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Princípios e Métodos da Autoeducação

OLAVO DE CARVALHO

Aula 03: Leitura, assimilação e meditação


03 de outubro de 2012

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

Então vamos lá, boa tarde ou boa noite a todos. Quando você vai começar construir uma casa, o que
você faz, você compra um tijolo e coloca no lugar, e espera para ver quando vai precisar do segundo
tijolo? Depois que você comprar o segundo tijolo, você se lembra que precisa de um saco de cimento?
Ninguém faz isso. E muito menos você começa a jogar os tijolos, a esmo, esperando que eles se
empilhem naturalmente; ao contrário, você faz um plano, faz um orçamento e reúne todos os materiais,
ou, pelo menos, assegura o fluxo de material segundo o ritmo da construção.
Eu não vejo por que em uma construção muito mais complicada, que é a da autoeducação, você
deveria proceder de maneira diferente. Quando você busca a educação em uma instituição, você supõe
que esse trabalho preliminar de planejamento e de coleta dos materiais já tenha sido feito por outras
pessoas. Essa expectativa, no entanto, falha; e você pode perceber que ela falha no instante em que
você testa os seus professores quanto a concepção de universidade, você vai ver que, em geral, eles
nunca pensaram no assunto.
Se o sujeito fez, por exemplo, um curso de direto, então ele seguiu todo o curso de direito, o curso de
direito, evidentemente, estava em uma faculdade de direito, dentro de uma universidade, mas ele nunca
parou um minuto para pensar o que é uma universidade, e por que ela é assim, e se aquela universidade
que ele está frequentando corresponde realmente às funções de universidade. Existe um imenso debate
sobre a função da universidade há séculos, existem alguns livros clássicos, algumas ideias
fundamentais que foram gerando as universidades ao longo do tempo. No entanto, ainda que você não
tenha interesse pela história desse debate, a ausência de interesse pela estrutura da universidade onde
você está, corresponde a você não querer saber qual é a estrada que você está percorrendo e aonde
aquilo vai terminar; e aqueles que frequentam ou que frequentaram a universidade, serão agora as
minhas testemunhas: quando alguém lhes falou disso na universidade? Nunca, tô certo? Então eles
nunca lhes falaram disso porque eles também não sabem isso, não sabem nada a respeito, nunca
pensaram no assunto e não se interessam pelo assunto. Isso é a mesma coisa de você dizer que a
educação universitária está deixada a esmo – mais ou menos como os tijolos que voam em todas as
direções, na expectativa de que eles se empilhem pela mera força da gravidade.
Então este curso foi concebido com a ideia de lhes dar um plano de estudos, pelo resto da sua vida, e
evidentemente, este plano se divide em duas partes: uma série de elementos estruturais ou permanentes,
que você vai ter que ter sempre em conta – são justamente esses que tivemos falando esses dias, e tem
mais alguns que vou mencionar depois – e, evidentemente, alguns elementos móveis, que estarão
sempre se renovando e que se constituem realmente de uma atividade permanente, de uma reciclagem
permanente.
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Quando as pessoas perguntam… por exemplo, eu recebo milhares de e-mails perguntando assim: “O
que eu devo ler?”. Essa pergunta, evidentemente, não pode ter resposta porque o primeiro capítulo da
autoeducação consiste justamente em você examinar esse problema, e você chegar a um plano do que
você deve ler pelos próximos dez ou vinte anos.

Então não se trata de você pegar os livros e lê-los, mas trata-se de você adquirir os critérios que lhe
permitam orientar-se dentro da bibliografia universal e decidir o que você deve ler. Como eu já
expliquei ontem, a primeira coisa é mapear o terreno, [00:05] não se trata absolutamente de um negócio
que se chamaria de adquirir cultura geral. Não, cultura geral são informações que você colhe a esmo, na
mídia ou ao fio de leituras escolhidas pelo mero gosto: “Gostei do título desse livro, vou lê-lo”; isso é
cultura geral. O que você tem que fazer é, antes de você se tornar um especialista em qualquer coisa,
você tem que adquirir uma primeira especialidade, que é a especialidade de informação cultural.
Normalmente você não precisaria fazer isso se a universidade desse isso pronto; e ela deveria fazer
isso, mas como ela não faz, então você vai ter que fazer. E aqueles que estão estudando à margem da
universidade precisam disso ainda mais. Isso quer dizer que o conceito de autoeducação que eu estou
dando aqui, serve tanto para o estudante universitário, quanto para aquilo que se chama erroneamente
autodidata.

A primeira etapa consiste…você vai ter que dedicar no mínimo um ano da sua vida a isto, e isso não
quer dizer que você não vai ler nenhum livro durante este ano, mas você vai ler muitos índices de
livros, muitas orelhas de livros, muitos verbetes de enciclopédia, às vezes, até muitos anúncios de
livros ou resenhas de livros, para você compor um mapeamento do terreno que lhe interessa. Esse
terreno deve ser, em um primeiro momento, o mais amplo possível, ou seja, você não deve se ater
àquela especialidade que lhe “interessa”, porque, pelo simples fato de que você ainda não tem
conhecimento dessa especialidade. Qualquer definição a respeito de um caminho especializado a seguir
é prematuro, ou seja, você precisa ter um mapeamento geral da coisa para depois você saber qual é o
caminho específico que você vai seguir.

Por outro lado, não é possível você adquirir informação geral sobre todos os setores do conhecimento.
Então você vai ter que, primeiro, delinear de maneira mais ampla possível, quais são as questões que
lhe interessa e quais são as disciplinas que tem algo a ver com isso, sem prejuízo de que você possa
mais tarde descobrir que não é bem assim e que você deveria ter estudado outra coisa.

Vamos começar por aceitar, a priori, essa distinção geral daquilo que se chama Ciências Humanas, não
é uma definição precisa, ninguém sabe exatamente o que seja Ciências Humanas – há uma discussão
enorme sobre isso – porém, vagamente, sem saber definir o que são Ciências Humanas, sem saber
esclarecer expressamente como ela se distingue de outras ciências, temos alguma ideia das coisas que
compõem as Ciências Humanas. Por exemplo, você sabe que a Mecânica Quântica não faz parte das
Ciências Humanas, e sabe que o Direto faz parte, a Economia faz parte, e assim por diante.

Então, supondo-se que o interesse da maioria esteja nessa área de Ciências Humanas, a primeira coisa
que você vai ter que fazer é mapear o terreno. Para mapear o terreno, os procedimentos são os
seguintes: primeiro, você vai ter que se munir de uma boa história de cada uma dessas disciplinas. Vai
pegar uma história da Economia, uma história da Geografia, uma história da Sociologia, uma história
da Ciência Política, uma história da Ciência do Direito e da Filosofia do Direito, e assim por diante.

Você não vai ler todos esses livros, mesmo porque se você ler, você vai esquecer depois de dez
minutos, porque é uma coleção de dados enorme; e você não vai conseguir, em um primeiro momento,
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articular uma coisa com a outra. Então esses livros não são para ser lidos, eles são para serem
consultados, para serem pesquisados. O que você vai pesquisar lá? A primeira coisa que você vai ter
que obter é uma cronologia dos autores e obras que marcaram as etapas do desenvolvimento de cada
uma dessas ciências. E nisso você vai fazer a divisão fundamental, que é a divisão entre as fontes
primárias e as fontes secundárias. O que são as fontes primárias? São os textos fundamentais que
marcaram a história do desenvolvimento daquela ciência. E o que são as fontes secundárias? São os
estudos a respeito.[00:10]
É claro que as fontes secundárias são em número enormemente maior do que as fontes primárias, por
exemplo, se você pegar as obras de Aristóteles, você pode fazer uma lista das obras de Aristóteles, mas
você não conseguirá fazer uma lista dos estudos de Aristóteles. Por quê? Porque eles são quatrocentos
mil, quinhentos mil, um milhão, um negócio que não acaba mais. Então nós vamos deixar a bibliografia
secundária para uma segunda etapa, nós vamos, em um primeiro momento, nos interessar somente
pelos livros fundamentais.

Os livros fundamentais são aqueles que os autores subsequentes consideraram fundamentais, são os
livros que os outros autores leram, por exemplo, você não vai encontrar um único filósofo que não
tenha lido René Descartes, mas você pode encontrar, por exemplo, um filósofo que não tenha lido
Jacques Derrida. Eu me lembro que o George Gusdorf – que é um excelente filósofo – quando
perguntaram se ele tinha lido Jacques Derrida, ele disse: “Eu estou esperando que seja traduzido para o
francês”. Então é possível você fazer uma carreira filosófica séria sem você ler o Jacques Derrida mas
você vai ter que passar por Aristóteles, por Santo Tomás de Aquino, por René Descartes etc.

Assim, interessa muitíssimo você ter a cronologia exata das obras fundamentais que marcaram esse
desenvolvimento, mas ainda, você precisa saber distinguir entre a mera dada de publicação – que é um
detalhe técnico, que está estampado no frontispício da primeira edição – e a data de difusão daquilo, ou
seja, quando aquele negócio se tornou socialmente importante. Por exemplo, nós sabemos que as
descobertas de Newton só adquiriram uma importância cultural maior quando Voltaire escreveu o livro
Os elementos da Filosofia de Newton, porque o livro de Newton era muito difícil de ler, precisava de
muita matemática e as pessoas tinham preguiça… mas Voltaire trocou a coisa em miúdos e
transformou aquilo em uma moda europeia.

Fazer a cronologia das obras principais de uma ciência é um negócio muito trabalhoso, mas vai render
frutos pelo resto da sua vida, a diferença que isto faz você não pode imaginar agora, mas você vai
perceber com o tempo. Uma coisa é você sair lendo livros “ah, eu li Nietzsche, eu li Hegel etc”; muito
bem, mas você não pode construir uma cultura assim. Uma das objeções que se faz ao autodidatismo é
precisamente que você não pode construir uma cultura na base de leituras aleatórias, mas o fato é que
todo o ensino universitário no Brasil é constituído de leituras aleatórias, escolhidas segundo a mera
preferência pessoal de professores que não sabem onde estão pisando.

Então, em oposição a isso, nós temos que fazer o quê? Nós temos que fazer a verdadeira educação
acadêmica, que não tem nada a ver com a aquisição de diplomas, cargos etc. Você não pode esquecer
que a “educação acadêmica” é menos um meio de adquirir conhecimento do que um meio de adquirir
uma licença para um exercício profissional; e a licença para o exercício profissional é conferida por
pessoas cujo domínio da matéria é altamente duvidoso. Então eu não estou aqui para resolver o
problema profissional de ninguém. Se o sujeito disser “Em que eu vou trabalhar? Como vou ganhar o
meu dinheiro?”, eu digo “olha, você se vira meu filho”.

Se você tiver alguma profissão não universitária, que você possa exercer sem ter que passar por esse
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sofrimento horrível de ficar cinco ou seis anos em uma universidade, então desejo-lhe boa sorte na sua
profissão. Se você por acaso precisa do diploma universitário para exercer a sua profissão, então você
trate de aguentar aquela coisa até adquirir o papel, e daí boa sorte na sua profissão. Eu estou aqui para
cuidar da sua educação, que não tem absolutamente nada a ver com a sua profissão. Licença para o
exercício profissional é na USP, é na PUC, não é comigo aqui. Eu não dou licença pra ninguém – aliás,
eu nem sei o nome da minha profissão, é um composto de várias coisas. Se me perguntam “O que você
faz? Qual é a sua profissão?”, eu digo “Não sei, tenho várias, mas essas várias constituem uma só”.
[00:15] Então eu estou fazendo a mesma coisa por vários canais profissionais diferentes. Assim eu devo
ser um gênio porque na definição do Ortega y Gasset “gênio é o sujeito que inventa a sua própria
profissão”. Ah bom, estou nessa, isso aí, sem dúvida eu fiz: a profissão que não tem nome e que se
chama Olavo de Carvalho.

Alguns de vocês terão que fazer a mesma coisa, vocês verão que para realizar aquilo que vocês querem,
não existe um canal profissional já aberto, e você vai ter que abrir um (com os cotovelos), outros ao
contrário, terão uma carreira mais fácil através de linhas já pré-determinadas com profissões que tem
nomes. Isso aí é um problema inteiramente seu. O que eu quero cuidar aqui, vamos dizer, é do
conteúdo da sua formação, é dos seus conhecimentos, da sua educação, e, sobretudo, da sua capacidade
de tomar posse da sua própria inteligência.

