constelação de símbolos e de mártires, que é o elemento colante de toda a cultura de esquerda desde
que terminou a ditadura. É para isso que eles serviram. É como se o pessoal do partidão dissesse: vai lá
e morre para nós podermos ter um símbolo. Foi isso que os guerrilheiros fizeram.

Aluno: Mas essa convergência dos dois era consciente ou ela aconteceu (…)

Olavo: Você acha que líderes comunistas com anos de experiência, que estudaram na KGB agem
assim: “ah, foi tudo coincidência”. É o que todo mundo pensa. Os caras não acreditam em teoria da
conspiração, acreditam em teoria da pura coincidência: tudo acontece porque sim. Isso acontece porque
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você não viu um plano escrito: “Não estou vendo plano escrito nenhum”. Em primeiro lugar, quem foi
que disse que eles vão deixar você ler o plano; em segundo lugar, quem disse que eles não queimaram
o plano tão logo todo mundo leu. É aquele velho problema do Jellinek: a coisa mais importante nas
Ciências Sociais é você aprender a distinguir quais são os processos que obedecem um plano
premeditado e aqueles que resultam da confluência de causas independentes. Na história do movimento
comunista, praticamente nada resulta de confluência de causas independentes, a não ser quando essas
causas vem de fora do movimento e são reaproveitadas estrategicamente por ele.

Tudo isso que eu estou falando se refere a uma etapa posterior do seu trabalho, não agora. Tudo isso é
quando você decidir: eu vou estudar esse tema aqui e vou escrever sobre isso. Não faça isso antes de ter
esse mapeamento total.

Aluno: Como é que se articula este estudo com base no quadro de referência das datas, das ideias
políticas que nós temos que montar gradualmente com o que você falou no início sobre você montar
aquelas chaves interpretativas baseadas (…)

Olavo: São coisas independentes.

Aluno: Pode ser feito simultaneamente?

Olavo: Pode e deve.

Aluno: O quadro de referências do sistema das ciências não corresponderia (…)

Olavo: Por exemplo, eu acabei de dizer que a organização dessas cronologias pode e deve obedecer à
ordem dos quatro graus de credibilidade. Você começar com o mapeamento do imaginário: você ter
uma ideia da história do imaginário no Ocidente ao longo de vinte séculos; depois você passa para as
ideias políticas, mas ainda não para a política concreta. Isso é depois. [01:15]

Quando você tiver esses vários esquemas prontos, as questões que lhe interessam terão se definido de
uma maneira não só muito mais clara, mas muito mais significativa em termos culturais porque você
vai saber a que demanda geral você está respondendo e que importância pode ter esta questão do ponto
de vista do universo da cultura inteira. Fora isso, qualquer questão que você esteja investigando só tem
interesse para você e talvez para mais meia dúzia. Quando coisas concebidas assim, sem esta referência
cultural geral, começam a aparecer em público, como se elas fossem a alta cultura, então aí é porque
tudo virou um hospício mesmo.

Quando você entra nas atividades de alta cultura sem esta retaguarda, você acaba sendo levado por
correntes de pensamento coletivo que você não sabe de onde saíram e para onde estão indo. Por
exemplo, os escritores que estão fazendo sucesso no momento: pode ser num outro país, o escritor está
fazendo sucesso nos Estados Unidos. Você não sabe de onde saiu aquele cara, o que é que ele quer, mas
você tem a sua atenção atraída para ele e você vai atrás, ou seja, você realmente virou um idiota útil,
não necessariamente no sentido esquerdista da coisa, você é um idiota útil da história, por assim dizer.
Você está servindo a correntes de causas que não sabe quais são, ou seja, você é um boneco de
ventríloquo.

Quando a gente observa aqueles garotos brasileiros que aderiram à Escola Analítica. Eu digo: ah, muito
bonito! Mas se você não sabe que a Escola Analítica surgiu de um grupo gay, não entenderá nada do
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que eles estão fazendo, ainda que você se aprofunde no estudo daquilo. Você está entrando no estudo
interno, mas não sabe as fontes humanas de onde aquilo saiu.

Aluno: Voltando a esse ponto de organização dos materiais e da astrologia segundo [inaudível], eu
entendo que essa organização da astrologia, dos livros, dá uma contradição extrínseca das obras,
aonde elas ficam (…)

Olavo: Claro. A concepção extrínseca das obras, mas não é extrínseca com relação ao desenvolvimento
temporal. Ao contrário, você está entrando no miolo do desenvolvimento temporal. Ainda que você não
conheça em profundidade nenhuma obra em particular, você tem ideia do trajeto histórico.

Aluno: Então não dá para encaminhar assim. Mas uma vez você me recomendou o livro da
[inaudível].

Olavo: Qual?

Aluno: Humanities As science matters history. Era um livro que era usado nas escolas de Nova York
para subsidiar (…) e ela aplicava o método (…)

Olavo: Sim, mas isso aí é para depois. A primeira coisa é você ter o mapa. É exatamente como construir
uma casa: as primeiras etapas da construção não são uma construção, você não construirá nada, você
vai apenas fazer um desenho, um orçamento e compras; depois é que começa a construção. Este livro
Humanities é muito bom, mas já é para aprender a apreciação de tais ou quais obras em particular.
Porém, se eu pego um quadro e faço você obter uma apreciação profunda dele: onde está este quadro
[01:20]? Em que panorama cultural aquilo aconteceu? Por que é que o sujeito pintou? Você não sabe de
nada disso.

Não entre nos detalhes sem você ter uma visão do território inteiro. Há muitos cursos de apreciação de
obras de arte, de metodologia científica e redação de trabalho científico, de arte da pesquisa, de
argumentação. Os caras só não dão isto aqui, a base do negócio: o que é Universidade, o que é a
verdadeira formação universitária.

Claro que se você estivesse num meio onde este tipo de articulação cronológica, temporal e geográfica
já estivesse demarcado – porque estaria, por assim dizer, embutido na estrutura da universidade com
professores que conhecessem isso –, você não precisaria fazer esse trabalho porque eles já teriam feito
para você. Cada palavra que viesse da boca deles já estaria perfeitamente encaixada dentro do mapa
geral, como estava aquilo que, por exemplo, acontecia no ambiente cultural de Viena nos anos vinte:
cada um sabia do que é que todos os outros estavam falando porque todos tinham a mesma referência
ampla. Mesmo pessoas que nunca leram uma a outra – e que não tinham interesse no que o outro estava
falando – entendiam o que o sujeito fazia. Se você disser: qual é a relação que existe entre Sigmund
Freud e a lógica matemática? Aparentemente nenhuma, mas estava acontecendo num mesmo lugar e
cada qual sabia um do outro, uma coisa não era ininteligível para a outra e um pouquinho de cada coisa
cada um sabia, um pouquinho do que o outro estava fazendo cada um sabia. Isso faz uma diferença
brutal. Você saber onde está e com quem você está falando e no Brasil não existe isso, não existe a
atmosfera da alta cultura e as pessoas ainda têm a ilusão de pensar: para a alta cultura nós precisamos
fazer divulgação cultural, uma revista, uma editora ou ensinar às pessoas a apreciação musical etc.
Tudo isso pode ser útil, desde que exista um mapa, senão tudo isso é só adorno e enfeite do caos.
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Aluno: É divertimento.

Olavo: É divertimento, amadorismo, beletrismo.

Isto aqui é uma coisa que nenhuma instituição pode fazer. Para chegar a ver uma instituição que faça
isso, você tem que ter muitas pessoas qualificadas para fazer isso. Nós podemos pensar numa
instituição daqui a trinta, quarenta anos. Fazer uma universidade baseada nisso? Talvez, quando vocês
tiverem cinquenta anos, mas antes têm que ter as pessoas.

Aluno: Olavo, você, há uma aula atrás, falou justamente disso: da apreciação da arte, usou como
exemplo a questão de São Paulo de não ter memória, que se derruba e se refaz; em ordem, em uma
questão estética e, de alguma forma, você concatenou a ausência da apreciação estética com uma
certa torpeza moral ou, pelo menos, eu entendi assim. Se foi isso mesmo, eu não consegui alcançar o
conceito, o Senhor poderia explicar um pouco melhor, por favor?

Olavo: É fácil você perceber que uma criança tem primeiro o acesso à experiência estética do que à
experiência ética. Como é que ela pode entender que certas condutas são feias se ela não sabe nem o
feio e o bonito fisicamente? É impossível. Toda a educação moral se baseia num princípio estético, em
primeiro lugar. Não que você primeiro precise dar um ensinamento estético para ela. Essa é,
simplesmente, a ordem natural das coisas, ela vai fazer assim, quer você queira, quer não queira. Até na
linguagem isso se transmite, quando a criança faz uma coisa errada você não fala: “que feio!” [01:25]
Você não fala “que indecente”, “que imoral” porque ela não entende essas noções, mas o feio ela
entende.

O ser humano nasce com certo instinto estético e isso é uma coisa que está arquiprovada: o bebê já tem
esse instinto estético altamente desenvolvido. Isso é uma coisa natural no ser humano, não é cultural.
Em cima dessa base natural é que você pode construir algum elemento cultural, desde que você não
crie: na hora que você vai colocar a camada cultural em cima do elemento natural, que uma coisa não
contradiga a outra, que você ensine a criança a dizer que é bonito algo que ela está percebendo que é
feio. Esse aí é outro problema brasileiro: o hiato entre percepção e linguagem é um negócio
monstruoso, as pessoas veem uma coisa e diz outra porque elas têm que usar o vocabulário corrente. O
vocabulário corrente só permite dizer certas coisas, então elas dizem aquilo que dá para dizer, não
aquilo que elas estão vendo.

Aluno: Professor, seria uma dissonância cognitiva?

Olavo: Sem dúvida, a dissonância cognitiva.

Muitas pessoas têm interesse na arte da leitura. Como é que você deve ler os livros etc. Isso é muito
importante, mas primeiro tem que fazer esse serviço que eu estou falando. Com que vocabulário você
está entendendo o que você lê? É o vocabulário que você adquiriu ao fio de uma educação toda
deficiente, furada, é o vocabulário que você adquiriu lendo a Folha de São Paulo, é o vocabulário do
meio iletrado, imbecil, atrasado e com isso você diz: “Ah, vou ler Tolstói. Eu quero que o professor me
ensine a ler Tolstói”. Não dá para fazer isso. A leitura depende da superfície de contraste. Você tem que
alargar a superfície de contraste pelo menos até alcançar um horizonte de consciência comparável à
daquele autor que você está lendo. Daí o problema da leitura acaba simplesmente. Não é necessária
uma técnica de leitura, de jeito nenhum. Quando você lê, por exemplo, o livro do Umberto Eco, ele
também ensina a fazer aqueles fichamentos etc; daí eu lembro do Otto Maria Carpeaux, perguntaram
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para ele: onde você faz fichas dos livros que você lê? O Carpeaux ficou até ofendido. Ele disse: você
não sabe o que é educação europeia, sabe? Como é que você vai pedir fichamento de leitura para uma
pessoa que praticamente tem a obra de cor na cabeça? Você não faz isso.

Aluno: Como que é a obra de cor na cabeça? Assimilar isso?

Olavo: Se você tiver toda a superfície de contraste suficientemente ampla e se tiver mortalmente
interessado naquilo, é quase inevitável que você faça isso, porque a experiência se torna tão profunda,
tão intensa e tão importante que você não esquece nunca mais; as vezes você não precisa ter a obra
inteira, mas você lembra o suficiente dela depois de vinte, trinta, quarenta ou cinquenta anos.

