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Construção de conhecimento,

Ciência e senso comum

Telmo H. Caria

Referência para citação:


Caria, Telmo H. (2019), “Construção de conhecimento, Ciência e senso comum”, Caderno de textos
didáticos de apoio às aulas de Introdução à Epistemologia das Ciências Sociais (parte 1). Vila Real,
Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro (UTAD-Portugal): edição do autor [versão reformulada
mais recente, Julho 2019]

Ao longo dos anos em que sou docente de Sociologia e Antropologia na UTAD, produzi muitos textos com
finalidades didáticos de apoio às aulas, que geralmente denomino de Textos de Apontamentos (TA). Muitos
destes textos foram escritos e reescritos ao longo do tempo, acompanhando de perto o desenvolvimento da
minha reflexão teórica e metodológica em Ciências Sociais. Entretanto, alguns destes textos com o tempo e uso
repetido em vários cursos começaram a ganhar um valor mais generalista e mais transversal a toda a minha
atividade docente, tendo ao mesmo tempo começado a sofrer menos reformulações. Assim, na falta de tempo
para, até ao momento, escrever um livro de reflexão sobre a minha experiência de docente universitário de mais
de 30 anos, decidi tornar públicos alguns destes TA, esperando que tenham valor didático e pedagógico para
outros, em especial docentes e estudantes universitários.
No cimo da primeira página do TA que se segue encontra-se informação sobre o curso em que este texto foi
usado pela última vez.

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Curso de Licenciatura em SERVIÇO SOCIAL Texto de
Unidade Curricular de Introdução às Ciências Sociais apontamentos nº 1
DOCENTE: TELMO HUMBERTO L. CARIA [TA1]

1. Construir conhecimento

Quando mostramos e dizemos que conhecemos e sabemos algo, isso implica associarmos
ideias e palavras a coisas, acções e experiências, isto é, associarmos ideias a algo que
podemos dizer que existe porque ocorre independentemente da vontade e da
subjectividade de cada pessoa: não é apenas fruto da imaginação, da opinião, da vontade,
do desejo e do sonho de cada sujeito.

Coisas, acções e experiências existem (são objectivas!) na medida em que podem ser
observados-ouvidos por outros (incluindo a observação de sentimentos e emoções
colectivas de medo, surpresa, dúvida, identificação, hostilidade, desconfiança,
solidariedade, etc.). Ao que existe e é observado-ouvido (factos e fenómenos objectivos)
associamos ideias e palavras (que dão significado a coisas, acções e experiências), e
então, nesse momento, podemos dizer que construímos conhecimento ou que temos
conhecimento sobre algo: coisas/acções/experiências + ideias/palavras/imagens
mentais=conhecimento

Mais especificamente, para associamos factos a ideias é preciso que percepcionemos


(identifiquemos/seleccionemos) os aspectos que têm algum significado social e que esse
significado seja reconhecido por outros, através da linguagem humana, como algo comum e
com significado para todos. A nossa percepção sobre as coisas-acções-experiências está
dependente das categorias de linguagem (mesa, pobre, cadeira, carro, árvore, etc.) e dos
operadores lógicos de classificação e apreciação (igual/diferente, maior/menor, melhor/pior,
feio/bonito, familiar/estranho e/ou, importante/irrelevante, etc) em que fomos socializados
pela cultura, mesmo quando nos referimos aos fenómenos da natureza. Aquilo que
percepcionamos não é, portanto, a realidade tal qual ela é, porque supõe uma selecção de
alguns aspectos considerados mais relevante pela cultura.

A espécie humana é capaz de fazer esta construção de um modo automático (depois de


aprendida pela socialização numa dada cultura), sem que tenha que ter consciência que
está a construir conhecimento no acto em que percepciona e reconhece algo e usa
linguagem para o expressar com outros. Assim, ainda que a percepção e a linguagem
sejam usadas individualmente e subjectivamente, para que haja conhecimento elas têm que
ser partilhadas e validadas com outros humanos: o conhecimento é uma construção
intersubjectiva e social porque resulta de um acordo não consciente entre os indivíduos

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sobre a que se deve dar atenção (ser observado, ser ouvido, ser sentido, etc) para que as
coisas-ações-emoções tenham significado na vida social, isto é, estarem associadas a
ideias (linguagem, palavras e imagens mentais) que são reconhecidas por todos como
sendo a realidade.