Nós podemos dizer que a inteligência humana não tem limites, nós podemos conhecer qualquer coisa, e
no entanto, a maior parte das pessoas ficam incomparavelmente abaixo do potencial humano. Você
pode ficar abaixo para exercer muitas profissões, você pode chegar à presidência da república sendo
apenas um pinguço idiota – como nós tivemos aí no poder durante oito anos. Você pode criar uma
carreira fictícia com documentos falsos – como fez o Barack Obama – e chegar na presidência da
república. Essas são amostras de que o sucesso profissional não tem nada a ver com a sua educação.

Também é possível que você seja um homem enormemente letrado, preparado, altissimamente
competente, mas que não receba o reconhecimento da massa de incompetentes, isso pode acontecer, e
aliás, até o contrário: quanto mais competente é o sujeito, menos eles desejam lhe dar uma
oportunidade, isso pode acontecer. Caso isso aconteça, não fique chorando, não fique esperando que lhe
deem a oportunidade, abra a oportunidade à cotoveladas. Agora, o sujeito ficar chorando por ele se
sentir discriminado, se sentir uma vítima do sistema, eu digo: não faça isso pois é uma coisa que destrói
a sua personalidade na raiz. O pessoal do nordeste tem um dito que diz “o bom cabrito não berra”.
Ficar chorando que você foi discriminado, que não lhe deram oportunidade… se não lhe deram
oportunidade, melhor; você não está devendo favor para ninguém, e você pode fazer as coisas do seu
próprio jeito.

Também do ponto de vista profissional, eu recomendo que você se atenha estritamente àquilo que você
quer fazer, porque a pior coisa é você dar certo na coisa errada, quer dizer, você decide fazer uma outra
coisa, que não corresponde a sua vocação, a sua ambição etc, e aquilo começa a dar certo e te encher de
dinheiro. Você vai chegar aos oitenta anos totalmente amargurado, achando que jogou a sua vida fora.
Isso também pode acontecer por um excesso de modéstia, isto é, o indivíduo não sabe exigir aquilo que
está à altura dos seus méritos.

Isso aconteceu, por exemplo, com o falecido Otto Maria Carpeaux. O Carpeaux era o único sujeito no
Brasil que tinha qualidade para ser reitor de uma universidade, ele sabia o que era uma universidade e
ele tinha recebido a melhor formação possível no século XX, em Viena; tanto na área de ciências
naturais, ele estudou Física, Química e Matemática, depois estudou Filosofia e História. Ele tinha uma
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imensa formação acadêmica, e quando ele chegou aqui, os brasileiros, incapazes de perceber com quem
eles estavam falando – porque a figura física do Carpeaux não impressionava muito, ele era um sujeito
gago; então chega um sujeito falando para você com um sotaque alemão e gago, é horrível. Assim o
primeiro emprego que arrumaram para ele foi de bibliotecário em uma biblioteca no interior do Paraná.
[00:20]

E ele ficou lá dois anos, não aguentou, e foi pedir socorro no Rio de Janeiro. Arrumou um emprego de
copydesk no Correio da Manhã onde ele permaneceu por vinte anos. Ele, de vez em quando, escrevia
uns artigos para o Correio da Manhã, mas no dia a dia, ele era um copydesk ou um redator de
editoriais, e nunca passou disso. Isso quer dizer que acima do Carpeaux tinha várias camadas de
medíocres que mandavam nele; e ele, apesar de tudo que fez, morreu amargurado, achando que tinha
jogado a vida fora. Porque para conservar aquele emprego, ele precisava agradar muitas pessoas que
estavam muito abaixo dele.

Então isso também pode acontecer, portanto eu nunca recomendo a modéstia: eu recomendo a
humildade mas não a modéstia. A humildade é perante Deus, a modéstia é perante pessoas que
frequentemente não merecem amarrar os seus sapatos. Por exemplo, professores medíocres que lhe
impõem besteiras na universidade, eu falo não, não aceitem isso, humilhem o cara uma vez, duas vezes,
três vezes, e ele lhe dará dez até o fim do curso. Isso eu digo por experiência, vários alunos meus já
experimentaram. “Ah, mas o meu professor fica lá me oprimindo, falando besteiras”, desmascare o
sujeito, humilhe-o na frente de todo mundo; “Ah, mas aí ele vai se voltar contra mim”. Ao contrário, aí
é o Maquiavel: “Mas vale ser temido do que ser amado”. Se ele ficar com medo de você, aí ele vai te
tratar bem até o fim do curso. Essa é a fórmula do sucesso universitário: humilhe todos e todos ficarão
com medo de você, e para que você fique quieto, eles lhe darão dez até o fim do curso.

Bom, mas tudo isso tem a ver com a sua carreira profissional, e as relações entre a sua educação e a sua
carreira profissional são sempre problemáticas e ambíguas, elas não são relações lógicas, tudo pode
acontecer. Você pode ter um sucesso enorme, pode ser que dê tudo errado, e às vezes você apostando na
coisa mais improvável, você acaba dando certo. Mas o fato é que eu inventei esse curso com a ideia de
vocês levarem a sério a ideia de um o plano de autoeducação. Então, evidentemente, para fazer um
plano de autoeducação, primeiro você precisa reunir os materiais que lhe permitam fazer esse plano.

Evidentemente, todas as ciências humanas têm, por sua própria natureza, uma índole histórica, ou seja,
elas são feitas de uma sucessão de debates. A mesma coisa também acontece, de maneira parecida, nas
ciências físicas; mas as ciências físicas e matemáticas têm uma qualidade peculiar, o entendimento das
suas teorias não requer o entendimento da história que as produziu. Por exemplo, você pode entender
toda a mecânica de Newton sem saber nada de onde ele tirou aquilo, quais eram as outras correntes de
ideias que existiam, ou seja, o conteúdo de uma teoria científica natural é destacável, até certo ponto,
da sua origem histórica. Quanto mais abstrata for a ciência, quanto mais o conteúdo dela for
matematizável, expresso em conceitos estáveis e com uma estrutura lógico-matemática, mais fácil é
você compreender a teoria “em si mesma”, independentemente da sua história. É claro que a
compreensão da história aprofundará o entendimento que você tem dessa teoria, porém não é
necessária desde o início.

Na verdade seria até impossível, por exemplo, se você quer estudar – voltando ao exemplo – a teoria de
Newton, não vai dar para você estudar a teoria de Newton e a história dela ao mesmo tempo, você vai
se confundir enormemente. Primeiro você vai ter que estudar aquela teoria em si mesmo como um
professor de física te ensina e depois, mais tarde, você vai estudar a história. Mas no que diz respeito às
teorias filosóficas, às teorias de ciência política, e as próprias obras históricas, não dá pra fazer esse
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isolamento porque o próprio sentido delas depende do contexto histórico onde foram produzidas; [00:25]
pelo simples fato de que todas essas teorias foram feitas em resposta a outras teorias anteriores, isso é
uma coisa fundamental. Observe que o príncipe dos educadores filosóficos – que é Aristóteles –,
quando coloca uma questão, antes de tudo, ele rastreia o que os seus antecessores disseram a respeito.
Isso não tem só interesse histórico. As teorias anteriores às propostas anteriores, elas vão aos poucos
formando a figura do objeto que ele quer investigar, porque não sendo um objeto acessível aos sentidos
– por exemplo, a estrutura do estado, não é um objeto que você possa pegar pelos olhos – ele se
constitui eminentemente de um conjunto de intenções, significados e ações.

Portanto você só pode conhecer isso a partir do que as pessoas disseram a respeito. Por exemplo
(vamos pegar a Constituição apenas no sentido legal, formal da coisa), como você poderia conhecer a
constituição brasileira sem lê-la? É impossível, não é? Ela se constitui de papel e de palavras no papel.
Mais ainda, como você poderia conhecê-la, mesmo lendo, sem você ter conhecimento suficiente da
língua portuguesa para você conseguir pesar o significado de cada palavra que está ali envolvida? Isso
significa que você só pode conhecer a constituição brasileira a partir de um certo domínio que você
tenha da cultura brasileira em geral; e Aristóteles logo pegou isso, então ele disse que em todos os
assuntos, inclusive ciências naturais, mas principalmente nesses na área em que hoje nós chamamos de
humanas, conhecer um objeto é conhecer a história daquilo que disseram a respeito. E aí você vai ver,
evidentemente, a famosa distinção que faz Aristóteles entre o discurso dos agentes, ou seja, dos
personagens envolvidos naquilo e o discurso do cientista ou do estudioso, que está tentando entender
aquilo.

Então isso quer dizer que esse conhecimento da cronologia vai começar com a cronologia de
publicação das obras, em seguida, com a cronologia do seu florescimento, ou seja, quando foi
publicado e quando foi lido. Não é a mesma coisa, algumas obras têm um impacto imediado e outras
tem um efeito retardado, por exemplo, Giambattista Vico é um filósofo do século XVIII que só foi lido
no século XX. Então, vamos dizer, ele realmente não faz parte da história da filosofia do século XVIII,
só faz nominalmente.

Então a primeira coisa a fazer é organizar a cronologia das fontes primárias, isso pode ser feito pegando
uma boa história daquela ciência. A primeira cronologia que você fizer não estará completa de jeito
nenhum e você vai ter que continuar completando-a pelo resto da sua vida.

Por exemplo, quantas histórias da filosofia você precisaria consultar para você ter uma certeza de que a
cronologia que você fez está suficientemente completa? Completa não quer dizer que abrange todos os
autores e todas as obras, não! Abrange aquilo que você vai precisar saber, ou seja, a medida dela não é
objetiva mas subjetiva, a medida da sua necessidade e não do fato histórico em si mesmo. Mas não há
nenhuma história da filosofia que você possa dizer que seja completa, e as histórias das filosofias não
são completas por um motivo muito simples, uma história da filosofia não é uma simples cronologia, é
uma narrativa e uma narrativa tem que ter uma unidade, [00:30] e a unidade tem que corresponder a uma
certa clave interpretativa constante, ou seja, os elementos ao qual o autor vai dar importância são os
mesmos e já estão, por assim dizer, pré-definidos.

Por exemplo, você pode levar em conta a influência que um pensador exerceu, e essa influência nem
sempre coincide com o valor ou a importância objetiva da filosofia dele na sua opinião. Um historiador
da filosofia pode conceder páginas, páginas e páginas a um autor que ele considera uma besta
quadrada, desde que esse indivíduo tenha exercido uma influência muito grande; esse é um critério por
exemplo. Mas um outro historiador pode fazer uma seleção contrária, e dizer “Eu vou selecionar os
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autores de acordo com a sua força pedagógica”, ou seja, com a utilidade que eles podem ter para os
estudantes hoje. Então você tem uma clave interpretativa que permanece mais ou menos constante; e
qualquer clave interpretativa que o historiador use implicará excluir autores que não caibam naquela
clave explicativa, que não tenham nada a ver com aquilo, mas que podem ser importante sob outro
aspecto.

Isso quer dizer que em toda história da filosofia você vai ter uma tensão entre a unidade da narrativa e a
completude dos dados. Então isso significa que algumas histórias da filosofia que são muito boas no
sentido da unidade da narrativa, no poder pedagógico da explicação, são terrivelmente incompletas.
Uma delas é do Frederick Copleston. O Frederick Copleston concede dezenas e dezenas de páginas a
certos autores, que ele considera os mais importantes e, às vezes, pula outros – não é que ele não
considera importantes, é que não tem nada a ver com aquilo que ele está explicando. Inclusive hoje,
aqui, eu vou fazer um sorteio para vocês de uma coleção inteira do Frederick Copleston, todo mundo
vai escrever o seu nome em um papelzinho e já vai sair daqui com um Copleston.