Aluno: É mais fácil criar o caminho para a memória assim, não é professor?

Olavo: É uma rede de caminhos. Se você tem o mapa, você descobre os caminhos, mas como é que
você vai fazer o caminho no vazio? Uma pessoa que não sabe nada quer ler Immanuel Kant. Você pode
tentar, tem pessoas que têm um gênio instintivo para essa coisa, em cada um bilhão de pessoas, tem um
que é capaz disso, talvez seja você.

Aluno: E a meditação entra pelo perdão (…)

Olavo: O que é que eu chamo de meditação? Meditação é você rastrear uma ideia, um símbolo até a sua
raiz na experiência real, mas isso, por enquanto, não é o que tem importância [01:30], isso é o que você
vai fazer mais tarde.

O que eu dei até agora é a base material da sua educação. Eu estou falando só do hardware, do software
eu não falei ainda e talvez não dê para falar neste curso, talvez não vai dar tempo para falar. É claro que
existem elementos relativos à formação da sua personalidade intelectual que são muito importantes,
mas eu creio que se você fizer este trabalho, eu nem precisarei te explicar estes elementos porque eles
aparecerão sozinhos, por exemplo, a ideia de unidade da sua inteligência, da sua pessoa, da sua
consciência, por assim dizer.

Se você faz o trabalho do jeito que eu estou lhe dizendo, dificilmente vai se desenvolver dentro da sua
consciência, da sua inteligência, uma excrescência especializada como se desenvolve nas universidades
brasileiras: é um sujeito que não sabe nada, mas que, de repente, vai fazer um trabalho especializado
sobre isso ou sobre aquilo, para o qual ele não tem a linguagem adequada, não tem as unidades de
medida, não tem o senso da proporção, não tem nada. Então, daí você vai criar um hiato, um abismo
entre a atividade intelectual do sujeito e a sua consciência real, ou seja, o que ele diz não tem nada a ver
com o que ele é. É tudo fingido, tudo teatro, tudo de isopor. Mas se você criar esta base, dificilmente
vai ter esse problema. Ou seja, eu não vou precisar fazer uma espécie de psicoterapia intelectual com
você. Se eu pego um cara da USP, daí tem que, primeiro, desmantelar toda uma série de ilusões

Eu gostaria de um dia pegar esse livro que você trouxe, Silvio, o Por que não [Por Que Não? -
Rupturas E Continuidades Da Contracultura], sobre a contracultura – ali tem uns dez intelectuais
brasileiros – e mostrar que tudo o que eles estão falando lá é uma doença, é apenas um sintoma, um
sintoma da busca de identidade por parte de indivíduos do Terceiro Mundo perdidos no espaço sem pai
nem mãe, com carência afetiva e que estão buscando um pretexto que justifique as suas porcas vidas
perante eles mesmos. Não estão fazendo nada mais além disso, é apenas um problema pessoal que dez
pessoas têm em comum e eles acham que isso aí é uma alta atividade intelectual.
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Aluno: Professor, me lembro do Carpeaux, que o Senhor já citou várias vezes, o senhor identifica esse
trabalho feito em algum outro intelectual brasileiro, não precisa ser de agora, obviamente agora não
vai ter, mas quando existia intelectualidade (…)

Olavo: Isso que eu estou dizendo é o normal. Por exemplo, se você ler o Oliveira Lima, um historiador
brasileiro: cada palavra que ele fala está dentro de um universo cultural que ele controla, por assim
dizer. Isso quer dizer que se você lê-lo com esta referência, você pegará mais dimensões do que ele está
dizendo do que aquelas que estarão visíveis para outro leitor. O próprio Joaquim Nabuco …

Essas eram pessoas de cultura e pessoas de cultura são pessoas que fizeram isso que eu estou dizendo.
Elas não tiveram que fazer pessoalmente porque já estava feito, mas vocês têm que fazer pessoalmente.
Por que? Porque ninguém fez para vocês. Por exemplo, se o sujeito fosse ler os artigos do Carpeaux
sobre Viena, sobre a Universidade, ele veria que, por maiores defeitos que tivesse o ensino na época -
porque não existe ensino perfeito –, quem chegava em Viena para estudar estava, imediatamente,
colocado dentro desse mapa. Havia atividades importantes em todos os setores do conhecimento e, de
algum modo, eles estavam articulados. Então, você entrava já dentro do mapa organizado, por assim
dizer [01:35], um mapa que tinha um senso de unidade. Você não precisava fazer isso tudo porque já
estava feito e você sempre tinha para quem perguntar. Eu estava falando do círculo do Max Weber, que
era um círculo de amigos, por assim dizer, que se reunia para certas discussões filosóficas etc., e daí
você pega a obra de um só deles, que é o Max Weber: ele relacionava a economia da época com a
fabricação dos pianos, com a técnica de construção, com a vida matrimonial das pessoas. Ele estava
sabendo de tudo. Isso era um cara só. Agora você imagina quando se reuniam vinte pessoas dessa: você
tinha um mapa inteiro ali.

Onde você vai encontrar isso no Brasil? Não tem. Você só têm mentes pequenas, disformes, feita de
fragmentos: é a cultura do Bairro. Os caras estão vendendo isso como se fosse alta cultura brasileira.
No máximo que você chega hoje é o indivíduo que tenha uma visão ampla da cultura da esquerda.
Então, ele leu um pouco de Karl Marx, Lênin, a Escola de Frankfurt. Em geral, não fez isso. Procure
um comunista que tenha lido Stálin. Você não vai encontrar nenhum; que leu Lênin? Quase nenhum.
Ele lê aquilo que é mais atraente: a Escola de Frankfurt, a qual tem a abertura para a estética, a
sociologia, a economia etc. – já é alguma coisa. Mas uma coisa é você conhecer isso só através da
Escola de Frankfurt e outra coisa é ter o mapa inteiro e depois conhecer a Escola de Frankfurt; daí você
entende que aqueles caras que pareciam gigantes, num primeiro momento, são uns anões.

Aluno: Professor, e o Pacto [inaudível, [01:37:20]] … tem alguma força nisso?

Olavo: Claro que tem. Dentro da história do movimento revolucionário tem importância, mas esses
esquerdistas brasileiros não se interessam nem pelo movimento revolucionário. São pessoas que não
querem saber nada, só querem falar. Se aprenderem um pouquinho querem começar a falar
imediatamente.

Eu tive esta grata antevisão de que eu deveria poupar a humanidade dos meus escritos juvenis: eu não
vou impingir isso a ninguém, vou ficar quieto no meu canto até a hora que eu tiver uma coisa séria para
falar. Tanto que publiquei meu primeiro livro com quarenta e oito anos de idade.

O Brasil está repleto de gênios precoces, o cara publicou um livro com dezoito, vinte anos, todo mundo
fez isso. Graças a Deus eu não fiz. Veio um anjo e disse: cala a boca burro, vai para casa estudar, não
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encha o saco.

Aluno: Professor, o senhor estava falando dos seus escritos juvenis que não foram publicados e que
não foram porque eram esquerdistas, é isso?

Olavo: Não, eles eram simplesmente estúpidos, simplesmente besteira.

Aluno: Mais do que esquerdistas?

Olavo: Pior. Mesmo depois que eu deixei de ser esquerdista. Aquilo era tudo besteira. Às vezes
publicava num jornal, numa revista por efeito profissional, mas os caras falavam: publique este livro.
Você está besta! Então, aviso aos meus editores: é proibido publicar qualquer coisa que eu tenha escrito
antes dos quarenta e oito anos de idade, aquilo tudo vai para a privada, não é nem para o lixo. Escritos
de juventude? Não! É melhor não saber a minha biografia intelectual. Você não vai mais me levar a
sério.

Aluno: E atualmente tem a cultura da juventude não é?

Olavo: Pois é. Uma sociedade que confia na juventude está lascada porque a juventude é aquele pessoal
que não fez nada ainda. Você vai confiar justamente, nesses? Você está pulando fora da sua
responsabilidade. Que juventude nada, é você que tem que fazer, você tem que fazer para eles e não
esperar que eles façam. [01:40]

Eu posso lhes recomendar dois livros sobre os elementos de arte do estudo. Tem o livro do psicólogo
espanhol, que morou no Brasil, chamado Emilio Mira y López, Como estudar e Como Aprender. É um
livro muito útil, mas útil nesta outra fase, não agora.

Aluno: Professor, mas tem jovens que escreveram bons livros não é [inaudível, [01:40:36]], na economia
(…)

Olavo: Tem, tem até o Otto Weininger, que escreveu um livro maravilhoso e depois estourou os miolos.

Aluno: O livro era bom…

Olavo: O livro era bom, mas era tão deprimente que ele mesmo não podia ler aquilo sem estourar os
miolos.

Aluno: No caso do [inaudível] Peppers, ele escreveu o livro dele, o primeiro era muito bom
[inaudível].

Olavo: Casos de genialidades nas artes ou nas matemáticas, genialidade precoce, são muito comuns,
mas em filosofia são raríssimos. As grandes obras filosóficas foram todas escritas com 50 ou 60 anos,
porque a filosofia é uma reflexão sobre alguma coisa que você já sabe. Por exemplo, o Otto Weininger
teve uma belíssima intuição: ele escreveu um livro chamado Sexo e Caráter. Na verdade, ele chega a
uma conclusão de que qualquer comunicação entre os sexos é impossível. Mas com quem ele tinha
transado até então? Com ninguém. Então, ele falou: melhor não transar com ninguém, é melhor morrer.
É uma intuição, mas muito parcial, muito disforme, não tem equilíbrio e o equilíbrio é dado pelo quê?
Pela consciência do conjunto e do lugar onde você está.
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O pessoal moderno – como eles não têm mais isso e não procuram mais isso – começa a gostar daquilo
que é, justamente, o excepcional, o disforme, o doente, o maluco. Isso aí é puro esteticismo, é
colecionador de coisas curiosas. Por exemplo, os livros do Marquês de Sade: tem gente que prestou
bastante atenção nos livros do Marquês de Sade. Por quê? Porque é muito esquisito. A atração do
esquisito pode ter uma força hipnótica sobre você. O que é que aparece nos livros do Marquês de Sade?
Aparece a mente do Marquês de Sade, depois que você lê tudo aquilo, o que é que você fica sabendo?
Você fica sabendo o que o Marquês de Sade pensava, não fica sabendo mais nada. Você não sabe se
aquilo é de verdade, se é de mentira, você só fica sabendo que ele pensava assim. Não tem força
generalizante, não foi feito para a humanidade em geral, foi feito para um indivíduo, um maluco.

Mas é claro que existe, por exemplo, a deformação do ente do mapa e existe a ausência do mapa. Você
encontra na França, na Inglaterra, nos Estados Unidos alguém que tenha uma visão disforme do
conjunto da história da cultura, mas no Brasil não é isso, no Brasil as pessoas não têm mapa nenhum.
Por exemplo, quando vocês lerem O Jardim das Aflições, vocês vão ver que o tal do José Américo
Motta Pessanha tinha uma visão da história marcada por uma tradição materialista. São filósofos
menores, que não têm nada a dizer como Epicuro – têm vários outros ao longo do tempo –, que nunca
tiveram importância. Só que ele pega essa linha menor do pensamento e transforma na coluna mestra
da história da filosofia [01:45]. Por que ele fez isso? Ele fez isso por ignorância, mas os caras que
inventaram isso na França, inventaram de sacanagem. Então, isso chega no Brasil e um trouxa como o
José Américo Motta Pessanha acha isso lindo, e copia.