2. Tipos de conhecimento

Existem vários tipos de conhecimento porque o modo como se percepciona e se usa a


linguagem para construir conhecimento não é homogéneo, nem consistente. Uma forma
das formas de conseguir distinguir vários tipos de conhecimento está em saber qual é a
pergunta a que implicitamente queremos responder quando associamos factos-percepções-
linguagem-ideias?

Simplificando o assunto, apenas para efeitos didácticos nesta Unidade Curricular,


poderemos dizer que conforme diversos aspectos da realidade a que se quiser dar mais
atenção, podemos estar em presença de diferentes formas de conhecer/tipos de
conhecimento. A atenção que damos a diferentes aspectos da realidade, para distinguir
diferentes tipos de conhecimento, pode ser operacionalizado em quatro tipos de perguntas,
a saber:
a-O que é isto? O que se quer dizer com isso?
b-Porque é que isto é (não é) importante (deve) existir, acontecer e ser comunicado?
c-Porque é que isto (não) existe (acontece e é comunicado) nestas condições (neste
contexto)?
d-Como é que fazes? Como é que isso funciona para obter o resultado desejado?

Duas das perguntas implicam a atribuição de razões para a construção de conhecimento,


pretendendo-se em primeiro lugar explicar aquilo que existe ou que seria importante e
possível passar a existir (ou ser mais frequente do que aquilo que ocorre). As duas outras
perguntas implicam um conhecimento que dá como óbvio e garantido a razão para a
existência das coisas-acções-experiência e que por isso visa principalmente construir
conhecimento comum para a vida do dia-a-dia, designando o nome das coisas ou como
funcionar-operar com elas.

Deste modo, cada uma das perguntas corresponde a formas diversas de construção de
conhecimento, isto é, a diferentes tipos de conhecimento, que se podem ou não associar:
científico, técnico e/ou tecnológico, filosófico e conhecimento quotidiano experiencial
(também designado de senso comum). Esta listagem de tipos de conhecimento não esgota
os tipos de conhecimento que poderemos considerar. Por exemplo, com base em outras

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perguntas também poderemos falar de conhecimento artístico, de conhecimento religioso e
de conhecimento profissional, etc.

Em conclusão, todo o conhecimento tem por base algo real que pode ser observado, ouvido
ou comunicado (dada atenção) e por isso reconhecido por outras pessoas como algo que
ocorre e que, portanto, se pode dizer que existe ou pode passar a existir. Neste sentido
aquilo que é real e objectivo, independente da vontade e desejo de uma dada pessoa,
torna-se real na medida em que é intersubjectivo (é de diferentes pessoas-sujeitos): real
para todos os que observam, ouvem e sentem quando dão atenção aos (seleccionam os)
mesmos aspectos da realidade,

O que distingue a ciência de outras formas de conhecer não é a existência de objectividade


(coisas, acções e experiências que podem ser observadas e ouvidas com atenção), pois
todos os conhecimentos identificados com as perguntas têm uma base real e objectiva.
Como vimos, o que começa por distinguir ciência de outros tipos de conhecimento é o facto
de se quer saber de modo explícito (e não apenas por socialização numa dada cultura)
porquê de algo (coisas, acções e experiências que se duvida já conhecer),
independentemente da opinião que possamos ter sobre se aqueles factos são, mais ou
menos, importantes ou se deviam, ou não, ocorrer. É a existência destes três critérios-
princípios-características, quanto ao modo como se percepcionam os (se selecciona e dá
atenção aos) factos, isto é, ao modo como observamos-ouvimos a realidade, que permite
produzir ciência, distinguindo-a de outras formas de conhecer: porque é que algo existe
nestas condições, considerando estes factos?

E esta pergunta tanto se pode aplicar à explicação da sociedade (aos factos sociais) como
se pode aplicar à explicação da natureza (aos factos naturais-físicos).