O Copleston é muito bom, mas não para isso que nós estamos falando, você vai precisar do Copleston
mais tarde. No começo é melhor você pegar histórias que são mais meticulosas e que tem menos
unidade interpretativa. Uma delas, por exemplo, que eu considero importante, é do Guillermo de Fraile,
editado pela Bach, biblioteca de autores cristianos – inclusive o autor morreu no meio e a obra foi
completada por outro sujeito. Ela não tem muita unidade, mas ela é mais meticulosa, ela tem mais
autores e obras e a bibliografia dela é muito mais completa do que a do Copleston.

Isso quer dizer que não dá pra você ler um livro do Guillermo de Fraile como se fosse uma narrativa,
como se você lesse um romance, o Copleston dá. Então a do Guillermo de Fraile é muito mais uma
obra de consulta e ele não concede a nenhum autor em particular as explicações meticulosas que o
Copleston dá. Se você procurar, por exemplo, Schelling, tem umas setenta páginas de Schelling; umas
oitenta páginas de René Descartes…

Então essa é a primeira providência. Eu trouxe aqui alguns livros que eu peguei mais ou menos a
mesmo, no último momento na minha biblioteca, só para ilustrar estudos desse tipo, sobre a evolução
histórica de algumas disciplinas. Eu considero que esses livros são indispensáveis, mas eles não vão
resolver o problema; ou seja, você vai começar compondo a sua educação na mesma medida que você
compõe a sua biblioteca. E qual é a primeira coisa que um bibliotecário estuda para exercer o seu
ofício? Não é certamente o conteúdo de nenhum dos livros que ele vai classificar, mas é a própria
biblioteconomia, é a própria arte da informação e classificação das bibliotecas. Você vai começar
assim, mas não com a ideia de bibliotecário. [00:35]

Um livro que eu considero um primor – procurei livros que tivessem edições brasileiras para facilitar a
coisa, às vezes as edições são meio antigas mas acho que na Estante Virtual você ainda encontra – é,
por exemplo, esse aqui: Nicholas S. Timasheff, Teoria Sociológica. Ele não é uma história da
sociologia, mas é uma história das teorias fundamentais que marcaram a evolução das ciências
sociológicas até a publicação do livro. A data de publicação dele é 1955, assim você tem meio século
de atraso que vai ter que completar depois; mas o que está aqui é realmente muito bom. Mas isso aqui é
só um começo, ele vai dar uns vinte ou trinta autores e pronto, acabou. E a parte bibliográfica dele não
é muito extensa, mas como hoje vocês tem o computador, e no computador é enormemente fácil fazer
uma tabela e, a qualquer momento, inserir novas linhas na tabela e obter uma classificação cronológica
imediatamente. Então a primeira coisa, você vai pegar os dados que estão neste livro e organizá-los em
uma tabela cronológica dos autores e dos livros fundamentais.
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Notem bem, as meras datas de nascimento e publicação, frequentemente são coisas enganosas. Por
exemplo, você tem a data de nascimento do sujeito, mas pode ser que as obras dele tenham sido
publicadas postumamente. Então ele realmente não pertence a época em que ele viveu, mas a época
seguinte. Pode acontecer que os livros fundamentais do indivíduo – embora ele tenha publicado coisas
em vida – sejam póstumos.

Também pode ser que a obra do sujeito esteja espalhada em mil fragmentos, publicados ou em revistas
acadêmicas ou permaneceram em manuscritos, ou seja, cada item que você fizer da sua lista
cronológica, vai ser um problema, e resolver esse problema, treinar para resolver esse problema em
cada um dos casos, vai ser um esforço que vai render também pelo resto da sua vida, ou seja, não é
importante você completar a lista logo, mas você fazer a lista de modo que nenhum verbete que você
coloque lá seja uma coisa meramente mecânica “ah, aqui eu tenho um título e uma data de publicação”.
Não! Eu tenho que saber que título é esse e mais ou menos do que ele fala, e porque acharam ele
importante; sem você julgar a coisa, evidentemente.

Você pode ter um exemplo desse tipo de trabalho no livro do Otto Maria Carpeaux que se chama
Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira. O Carpeaux desembarcou no Brasil e ele queria
ver onde ele estava, onde ele estava culturalmente, e sobretudo literariamente, que era o que lhe
interessava. Então ele primeiro obteve uma lista dos autores que depois foi completando aos poucos –
tanto que em novas edições desse livro ele acrescenta novos autores – e foi coletando o que se chama
[00:40] a fortuna crítica.

A fortuna crítica é a recepção que esses autores tiveram entre os críticos, tanto críticos de mídia quanto
críticos universitários. Então ele fez pequenos verbetes “aqui tem um autor, Jorge de Lima etc”, e
embaixo tem a lista dos livros do Jorge de Lima com as suas datas de publicação, a lista dos artigos e
estudos principais que se fizeram a respeito e, em seguida, ele faz um resuminho de cinco, dez ou vinte
linhas, que é o conceito daquele autor na crítica. O livro inteiro é composto de autores que ele não tinha
lido ainda, o que tinha era “está aqui o fulano e o conceito que se tem dele na crítica é assim e assim, e
o que se diz dele é isto”.

Então ele não tinha lido as obras ainda – só tinha lido de alguns autores é claro, muitos ele não tinha
lido ainda, ele só conhecia as menções escritas. Ele lia, digamos, dez ou vinte artigos de jornal a
respeito daquele autor, e ele tinha uma ideia de qual era o conceito público que se tinha dele. Às vezes
acontecia, ao contrário, de ele encontrar um autor que ele lia e que achava muito importante, e do qual
ele não encontrava menções na crítica. Então, era um escritor bom que estava desconhecido.

Esse trabalho levou uns dois anos, só que quando terminou, ele era o único sujeito que tinha o
panorama inteiro da literatura brasileira, sem ter lido todos os livros. E depois ele foi lendo, um a um,
ao longo dos tempos. Às vezes, modificando completamente o conceito da crítica. Por exemplo, ele
tem um estudo absolutamente magistral sobre Graciliano Ramos onde ele comenta aqueles capítulos
que tem sobre a cachorra no Vidas Secas, e mostra que ali tem uma espécie de concepção hinduísta ou
shopenhauriana no fundo, uma coisa que ninguém tinha percebido.

As vezes, você tendo a fortuna crítica do autor, você pode descobrir que todo mundo se enganou a
respeito dele, que eles não perceberam algo que estava, por assim dizer, gritante; ou porque, as vezes,
determinado crítico se enganou monstruosamente a respeito de um autor, como por exemplo, o famoso
estudo que Antônio Cândido fez sobre Graciliano Ramos, sobre o livro São Bernardo. São Bernardo é
um personagem que é um fazendeiro, um sujeito que só pensa em dinheiro, um homem brutal, muito
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ambicioso, que quer subir na vida de qualquer jeito, não hesita em matar, roubar, trapacear e escravizar
as pessoas etc. Um dia ele casa com uma moça delicada, muito culta etc e a moça não aguenta viver
com ele e acaba se matando. E aí após a morte da mulher ele começa escrever as suas memórias e a
história do seu arrependimento. É evidente que a linguagem dele já não corresponde à linguagem do
fazendeiro brutal, e às vezes, ela se torna tão boa que se parece com a linguagem do Graciliano Ramos.

Então você tem todo um jogo sutil onde o que você vê é a autotranscendência do personagem, quer
dizer, o personagem que escreve já não é aquele que viveu aquelas coisas, ele já transmutou, já passou
para outro nível, e aí a sutileza: como é que esse sujeito que é um fazendeiro bronco escreve tão bem?
Porque ele não está escrevendo na linguagem do fazendeiro bronco, mas na linguagem da consciência,
na linguagem do arrependimento. E isso aí, quando Antônio Cândido, no estudo que ele fez sobre
Graciliano Ramos, passou despercebido. Ele fez uma análise sociológica e confundiu de certo modo o
personagem narrador com o personagem narrado e com o verdadeiro narrador que é o Graciliano
Ramos [00:45]. Isso aí o Carpeaux percebe, mas isso quer dizer que o conceito crítico que ele pegou de
cada escritor não é necessariamente o dele, assim como esses primeiros dados, essas primeiras noções
que vocês vão ter sobre os diversos autores não vão ser necessariamente as que serão suas no futuro.

O que vocês vão anotar é o que os outros estão dizendo a respeito de tal ou qual autor, e este conceito
crítico vocês tem que pegá-lo da maneira mais breve possível, as vezes, uma simples menção, um
verbete de enciclopédia é suficiente para você ter ideia de qual é o conceito geral que se tem daquele
filósofo, outras vezes não, você vai ter que cavar um pouquinho mais.

Por exemplo, um número de histórias de cada disciplina que você vai precisar ter e o número de
dicionários e enciclopédias dessa disciplina que você precisará ter e de enciclopédias gerais é
praticamente ilimitado. Mas isso vai ser o começo da sua educação, do seu plano de educação e da sua
biblioteca. Para qualquer estudioso da área de ciências humanas, a construção de um universo de
conhecimento acompanha pari passu a construção da sua biblioteca pessoal; biblioteca que, notem
bem, não precisa existir fisicamente, mas você precisa ter a lista pelo menos.

Muitas vezes, o material que você precisa não lhe será acessível fisicamente, você não poderá comprá-
lo, você terá que usar uma biblioteca pública ou coisa assim. Então você vai ter, como se diz, uma
biblioteca virtual. No meu caso, uma biblioteca virtual nunca resolveu porque eu não aguento estudar
em biblioteca, pois lá não se pode fumar; então eu tenho que ter todos os livros. Dá uma despesa
desgraçada e se eu não tenho os livros eu tenho que obter uma cópia xeróx da biblioteca e, as vezes, sai
mais caro do que o livro. Já conteceu de eu anotar o título de um livro que eu preciso e demorar trinta
anos para eu adquiri-lo – isso me aconteceu várias vezes, espero que não aconteça com vocês, mas
pode acontecer.

De qualquer modo o livro está lá, você sabe o quê que ele é, por que você precisa dele; e saber por que
precisa dele é o começo do mapa da sua ignorância; quer dizer, o mapa da ignorância tem que ser feito
a partir de algum conhecimento rudimentar que você tem e que desperta em você dúvida, curiosidade e
necessidade por assim dizer. À medida que você vai organizando essas cronologias, você vai tendo
então um mapeamento dos pontos de interesse, dos pontos de curiosidade que você vai continuar
atendendo pelo resto da sua vida, as vezes tendo que esperar muitas décadas para resolver cada
problema.

Essa imensa constelação de dúvidas é o começo da educação; e na verdade a finalidade número um da


educação aniversária é dar isso e não dar o conteúdo das disciplinas; por exemplo, se um curso de
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filosofia leva cinco ou seis anos, bom você acha que em cinco ou seis anos você vai ler os principais
livros da história universal, claro que não. Então, se você passar ali dois anos estudando a filosofia de
Hegel, foram anos perdidos, a filosofia de Hegel você pode estudar depois, mas este mapeamento, se a
universidade não lhe deu e se ninguém lhe informou que você precisa disso, você não vai obter nunca.

Isso quer dizer que aquele Hegel que você vai estudar vai ser como um monstro que fica pairando no ar
sem o devido contexto humano, histórico e intelectual. Por mais que você estude, você vai continuar
burro; porque você pode até se tornar um especialista naquilo, mas você não sabe de que gênero é a
espécie, você desconhece a sua própria especialidade. Então a primeira especialidade que você tem que
obter é essa da informação cultural; sem isso não se faz coisíssima nenhuma. [00:50]

No começo, quando eu percebi isso, então eu falei, bom preciso estudar esse negócio bibliográfico,
sistemas de arquivamento etc. E li um monte de coisas sobre isso, cheguei a escrever um livretinho
sobre sistemas de arquivamento – foi publicado em separado em uma revista de administração
empresarial, nem sei aonde foi parar isso aí. Então eu estudei muito mais coisas do que precisava, hoje
eu vejo que 90% daquilo era completamente inútil para os meus fins, mas é por isso mesmo que eu
estou dando a coisa mais ou menos mastigada agora para que vocês não percam o seu tempo e para que
vocês consigam realizar digamos em um, dois ou três anos aquilo que eu levei pelo menos 15 anos para
realizar. Esse é o sentido do progresso das coisas: para as gerações seguintes as coisas devem ficar mais
fácil do que para a geração anterior, de modo que depois sobre tempo para fazer mais coisas.