Aluno: É vivo ainda?

Olavo: Quem?

Aluno: O Pessanha?

Olavo: Não, o Pessanha morreu, logo depois daquelas conferências. Fiquei até inibido de publicar o
que eu tinha escrito sobre ele porque era tão desmoralizante que (…).

Aluno: Professor, a capacidade de análise literária [inaudível,[01:45:45]].

Olavo: Você quer dizer análise literária como técnica ou quer dizer a simples compreensão literária?

Aluno: Como técnica.

Olavo: Primeiro o mapa, depois a compreensão profunda de determinadas obras e depois a análise. A
análise literária não é um meio de ajudar você a compreender a obra.

Aluno: Não?

Olavo: Não. Ela é uma atividade científica que você desenvolve em cima da compreensão que você
tem da obra. É uma coisa em segundo grau, uma metalinguagem. A compreensão que eu tenho, eu
quero transmutá-la em conceitos científicos estáveis que possam ser incorporados no patrimônio geral,
científico.

Aluno: Mas não é possível você mudar a sua compreensão depois de você analisar uma obra?
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Olavo: Certamente é possível, mas você não pode esquecer que nenhuma obra literária foi escrita para
ser analisada, foi escrita para ser lida, então você não pode ter a certeza de que as especulações
científicas que você fez em cima têm real importância.

O que é um crítico literário? Ele não é um técnico, não é um cientista, ele é um leitor altamente
qualificado, como, por exemplo, Lionel Trilling, Otto Maria Carpeaux, Álvaro Lins. O que esses
críticos escreveram tem importância até hoje. Observe os estudos de análise literária, análise estrutural
feito nas universidades nos últimos sessenta anos. Não sobrou nada. Nada tem importância. Tem
importância dentro do desenvolvimento da história de uma ciência. Tem, portanto, importância para os
estudiosos daquela ciência que estão tentando chegar a um conhecimento científico da literatura.

Aluno: O Senhor me desculpa, eu não entendi, então, onde é o campo da análise literária.

Olavo: Não tem importância nenhuma. Isso é uma frescura.

Quando vocês começarem a ler, leiam os grandes críticos: Matthew Arnold, Samuel Taylor Coleridge,
o próprio Aristóteles. No Brasil, o Otto Maria Carpeaux, o Álvaro Lins.

Aluno: Mas o que é que eles te ensinam?

Olavo: Eles te ensinam como um homem inteligente reage à leitura de uma obra de valor. Ele te mostra,
simplesmente, o que percebeu ali e o que ele percebeu é determinado pelo conjunto das superfícies de
reflexos e contrastes que existem na mente dele. A coisa repercute nele em vários níveis e graus, com
toda uma multiplicidade, toda uma gama de cores e formas diferentes, ou seja, ele percebe mais coisas
no que ele tá lendo porque ele está lendo com um horizonte de consciência que é mais ou menos o do
autor ou, pelo menos, o do autor. O leitor principiante, inculto, só percebe um por cento disso.

Um crítico é como uma pessoa mais esperta com a qual você está conversando. Ele não pretende criar
conhecimento científico, tanto que as reações dos vários críticos podem ser muito diferentes entre si
[01:50]. Não importa isso porque não visa a criar um conceito uniforme. São, apenas, reações pessoais de
uma pessoa inteligente, que, portanto, podem enriquecer as suas reações. Portanto, quanto mais críticos
você ler desse tipo, mais você vai entender a obra, porque um viu por aqui, outro viu por ali, mas tudo
isso existe, todos esses aspectos existem.

Mas a partir do momento em que eles pretendem transformar isso numa atividade científica…em
primeiro lugar, a atividade científica já não pode lidar com as obras literárias como entidades concretas,
ela vai ter que selecionar aspectos. Você já não está lidando com realidades concretas, muito menos
com a experiência concreta do leitor, mas só com determinados aspectos, por exemplo, a estrutura da
narrativa. Se você está interessado na estrutura, então você não está interessado na cor, na atmosfera,
no ambiente etc; você vai ter que isolar tudo isto. A atividade científica é organizada e segmentada. Isso
quer dizer que se você ler cinco ou seis críticos literários clássicos, a sua leitura vai ser enriquecida,
mas se você ler dez análises literárias científicas, você vai ficar confuso. No fim você não sabe nem se
a obra de arte existe ou não porque você vai chegar na tal da estética da recepção, que diz que a obra de
arte é constituída das reações do público, e daí dissolve a obra de arte num negócio sociológico,
anônimo. Eu não sei se é assim ou se não é assim e isto é um problema científico que será resolvido ao
longo da discussão de muitas gerações. Como é que isto pode te ajudar a entender a obra de arte?
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Aluno: Por exemplo, se alguém ler a Poética e vai ler uma obra literária, buscando, assim,
compreender os pontos essenciais da trama, qual a proposta do personagem, consegue fazer mais
distinções. Para o que ele está lendo isso seria útil?

Olavo: O que Aristóteles fez – ele tinha um propósito científico, mas não era ciência no sentido atual
que estão fazendo – foi classificar as obras tais como ele as via e ver que havia regras imanentes ali,
regras não escritas, por assim dizer, que davam a chave desses enredos, o que é uma observação que
qualquer pessoa poderia fazer. Por exemplo, se você assiste a uma comédia ou a uma tragédia, você
percebe a diferença, não percebe? Só que você não é Aristóteles e você não tem a capacidade de dizer o
que você percebeu: olha, foi isto que eu percebi, foi isto, isto e isto. Aristóteles tem uma capacidade de
expressão que é uma coisa monstruosa. Ele consegue descrever impressões fugazes, que você sabe que
a coisa está ali, mas não sabe o que é.

Na retórica, tem um pedaço onde ele descreve vários tipos de beleza. Ele descreve, por exemplo, qual é
a beleza de um jovem, de um adolescente e de um homem adulto. Ele diz: a beleza de um homem
adulto tem que ter um elemento vagamente atemorizante, quer dizer, o macho adulto tem que inspirar
um pouco de medo, senão não funciona. Daí você pergunta: o que é a beleza de um velho? É aquela
que não inspira piedade. Eu lembro quando eu conheci o Mário Vieira de Mello – era um velho
centenário, mas era um homem robusto, forte, severo –, eu falei: que coisa maravilhosa. Não tive
piedade nenhuma, ele que deve ter ficado com piedade de mim. Ou o marido daquela médica, que é
romena, como é que chamava? Doutora Mariana Jacó. Apresentou o marido dela: era um turco, um
homem desta largura, musculoso para caramba, também centenário. Que beleza! Você vê a velhice, mas
tem a força, tem a saúde. Agora tem uns caras que aos trinta anos eu já fico com dó deles, lembram da
figura do poeta ateu? Com o poeta ateu você chora [01:55]. Você vê o Dr. Dráuzio Varella, não ficam com
dó?

São impressões. São impressões realmente subjetivas, mas que coincidem com as impressões que os
outros seres humanos têm, então, ele consegue pegar o conteúdo universal de uma percepção pessoal e
dizê-la; e note bem que ele está dizendo isso apenas num rascunho de aula, não é um escrito literário,
no qual ele está tentando dar o máximo da sua expressividade. Não! É isso que é bonito em Aristóteles.
Aristóteles não tem nada de abstrativo, ele está sempre falando da realidade. Claro que dentro dessa
área de estudos acadêmicos de literatura há pessoas que ainda conservam as qualidades do crítico
antigo. O Northrop Frye é um deles, ele é um professor acadêmico, mas ainda é um crítico de
antigamente, tem a reação pessoal dele, ele não se perde numa ilusão de objetividade científica.

A crítica literária é uma excelente preparação para toda a vida intelectual porque é uma atividade que é
feita diretamente da experiência pessoal, da qual o sujeito puxa um conteúdo intelectual, que é
culturalmente válido, mas que não tem a generalidade obrigatória do conceito científico. Ele vai parar
na probabilidade razoável, vai passar do poético para o dialético.

Um livro, um romance, uma peça de teatro não vem com um manual de instruções, dizendo: o meu
sentido é este, a estrutura é esta. Não vem com isso, você tem que pegar diretamente. A produção dos
críticos faz parte do patrimônio literário também. Todos os críticos são grandes escritores. O Lionel
Trilling, um dos grandes críticos de todos os tempos, explica isso: a literatura é uma expressão estética
da experiência real. O que é a crítica? É a expressão estética da experiência que você tem com as obras
de arte literárias, portanto, é literatura também, não é ciência. E você leu muitas dessas críticas
literárias – em seguida, quando você lê um romance, vê um filme, assiste uma peça etc –, a sua reação é
tão rica que, frequentemente, transcende a sua capacidade de expressá-la. Para você expressar aquilo,
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você precisa parar, recordar tudo que percebeu na hora. Tudo o que escrevi sobre o filme O Silêncio
dos Inocentes, eu percebi na hora. Não é que eu fui analisar depois. Não, eu percebi naquele mesmo
instante. Parei e recompus o que percebi. Tudo que não é feito assim, na base de você recompor uma
percepção real, não tem valor. Tudo que for obtido só por análise, é tudo superficial. Tudo que não vem
diretamente da experiência é oco, é só pensamento.

Você imagina que desgraça que pode ser para um indivíduo que não tenha esse mapa, não tenha a visão
do território e que entra numa faculdade de Letras para aprender análise literária: vai sair uma
deformidade viva ali que não tem conserto nunca mais. Felizmente, ninguém vai ler o que ele escreve,
nem a mãe dele. Ela dá uma olhada assim: está muito bom filhinho!

Vocês não vão fazer nada para serem aprovados – nem por mim. Essa é outra coisa importante que faz
parte desse curso [02:00]: este tipo de aprendizado que eu estou passando para vocês não pode ter o
elemento disciplinar, ou seja, ter um regulamento, horários, exercícios, notas, julgamento. Não pode ser
assim. Isso tudo é um aparato didático que você usa para treinar crianças. Isso não faz parte da
educação, faz parte da instrução.

Instrução é você treinar pessoas para que elas façam as mesmas coisas todas igualzinho. Por exemplo,
ginástica: todo mundo faz o mesmo movimento, não é assim? Música: todo mundo vai tocar a mesma
nota na hora que eu mandar, não é assim? Então, este aprendizado é essencial, mas essencial na
infância.

A medida que o ensinamento vai indo na direção de uma atividade intelectual mais diferenciada, os
indivíduos têm que ter toda a iniciativa e têm que ficar livres para fazer do jeito que eles quiserem. O
professor só pode sugerir as coisas, ele não pode mandar fazer nada. Qual é o controle que o professor
tem sobre o conjunto dos alunos? Ele tem algum controle, mas é um controle sutil, que eu comparo
com a pintura de um céu na aquarela. Você já viu um pintor de aquarela pintar um céu? Se você vai
pintar com óleo, você dá pincelada por pincelada, desenha nuvens. Aquarela não dá para fazer isso:
você molha o papel, joga duas gotas de tinta azul e fica fazendo assim [gesto de sobe e desce com as
mãos] até formar, mais ou menos, as nuvens. Às vezes dá certo, às vezes não dá. Se não dá, você joga o
papel fora e faz de novo. Todos pintores de aquarela fazem assim. Neste nível, que já é propriamente
universitário, o controle que você tem sobre os alunos é assim.