3. Senso comum versus ciência

Na linguagem quotidiana de interacção social entre as pessoas-sujeitos comuns (senso


comum e conhecimento experiencial) não se reconhece normalmente esta dimensão
construtiva do conhecimento, porque na comunicação diária oral cria-se espontaneamente
um acordo/consenso de sentido que repousa sobre experiências sociais comuns, não
verbais, que levam as pessoas a perceberem o que o outro quer dizer, mesmo que a
linguagem utilizada seja ambíguas e confusa. Quando não existe uma actividade comum, o
conhecimento de senso comum usa categorias de linguagem mais gerais e mais abstractas
(tipificações), que remetem para os contextos gerais dos fenómenos de que se fala,
gerando na mente dos indivíduos imagens de objectos e de ambientes de que todos têm
alguma representação, ainda que parcial e indirecta, mas que não deixa de gerar consenso.

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Ao contrário, na linguagem científica, há a preocupação de se ser preciso, rigoroso e de se
duvidar do que se julga conhecer [ver TA3], e deste modo o simples acto de gerar acordo-
consenso na comunicação oral não é suficiente para desenvolver um conhecimento
científico da realidade. Na ciência a selecção de características-critérios-propriedade-
qualidades nas coisas observadas e ouvidas, é transformada em metodologias de
investigação (formas sistemáticas e coerentes de recolher e analisar informação) e o seu
resultado final é registado e fixado através do escrito, tornando-se independente da
comunicação oral.

É claro que uma parte dos conhecimentos científicos escritos são objecto de comunicação
oral dentro da própria comunidade científica (entre cientistas) e deste modo também podem
ser transformados em acordos e consensos orais intersubjectivos, agora apenas entre
cientistas e circunscritos ao conhecimento que se entende já ter sido provado e que,
portanto, sobre ele não incidem dúvidas-outras hipóteses, no momento. É este facto que
permite ensiná-lo no ensino superior e apresentá-lo nos manuais-textos das disciplinas
científicas como consensual, ainda que possa ser apenas transitório, isto é, ser
completamente verdadeiro apenas durante algumas décadas.

Em conclusão, podemos afirmar que o conhecimento experiencial, o senso comum, não


conhece, apenas reconhece, porque está orientado para a acção e para a comunicação
oral, privilegiando as certezas para agir e reproduzindo as tradições culturais nas
justificações que dá sobre o que se faz ou acontece. Pelo contrário, o conhecimento
científico ao reconhecer que a realidade é construída, e ao tomá-la como objecto
privilegiado de atenção, tem que admitir que aquilo que julgamos conhecer pode ser
apenas aparente, limitado ou incompleto. Deste modo, o conhecimento científico (na parte
sobre o qual não existe acordo intersubjectivo na comunidade científica) pode ser sempre
objecto de crítica, precisando para isso que se coloquem sobre ele novas hipóteses de
explicação, mesmo sobre as coisas banais e vulgares que parecem não carecer de
explicações científicas para o senso comum.

Sendo assim, poderemos dizer que o senso comum, em geral, não se opõe ao
conhecimento científico do social, pois ambos cumprem funções diferenciadas na
sociedade: um permite garantir convicção e certeza (mesmo com ambiguidades envolvidas)
naquilo que se faz e comunica oralmente no quotidiano (incluindo o ensino científico numa
aula). O outro permite introduzir de modo metódico a dúvida sobre o que se julga saber e
portanto pode melhor contribuir para ajudar a pensar mudanças no modo como se vê e age
a/na realidade: como se percepciona a realidade.

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4. A diferenciação das ciências como construção realizada pelos cientistas

Uma forma de exemplificar a ideia de que o conhecimento e mais especificamente o


conhecimento científico é uma construção da realidade realizada pelo pensamento humano
dos cientistas está no facto que dentro do universo das Ciências Físico-Naturais (CFN) que
estudam os fenómenos da vida e da natureza existirem várias disciplinas (por exemplo, as
mais conhecidas e consagradas, a Biologia, a Química, a Física, a Geologia, etc) que
estudam a mesma realidade de diferentes pontos de vista, dado que na natureza não existe
uma realidade química separada, de uma realidade biológica e de uma realidade física, etc.
A mesma ideia de construção da realidade por cada disciplina científica também se aplica
às Ciências Sociais (CS), pois existem várias disciplinas científicas que estudam as
sociedades humanas (por exemplo, as mais conhecidas e consagradas, a Sociologia, a
Antropologia, a História, a Economia, a Ciência Política, etc) sendo que aquilo que é
designado como realidade económica, realidade sociológica, realidade política, realidade
antropológica, etc, estão misturadas quando observamos/inquirimos a sociedade. Só
aparecem separados porque cada disciplina percepciona os factos e usa uma linguagem
diferenciada que permite descrever e explicar factos e hipóteses sobre o mundo com outros
olhos/códigos disciplinares.