Vou dar aqui alguns outros livros. A editora Martins Fontes publicou esse interessantíssimo Dicionário
dos Filósofos, de Denis Huisman. Acontece que Denis Huisman escreve de maneira terrivelmente
complicada, e para você ler um verbete dele é um sofrimento, é mais complicado do que os autores;
mas de qualquer modo você tem aqui os nomes e datas, você tem a bibliografia primária e um
rudimento de bibliografia secundária.

A bibliografia secundária você só vai começar a pesquisar quando você tiver interesse em um assunto
específico que você deseja aprofundar – por enquanto você só anota a bibliografia secundária e nem
olha, nem tente ler. Por exemplo aqui tem um verbete sobre Jorge Batai, suas obras e meia dúzia de
estudos sobre ele. Anote isso e esqueça, passe adiante, porque se você permitir que a sua curiosidade se
desperte para um pontinho aqui, você vai entrar naquilo e esquecer o principal. Então consagre um ou
dois anos da sua vida para obter essa informação organizada, para que, a partir isso, os temas que você
decida estudar aprofundadamente, de maneira especializada, estejam perfeitamente nítidos dentro do
quadro histórico-cultural mais amplo; aí sim tem a especialização, ela consiste em saber aonde você
está. De qualquer modo eu recomendo o livro do Jorge Batai.

Aluno: Professor, esse livro é uma versão resumida do original.

Olavo: Sim, sim, sim.

Notem bem, não é um dicionário de Filosofia, é um dicionário apenas dos filósofos, tem muitos
dicionários de filosofia que consagram um verbete a cada filósofo considerado importante, por
exemplo, o dicionário do Ferrater Mora tem vários verbetes sobre filósofos; o do André Lalande não.
Porque é apenas um vocabulário técnico e crítico da filosofia, ele está dedicado aos conceitos
filosóficos – as palavras que lhes correspondem em três ou quatro línguas, e uma pequena discussão de
cada conceito –, mas ele não está interessado nisso ou naquilo. O livro do André Lalande pode ser
muito útil mas não nesta fase. Pode ser útil quando você encontra um termo que você não entende, mas
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aqui nós estamos interessados primeiro em autores, obras e datas. Mas não anote o nome de nenhum
autor, obra e data do qual você não sabe nada, alguma coisinha você tem que saber, por exemplo, o que
o autor do dicionário diz a respeito? Por que ele considerou esse autor importante? Note bem que do
conteúdo da filosofia, da obra do cara, você vai saber pouquíssima coisa ou quase nada, você vai saber
apenas o que os outros disseram, e isso que os outros disseram, você vai saber de maneira muito vaga,
mas isso é o suficiente para você começar.

Você vai se esforçar para que antes de você ter lido uma única das obras daquela disciplina, você tenha
uma visão unificada do desenvolvimento histórico dela;[00:55] e isso é uma especialidade. Isso quer dizer
que se depois de você fazer esse trabalho, você quiser escrever uma história da filosofia, você está
pronto para fazer, pois já tem o plano e os materiais, só falta trabalhar cada material. Claro que
trabalhar cada material pode dar um trabalho miserável, por exemplo, você chega a um capítulo lá
chamado Hegel; em menos de dois anos você não vai se virar com Hegel.

Então essa é a resposta à pergunta “quais livros eu devo ler”. Eu não espero que eu responda isso
porque essa pergunta é preciosa, é ela que vai orientar o seu estudo. Se você não adquirir uma certa
autonomia nesse ponto, de saber quais os livros que você deve ler, você nunca saberá nada, por mais
que você leia.

Veja, a pegunta “quais os livros que eu devo ler?” estão em função, primeiro, da função objetiva que
ele tem no desenvolvimento histórico da disciplina, e segundo, em função da importância que ele tem
para aquilo que eu em particular quero saber. Nesse livro do Giorgio del Vecchio, Lições de filosofia do
Direito, ele tem uma parte conceitual evidentemente, mas ele tem no finalzinho a evolução histórica do
direito, que é uma verdadeira preciosidade, sobretudo nas notas que ele vai dando e que você vai
compondo uma bibliografia.

Graças a este livro do del Vecchio em particular, eu acabei lendo livros de Filosofia do Direito e de
Ciência do Direito que nenhum advogado ou jurista do Brasil jamais leu, e que são de uma importância
extraordinária. Faça um teste, pergunte ao seu professor de Direito: “Professor, o que o senhor acha do
Igino Petrone?”. Eles nunca ouviram falar. Tem outros evidentemente que todo mundo ouviu, tem
autores fundamentais que tem importância histórica objetiva mas que estão fora do horizonte cultural
desta universidade ou daquela; ou daquele meio universitário em particular.

Também é importante você saber quais são os autores a quem se dá importância neste ou naquele meio
em particular. Por exemplo, o que se pensa desse cara na USP, na PUC ou entre os intelectuais de
determinada facção, determinado grupo, é importante você saber isso. Não é importante saber se você
concorda ou não, o importante é você anotar isso aí.

Aluno: Como vou chegar até essa informação se eu não estiver no meio.

Olavo: Você vai ver sempre pela produção escrita, você não precisa ouvir as pessoas falando porque as
opiniões que são faladas, como se diz verba volant, scripta manent, o que o sujeito falou, no dia
seguinte todo mundo esqueceu, mas o que ele escreveu e publicou está lá para as futuras gerações.

Isso quer dizer também que você vai ter que ter algum interesse pela mediocridade ambiente, por quê?
Porque é nesse meio que você vive, então na hora que você adquirir pela primeira vez a visão da
evolução histórica de uma disciplina de uma maneira suficientemente completa e você comparar com o
que se fala no meio universitário brasileiro, você vai chorar. Você vai ver que esse pessoal vive em um
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mundo deste tamaninho e que eles não tem a menor ideia das disciplinas que eles ensinam. Você vai
ficar chocado, por exemplo, o que me chocou na psicologia…porque eu tive a sorte de ter tido um
excelente professor na área, que era o Dr. Miller que cada vez que eu fazia uma pergunta para ele, ele
me dava uma pilha de livros para ler. Ele tinha estudado em Zurich, que era o centro, a capital mundial
da Psicologia, tudo que era bom ia parar ali [01:00] e realmente ele conhecia todos os autores
fundamentais e foi passando tudo para mim e eu fui organizando na minha cabeça, e daí mais tarde
quando eu comecei a dar aulas e conferências e chegava alunos das faculdades de psicologia,
psicólogos formados, eu vi que eles não sabiam nada daquilo que eu estava falando, eu citava um autor
e eles diziam “Quem é esse cara?”. Eu dizia mas isso aí é a história da sua disciplina “Ah mas nós não
estudamos isso”. Eu dizia “Escuta, como você pode entender alguma coisa de Psicologia sem você
conhecer a história da Psicologia?”.

A psicologia, meu filho, não é a física, e não é matemática, onde o conteúdo de uma teoria pode ser
compreendido em si mesmo, e pode ser até criticado e analisado em si mesmo, sem o conhecimento da
sua história, porque você está lidando apenas com conceitos estabilizados e, às vezes, formalizados
matematicamente: você não vai ter problemas semânticos para você entender a teoria de Newton ou a
mecânica quântica. Mas em Psicologia você está lidando com a linguagem humana meu Deus do céu!
Sei lá você pega as obras de Freud, o que você vai entender de Freud se você não tem nada da literatura
austríaca daquele momento, do ambiente austríaco, é impossível, absolutamente impossível.

Aluno: A leitura sintópica de Mortimer Adler pode ser de alguma ajuda?

Pode, mas acontece o seguinte, toda a perspectiva do Adler e do Ruskin – os caras que inventaram esse
negócio – é dos grandes livros; e eu acho que isso não funciona, porque nós não estamos interessados
em livros, nós estamos interessados em coisas. Nós só usamos os livros no sentido de que você pode
usar vários desenhos e fotografias para você conhecer um determinado animal ao qual você não tem
acesso diretamente, por exemplo, eu nunca vi um urso polar, mas eu sei reconhecê-lo porque eu o vi em
fotografias e desenhos; mas eu não estou interessado nas fotografias e desenhos “ah que belo desenho,
que obra de arte”. Não estou interessado na arte do desenho e sim no objeto urso polar.

Isso quer dizer que eu acho a perspectiva do Adler um pouco estética demais, a admiração pelos
grandes livros. A admiração pelos grandes livros supõe em primeiro lugar que você os admire pelo
simples fato de serem livros famosos, ainda que contenham besteiras da primeira à última palavra. O
Alessandro que estudou numa escola das artes liberais, ele tem um pôster dos grandes livros da escola
Saint John onde estava escrito assim “a bíblia ensina ter o livro O Capital, de Karl Marx”; é a mesma
coisa, são grandes livros.

A ideia dos grandes livros pressupõe uma espécie de neutralidade pedagógica: vamos estudar os
grandes livros, vamos dar as técnicas de leitura e o professor não vai opinar sobre nada. Isso pode
funcionar para os fins do Mortimer Adler, que é criar um cidadão medianamente culto apto a opinar
sobre as questões públicas; mas eu não estou interessado nisso, eu estou querendo fazer intelectuais de
grande porte, é outra coisa. Então isso para nós não basta.

Sobretudo, nós temos que entender que os grandes livros frequentemente não são grandes, O Príncipe
de Maquiavel é um grande livro porque, historicamente, teve uma importância. Mas eu, depois de
estudar, acho que aquilo é um besteirol do começo ao fim, aquilo não faz o menor sentido, e quando
você lê os outros livros do Maquiavel… leia o meu livreto sobre Maquiavel e você vai ver, é uma
confusão demoníaca mesmo. E o que eu posso aprender com uma confusão demoníaca? A primeira
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coisa que eu aprendo é que eu não devo estar lá. Se eu quero entender o que é a política, eu não devo
perguntar para o Maquiavel, porque ele mesmo diz que está mentindo o tempo todo. [01:05] A coisa em si
já é confusa, agora eu vou perguntar coisas para um professor que está mentindo, enganando e
trapaceando? Eu vou ficar mais confuso ainda.

A influência maligna que Maquiavel tem na cabeça das pessoas é uma coisa terrível porque ele cria
milhões de falsos espertos, trouxas que confundem a malícia com a esperteza. É claro que eu dediquei
algum tempo da minha vida ao Maquiavel, sem nenhum preconceito, estudei direitinho. Mas eu
percebia que, quanto mais eu estuda aquilo, menos eu entendia. Daí eu falei “Bom, vamos ver se
alguém me explica o que o Maquiavel está dizendo”. Assim eu comecei a colecionar os intérpretes de
Maquiavel, e vi que eles também não se entendiam uns aos outros; foi assim que saiu esse livreto, que
é a confissão “Olha eu não entendo Maquiavel, os outros também não entendem e o próprio Maquiavel
também não entende”. Então não tenho por que ficar complexado.

Em que sentido eu posso considerar O Príncipe como um grande livro no mesmo sentido em que eu
considero, por exemplo, a Metafísica de Aristóteles um grande livro? A metafísica de Aristóteles me
ensina um monte de coisas que ainda serve, O Príncipe vale apenas pela sua importância histórica, ele
não tem um valor intrínseco; e a distinção entre valor intrínseco e importância histórica, no método do
Adler, é proibido: os grandes livros são aqueles grandes livros que fizeram o ocidente. Então isso quer
dizer, são livros que tiveram impacto na opinião pública em geral; eu não estou falando disso, estou
falando de livros que tiveram impacto entre os estudiosos, melhores de cada área, são livros que
impressionaram não o público, não a mídia, mas os sábios.

Desde o início você tem que ter esta diferença em conta, por exemplo, quando o Otto Maria Capeaux
faz a Pequena Bibliografia Crítica da Literatura Brasileira, ele não está perguntando quais são os
autores que venderam mais livros, ou que foram mais aplaudidos, não! Mas quais são os autores que
chamaram a atenção dos críticos mais inteligentes. Então é o critério do Aristóteles: a opinião dos
sábios.

O critério da opinião dos sábios não lhe permite obter certeza absoluta, os sábios todos juntos, as vezes,
podem se enganar. Mas são as opiniões deles e as divergências entre as opiniões deles que vão te ajudar
a fazer o perfil de qual é o objeto, do que nós estamos querendo falar. Então, tudo isso que estou
dizendo nessa aula é baseado no preceito de Aristóteles: começar por averiguar a opinião dos sábios.