Se você introduzir mais elementos disciplinares, a coisa não funciona porque daí o centro do negócio se
torna o quê? A autoridade do professor. Na instrução, a autoridade do professor é tudo, você tem que
fazer o que ele mandar, não é assim? Não tem outro modelo para você copiar. Você vai na escola de
ginástica e vai olhar o quê? O que o professor está fazendo, não é o que o aluno do lado está fazendo,
não é? Você vai fazer igualzinho a ele e vai treinar até ficar igualzinho, não é assim?

No caso aqui, a autoridade do professor não é tudo porque ele está se reportando a autoridades que são
infinitamente superiores a ele – autoridades da cultura como um todo – e é a isso que eu estou tentando
remeter vocês. Não é uma autoridade de tipo administrativo ou disciplinar, realmente não é. É
autoridade da verdade, da beleza, do bem etc. A ideia é desenvolver um senso de amor por essas coisas
superiores, não de imitação do professor, porque o professor só representa isso muito parcialmente, ele
representa uma qualidade, que é a qualidade pessoal dele, que, necessariamente, estará infinitamente
abaixo de tudo isso que eu estou mostrando. Por isso que não se pode treinar pessoas para a atividade
intelectual mediante um ensino disciplinar. Não dá para fazer isto e, se tentar fazer, você vai criar uma
deformidade que você não queira saber. Se você introduz muito elemento disciplinar, então, você
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copiará algum modelo de educação que não é este, que é ou o do ensino primário ou do ensino
religioso, doutrinação religiosa ou doutrinação partidária ou é uma seita, sociedade secreta. Todas essas
coisas são necessárias, elas existem, mas o que nós estamos fazendo aqui não é nada disso, é outra
coisa: é a preparação de intelectuais de grande porte. Portanto, os alunos têm que ser deixados livres.
Então, eu sugiro exercícios, eu não vou fiscalizar se ninguém está fazendo o exercício. Por quê? Se o
cara não fizer, ele não quer fazer e se ele não quer fazer, quer dizer que ele não serve para isso. Você
não pode forçar o sujeito a entrar nisso [02:05]. Se você forçar, fará mais um farsante, não vai funcionar.
Só vai funcionar aquilo que vem realmente do coração, quer dizer, o cara tem vocação, quer aquilo e se
ele quer desesperadamente aquilo, então eu ajudo a fazer. E se você quer só um pouquinho? Então, tu
fica aí, mas depois tu vai embora. Eu não vou te expulsar, você vai embora sozinho. E se você
realmente não quer, então o que é que você está fazendo aqui? Ah não, é que tem uma garotinha legal!

Aluno: Nem isso tem aqui professor.

Olavo: Nem isso tem aqui. Você vê, só tem homem nessa porcaria, é um negócio, assim, horroroso. Foi
praga que a Roxane rogou para mim. A Roxane fez uma macumba e expulsou todas as mulheres do
meu curso. Cadê ela? Está aí?

Se é para fazer uma coisa séria, então você não pode empurrar as pessoas pra isso. Também não pode
expulsá-las. Você não sabe onde está a inteligência de um aluno e se ela pode aparecer amanhã. Às
vezes tem uns alunos que fazem umas perguntas idiotas e os outros ficam impacientes. Eu digo: não sei
quem é ele, cara pode ser um gênio, está ali escondido, então vamos esperar para ver.

Aluno: Você está apostando em mim até hoje né Olavo? Faz doze anos.

Olavo: Pode esperar o tempo todo. Eu estava apostando até em mim. Faz cinquenta.

Quando chegar a hora das pesquisas mais aprofundadas sobre algum tópico do seu interesse, então aí é
que você vai entrar num negócio que se chama bibliografia secundária e aí é um oceano. Como se
orientar ali no meio? Praticamente, não há regras, mas aquilo que você tiver aprendido nesta primeira
fase pode te dar alguma dica. É claro que uma boa pista são aqueles estudos que são citados em outros
estudos, mas essa pista, às vezes, pode ser enganosa. Por quê? Porque você pode perder de vista
alguma coisa preciosa, na qual, por coincidência, ninguém prestou atenção.

Na pesquisa das fontes secundárias, você depende, eminentemente, da sorte; e você dependerá,
também, de uma outra coisa, que é a capacidade de leitura rápida. Como é que funciona isto? Se no
começo eu disse que você tem aqueles três níveis, você tem aqueles conhecimentos que são estruturais,
que vão se incorporar na sua personalidade e se transformar em órgãos de percepção. Por exemplo, eu
acho que tudo aquilo que eu expliquei para vocês são coisas que para mim já se tornaram órgãos de
percepção, eu percebo as coisas assim. Não são uma coisa que eu preciso pensar para fazer, eu já estou
fazendo, naturalmente. Às vezes, aquilo é tão fácil de fazer que se torna difícil de explicar. Aquilo que
se incorpora na sua natureza, que se torna natural, já é quase automático, então você não sabe explicar
como faz, você sabe fazer.

É claro que aqueles estudos que você perceber que valem a pena ser transformados em elementos
permanentes e estruturais, você deve consagrar muitos anos e sempre voltar a eles. Por exemplo, o bom
e velho Aristóteles ou a Bíblia. Sempre você vai voltar, sempre, sempre e sempre.
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Se é uma leitura para a informação, naturalmente a sua leitura se torna mais rápida. Isso quer dizer que
não vale a pena ter nenhuma técnica de leitura rápida se não você não vai conseguir se livrar dela. Por
exemplo, existe uma coisa chamada leitura fotográfica. É uma coisa horrível: você abre a página de um
livro [02:10], olha de certas maneiras e vira a página, depois você apela para a memória fotográfica e daí
você vai ler o livro. Você vai ler o livro na sua mente. Isso existe. Tem cara que decora um livro em
quinze minutos. Não é que ele decorou, ele não sabe nada do que está escrito no livro, ele só tem a
imagem da página e depois ele lê na memória dele. É nessa segunda leitura que ele vai entender ou não
entender o livro. Só que por mais fiel que seja a memória fotográfica dele, ela não vai ter a estabilidade
de uma página impressa e você vai precisar voltar à página várias vezes para fazer uma leitura mais em
profundidade. Então, vale mais a pena ter a página impressa do que ter a imagem fotográfica na
memória. Para que serve isso? Serve, por exemplo: você é um agente secreto, você conseguiu entrar no
escritório do inimigo e você tem cinco minutos para decorar um relatório que ele escreveu. Claro que
serve para isso porque você não tem que entender coisa nenhuma, você, simplesmente, tem que guardar
aquilo na memória e depois chegar para o seu chefe e dizer: o que está escrito lá é assim. É uma
técnica, ela serve para algumas coisas. Ela pode nos ajudar? Depende. Se for alguma pesquisa na qual
você precisa de um volume enorme de informações de valor relativamente pequeno – cada uma –,
talvez isso sirva. Mas eu acho que, geralmente, não é esse o caso.

Mesmo quando a gente precisa de um grande volume de informações, em geral, são informações
qualificadas. Você não lidará apenas com fatos brutos. Por exemplo, se você vai ler a bibliografia
secundária sobre Platão: ela não consiste de notícias de jornal, nem de relatórios policiais, de boletins
de ocorrência, mas consiste de elaborações intelectuais altamente completas, muito valiosas. Não
adianta você ter a imagem fotográfica de tudo isso na cabeça. Por exemplo, se você ler um estudo
qualquer sobre o conceito de tal coisa em Platão, você não vai precisar guardar o estudo inteiro na
cabeça, você vai pegar uma ou duas ideias centrais, fundamentais, que podem te ajudar e pronto,
acabou. Esta técnica da leitura fotográfica não será muito útil.

E a tal da leitura dinâmica? A leitura dinâmica se baseia na ideia de uma leitura exclusivamente visual,
onde você não repete os sons. Mas eu vou ler Shakespeare sem ouvir os sons? Isso aí é um surdo lendo
partitura: ele vai entender a estrutura da música, a ordem dela, a fórmula matemática, mas não vai ouvir
a música. Qual é a vantagem? A vantagem da leitura dinâmica é para você ler coisas que não tenham
um grande interesse literário. Isso são técnicas feitas para executivos de grandes firmas, que têm que ler
aqueles relatórios medonhos e guardar tudo aquilo na cabeça, coisas que não têm valor em si mesmas.
Mas, praticamente, tudo o que nos interessa ler e conhecer são coisas que têm valor. É natural você
fazer essa gradação da diferença de velocidade se você quiser incorporar profundamente algo, você está
lendo aquilo e fala: eu quero que isso seja meu, eu quero que seja meu para sempre.

Por exemplo, quando vocês leem a Divina Comédia ou leem Camões, vocês falam: isso aqui é uma
preciosidade, tem que entrar no meu coração para sempre. Então, você vai conceder uma atenção
àquilo. Ou certas coisas de Platão, você diz: isso aqui é um modelo para sempre, é tão bonito. Se você
está lendo apenas um estudo científico a respeito, daí você tem um interesse, tem um respeito, mas não
é a mesma coisa. Então, você gradua naturalmente a velocidade. Se você estivesse lendo um livro de
história: tem livro de história que dá vontade de você comer cada linha porque você vê uma espécie de
explosão de inteligência em cada linha; e tem outros que não. Eles podem até ser mais exatos do que
esse ou mais fidedignos [02:15], mais bem documentados etc, mas a atividade da inteligência não foi
tanta assim. Naturalmente, você vai ler mais rápido, mas o que é que vai graduar isso, o que é que vai
definir isso? O mapa que você fizer. Até nisto o mapa vai ser útil.
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Aqueles quatro tipos de leitura que falava o padre Sertillanges: a leitura formativa, a leitura
informativa, a leitura inspiracional e a leitura de diversão. Você concede tempos diferentes para essas
leituras e eu acho que você não precisa ensinar ninguém a fazer isso, eu acho que as pessoas sabem
porque que elas estão lendo. Apenas se ela tiver consciência desses quatro conceitos, ela vai fazer isso
com mais clareza.

Existe uma série de técnicas que você pode adquirir, mas que não são realmente necessárias se você
tiver as técnicas fundamentais que são essas que estou lhe passando. Por exemplo, como é que eu vou
ler um livro? Vou seguir o método do Adler. O método do Adler foi feito para uma certa finalidade; se a
sua finalidade não é a dele, você não pode usar o método dele. Eu comecei me educando a mim mesmo
pelo método do Adler, mas logo vi que ele não servia para as minhas finalidades: eu fiz isso com um
livro, dois livros, três livros, dez livros, vinte livros, chegou uma hora que eu falei: não é isso que eu
estou querendo porque eu não estou interessado nos grandes livros; alguns grandes livros sim: quando a
obra, em si mesma, tem um valor – ela constitui, por si mesma, um patrimônio – vale a pena você fazer
isso. Mas e se o objetivo seu não for a obra, mas for o objeto, a coisa da qual ela está falando? Daí já
não funciona tanto. O método do Adler foca muito no texto, no livro como tal, para você aprender a
discutir o quê? Você lê os grandes livros para discutir os grandes livros. Claro que dali você vai tirar
uma série de conceitos que você pode aplicar para outras coisas também. Por exemplo: eu estou
interessado aqui na estrutura do Estado, então eu vou ler A República, o Aristóteles, o Maquiavel, mais
fulano, fulano, fulano. Tudo isso aí não vai dar para você a ideia da estrutura de nenhum Estado
existente porque tudo isso está no nível do conceito geral. Agora eu quero saber qual é a estrutura de
poder nesta sociedade onde eu estou. Você, simplesmente, não vai encontrar nenhum livro que te ensine
isso.

Aluno: Professor, e o Northrop Frye?