Existem exemplos de disciplinas científicas que mostram que a própria diferença entre CFN
e CS não é assim tão evidente quanto pode parecer à primeira vista. Como prova a
Psicologia, a mente humana é em grande medida uma síntese entre biologia/natureza e
cultura/sociedade, e como prova a Geografia a descrição e a explicação das populações
humanas não pode esquecer as características físicas e culturais dos espaços e dos
territórios.

O efeito perverso que o desenvolvimento industrial e urbano trouxe para o equilíbrio da


natureza e o desenvolvimento sustentado da sociedade, mostra que a Ecologia, como
disciplina científica, terá que construir conhecimento sobre a articulação entre a natureza e
a sociedade de um modo a que seja possível assegurar a longo prazo a sobrevivência e o
desenvolvimento da espécie humana na Terra ao lado da sobrevivência e desenvolvimentos
de todas as outras formas de vida existentes neste planeta. Também aqui, portanto, a
distinção entre natureza e sociedade não é tão evidente quanto poderia parecer à primeira
vista.

5. O que faz a ciência e para que serve?


Para percebermos melhor o que é a ciência importa perguntar: quais são as coisas e os
objectos (factos e fenómenos que seleccionamos) que identificam a existência hoje de
ciência na sociedade? São:

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• um conjunto de pessoas que trabalham em universidades, laboratórios e institutos que
são designados e reconhecidos como cientistas;

• um conjunto de organizações (universidades, laboratórios, departamentos e institutos)


que organizam a sua actividade por disciplinas, para responder à pergunta: porque é
que isto existe? Ou, porque é que aquilo que julgávamos conhecer é/pode ser falso?

• um conjunto de revistas que publicam conhecimentos a partir de estudos, cujos textos


estão sujeitos à avaliação dos pares mais velhos reconhecidos como tendo dado
contributos científicos essenciais no passado;

• um conjunto de livros, ditos manuais, que divulgam o conhecimento científico que se


tem como válido, por ter/ ou pretender ter valor de verdade universal.

Se olharmos para o que os cientistas hoje fazem nestes lugares, podemos perceber que o
conhecimento científico tem principalmente em vista explicar para nos fazer colocar outras
hipóteses (duvidar primeiro e só depois provar) sobre o que pensamos conhecer: a
explicação em ciência sobre o porquê das coisas evidencia padrões e regularidades, mas
nunca é definitiva, nem absolutamente exacta, porque depende de probabilidades e de
adaptações-variações ambientais-contextuais.

A invenção tecnológica ou o estudo de uma estratégia para a solução de um problema são


actividades que aplicam e transformam conhecimento científico, mas não são a produção
de ciência. Formular e diagnosticar um problema, explicando a sua existência e
funcionamento, não é o mesmo que encontrar uma tecnologia ou uma solução para acabar
com o mesmo problema. A actividade científica que explica é fundamental para se poder
encontrar uma solução, mas a busca específica para encontrar uma solução corresponde
aos chamados estudos de ciência aplicada, isto é, investigação tecnológica e investigação
estratégica e de planeamento

Sendo assim, hoje, para o cidadão comum, a ciência deve ser entendida como um
conhecimento capaz de explicar/compreender melhor os factos que entende serem
problema para a vida humana - que antes ignorava ou que julgava já conhecer – e capaz de
o alertar para a necessidade de dar mais atenção a fenómenos, que já sendo seus
conhecidos, considere não poderem ser mudados, por serem demasiado comuns, banais e
irrelevantes, ou por serem, simplesmente, confundidos com outros.

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