Quando se trata de um objeto fisicamente acessível, claro, a opinião dos sábios continua válida, mas o
testemunho dos seus sentidos é mais importante. Mas quando se trata de objetos de ordem histórica,
social e cultural – que são inteiramente construídos de sistemas de significados – é impossível você
apreendê-los sem ser pela opinião dos sábios.

Então o que é essa cronologia que estou falando? É uma lista resumida dos conceitos vigentes entre os
estudiosos sobre tal e qual autor ou tal e qual livro. É claro que você vai ter que aprender a captar isso
muito rapidamente. Quantas menções você precisa ler sobre um autor pra você saber a importância
relativa dele na história? Bom, se você tiver, sei lá, dez histórias, dez dicionários, já dá pra você saber,
você lê um pouquinho de cada um, as primeiras linhas do que um sujeito diz sobre um filósofo já dá
pra saber se ele considera aquilo importante ou não. [01:10] Aí você lê outro, outro e outro, então daqui a
pouco você tem uma ideia suficiente. Essa ideia pode ser corrigida mais tarde. Isso quer dizer que a
importância relativa que você deu a cada um pode ser reavaliada; pode e deve ser reavaliada, mas você
precisa ter alguma para começar.
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Se em vez de você proceder assim, você já é jogado imediatamente dentro de um ambiente cultural
delimitado por certas preferências e pelo amor a determinados autores, você vai ficar aleijado
intelectualmente pelo resto da sua vida – a não ser que você faça uma operação cirúrgica como eu fiz.
Porque a primeira coisa que eu mergulhei foi no marxismo, aos dezessete anos de idade; e fiquei me
intoxicando daquilo durante sete ou oito anos. Isso quer dizer que para eu conseguir entender depois
qualquer coisa fora dessa perspectiva era muito difícil.

Aluno: Professor, existe uma idade máxima para essa operação cirúrgica, na sua opinião?

Olavo: Não, à qualquer momento, pode ser à qualquer momento.

De qualquer modo, eu tive a sorte de não entrar no marxismo exclusivamente, eu tinha outros interesses
ao mesmo tempo. Por exemplo, o interesse em Psicologia, e o interesse na Literatura mesmo, então eu
tinha uma certa abertura. Mas se você é submetido a um regime, vamos dizer, muito coerente durante
alguns anos, depois você não consegue sair daquilo. Você não consegue imaginar outra coisa.

Eu estava falando dessa ontologia sobre a contracultura, você vê que é uma intelectualidade
universitária e jornalística todinha marcada pela leitura dos autores que faziam a cabeça da esquerda
nos anos sessenta. São muitos autores, leva muitos anos para você ler isso, e quando você absorve isso,
você é para aquele meio um sujeito cultíssimo. Ali você tem certos problemas que são tratados de
certas maneiras, você tem certos pontos de concordância e divergência e a sua mente está formada pelo
debate interno da esquerda cultural. Se, ao contrário, você pegar toda essa bibliografia da esquerda
cultural, e a colocar dentro de um mapeamento geral como este que estou fazendo, você não vai
mergulhar de cabeça em nenhum ambiente cultural delimitado, você tem a amplitude toda do leque de
escolhas, que no meu caso eu tive que refazer retroativamente; mas vocês não vão precisar. Isso se
refere, vamos supor, se você entrasse, sei lá, não no marxismo, mas no ambiente aristotélico-tomista,
seria a mesma coisa. Você ficaria aleijado do mesmo jeito, não tão gravemente, mas ficaria.

Por exemplo, imagina um sujeito que ficou treinando dentro do ambiente tomista anos a fio, de repente
você entrega a bibliografia da filosofia islâmica para ele, que é monstruosa; ele ainda vai entender do
que eles estão falando. Primeiro, ele já entra com um pouco de medo “Peraí esses caras vão me
enganar, eles são uns hereges, tenho que usar um pouco de água benta para entrar aí”; você já entra
com medo e vai perder a elasticidade da coisa.

Também é preciso você fazer uma distinção muito clara entre o que é o domínio da sua fé religiosa e o
domínio dos seus estudos. É claro que a igreja e as autoridades eclesiásticas incumbidas do ensino
sempre tinham o cuidado de selecionar as leituras dos jovens para que ele não se corrompam etc. Mas
quando você selecionar a leitura dos jovens, você já precisa ter lido aquilo que você proibiu eles de ler
[01:15], ou seja, você se considera qualificado para ler aquilo que os outros, ao seu entender, não estão
qualificados para ler. Bom, é uma atividade até piedosa, mas hoje em dia quem na igreja tem
qualificação para fazer isso? Esse é o problema, não se pode mais confiar em ninguém, então não
adianta você tentar dizer “Não, eu sou uma alminha pura, não quero me contaminar de ideias heréticas
etc… vou perguntar para o bispo”. Chega lá o bispo é da Teologia da Libertação ou o bispo é pedófilo e
quer comer você; está ruim o negócio. Aquela função social da igreja de modelar a cultura como um
todo, isso acabou, não há mais pessoas qualificadas para fazer isso.

Então é o seguinte, desse ponto de vista, você não tem mais a proteção da igreja – quer dizer, a
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proteção no aspecto social e cultural, espiritualmente você continua tendo do mesmo jeito. Então o que
você tem que fazer? Você tem que ter um fundamento muito claro na fé, mas a fé não é uma crença em
doutrinas, a fé é a confiança em uma pessoa que te fez uma promessa. O que isso tem a ver com a
veracidade ou falsidade das ideias? Absolutamente nada. Se você pegar todo o credo católico, você vai
ver que, com base naquilo, não dá pra julgar nenhuma ideia, a não ser que a ideia se refira precisamente
àquilo. E é evidente que em uma situação de caos doutrinal que a gente tem, pelo menos, desde a
década de 60, não adianta você esperar que a igreja te oriente porque ela precisa começar a orientar-se
primeiro. Essa é a profecia bíblica: “as estrelas que vão cair”. Quem são as estrelas? São os bispos da
igreja.

Então todos nós somos obrigados a ser um pouco protestantes, não na fé, mas na dialética do
aprendizado. Eu não considero que a minha consciência pessoal esteja capacitada para julgar tudo sem
o auxílio de Deus, eu não consigo de jeito nenhum, e, portanto, não considero sem auxílio da igreja,
também não considero; mas considero que na situação real, eu sou colocado na circunstância de ter que
me orientar pela minha consciência individual porque ninguém está me orientando em nada. Agora, não
é que eu quero a independência da minha consciência individual, é que me soltaram aqui no deserto e
não tenho pra quem perguntar, o que eu vou fazer? Ou seja, nós estamos em uma situação tão, tão
complicada, que eu confesso para vocês, eu não tenho certeza nem se o mandato do Papa é genuíno, eu
não tenho nem certeza disso porque quando eu escuto o pessoal da igreja pós-conciliados, eu vejo que
eles tem razão e se eu pego o pessoal da igreja pré-conciliados, ou o pessoal do São Pio Pinto, do Sede
Vacantis, eu também acho que eles tem razão, e agora? Eu não sei resolver esse problema, e se a igreja
depender de eu resolver, ela está no mato sem cachorro. Eu não sei resolver essa questão, e quando
você não sabe, você tem a dúvida, você tem que conviver com aquela dúvida sem permitir que ela afete
o núcleo da sua fé. Não é tão difícil fazer isso, aliás, essa é uma tensão altamente benéfica, criadora, ela
é fértil, você tem que viver nessa tensão.

A mente humana tem essa característica, ela só funciona por contradição, [01:20] o negócio que é
inteiramente lógico do começo até o fim, só Deus; e se você é cristão, então ore dia e noite para que o
Espírito Santo te guie. Mesmo quando você tomar a decisão errada, diga: “Olha, se eu tomar a decisão
errada faz com que eu siga, sem perceber, a sua decisão e não a minha; eu penso que sei para onde
posso estar indo mas você que sabe realmente, está me guiando para outro lado sem eu perceber”.
Consinta em ser guiado pelo Espírito Santo, sem você interferir. Peça isso, isso é muito importante,
para aqueles que são cristãos, pedir isso o tempo todo. E não se preocupe em você mesmo julgar a
ortodoxia das coisas porque você não sabe ainda.

Então aprender a deixar todas as questões entre parênteses é fundamental em uma vida de estudos,
porque esta primeira etapa que eu estou falando, que é de fato o mapeamento da sua ignorância, é só
uma coleção de dúvidas, é uma coleção de problemas e dúvidas. Aristóteles escreveu um livro inteiro
que se chama Problemas ou Questões, são milhares de questões que ele não tinha resposta – deem uma
olhada nesse livro e vocês vão ver que coisa assombrosa. Aquilo é o mapa da ignorância de Aristóteles;
e se ele não tivesse todas essas dúvidas, ele não teria conseguido responder algumas delas. Quer dizer,
saber quais são os problemas, saber quais são as dúvidas, saber quais são as questões, é o primeiro
passo.

Nós podemos ter acesso a uma certeza absoluta, mas só sobre muita pouca coisa, o resto é um mar de
dúvidas e é o drama humano. São milhões de pessoas fazendo perguntas, lutando com a sua própria
ignorância, tentando encontrar a verdade, falhando mil vezes, todos nós estamos nesse mesmo barco e
todos esses filósofos que você vai estudar também estão no mesmo barco. Então não há problema
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algum em você ter uma bela coleção de dúvidas, ao contrário, isso é o começo da sua educação. Por
exemplo, se você vai começar um curso e o professor honestamente explica todo o programa do curso,
nós vamos fazer isso, depois isso e depois isso; nós vamos fazer mas nós são fizemos ainda, estou
dizendo o que vou lhes ensinar mas não lhes ensinei ainda. Então o que é isso? É um mapa da
ignorância.

Quando você entra em uma universidade, você deveria saber toda a estrutura dela, porque a estrutura de
uma universidade é também um mapa da ignorância, com alguns elementos de nesciência, quer dizer,
coisas que estão ali, que tem gente que sabe mas que você não vai saber nunca. Por exemplo “como
vou curar um porco espinho com AIDS?”. Deve ter alguém que está estudando isso e sabe esse
negócio, mas eu não vou saber nunca. Isso é nesciência, quer dizer eu não sei e não preciso saber, não é
da minha obrigação saber. Então o mapa da nesciência é infinito, o da ignorância não é infinito, ele é ó
ilimitado, quer dizer o número das coisas que você precisa saber não é infinito, mas ele é enorme e
você não vai conseguir preencher o caminho todo.

Mas se você tem todo esse mapeamento das dúvidas que estão aqui e ali, e tem uma dúvida que você
decide resolver, então você vai saber aonde está este pequeno elemento de certeza dentro do mar de
incertezas que o cerca. Por exemplo, quando eu estudei aquela questão de Aristóteles dos quatro
discursos, eu disse, bom eu vou resolver uma dificuldade da filosofia de Aristóteles. Mas eu sei onde
estão as outras que não foram resolvidas ainda; e a principal delas nunca foi resolvida que é quando
Aristóteles disse que os entes só existem enquanto indivíduos, não existe evidência genérica, mas ele
disse que toda a Ciência se refere sempre ao genérico. Você tem aí um hiato entre conhecimento e
realidade, [01:25] ou uma tensão. Como é que resolve isso? Bom, Aristóteles morreu e nada mais disse e
nem lhe foi perguntado. Assim como essa, sobram muitas outras dúvidas.

Aluno: Professor, e o discípulo de Aristóteles, Teofastro, não deu continuidade?

Olavo: Não, Teofastro não tinha 1% do talento necessário para isso. Aristóteles não deu muita sorte
com os seus sucessores não, Platão ainda deu. Quer dizer, Aristóteles encontra bons sucessores mil
anos depois, no mundo islâmico e cristão; mil anos não, mil e quatrocentos anos depois.