Olavo: O que é que tem o Northrop Frye?

Aluno: Poderia aprofundar mais sobre ele?

Olavo: Daqui a pouco falamos dele.

Quando o interesse vai direto para o objeto, dificilmente você vai encontrar um grande livro que
resolva a situação porque os grandes livros se notabilizam pela sua generalidade. Não esqueça, por
exemplo, quando você ler A Política, de Aristóteles: é muito bom, mas não se esqueça que Aristóteles
fez uma coleção das Constituições de dezenas de países e não está na Política. E de onde ele tirou
aquelas coisas que ele está falando da política? Foi da pura especulação? Não, ele tirou da experiência
e, frequentemente, a experiência não está mencionada ali, você vai ter que procurar em outro lugar.
Tudo aquilo que Aristóteles discute na física: hoje as pessoas, finalmente, entenderam que a Física de
Aristóteles não é uma física, é uma metodologia científica. Levaram séculos para entender isso. Não
está na cara desde o início. Por isso o livro começou a despertar um novo interesse. De onde que
Aristóteles tirou essas coisas? Você pode ler a Física mil vezes e não vai saber [02:20]. Então, você vai
naqueles escritos menores de Aristóteles, que falam sobre os animais, a meteorologia etc. e conclui:
oitenta por cento do que o cara escreveu são observações científicas, que ninguém lê; o pessoal só lê as
grandes obras de Aristóteles, mas o que ele está falando nestas, ele tirou daquelas.
Aristóteles era, eminentemente, um cientista natural e, secundariamente, um filósofo. É um cara que
tirava conclusões filosóficas da experiência científica e é justamente isso que dá a densidade do que ele
está falando. Esses escritos sobre coisas naturais, o pessoal diz: eu não vou ler isso porque isso aí é
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ciência ultrapassada. Eu digo: mas se você quer entender o modus pensandi de Aristóteles, você vai ter
que ler isso. Tem um cara no Paraná que escreveu um livro sobre a biologia de Aristóteles, um negócio
absolutamente notável, um autor totalmente desconhecido.

Aluno: É Biologia de Aristóteles?

Olavo: É.

É um cara que ninguém conhece no Brasil. É uma das melhores coisas que se publicou de Aristóteles
no mundo. Está ali. Um cara que é um biólogo, um médico e escreveu sobre esse ponto. Você entende
muita coisa de Aristóteles a partir dali.

É por isso que eu faço questão de, no Seminário de Filosofia, não dar atenção principal aos textos, às
obras, mas aos temas, aos assuntos, de modo que você possa usar as obras como superfície de
contraste. Se eu quero, por exemplo, descobrir a estrutura da consciência, é claro que eu vou prestar
atenção no que René Descartes disse sobre a estrutura da consciência, mas eu não estou interessado em
Descartes, estou interessado na estrutura da consciência. Eu vou usar os livros apenas como superfície
de reflexo e eu acho que é o que se deve fazer, a não ser que você tenha um interesse específico, por
exemplo, em história da filosofia ou em determinado autor. Eu espero que isto não aconteça. Há
pessoas fazendo estudos sobre a filosofia de Shelling ou sobre a filosofia de Aristóteles. Está cheio
disso no Brasil: caras que estudam autores.

Aluno: Luiz [inaudível, [02:22:44]].

Olavo: Eu não lembro o nome dele.

Aluno: Paranavaí?

Olavo: Eu não sei de onde ele é, é lá do Paraná. Eu acho que é esse mesmo, eu não lembro o nome. Eu
tenho o livro lá em casa, lá eu verifico. Eu acho que fui o único leitor daquele livro e mesmo eu não
lembro o nome do autor. Que coisa injusta.

As universidades produzem estudantes de textos. É claro que isso é muito útil e muito bom porque eles
nos ajudam dando as coisas meio mastigadas. Por exemplo, o Eric Weil é um primor, um belo
expositor da filosofia alheia, ou esse William Stacy, que escreveu sobre Hegel, que tornou Hegel tão
simples que até eu entendo – que até o próprio Hegel entenderia. Tudo isso é admirável, mas, em
primeiro lugar, esses caras que fazem estudos aprofundados, em geral, não estão tentando tornar esses
autores mais inteligíveis para terceiros, eles estão tentando aquecer o debate acadêmico interno entre
especialistas. Isto pode ou não ter uma importância cultural geral – às vezes tem, às vezes não tem –,
dependendo da retaguarda mental do indivíduo, conforme ele esteja consciente desse mapa maior ou
ele seja apenas um burocrata da filosofia, como se fosse um contabilista.

O Brasil sempre produziu muitas pessoas assim, que estudam detalhes, coisinhas etc, e acham aquilo de
uma importância extraordinária porque elas gostam daquilo. Se aquilo vai ter alguma importância
cultural mais geral, elas não são capazes nem de pegar. [02:25] As universidades produzem muito essas
pessoas e por isto mesmo é que eu faço questão de não montar o estudo na base de textos, nem no
Seminário de Filosofia e nem aqui.
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Os textos são apenas elementos auxiliares, nós estamos interessados em coisas, nós estamos
interessados na realidade, sobretudo, em primeiríssimo lugar, na realidade humana chamada Brasil,
onde nós crescemos e na qual a maior parte de nós vai ter de viver pelo resto da sua vida e que, mesmo
à distância – mesmo eu tendo saído de lá –, ainda é o objeto das preocupações porque você não vive
cinquenta e oito anos num lugar para depois esquecer, começar do zero. Não existe começar do zero,
você não pode jogar o seu passado fora, isso é impossível. Aquilo te impõe uma responsabilidade e não
tem como escapar. Só que o fato de estar fora facilita um pouco a coisa porque eu não tenho mais o
impacto daquele caos e daquela feiura. Posso ver a coisa com um pouco mais de distância. Justamente
isto me permite passar este instrumental para vocês. Então, acho que hoje vamos parar por aqui.

Aluno: Professor, em um momento o senhor falou que ia citar dois livros: Emilio López, Como estudar
e como aprender, e o segundo?

Olavo: Como um elemento de suporte dos seus estudos o livro do Narciso Irala, Controle cerebral e
emocional, aquilo é uma beleza. O livro do Irala é muito baseado no único livro do Dr. Vittoz, que é o
cara que inventou esses exercícios – existe o livro do Dr. Vittoz, eu não lembro o título exatamente –,
são exercícios que você pode fazer a qualquer momento, não precisa esperar, pode fazer agora se
quiser.

Você imagina o meu desespero quando chega um aluno e diz: eu quero fazer um estudo sobre Mário
Ferreira dos Santos. O que eu posso dizer? Imagine o cara sem esta retaguarda cultural entrar no Mário
Ferreira dos Santos, que é um oceano. Vai ficar absolutamente louco. Você não pode entrar nessas
coisas com a mão livre, você tem que ir com régua e compasso; e a régua e o compasso são essas dicas
que eu estou lhe dando aqui. O que eu acho incrível é que – quantas instituições universitárias existem
no Brasil? Milhares. Quanto dinheiro rola naquela porcaria? – ninguém dá isto para as pessoas. Isso é
que nem você ensinar alguém a andar de bicicleta antes dele aprender a andar com os pés.

Aluno: A partir de que idade dá para iniciar isso?

Olavo: Qualquer uma, cinco anos de idade se você tiver cabeça para isso. Depende, tem pessoas que
têm um desenvolvimento acelerado, outras não, mas isso não interessa. A precocidade é um treco
biológico, não é mérito. Além disso, quanto tempo você pretende durar? Com que idade você pretende
morrer? Quer fazer tudo aos dezoito anos e morrer com dezenove, que nem o Otto Weininger? Pode
fazer isso.

Aluno: A leitura pode começar cedo.

Olavo: Quando você quiser.

Aluno: Quanto mais, melhor

Olavo: Não, não é quanto mais, melhor. Primeiro é preciso ter o mapa. O problema da leitura infantil é
esse: o sujeito pega um livro aqui, pega outro lá, ele não sabe onde está aquilo. Para isso é que deveria
ter um pai não é? Para dizer: olha, você lê isso, aquilo, a coisa é assim. Ele vai dar explicação. Não
pode soltar o garoto na biblioteca. Isso pode dar certo, pode dar errado, é tiro no escuro.

A minha sorte é que eu tinha muita preguiça de ler, eu queria muito saber as coisas e tinha uma
preguiça enorme de ler. Um dia eu falei: deixa eu ver um negócio que eu precise ler o mínimo. [02:30]
29

Depois você acaba até acostumando. Mas eu tenho um problema nos olhos que torna a leitura difícil:
cada olho enxerga de um jeito, completamente diferente. Se eu pudesse aprender tudo pelo ouvido: as
pessoas leem e contar para mim, eu faria isso sem pestanejar. Infelizmente, não tenho.

Aluno: Professor, sem este mapa muito bem feito, sem ainda uma cultura verdadeira na arte literária,
não dá para entender a poesia do Bruno Tolentino.

Olavo: Mas de jeito nenhum. Nossa Senhora!

Tem um ensaio do T. S. Eliot, que chama Tradição e talento individual, e ele vai te mostrando que em
cada grande poeta você tem a tradição poética inteira. Então, chega naquele negócio do Jorge Luís
Borges: “para entender um único livro, é preciso ter lido muitos livros”, porque aquilo é um diálogo, é
uma continuidade, não é uma coisa isolada que está no ar, aquilo é uma arte, não é um produto da
natureza. Para nascer uma bananeira aqui, não precisa nascer outra lá, a bananeira é independente; mas
para que uma obra de arte seja escrita, é preciso que outra tenha sido escrita.

Por exemplo, se você ler o Bruno Tolentino tendo uma consciência literária ampla, você vê todos os
reflexos da literatura universal que estão aparecendo ali e, portanto, a imagem do mundo que aparece é
através dos olhos de cem poetas, senão você não percebe nada. As suas reações são insignificantes
porque são reações somáticas, por assim dizer: é o gostei e o não gostei, que podem ser embelezadas
com uma linguagem universitária, mas não vai passar disso. Veja que coisa curiosa: até hoje não há um
estudo de conjunto sobre a poesia do Bruno Tolentino. Nada, nem vai aparecer. Por quê? Para isso
precisaríamos de pessoas qualificadas. Claro que tem pessoas que apreciam o Bruno Tolentino e você
apreciar, gostar, amar aquilo ajuda a entender, evidentemente, mas se não tiver a superfície de reflexo,
você não terá certeza de que o que você está olhando é exatamente o que está ali. Tem um forte
elemento projetivo nisso aí.

Então, você deve, primeiro, construir a estrutura do universo cultural que você pretende adquirir. Se
existisse uma universidade, quando pisasse lá dentro, você já estaria dentro dessa estrutura. Você não
precisava ter tudo dentro da sua cabeça, mas como não existe nós temos que ter nossa universidade
portátil e é isto que eu chamei de autoeducação. Veja que coisa incrível que, no Brasil, é só por este
meio que você pode adquirir uma verdadeira educação universitária.

Voltando ao começo do curso, você não pode esquecer que a autoeducação é educação. Portanto, uma
coisa que você deveria fazer no início seria ler uma boa história da educação. Eu sugiro a do Ruy
Nunes, Ruy Afonso da Costa Nunes. Ele pegou o livro do Henri Marrou, História da educação na
antiguidade, e decidiu fazer o resto, já que o Marrou não completou o livro. Você pega o do Marrou e
depois pega todos os do Ruy Nune – que foram publicados até pela própria USP, a EDUSP. Isto vai te
dar uma noção das possibilidades da educação, até onde eu posso chegar. Dá uma olhada lá para você
ver o que dá para fazer.