Aqui tem dois livros… esse aqui é um livro que considero indispensável para todos os estudantes
brasileiros Teoria da História do Brasil de José Honório Rodrigues, onde ele te dá uma visão de quais
foram os melhores historiadores do Brasil, e de quais são os conceitos básicos e métodos básicos da
ciência histórica, mas você tem que ler isso aqui junto com o outro livro dele que se chama História da
História do Brasil, e com um terceiro livro que se chama Vida e História, onde ele escreve um pequeno
ensaio sobre cada um dos historiadores que ele admira como Mommsen, Ranke, Fustier, Nicolange etc.

O mapeamento da ciência histórica para mim começou com esse livro do José Honório Rodrigues,
Vida e História. Quando eu li Vida e História – eu era muito novo ainda –, como eu ainda estava dentro
daquela atmosfera marxista, foi assim que eu entendi a coisa. Mas depois eu voltei muitas e muitas
vezes a esse livro, e ele me abriu para esta questão “qual é a história da ciência histórica?”.

Porque o sujeito aprende a escrever a ciência histórica lendo livros de história e, evidentemente,
achando que os seus antecessores podem ter falhado nesse ou naquele ponto, que precisam
complementar isso ou aquilo. Então eu disse ora, é uma ingenuidade você ler livros de história sem
você saber onde eles estão dentro da história da própria disciplina histórica, ou seja, quais são as
diferentes chaves interpretativas que ele está usando, qual é diferença de método etc. Senão o que
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acontece, a narrativa que o sujeito está me apresentando desfila diante de mim como se ela fosse a
própria realidade, quando é claro, há elementos de realidade nela, mas filtrados por uma inteligência
particular que não é uma inteligência divina. Então qual é a forma dessa inteligência? Qual é o
horizonte de consciência desse sujeito? O horizonte de consciência delimita o que ele está enxergando
do que ele não está enxergando.

Existem inúmeros livros sobre a história da ciência histórica, um muito bom é de um autor chamado J.
P. Gooch, sobre os principais historiadores do século XIX. É um livro especialmente importante porque
é no século XIX que se constitui a ciência histórica. Então se você não pegar o significado da
emergência da ciência histórica dentro do contexto da cultura do século XIX, você nunca vai entender
nada da história.

Aqui tem dois livros interessantíssimos, também desse mesmo tipo, que são de um grande sociólogo
que foi Pitirim Sorokin, um sociólogo russo que viveu nos Estados Unidos e que tinha um interesse
enorme na sociologia [01:30] dos outros – que coisa incrível né. É claro que ele tinha o seu próprio
sistema mas ele lia tudo que era publicado na sociologia e tinha um interesse enorme, um amor pela
obra de outros sociólogos que ele gostava de explicar. Então aqui tem dois livros, um é o Filosofias
Sociais de uma Era de Crise. Ele colecionou livros importantes que se caracterizaram por tentar criar
uma filosofia da história a partir da experiência da crise do século XX. Então não são livros de filosofia
da história no sentido geral, mas livros do século XX, livros que eram contemporâneos dele, e que
tinham como fonte de inspiração os acontecimentos básicos do próprio século XX. Então ele pegava
Alfred Springer, Nicolai Berdiaev, Albert Schweitzer e outros; e esse outro livro Novas Teorias
Sociológicas. Mas ele escreveu vários livros desse tipo, as novas teorias sociológicas foram aquelas que
estavam aparecendo mais ou menos entre os anos 40 e 50 (ele não está falando de obras de sociologia
em geral mas apenas de obras teóricas). Portanto este livro [Novas Teorias Sociológicas] funciona
muito bem como um complemento do [livro Teoria Sociológica do Nicholas S.] Timasheff porque aqui
tem muita coisa que não está no Timasheff.

Agora, voltando às histórias da filosofia, se a história da filosofia ocidental já não fosse um abacaxi
suficiente, você pode ter a ideia de perguntar: enquanto estavam discutindo isso aqui na Alemanha, na
França etc, o que estava sendo discutindo na China ou na Índia? Qual é o encaixe histórico das coisas?
Bom aí se abre dentro de você um oceano porque alguns países do oriente tem uma história filosófica
tão rica que você se perde ali no meio.

Um exemplo disso é o livro do Henry Corbin que se chama En Islam Iranien, ou seja, só filósofos
iranianos. Aquilo é um mar de informações que não acaba mais. Porém, houve um sujeito que tentou
fazer uma história mundial, uma história global da filosofia (não precisa dizer que era um globalista
convicto). É esse aqui John C. Plott, são vários volumes, eu trouxe só o primeiro apenas para mostrar,
Global History of Philosophy, onde ele faz, vamos dizer, a articulação cronológica entre os filósofos
europeus, chineses, indianos etc, de modo que você fica sabendo o desenvolvimento desigual das ideias
filosóficas em vários pontos do planeta.

Basta você ler isso para você entender porque o projeto do Eric Voeglin, da História das Ideias da
Ordem, fracassou; porque chegou uma hora que ele viu que coisas que eram para acontecer em
sequência, estavam acontecendo simultaneamente e vice-versa. Então não há essa história da ordem na
verdade.

Aluno: [inaudível [01:34:29]]


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Olavo: Não, não há, não há mesmo. Só há do ponto de vista divino. A ordem das ordens só Deus pode
conhecer porque é um caos. Quer dizer, enquanto Voegelin estava estudando, vamos dizer, a passagem
dos profetas hebraicos para o mundo greco-romano, estava indo tudo muito bem. Mas quando vai
chegando ali pelo século II [01:35] da era cristã, em que doutrinas orientais estão se misturando ali na
Europa, e está espoucando heresias para tudo quanto é lado, então ele vê que a ordem cronológica “foi
para as cucuias” não tem mais.

Aluno: O senhor diz dá para contar o que aconteceu mas sem uma unidade narrativa, é isso?

Olavo: Aí existe um livro – se vocês se interessarem por isso –, eu acho um dos livros mais lindos que
já li na minha vida que se chama History and Transcendence, o autor chama-se Glenn Hughes, onde ele
vai mostrando que a própria ideia de uma ordem na história, de uma unidade na história, a própria ideia
de humanidade, é impensável sem o monoteísmo. Por exemplo, toda essa ideia de uma filosofia da
história, o que é uma filosofia da história? É uma tentativa de você ver a totalidade do desenvolvimento
humano sobre a terra desde o ponto de vista de Deus, é um olhar abrangente. E nesta operação você
acaba caindo na bruxaria, como fez Hegel. Segundo o próprio Voegelin: onde de certo modo você se
transfigura em Deus, você insinua sutilmente que Deus é você e que você está vendo tudo, quando na
verdade não está vendo tudo. Quer dizer, qualquer síntese histórica é sempre falha “Ah, conseguimos
fazer aqui uma interpretação abrangente”, mas no dia seguinte um outro cara descobre um único fato
que desmantela aquilo tudo, ou seja, a nossa visão da história é mais ou menos como este programa que
estamos fazendo, ela só tem uma unidade subjetiva, quer dizer, uma unidade daqueles assuntos que lhe
interessam. Qual é a unidade objetiva, real? A gente não sabe, é muito grande para a gente poder
abarcar. Mas o sentido unitário você pode restaurar na fé: aconteça o que acontecer, esse negócio vai
terminar no juízo final. Então você tem a ideia de um fim da história.

Aluno: A história do objeto, para nós, só teria um sentido narrativo mesmo?

Olavo: Às vezes nem narrativo. Porque você não consegue narrar uma coisa com começo, meio e fim
porque ela tem diferentes começos independentes e as cronologias não coincidem. Você tem uma série
de elementos de simultaneidade que não é historicamente explicável, que parece a ressonância
amórfica, o nego pensou uma coisa na Alemanha, o outro pensou a mesma coisa na China, um não
contou nada para o outro, não houve comunicação. Como você vai explicar isso historicamente? Não
tem explicação histórica. Pode ter uma explicação se você apelar para a teoria da ressonância amórfica,
pode ser que você consiga explicar, mas isso não é história, é outra coisa.

Aluno: Narrativa no sentido ficcional mesmo, porque os historiadores fazem uma série de recortes e
eles conseguem criar uma narrativa (…)

Olavo: Mas é isso que estou falando, às vezes a própria narrativa não tem unidade.

Aluno: É um problema na documentação então? Os cronistas e (…)

Olavo: Sim, sim, sim, e cujo nexo você não consegue apreender, e portanto você não consegue narrar
com começo, meio e fim: aconteceu uma coisa aqui, aconteceu uma coisa lá. Então não tem unidade
narrativa, apenas a unidade física de um bloco de papel. Você pega um monte de folhas, põe entre duas
capas e está aqui a unidade narrativa [risos].
19

Aluno: Se houvesse então saberíamos o futuro…

Olavo: Sem dúvida, se nós fôssemos capazes de ter uma visão integral da história, saberíamos o futuro.
Muitas vezes nós sabemos o futuro, mas com relação a coisas muito limitadas, vamos dizer, na medida
que você consegue isolar um determinado processo, sabe todos os elementos componentes que estão ali
e você pode contar mais ou menos que não haverá interferência externa naquele processo dentro de um
prazo x, então dá pra saber o que vai acontecer. Por exemplo, em 2009 o Barack Obama fez aquele
discurso no Cairo prometendo uma nova era [01:40] para o Oriente Médio e para toda a humanidade, o
reino da democracia etc. Conhecendo o Barack Obama e sabendo que ações ele estava empreendendo
para realizar aqueles objetivos nominais, dava para saber que aquilo resultaria em uma explosão geral
de terrorismo antiamericano. Dava, não precisa ser muito esperto, olha ele está dando o nome das
coisas, mas esses nomes são símbolos publicitários para atrair simpatia. Mas quais são as ações
substanciais mediante as quais ele está realizando, produzindo os efeitos aos quais ele dá esses nomes?

Aluno: [inaudível [01:40:47]].

Olavo: O método é o seguinte: nós pegamos as organizações terroristas e as enchemos de dinheiro. O


que você acha que vai acontecer? Não precisa ser muito esperto, quando aconteceu esse negócio na
Líbia, mataram o embaixador e ao mesmo tempo tem explosões de protestos antiamericanos em vinte
nações. Então o pessoal diz “Uai, então a política do Obama deu errado”, eu digo não, deu errado se
você tomar os objetivos nominais como se fossem os objetivos verdadeiros, mas talvez ele tivesse
outros objetivos, talvez os objetivos fossem exatamente esses.

Aluno: A teoria da luta de classes não caiu nesse erro de pensar que achou a clave explicativa da
história da humanidade?

Olavo: Mas sem sombra de dúvida, Karl Marx achou mesmo que tinha encontrado a chave explicativa,
e que essa chave explicativa era a luta de classes. Eu digo bom, a luta de classes existe, mas, primeiro,
como você vai articular a luta entre as classes com a luta entre as nações? Ou com a luta entre as raças?
Ou com a luta entre as culturas? Ou com a luta entre as religiões? Não existe essa articulação. Então
isso quer dizer, bom, a luta de classes é um dos fatores, mas tem um milhão de outros que as vezes
podem se tornar os decisivos. Alguma relação com a luta de classes sempre haverá, mas a relação pode
ser até a relação de ignorância mútua ou de alienamento total.

Agora se você tentar explicar todos os fatores psicológicos, culturais, religiosos etc, em função da luta
de classes, então você vai ter que falsificar tudo. Isso quando você mesmo não fornecer provas do
contrário. Por exemplo, se você explica a religião em função da luta de classes e diz que a religião é o
ópio do povo, inventada pela classe dominante etc, então como você vai explicar o surgimento da
Teologia da Libertação? Quer dizer, o próprio movimento comunista fornece a prova de que a teoria
deve estava errada; e pior, ele obtém algum sucesso na prática com isso. Então o sucesso da prática
prova a falsidade da teoria. O que também deveria alertar os nossos amigos liberais e conservadores
para o fato de que uma teoria errada pode dar certo na prática, que é uma coisa que aparentemente eles
não sabem, eles acham que se derrotarem intelectualmente o marxismo está resolvido o problema. Mas
quem disse para você que o movimento comunista é marxista? Ele faz qualquer coisa e dá o nome de
marxismo. Existe apenas uma unidade ficcional, simbólica, não uma unidade substantiva. Quando
chega aquele tal de Ernesto Laclau e diz “A propaganda revolucionária cria a classe revolucionária do
nada”, isso é a inversão total do materialismo histórico, total, total, total; e no entanto, eles ainda
chamam isso de marxismo, e as pessoas aceitam como marxismo. O marxismo é uma teoria proteica,
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ela muda como um camaleão, ela pode dizer qualquer coisa. Qual é a unidade por trás disso? Eu pensei
nisso anos a fio. Daí eu cheguei a uma conclusão: a unidade do marxismo não é a unidade de uma
doutrina, não é a unidade de uma filosofia, não é sequer a unidade de uma estratégia, é a unidade de
uma cultura, onde tem pessoas que participam e pessoas que não participam. Então, se você está dentro
daquela cultura você vai chamar de marxismo as ideias mais disparatadas [01:45] que circulam dentro da
atmosfera daquela cultura. Teve gente que ficou louco da vida quando eu disse isso, mas eles não
podem dizer que não porque, quando eles abrissem a boca, eles iam dar mais uma prova do que eu
estou falando.

Tem coisa que dá para você entender historicamente. Por exemplo, a unidade do Marxismo é a unidade
de uma cultura e não de uma doutrina, não de uma estratégia, nem sequer de um movimento político.
Dá para provar isso aí facilmente. Isso aí ajuda você entender um movimento histórico de 150 anos.
Então a coisa estava assim, se desenvolveu assim e chegou no ponto tal, agora o que vai acontecer em
seguida? Parece que vai para tal ou qual direção, mas pode acontecer outra coisa também. Você
imagina para você fazer uma síntese dessa, quantos anos você precisa de leitura, meditação etc.
Imagina fazer isso com a história humana. É uma bobagem.

A nossa visão da história humana está balizada por uma multiplicidade inabarcável, na qual você só
consegue unificar certos capítulos, mais ou menos separados e está balizada, por outro lado, pela fé
religiosa que tem uma espécie de meta-história humana, que começa na criação e culmina no juízo
final. Isso tem fundamento, desde que você tenha consciência de imortalidade (que eu expliquei no
outro curso), você sabe que algo que você imagina ser o juízo final, do qual você não tem uma visão
clara, mas alguma coisa daquele tipo é inevitável. Então, quer dizer, podemos confiar nisso aí. Não
precisa entender completamente. O que nós sabemos é o que está ali no credo: Jesus vai vir, julgar os
vivos e os mortos. Como ele vai fazer isso? Não tenho a menor ideia. Quando? Também não tenho a
menor ideia, mas eu sei que este é o fecho da história, porque este é o fecho da vida individual humana.
Quer dizer, o fim do mundo chega para cada indivíduo no instante em que ele abandona o mundo.
Então, o fim do mundo é absolutamente inevitável porque é o nosso fim.

Aluno: O senhor pode repetir? [inaudível [01:47:51]].

Olavo: O fim do mundo acontece para cada um de nós no instante em que nós saímos do mundo. Não
podemos mais atuar neste mundo, ele não existe mais para nós, mas, curiosamente, nós continuamos
existindo de alguma maneira.

Aluno: Bruno Snell, no livro A Descoberta do Espírito, pode ser considerado uma busca dessa unidade
através da condição de a pessoa estar se transformando?

Olavo: Não, porque ele está apenas tentando explicar um processo histórico muito limitado que
aconteceu ali na Grécia. Eu acho que aquilo aconteceu mesmo. Eu acho que esse livro tá certo.

Aluno: E o vínculo dessa fase grega com a Revelação em Israel?

Olavo: Aí complica o negócio. Foi o que o Eric Voegelin tentou fazer, mas eu não sei se funcionou.

Aluno: Pode repetir a pergunta?

Olavo: Ele pergunta se o livro do Bruno Snell, A descoberta do Espírito, tem algo a ver com essa
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tentativa de unificação do senso histórico. Eu falei que não, porque esse livro trata de um período
histórico muito limitado, temporalmente e geograficamente. Ele não tem nenhuma pretensão de ser
uma filosofia da história. Ele é um livro de história sobre um determinado processo que aconteceu
numa determinada cultura. Fontes orientais do pensamento grego é um negócio que ninguém sabe
direito, até hoje não está esclarecido, todo o dia estão descobrindo coisas novas. Mesmo a nossa visão
do desenvolvimento histórico da Grécia é muito precária.

O que eu estou falando para vocês não é o desenvolvimento histórico dos fatos, eu estou falando apenas
de uma disciplina em particular, uma coisa muito limitada desta ou daquela disciplina em particular. Ou
seja, você não está tentando [01:50] unificar um processo intelectualmente. Você não está fazendo uma
teoria do desenvolvimento histórico do direito ou da economia. Não. Você está falando de uma unidade
real que existe na medida em que o autor se refere a outro. As linhas de significado que vão passando
ao longo dos tempos: fulano disse isso, esse respondeu tal coisa, o outro falou tal outra. É uma espécie
de um diálogo e, claro, no diálogo tem pessoas que não foram ouvidas, mas que deveriam ser. Também
fazem parte do diálogo, de algum modo. É o caso de Giambattista Vico, na filosofia do Século XVIII, a
voz dele não foi ouvida, mas daí você pode conjecturar o que aconteceria se fosse ouvida. Essa estória
de que “em história não existe o se”. Essa é a coisa mais estúpida que você pode dizer porque não tem
nenhuma ação humana que possa ser compreendida fora das suas alternativas. Nenhuma ação humana.
Quer dizer que se, quando o indivíduo toma uma decisão, não houvesse outras decisões possíveis, ele
não precisaria tomar decisão alguma. Portanto, cada acontecimento só faz sentido na medida em que
você possa imaginar: e se não fosse assim? E se o sujeito fizesse outra coisa? No mínimo, você tem que
perguntar que outras alternativas passaram pela cabeça dele quando ele tomou essa decisão.

A história é um conjunto de hipóteses, das quais algumas se realizaram e outras não se realizaram. Sem
alternativa, sem o condicional não é possível entender nenhuma ação humana porque aquilo não é
como um processo natural que obedece a uma necessidade férrea. Você pode até criar uma filosofia
determinista depois e dizer: o que aconteceu é o que necessariamente tinha que acontecer. Bom, isso é
o que você está dizendo depois que já aconteceu, mas para quem estava lá no meio certamente não era
assim. Quando o sujeito tem que tomar uma decisão estratégica-militar: aonde que nós vamos colocar
as tropas? O sujeito não pergunta assim: o que é que tem que acontecer necessariamente, qual é a
necessidade férrea que me obriga a colocar as tropas aqui ou ali? Não, eu tenho que decidir, não é
assim? Então, ele está exercendo a sua liberdade na ação. Depois pode vir um teórico e dizer: “Não, ele
fez isso porque estava determinado”. É fácil dizer isso depois, mas se tudo está determinado, o que é
que determina que você tenha que dizer precisamente isso agora mesmo? O que determina que você
tenha que criar uma filosofia determinista? Também já estava determinado.

Essa história de determinismo e livre-arbítrio não tem solução teórica porque os dois elementos estão
presentes em qualquer ação humana, evidentemente. Então, você não tem solução teórica, você só tem
uma gradação que se manifesta em cada situação específica. Em cada indivíduo tem uma série de ações
que estão bloqueadas, são impossíveis, tem outras que são possíveis e tem outras que são obrigatórias,
então você tem uma mistura de determinismo e livre-arbítrio. Qualquer ação humana é assim, portanto
a solução teórica não interessa.

A questão do determinismo e livre-arbítrio é tão imbecil quanto você perguntar assim: uma régua de
um metro se compõe de cem centímetros ou um centímetro se compõe da centésima parte de um
metro? Tenta resolver isso aí. Você nunca vai chegar. Por que? Porque é as duas coisas ao mesmo
tempo. Determinismo e livre-arbítrio são unidades de medida com que você consegue desenhar
[01:55] certas situações, mas elas não existem em si mesmas. São conceitos limite que servem de unidade
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de medida, por assim dizer.

Soluções como essa que eu estou dando, esse problema do determinismo e livre-arbítrio, eu resolvo em
dois minutos. Isso não é um assunto sério. Não é um problema filosófico sério e, no entanto, quanto
papel já não se imprimiu com isso aí? Eu posso fazer isso por causa deste mapeamento. Esse
mapeamento me permite depois, facilmente, reconstituir o status questionis, a evolução das discussões
sobre determinado ponto. Na hora que você tem isso, às vezes você vê: tem aqui uma discussão de dois
mil anos e os caras esqueceram de pensar isto ou aquilo, mas para saber isso você precisa ter a história
inteira. Imagina o meu susto quando eu percebi que o negócio dos quatro discursos de Aristóteles tinha,
simplesmente, desaparecido do panorama depois de São Tomás de Aquino. Ninguém fala disso. Mas a
coisa está lá, está tão óbvia. O pior que depois apareceu um menino chamado Augusto Fleck, que
continuou a pesquisa – é um rapaz de dezoito anos – ele começou a pesquisar um monte de textos dos
primeiros séculos do cristianismo e descobriu o seguinte: esse negócio dos quatro discursos, até o
tempo de São Tomás de Aquino, todo mundo sabia, depois sumiu. Eu não sabia que tanta gente sabia,
mas isso aí torna ainda mais espantoso o desaparecimento posterior.

Aluno: A gente fazer o nosso mapa da ignorância, partindo, por assim dizer, do esqueleto daquilo que
a gente vai ter que é…colocando depois os órgãos, as pecinhas para ir montando todo o nosso
conhecimento…e um outro elemento que ainda faz falta em nossa biografia, que é o seguinte: a nossa
possibilidade de ação real, ou seja, pari passu com a construção do nosso caminho, que é constituído
de livros, de coisas que a gente quer ver e estudar, a gente tem a limitação da nossa própria ação, a
construção mesma do nosso caminho, ela depende de uma consciência real daquilo que você pode
fazer.

Olavo: Claro.

Aluno: A gente não pode ver tudo, não pode fazer tudo ao mesmo tempo.

Olavo: Na medida em que você está fazendo isso, você já está mapeando a sua limitação e você sabe
que deste conjunto que você está fazendo…a ideia não é que você vai ler tudo isso ou que você vai
estudar tudo isso ou conhecer tudo isso. A ideia é apenas saber onde estará, dentro desse conjunto, as
questões específicas as quais você vai dedicar o resto da sua vida, ou seja, é para você saber onde você
está e não o que é que você vai estudar.

Idealmente, você pode até pensar: vou fazer a lista destes livros e vou ler todos. Você pode sonhar com
isso, até faz bem. Eu penso assim: quando eu morrer, se Deus me levar para o Paraíso, ele vai me botar
em uma biblioteca onde tem todos os livros que Deus escreveu e eu vou conseguir ler tudo aquilo. Eu
penso assim: o Paraíso é onde Deus vai responder tudo o que eu quero saber. Não vai poder responder
tudo de uma vez, mas ele vai responder.

Aluno: Sobre esses quatro discursos de Aristóteles que desapareceram até São Tomás de Aquino…

Olavo: Não, desapareceram depois de São Tomás de Aquino. Não sei por que. Até hoje não sei explicar
porque que esqueceram isso, que é uma coisa tão básica.

Aluno: Mas tem a ver com São Tomás de Aquino?

Olavo: Não, não, ele é apenas o último que menciona o assunto. [02:00]
23

Aluno: Isso está colocado de maneira tão clara como o Senhor coloca no seu livro de Aristóteles?

Olavo: Não, não tão clara, mas a existência das quatro modalidades, dos quatro níveis de credibilidade,
era uma coisa que era geralmente aceita. Ninguém estudou o assunto em profundidade, claro, e também
ninguém discute o conceito, mas era uma coisa assim, vamos dizer, elementar, como Avicena
explicava: a lógica se divide em tal, tal, tal… pronto acabou, não se discutia isso.

Aluno: Mas se eles não tinham o texto da Poética de Aristóteles, como que eles conseguiram ter
imaginado?

Olavo: Simplesmente imaginavam. Veja, eles não tinham o texto da poética, mas sabiam que ela existia
e, além disso, você tem outras menções de Aristóteles ao mesmo assunto em outros lugares. Ele não
fala do gênero literário da poesia só na Poética. Não, ele tem menções espalhadas aqui e ali.