Em segundo lugar, esse é um outro elemento também importante: você precisa controlar os seus
resultados, medindo pelos resultados obtidos por outras pessoas. Para isto, você vai precisar
acompanhar duas coisas: você vai precisar conhecer os programas de ensino das melhores
Universidades que ainda existam no seu tempo ou que tenham existido [02:35] e veja se o que você está
fazendo está à altura da discussão que eles estão travando naquele momento. Para isto você precisa da
bibliografia secundária, evidentemente, ou seja, ver o que as pessoas estão falando sobre tal ou qual
tópico nos centros universitários mais sérios e produtivos que existam. Não precisa ser agora, pode ser
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numa outra época.

Um terceiro critério é você se munir de vários livros que mostrem o ensino – não universitário –
secundário das disciplinas que você quer estudar. Aí você vai ter que usar material mais antigo. Por
exemplo, para mim uma coisa que foi absolutamente formidável foi quando eu estava lendo o livro do
Vianna Moog, Em Busca de Lincoln, e ele estava tentando explicar como um sujeito que saiu de um
ambiente atrasado, iletrado, pobre, conseguiu se tornar um grande escritor da língua inglesa – Lincoln
é um clássico, sem dúvida – e ele procurou, virou, mexeu e não conseguia entender aquilo. Como ele
queria escrever uma biografia de Lincoln sobre esses aspectos – a formação intelectual de Lincoln – ele
pensou que a formação intelectual de Lincoln era um mistério, que ninguém sabia nada. Ele já tinha
quase desistido, quando, de repente, ele estava na biblioteca do Congresso e estava com o título de um
livro de gramática, no qual Lincoln havia estudado, e ele, só por curiosidade, consultou a gramática.
Quando ele foi ver, não era um livro de gramática, era um livro de retórica da mais alta qualidade, que
pegava toda a tradição da retórica antiga e ensinava tudo para o cara. Então, ele falou: comecei a
entender onde Lincoln aprendeu a escrever. Na hora que eu li isso, eu falei: o que é isto? Comecei a
procurar livros americanos de retórica do século XIX e do começo do século XX e foi um absoluto
deslumbramento. Então, eu entendi porque que nos Estados Unidos você tem um movimento literário
tão forte, no século XIX, nas regiões mais remotas.

Vocês assistiram o filme do John Ford, My darling Clementine, não assistiram? É um filme de faroeste.
Lá pelas tantas aparece na cidadezinha do oeste um grupo de atores que vai dar um espetáculo num
Saloon e o ator, sobe em cima da mesa e começa a declamar Shakespeare. Estavam lá todos os
pistoleiros admirando e alguns repetindo. O que é isso? Então eu fui verificar, fui pegar livros de
história cultural americana e vi que isso realmente existia: em cada cidade americana existia uma
atividade literária enorme, que começava nas casas, onde as mães liam os clássicos da poesia para as
crianças. Não era educação escolar, era educação doméstica. Tudo isto aí é um tesouro.

Movido por essa ideia, eu passei a investigar como é o negócio em outros países. Então, eu comecei a
pegar livros de ensino secundário francês de filosofia. Aí já eram livros mais ou menos uniformes
porque existe um programa oficial do ensino da filosofia desde o século XIX na França. Então, os
livros são estruturalmente muito parecidos. Começavam com a sociologia, depois a metodologia e
lógica, e então ética e metafísica – todos seguiam mais ou menos isso. Foi um negócio de altíssima
qualidade. Então, eu pensava assim: [02:40] quantos professores universitários de filosofia no Brasil
sabem essas coisas? São capazes de discuti-las? Dominam isto? Aquilo tinha um lado disciplinar, afinal
de contas era um ensino para crianças: tinha exame e tinham que passar no exame. Não era ensino
universitário. Quando os caras chegavam na universidade, eles já sabiam aquilo. Isso faz uma diferença
brutal. Então, depois eu li o seguinte: quanto teve o concurso para provimento de cátedras de filosofia
no Brasil, a primeira cátedra que foi na USP, o sujeito que ganhou o concurso era o João Cruz Costa e
este usava no seu ensino o Manual de Filosofia do Armand Cuvillier, que era um livro para a escola
secundária, e aquele era o chefe da Filosofia da USP. Então, eu falei: isto aqui está tudo perdido porque
a Universidade é uma imitação do Ginásio francês.

Então, vocês entendem porque eu me mantive tão longe desta instituição? Eu tenho de ficar fora porque
eu quero um verdadeiro ensino universitário. Como não existe, eu vou ter de copiar de onde tem e me
cercar dos elementos necessários. Quando falhava – quando eu não encontrava os elementos –, então,
resta a última esperança: você procura alguém que sabe e pergunta. Isso quer dizer que eu passei a
minha vida incomodando pessoas importantes para tirar dúvidas pessoais de estudo. Não as
incomodava tanto quanto as pessoas incomodam a mim hoje.
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Quando eu ia fazer alguma pergunta, eu estudava algo do cara para formular minhas perguntas de
maneira que já tivesse um certo interesse para ele e que eu pudesse aproveitar, ao máximo, dois
minutos de informação que o cara me desse. Eu não ia escrever, por exemplo, para o Martin Lings e
perguntar que livros eu devo ler. Eu não vou fazer isso. As pessoas fazem isso comigo. Elas não sabem
que isso é falta de educação, estão inocentes, de certo modo. Subjetivamente, é inocente, mas,
objetivamente, é sacanagem. Eu vou perguntar ao cara algo que só ele saiba, que seja difícil de saber
em outro lugar e que seja pertinente ao que ele está fazendo.

Eu tive muitos conselheiros ao longo da vida – a maior parte eu nunca vi, só conheci por carta –, mas
isto é a última esperança. Então, você pode fazer, também, a sua lista de consultores. É importante ter
isso, mas é importante não gastar os consultores com perguntas que você mesmo poderia responder ou
que não precisa uma pessoa de grosso calibre para responder, mas para mim as pessoas mandam
pergunta assim: o que é a psicanálise de Freud? Isso é pergunta simples, eu posso responder em três
linhas. Ou o que é que você acha de Isaac Newton?

As perguntas são disformes e revelam o caos cultural brasileiro. Fazer perguntas para pessoas mais
experientes é uma coisa normal no mundo inteiro – sempre foi –, mas não saber que perguntas você
deve fazer, fazer perguntas elementares, é coisa de ensino ginasial. Por exemplo, escrever uma carta
para Albert Einstein perguntando o que é um paralelogramo de forças ou o que são coordenadas
cartesianas. Não é bonito isso aí? Isso acontece no Brasil. É a deformação da mente, esse pessoal não
tem formação nenhuma, não tem educação alguma, eles não sabem onde estão. [02:45] Claro que eu não
vou ficar bravo com as pessoas. Na medida do possível, eu respondo; quando não dá, eu não respondo.

Aluno: Até agora eu percebi que o planejamento é essencial (…).

Olavo: O planejamento é essencial, o planejamento da sua vida intelectual.

Aluno: O que eu percebo, tanto no ambiente intelectual, até mesmo profissional, isso é extremamente
deficiente no Brasil e muitos acreditam que isso é porque os brasileiros não têm essa cultura do
planejamento, desde criança, desde quando se precisa de… o ensino de criança que o Senhor
comentou agora há pouco, a gente vê, você ensinar a criança fazer, usando gradações …você acha
que para transpor essa barreira, a única maneira seria tendo a vocação para você correr atrás?

Olavo: A única maneira de corrigir isso é fazer isso que nós estamos fazendo aqui. Para fazer alguma
coisa, você precisa, primeiro, ter o agente humano e os meios. O que é o agente humano? Como é que
você levante culturalmente o país? Formando uma intelectualidade superior, primeiro. Não adianta
você tentar fazer um plano para melhorar a educação nacional, dar uma boa educação para todas as
crianças do Brasil. Sim, mas quem vai dar a boa educação para as crianças do Brasil? Então, primeiro
você tem que criar os professores. Mas como é que nós vamos educar milhares de professores? Não dá.
Você tem que criar um público culto, mas como é que você cria um público culto?

Primeiro, precisa ter o núcleo de intelectuais. É exatamente isso que eu estou fazendo aqui, estou indo
pelo único caminho possível.

Aluno: Só formalizando um pouco mais a minha pergunta, formar esse mapa, isso é uma etapa do
planejamento (…)
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Olavo: Sem dúvida (…)

Aluno: (…) Como a gente está partindo, assim, de uma cultura deficiente de planejamento, para
superar essa barreira de criar esse planejamento, seria essencial ter a vocação [inaudível] (…)

Olavo: O que é a vocação? É você querer fazer alguma coisa. Você fazer o que você quer é difícil, mas
você fazer o que você não quer é muito mais difícil.

Eu não gosto muito da palavra vocação porque essa palavra aparece no contexto do protestantismo
alemão, é um chamado divino. Se você já começa assim, você já acredita que você está investido de
uma missão e eu acho que isso falsifica um pouco as coisas. Ninguém me chamou para esta missão.
Sou eu que estou querendo fazer isso e, se eu for aceito para fazer isso, é uma grande honra para mim
porque, qualquer que seja a tarefa, ela sempre estará acima da nossa capacidade, do nosso mérito e é
uma honra. Então, não é missão nenhuma, eu não sou um profeta. Deus não me chamou e disse: vai lá e
ensina qualquer coisa para eles. Pode ser que Deus tenha chamado, eu não sei, mas sei que eu quero
fazer.

No Brasil, esse problema da vocação é totalmente ignorado. As pessoas não se interessam em saber que
vocação você tem, o que é bom para você. Seu pai e sua mãe querem apenas que você arrume um
emprego, faça um concurso no Banco do Brasil, arrume uma sinecura, arrume um lugar de assessor do
MST, qualquer coisa lá para quebrar o seu galho, uma verba estatal. A coisa está muito no nível
primário da mera sobrevivência. A preocupação com a sobrevivência é grande no Brasil, inclusive entre
as classes ricas. Os ricos têm muito medo de ficar pobres no Brasil, eles não têm segurança de si, então,
às vezes, continuam raciocinando como pobres depois de ficarem muito ricos. Então, não adiantou
nada. É por isso que não tem classe dominante no Brasil, só tem classe rica: eles estão ricos, mas se
sentem desamparados, pobrezinhos e com medo em vez de falar grosso, como seria o normal. Isso quer
dizer que praticamente todo mundo no Brasil está fora do lugar. Você pode dizer que existe uma
tragédia vocacional brasileira, mesmo.

Segundo, a ideia de plano de vida [02:50] simplesmente não existe. Aqui nos Estados Unidos o sujeito é
obrigado a ter um plano de vida, por quê? Porque, quando o filho dele nasce – não, antes de nascer, a
mulher está grávida –, ele já começa a pensar: eu tenho que guardar dinheiro para a educação
universitária dele. Tem aqui um monte de planos, cada Banco tem um plano: aqui uma poupança para
você educar seu filho. Os caras guardam dinheiro durante vinte anos. Então, tem que ter um plano de
vida. No Brasil não. Durante a maior parte da existência das últimas gerações do Brasil não era
possível fazer um plano de vida porque tinha um treco chamado inflação.

Inflação significa que você não sabe quanto você vai ganhar no fim do mês. Então, como é que você
vai fazer plano do que quer que seja? Você se acostuma a viver só no dia a dia, vive de quebrar galho. E
se você vive de quebrar galho, então você desenvolve o tipo daquela personalidade plástica e maleável
que se adapta a todas as situações e que diz sim senhor para todo mundo, beija a mão. Você se
acostumou a viver no nível da mera sobrevivência. Quando eu percebi isso, eu falei: eu tenho que sair
disto, então, o que é que eu vou fazer? Ou eu ganho um montão de dinheiro e me livro do medo de ficar
pobre para sempre – mas isso não é garantido porque eu vejo que os ricos também estão com medo;
nada me garante que eu não vou passar a mesma coisa – ou eu perco o medo já, dizendo: se eu ficar
pobre, não vai fazer a menor diferença.

Eu tive essa grata satisfação de poder participar de todas as classes sociais: teve época que eu tive
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muito dinheiro, teve época que eu não tive nada. Eu aprendi a continuar tranquilo, impávido colosso no
meio disso aí. Isto é uma coisa que eu sugiro que vocês façam. Não se preocupar com dinheiro, jamais,
nunca. Se você precisa do dinheiro, você precisa fazer algo para ganhar o dinheiro, mas qualquer
tonalidade emocional que você põe na coisa só vai atrapalhar. O dinheiro é uma equação matemática:
débito e crédito. Como é que você vai se emocionar com uma porcaria dessa? E o pior que é sempre
emoção negativa porque quando não tem dinheiro, você está deprimido porque não tem dinheiro;
quando ganha dinheiro, você está deprimido porque está com medo de perder. A gente nunca tem uma
satisfação com essa porcaria? Você vai ter satisfação quando entender que o dinheiro é um problema
matemático que deve ser resolvido matematicamente: se eu preciso de dinheiro, então eu preciso fazer
algo para ganhar o dinheiro, o que eu vou fazer para ganhar o dinheiro? Por exemplo, você precisa
dedicar um tempo da sua vida para você fazer dinheiro. Complicou tudo, eu perdi meu emprego, estou
com um monte de dívida, as crianças estão chorando, querendo leite. O que vou fazer? Eu vou parar
tudo e vou ganhar dinheiro. Tem algum problema isso? Paro até meus estudos durante seis meses. Por
quê? Porque isto vai te dar um conhecimento real do funcionamento da sociedade. Como é que você
faz para levantar-se de uma situação econômica quando tudo falhou? Quais são os recursos que você
têm? O primeiro recurso é o seguinte: você tem que ter uma rede de amigos; se não tiver, você está
lascado. Segundo, você precisa convencer os seus amigos a te ajudarem: ou o sujeito te empresta um
dinheiro, arruma um emprego ou tem uma ideia para você, porque sozinho ninguém sai dessa encrenca.
Quantas pessoas vocês não conhecem no Brasil que o pai e a mãe têm dinheiro e dizem: eu não quero
dinheiro da minha família. Você conhece uma coisa mais imbecil do que essa? O dinheiro da sua
família é necessariamente seu, por lei. Ou aquele cara que é rico, mas ele diz: não, meu filho tem que
arrumar um emprego e ganhar o dinheiro por si mesmo [02:55]. Sim, ele vai tomar o emprego do pobre,
que sacanagem. Em vez de dar o dinheiro para ele, você faz ele ocupar a vaga que poderia ser de um
pobre. É uma ideia negativa.

Tudo isso aí são reações emocionais. O dinheiro no Brasil é muito rodeado de emoções negativas, é
muito fetichista e para uma vida de estudos isso aí é letal. Se você ficou sem dinheiro e tem que
levantar a situação econômica, ótimo, isso é muito bom, está na hora de provar que você é um homem e
que tem condições de sustentar uma família. É uma grande honra para você acontecer isso. Não tenha
medo disso não. E se tiver que interromper os estudos, sabe o que você faz? Você passa para marcha
lenta: eu não vou parar de estudar, só vou estudar um pouquinho, dez minutos por dia, mas todo o dia.
Se fizer os dez minutos por dia, você não perde o fio da meada.

Aristóteles dizia o seguinte “a inteligência deve ser exercida com moderação”. Você tem um tempo do
dia em que você produz, o resto é tempo perdido. Você sabe que na maior parte dos empregos é assim,
em um horário de oito horas, você vai trabalhar três, o resto você vai ensebar, tomar cafezinho,
conversar etc. Não é assim? Então, por que não fica logo as três? Você chega, fica aqui três horas,
trabalha desde a hora que chegou, até o último momento, cala a boca, não toma cafezinho, não fala com
ninguém, seria muito melhor não é? Isso foi uma experiência que o meu irmão teve quando veio
estudar aqui. Ele disse: “lá é incrível, as pessoas sentam na mesa e trabalham”. De repente, todas param
e vão tomar cafezinho. Tomam cafezinho, falam um pouquinho e voltam. No Brasil, não é assim, é
tudo misturado.

Claro que toda existência social tem um certo coeficiente de fingimento, mas, quando for fazer um
fingimento, você tem que fazê-lo consciente e com alguma finalidade prática razoável. Você não pode
viver num fingimento porque daí este se incorpora na estrutura da sua personalidade e você vira um
homem de papelão.
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O fingimento é, sobretudo, para os inimigos. Por exemplo, você puxar o saco de uma pessoa que não
merece nada. Maomé dizia o seguinte: “só é lícito lisonjear uma pessoa a quem seria lícito matar”. A
lisonja é uma arma criminosa, portanto, você só pode usá-la numa situação onde seria cabível um
homicídio justificado. Fora disso, não lisonjeie ninguém. A lisonja, o puxa-saquismo, no Brasil, é uma
instituição nacional, é um negócio compulsivo, as pessoas fazem isso até quando não tem proveito
nenhum. Eu tinha um amigo, já falecido, José Carlos Badavil, ele era amigo de infância do José Sarney,
e toda hora ia visitar o José Sarney lá no Palácio do Planalto e ele voltava desarvorado porque ele
falava o seguinte: o país inteiro estava querendo matar o Sarney e o Sarney dizia que era o presidente
mais popular desde Getúlio Vargas. A popularidade dele acho que era dois por cento, no máximo. O
José Carlos voltava desarvorado: o Sarney está no mundo da lua, mas é porque todo mundo fica
puxando o saco dele, eu estou lá conversando com ele, de repente chega um cara dizendo: senhor
presidente, eu fui na sua terra, eu trouxe de lá aquela manteiguinha de garrafa que o senhor adora. Os
puxa-sacos mantinham o cara num mundo de ilusão, na ilha da fantasia. Ele é o Presidente da
República e não sabe onde está. Ele acredita mesmo nisso. O José dizia que terminado o expediente,
eles saim do Palácio do Planalto [03:00], desciam aquela rampa com os guardas perfilados e ele o
cutucava e dizia: “quem diria, o seu amigo Zé está aqui”. O cara está embevecido porque chegou à
Presidência da República. Ele não conseguiu se acostumar com a ideia de que era Presidente da
República. Está bom, então quando você vai começar a exercer essa porcaria?

No Brasil, tudo tem muita tonalidade emocional complicada, códigos subjetivos, você não sabe se está
agradando ou desagradando as pessoas, todo mundo fica olhando para a cara do outro: será que eu
estou agradando? Você não sabe, mas o outro também não sabe se ele gosta de você ou não. É muita
desconfiança, é um ambiente, psicologicamente, muito complicado e o pessoal gasta muita energia
nisso.

Para darem certo nesse negócio de vida intelectual, vocês têm que se desvencilhar disso logo. Vocês
têm de dizer: vou escolher as pessoas que eu quero que gostem de mim; as outras eu não quero saber, é
melhor não me informar. Também não se submeter muito ao julgamento das pessoas. Escolhe as
pessoas que são capacitadas para julgar você e pergunta para elas se o que você está fazendo é certo ou
errado; os outros que se danem. Além disso, tem um treco que chama Os Dez Mandamentos, que não
falha. Se você não sabe o que fazer, cumpre os Dez Mandamentos. Nunca vai dar errado. Evite dramas,
perguntas existenciais sem solução. Se a coisa complicou muito, quer dizer que não tem importância.
Tenta reservar a sua vida emocional para aquilo que tem real importância, real valor para você, para
pessoas que você realmente ama. Não são tantas assim, são poucas. Então, eu digo: eu vou limpar a
minha relação com essas pessoas até ficar tudo translúcido, tudo claro. E os outros? Os outros podem
pensar de mim o que quiserem. Não vão me dar dinheiro, não vão me arrumar emprego, não vão me
fazer um favor, não vão fazer nada. O que importa o que vão pensar de mim? E quando você decidir
puxar saco de uma pessoa, veja aquelas da qual você pode puxar saco sinceramente, aquelas que você
pode elogiar com sinceridade. Eu não regateio elogios às pessoas, inclusive pessoas que me ajudaram
muito. Não é lisonja, é uma coisa verdadeira.

No Brasil, todo mundo quer ter uma opinião moral sobre as pessoas, se o sujeito é bom ou é mau. Para
quê? Você é Deus no Juízo final? É você que vai julgar ele? Não. Então para que você tem que ter uma
opinião? Se o sujeito foi bom para você, diga isso: para mim, ele é bom. Objetivamente, eu não sei.
Isso é problema de Deus.

Aluno: Para efeito de controle de resultado por meio de estudo universitário… MIT, Oxford, Harvard,
Cambridge (…).
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Olavo: Aí você vai ter que procurar dentro daquela área que você está estudando, que te interessa. Você
descobrirá quais são os trabalhos melhores e, então, saberá de onde aquilo saiu. Não é questão de você
dizer tal ou qual centro merece atenção. Não, você vai pelas pessoas e pelos estudos produzidos,
também para você controlar o status quaestionis. [02:25].

Como é que você vai saber o status quaestionis de uma questão em particular se você não tem a medida
geral do universo da alta cultura? Não consegue. Certas coisas que podem lhe parecer terrivelmente
importantes de um ponto de vista ultraespecializado, quando você vai ver, culturalmente, aquilo não
tem consequência alguma. Por exemplo, achei muita engraçada aquela discussão que apareceu com o
Júlio Lemos e o Adriano Correia, os caras muito preocupados: “(…) aqui a gente precisa ter uma
preocupação com a tradução, citação corretíssima dos textos etc. porque essas coisas estão
continuamente em discussão, até hoje tem dúvida sobre a interpretação de tal ou qual texto de
Aristóteles”. Mas se tem dúvida e se não há consenso, como é que você vai falar de uma tradução
exata? É totalmente contraditório. Tem textos antigos, cuja interpretação está em discussão há 2400
anos e sou eu que tenho que dar – se eu vou traduzir aquilo, eu tenho que dar – a tradução exata? Não é
a tradução exata, a tradução é meramente sugestiva porque a coisa vai continuar em discussão. O que
você tem que ter é a consciência do problema, sabendo que aquilo que você está falando não é uma
certeza absoluta porque o próprio texto tem uma margem de elasticidade na sua interpretação. Você tem
de saber que, se alguém descobriu alguma coisa, amanhã pode vir outro que descobrirá e impugnará
isso completamente, então não adianta você querer ter certeza absoluta, você tem que ter é a
consciência das contradições, dificuldades e obscuridades das coisas. Fazer uma apologia da exatidão e,
ao mesmo tempo, dizer que as coisas continuam em discussão não faz sentido. Exatidão é aquilo que
não tem mais discussão, 2+2=4, faz muito tempo que ninguém discute isso. Um quadrado tem quatro
lados.

Mas o que que quer dizer TÒÕÀ em Aristóteles? Os caras escreveram volumes e volumes para discutir
isso aí. Naturalmente, em filosofia acontece isso: qualquer termo que o sujeito está usando não
expressa apenas um significado dicionarizado, mas toda uma concepção que ele tem, a qual, por sua
vez, depende de a que outra concepção ele está respondendo. Então, para saber uma palavrinha, você
precisa ler um monte de livros e, mesmo assim, não terá certeza. O sujeito está fazendo uma apologia
da precisão nas citações e traduções no momento em que aquilo mesmo que ele está dizendo é
completamente impreciso. O que é isso aí? É uma deformidade mental.

A ideia de precisão é um conceito idealizado, é um ídolo, não é uma realidade que o cara possa praticar.
Isso aí é o resultado da formação universitária brasileira. O cara está falando em filologia grega e
latina, mas ele não domina a língua portuguesa. Como é possível isso? Que raio de filólogo é esse? Um
filólogo é um cara que domina a língua, não apenas para o seu uso – como um escritor domina apenas
para o seu uso –, mas ele domina o uso e o fundamento científico do uso. Um filólogo tem que ser um
superescritor, por assim dizer. Como é que conseguem produzir este tipo de coisa na Universidade
brasileira?

Você entende por que esse pessoal é tão ciumento e tão inseguro, e por que tem tanto espírito de
autodefesa corporativa. Porque são pessoas que não tem segurança íntima nenhuma, é tudo homem de
papelão, vivendo de palhaçada, de fingimento, então, você tem de se defender. É que nem o Obama no
debate de ontem, vocês viram? Está lá um cara dizendo: está aqui um plano de Governo, é isso assim e
assim; e tem o outro querendo só se defender, livrar a própria cara. A diferença é brutal [03:10] porque o
Romney está falando de alguma coisa e o Obama, no fim das contas, está falando apenas da imagem
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que ele quer manter. Diziam que o Romney passou em cima dele como um trator. É claro, porque o
Romney está pensando em um problema e ele (Obama) está pensando em dois, e isso é difícil.

O Romney não tinha imagem alguma a defender, ele tem que defender o seu projeto de Governo; e o
outro tem que defender, na verdade, três coisas: tem que defender um governo fracassado, um projeto e
a imagem dele mesmo. Aí é muito difícil, ele vai se atrapalhar. O cara não tem objetividade na ação e,
se você vive de fingimento, então você vai ser sempre assim: o fingimento funciona durante algum
tempo, mas depois começa a falhar porque se torna complicado. É isso que dizia o Gurdjieff: “ninguém
é inteligente o suficiente para ser um mentiroso eficaz”. Chega uma hora que vai falhar. Quando você
se baseia na verdade, não precisa ter tudo na cabeça porque está na realidade, o mundo está aí. O
mentiroso precisa guardar tudo na cabeça. Faz isso durante algum tempo, mas depois começa a “vazar
pelo ladrão”. Isso quer dizer que mesmo que o Obama seja reeleito, ele está ferrado porque ele está
destruído pessoalmente, é a imagem do sofrimento, da incerteza, do fracasso, é uma coisa horrível. O
cara envelheceu vinte anos em quatro. Isso aqui é um personagem, mas no Brasil é endêmico, todo
mundo é assim.

São impedimentos psicológicos da vida intelectual e sem se isolar dessas coisas, você não vai conseguir
nada. O isolamento é puramente psicológico. Se você for fazer um isolamento real e dizer: “aqui eu
vou ganhar um montão de dinheiro, construo aqui uma fortaleza e só deixo entrar aqui pessoas
inteligentes, bonitas, simpáticas, minhas amigas etc”. Você vai viver com medo. Agora,
psicologicamente? Eu posso estar aqui, pobre, pelado, solto no meio da rua, não quero nem saber. Você
acredita em Deus? Então, faça dele o seu único juiz e nem mesmo juiz porque tem uma oração que
você pede para Jesus não ser o seu juiz, mas ser o salvador, você fala “não quero nem que você me
julgue, nem você, quanto mais os outros”. O supremo juiz do Universo não está interessado em te
julgar, ele está interessado em encontrar uma desculpa para te salvar, então você não pode respeitar
ninguém abaixo dele. Eu sempre parto do seguinte princípio: eu acho que Deus é mais inteligente do
que eu. Acho que não vou errar nisso aí. Então, aquilo que eu entendo, Deus também entende e ele
entende mais. Até hoje não houve um caso em que esse critério falhasse. Se eu entendo um negócio
com perfeita clareza, então Deus sabe isso e sabe mais do que isso, não menos.

A vida religiosa das pessoas no Brasil também é um bicho de sete cabeças. São só sofrimento, horrores,
remorsos, acusações, é ficar fiscalizando os outros para ver se eles pecaram. Dá muito trabalho isso. Na
prece de Fátima, você não pede “levar as almas todas para o céu, socorrei, principalmente, aquelas que
mais precisarem”? Aquelas que mais precisarem são as piores de todos, não é isso? [03:15] O que você
quer para essas pessoas? Você quer que elas vão para o céu. O que você pode fazer para elas irem para
o céu? Você só pode orar por elas, não dá para fazer mais nada. Você não vai corrigi-las, não vai sair
com a varinha de marmelo, botando elas para andar na linha porque você também não sabe qual é a
linha.

É curioso que tudo isto aí é o miolo do cristianismo. Isso simplifica enormemente a vida. Mas, também,
é aquilo que eu digo, vão na igreja, confessem, comunguem e saiam correndo. Não fale com o padre. O
padre vai botar um monte de minhoca na sua cabeça. E, às vezes, o cara fala: “Olavo falou tal coisa e o
padre falou outra”. O padre tem a autoridade da igreja, só que é o seguinte: ele sabe fazer o que eu
estou fazendo? Ele sabe resolver o problema que eu estou resolvendo? Não. Então, nisto aqui ele não
tem autoridade nenhuma.

Autoridade, por definição, é superior a você, não inferior. Você não pode esquecer que a autoridade
formal, oficial de que um sujeito dispõe, não corresponde, necessariamente, à autoridade real da pessoa
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dele. Isso quer dizer que ela só funciona para fins rituais, não para a vida prática humana. O padre pode
tomar a sua confissão, pode te absolver. Ele pode te aconselhar? Em geral, não. Porque isso não
depende da doutrina, o conselho não decorre da doutrina como se fosse uma coisa lógica. Ele vai ter
que usar a intuição dele e, frequentemente, a intuição vai falhar. Para repetir a doutrina, eu não preciso
do padre, eu leio a doutrina.

Outra coisa: você pode buscar um aconselhamento, uma coisa assim? Se você tiver uma neurose,
problema psicológico grave, você pode e deve. Daí você não vem falar comigo porque eu não sou
psicoterapeuta e não quero ser. Mas, fora disso, não peça conselho para mais ninguém. Eu vou te passar
aqui as técnicas, dicas etc. e você vai se virar com isso. Isso é tudo que você tem. Não precisa de mais
nada, não precisa de um guiamento, de um chefe porque nem eu estou te guiando. Eu estou apenas
dando instrumentos na sua mão e não posso fazer mais do que isso. Se pudesse fazer mais do que isso,
eu precisaria introduzir nestes cursos e no Seminário de Filosofia um elemento disciplinar, que eu já
expliquei para vocês que não funciona nestas coisas.

Você não vai encontrar nenhum grande ensinamento, nenhum grande modelo de florescimento
intelectual baseado na disciplina. É o que a gente estava conversando ontem com o Silvio: aquele grupo
do Marx Weber é apenas um grupo de amigos, que sentavam, abriam uma garrafa de vinho, ficavam
falando, não tinha disciplina nenhuma, não tinha chefe. É assim que se faz. No Rio de Janeiro, eu fiz
com alunos meus uma pesquisa sobre os intelectuais que entraram em ação, que entraram no cenário
brasileiro nos anos 30, que foi uma época de um brilho excepcional. Sabendo que não existia ensino
universitário nem coisa nenhuma, nós perguntamos para eles: como vocês aprenderam? A resposta era
unânime: contatos pessoais, amizades. O sujeito saía do interior, ia para o Rio de Janeiro, conhecia
escritores, artistas mais qualificados, fazia amizades com os caras, participava das conversas e ia
aprendendo. Sabia comparar aquilo que ele estava fazendo com o que o outro estava fazendo e manter
o nível. Todos deram a mesma resposta: o círculo de contatos pessoais é a base do aprendizado. Daí eu
vi que isto era norma em qualquer época onde havia um florescimento intelectual [03:20]. Realmente, não
é o ensino formal que vai dar isto: é o elemento a mais que tem.

Aqui nós não podemos nem ser uma escola no sentido disciplinar da coisa e também não podemos ser
um círculo de amigos, apenas. Nós temos que ser uma coisa intermediária. Não podemos ser um
círculo de amigos, por quê? Porque vocês não têm o meu nível de conhecimento e de experiência e
estão separados de mim pelo fator idade. Eu tenho, no mínimo, trinta anos a mais do que vocês. Então,
não dá, não é a convivência igual, por assim dizer, mas, também, não é uma hierarquia disciplinar. Nós
temos que fazer um meio a meio, uma tensão e eu ainda estou aprendendo como é que se administra
isso, cada dia aprendo mais um pouquinho.

Um intercâmbio de mesmo nível, no Brasil, eu só tive com o Bruno Tolentino, não tive com mais
ninguém; em outros lugares eu tive com outras pessoas. Ali a gente aprendia com o outro. Era uma
coisa maravilhosa. Cada vez que conversava a gente saía sabendo mil coisas a mais, mas ninguém
estava ensinando para ninguém, era uma troca e garanto: isto funciona muito mais, mas para isso você
precisa ter um nível mais ou menos uniforme. Eu imagino que círculos de intelectuais desse tipo nós
podemos gerar a partir deste curso.

Uma coisa fundamental: a atividade para a qual vocês estão se preparando é pública, não é privada.
Portanto, se vocês não estão aptos ou qualificados e não de sentem à vontade para ter um personagem
público, para falar, por assim dizer, para um País, então desista. Note bem, ocupar um lugar no debate
público não deve ser um objetivo de vida, mas é uma obrigação, que vai se impor para você num certo
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momento. Se é um objetivo de vida, então você já virou um carreirista, o que você quer é brilhar,
aparecer etc. Não, a coisa não é assim: você vai ser obrigado a aparecer num certo momento, por quê?
Não por que você precisa disso, mas porque o País precisa disso. Não é para ter pressa de fazer isso,
mas, num certo momento, isso vai acontecer. Suponha, por exemplo, que você, ao longo desse curso,
no final dele, produza um belo trabalho sobre isso, sobre aquilo e que seja publicado. Você já ocupará
um lugar na cultura, querendo ou não. E aí você pode, talvez, dar aula, conferência, entrevista etc.,
talvez possa ajudar muita gente com isso. Eu tenho na minha cabeça uma lista de temas fundamentais
para o Brasil que nunca vou ter tempo de resolver pessoalmente. Eu, às vezes, nas aulas, explico
alguma coisa: tem tal coisa assim e assim, ninguém sabe nada, precisa saber etc. Eu nunca fiz uma lista
explícita, mas eu vou fazer. Até o fim desse curso eu não terei isso, mas colocarei isso no Seminário de
Filosofia.

Então, por hoje acabou. Até amanhã. Muito obrigado. Não façam perguntas no intervalo, nem depois da
aula.

Transcrição: Diego Fernandes


Revisão: Diego Fernandes e Silvio Sandro [silviosiandro@gmail.com].

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