Se você pensar bem, os quatro discursos é uma coisa de senso comum porque são como se fossem
quatro pontos cardeais, são diferenciações máximas. Mas você pode dizer “Ah, mas não tem discurso
intermediário?”. Bom, pode ter uma infinidade de discursos intermediários, mas eles serão sempre
balizados por esses quatro. O sujeito nem precisava ter lido tanto Aristóteles para ele sacar uma coisa
dessa. A coisa foi esquecida e se tornou tão estranha que daí eu tive não apenas que desencavar do texto
de Aristóteles mas tive que justificar porque que é assim, quando, antigamente, parecia tão óbvio que
ninguém nunca pensou em justificar.

Aluno: Se articulava alguma pedagogia do Trivium?

Olavo: Não sei, mas eu acho que não houve nenhuma tentativa deliberada de articular isso com a
pedagogia. Eu acho que tinha uma espécie de uma articulação espontânea, quase inconsciente, mas
acho que ninguém pensou uma coisa dessa; tanto que você vê que, entre os séculos XII e XIII, a
educação artística era completamente separada disso. Os arquitetos não estudavam nem Trivium nem
Quadrivium nem coisa nenhuma e o pessoal das Universidades também não estudava arquitetura.

A unidade que a gente vê é a unidade de uma cultura. Não quer dizer que esta unidade existisse,
conscientemente, na cabeça de cada um. A gente vê aquele período histórico com todas aquelas coisas
misturadas e imagina: quem estava lá sabia tudo isso. Sabia coisa nenhuma. As coisas, simplesmente,
estavam acontecendo ao mesmo tempo e você capta a unidade a uma distância de mil anos, mas para
quem estava lá dentro não havia unidade no nível consciente, mas, inconscientemente, poderia haver. É
a hipótese que eu faço no livro A filosofia e seu Inverso: quando os caras começaram a escrever as
Sumas, as catedrais já existiam e algumas bem pertinho da Universidade. É impossível que eles não
conhecessem. O impacto visual daquela coisa é tão forte que é natural que o indivíduo use aquela
mesma estrutura, analogicamente, para fazer um texto sem que ele precisa nem perceber que foi isso
que ele fez. “Ah, tirei a inspiração aqui da catedral, então vou fazer aqui uma construção catedralesca”.
Ele não precisa ter pensado nisso.

A imaginação da pessoa é afetada pelos elementos visuais, físicos, que estão à sua disposição. [02:05]
Dificilmente você vai criar esquemas que não tem nada a ver com as formas do ambiente físico. Uma
vez eu fiz essa hipótese: a inteligência no Brasil é tão frágil, ela não consegue se levantar do caos,
porque o ambiente físico é muito caótico.
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Aluno: Isso é um problema permanente no Brasil?

Olavo: Sem sombra de dúvida. Você vai ter que criar o seu ambiente estético ou com elementos
imaginários ou viajando pelo mundo, vendo outras coisas e se deixando impactar. Se você foi criado
naquele caos, não apenas caos, mas feiura imensa, então, a primeira vez que você desembarca em Paris
e vê uma catedral você diz “Opa! Agora eu tenho uma medida do que é a humanidade. Antes não.
Antes eu só conhecia macaco”. Para mim, a primeira vez que eu vim para os Estados Unidos em 1986.
Nossa! Foi um impacto terrível. Foi a primeira vez que eu percebi que alguns problemas tinham
solução, porque eu estava acostumado – eu tinha 39 anos – a uma espécie de fatalismo brasileiro que é
assim: a derrota é inevitável. Tinha uma frase: “o universo é hostil e a humanidade é inviável”. Eu já
tinha chegado a essa conclusão. E foi aqui, em 1986, que eu vi: “Epa, às vezes dá para resolver alguns
problemas”. Não estou brincando.

Aluno: Dá um exemplo estético… um problema de algum formulário… que você enfrentou assim …

Olavo: Por exemplo, aqui se você pedir algum favor para as pessoas, primeiro, elas sempre faziam, mas
se você dizia “não precisa”, elas paravam imediatamente. Elas não insistiam. Se não precisa, não
precisa. Então eu vi: você tem aqui um problema prático, mas se a pessoa começa a insistir, criou-se
um problema humano e emocional em cima. No Brasil é sempre assim, se você falar: “Não, não
precisa”, o outro diz: “Ah, você não quer mais, está me rejeitando”. Terceiro problema: já entrou um
elemento neurótico. É absolutamente alucinante. Qualquer probleminha simples é recoberto de
camadas e camadas de sofrimento psíquico desnecessário e tudo fica impossível. Por exemplo, quando
eu convido um brasileiro para vir para cá. Ele diz: “Ah, espera aí, mas eu tenho que pagar uma dívida,
tenho que terminar de pagar a prestação da casa, tenho que curar a minha hemorroida, eu tenho que não
sei o que…”. Eu digo: “Você tem que primeiro resolver todos os seus problemas para fazer uma
viagem? Não é mais fácil fazer a viagem primeiro? O brasileiro não tem a capacidade de distinguir um
problema de outro. Ele opera por síntese e aglutinação de problemas. Eu acho que é o único povo no
mundo que pensa assim – o romeno pensa um pouco assim também. Talvez outros povos sejam assim,
mas, certamente, são povos sofredores. Eu lembro quando eu conheci um cara, o Whitall Perry, que é
um estudioso do negócio de religião comparada, ele tinha estado no Brasil. Ele falou assim: os
brasileiros são muito nervosos não é? Eu falei: são sim, você nem queira saber. Eles vivem nervosos,
eles vivem sofrendo.

Aluno: Será que é tudo reação à opressão constante do Estado?

Olavo: Não, não é só o Estado porque, em geral, o Estado, no Brasil, não é tão opressivo assim. Você
não pode comparar aquilo com a ditadura soviética ou nazista. O estado americano é muito mais
intrusivo do que o Estado Brasileiro. O brasileiro diz que é, mas ele não consegue fazer. Eles querem
controlar a vida de todo mundo, mas eles não conseguem, mas aqui conseguem.

Eu acho que o caos físico é o começo de tudo, sem sombra de dúvida. [02:10] Tanto que esse caos é
crescente depois dos anos 50. O ambiente físico brasileiro até os anos 50 tinha alguma coerência. Se
você pega fotos da cidade de São Paulo, do Rio de Janeiro, até ali a cultura estava se desenvolvendo.
Depois dos anos 50, quando os caras começaram a ganhar dinheiro, veio a indústria automobilística, foi
isso que “danou” tudo. Você não pode dar dinheiro para idiota, só vai fazer besteira. O caos
arquitetônico foi resultado direto da indústria automobilística, que veio com Juscelino, o pessoal
começou a ganhar dinheiro. Então, a primeira coisa foi: vamos derrubar a cidade inteira e fazer outra
coisa. Você tinha, por exemplo, um coreto no meio da praça: derruba o coreto e faz um chafariz de
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pastilha, com luzes coloridas, começaram a fazer as monstruosidades.

Eu acredito que não existem no mundo cidades tão feias quanto as cidades do interior do Brasil.
Existem lugares mais pobres, mas você veja que, no Brasil, a feiura não está nos lugares mais pobres
porque nos lugares mais pobres – por exemplo, eu morei muito tempo em Iguape, sul do Estado de São
Paulo, que é uma das regiões mais pobres; não era tão feio porque os caras não tinham dinheiro para
derrubar o antigo e fazer o treco novo. Então você tinha uma certa harmonia da arquitetura colonial,
aquelas casinhas. Mas entrou dinheiro, eles derrubam tudo e começam a fazer besteira no lugar, sem
pensar o efeito que isso vai ter sobre as próximas gerações. Esse é um problema que vocês vão ter que
enfrentar pelo resto das suas vidas, vocês estão tentando botar ordem nas suas mentes quando a
desordem e o caos estão entrando pelos seus olhos 24 horas por dia.

Primeiro, você tem que criar uma autodefesa estética, isso aí é básico. Então, você rechear a sua mente
de imagens, de coisas bonitas, lugares bonitos. Por isso que eu dou aquelas melodias para o pessoal
decorar. Se tudo que está em volta é feio, você fecha os seus olhos e vive em um mundo imaginário,
mas em um mundo imaginário preenchido de coisas reais. Elas são reais, só que elas não estão ali. Eu
lembro quando eu morava no lugar chamado Poá, que é uma das cidades mais disformes do universo;
eu, mentalmente, estava em Roma, Paris…eu não aguento olhar essa coisa aqui. E, aliás, eu morava em
uma casa lá, a casa era bonitinha, a casa, o quintal, era um dos poucos lugares bonitos, então, o que é
que eu faço? Eu não saio de casa. Você não pode se expor à feiura, tem um limite. Então, por exemplo,
você perceber esse limite e falar: não, essa coisa começou a me fazer mal. Você tem que fechar os olhos
e pensar em outra coisa, pega um livro de gravura, pintura…

Toda a classificação de qualquer coisa tem um fundo estético. Você tem que ter alguma imagem de
ordem, beleza etc, na qual você vai se basear para construir formas menos sensíveis, mas que tem quer
ser harmônicas também. Hoje em dia, as coisas que eu leio no jornalismo brasileiro, eu fico horrorizado
porque os caras não têm o senso da forma. Eles não sabem, por exemplo, quando você escreve um
artigo de jornal que tem que ter um começo, um meio e um fim, tem que ter uma dialética interna.
Quando pegam muito, eles pegam, assim, a dedução lógica. Essa é a única forma que eles conseguem.
Depois você pega isso e compara com um artigo do Otto Maria Carpeaux, que é como se fosse uma
peça de música de câmara, que tem um tema, o tema desenvolve e fecha. Os caras não sabem nem
perceber isso, quanto mais fazer. Eu estou falando de uma época em que todo mundo sabia isso.

Como recuperar isto? Bom, nós temos [02:15] que criar estruturas que nos permitam botar uma ordem na
nossa alma, na nossa mente para que um dia, se Deus quiser, um pouco da nossa ordem se espalhe,
volte e alivie um pouco o caos em que as pessoas estão vivendo, sem nenhuma pretensão de criar um
novo Brasil, um projeto de Brasil. Não, estamos longe disso. O nosso objetivo é assim: até onde eu
pretendo alcançar com isso? Bom, eu pretendo alcançar aquelas pessoas que eu vier a alcançar,
somente elas. Pode ter algum efeito benéfico em volta, mas é imprevisível e incalculável. Então, se o
sujeito disser: você tem um projeto educacional para o Brasil? Não, eu tenho um projeto educacional
para os meus alunos. E para os outros? Não sei.

Antigamente eu pensava em fazer o curso, fazer o seminário de filosofia nas favelas do Rio de Janeiro.
Sim, mas eu tenho que ir lá e pegar só os meninos que tenham vocação para isso, os outros não. “Ah,
vou popularizar!” Não dá para fazer isso, mas, certamente, naquele meio pobre, tem pessoas que estão
loucas para aprender. Era o caso do meu amigo Ronaldo Alves, que nasceu no Morro da Rocinha e que
dizia: “Fui mais discriminado na favela por ler livros do que na cidade por ser preto”. São esses garotos
que a gente tem que pegar lá. Infelizmente não deu, porque daí precisaria de algum patrocínio que não
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fosse do Governo, porque do Governo custaria muita coisa.

No Brasil, eu nunca encontrei patrocínio para nada que eu quisesse fazer, absolutamente nada. Os
projetos mais urgentes e decisivos… nada, nada, dada. Essa é outra coisa incrível, aqui nos Estados
Unidos todo mundo contribui para tudo, não tem um americano que não contribua para 20, 30
campanhas diferentes. Aqui é costume, por exemplo, os caras deixarem a sua herança para uma
instituição, para uma fundação. Muita gente faz isso. Essa ideia não existe no Brasil. Isso quer dizer
que a dimensão da generosidade não é conhecida no Brasil. A generosidade como um elemento normal
e usual da sociedade humana. Isso quer dizer que a medida do bem, a medida da bondade é muito baixa
no Brasil. Por isso que pegaram um cara medíocre como Betinho e começaram a achar que era Santo.
Eu digo: “O quê? Vocês não tem medida do que é um Santo. Simplesmente porque o cara distribuiu um
dinheirinho aí para uns caras pobres ele já pode ser Santo? Que ideia!”. Quando aparece, por exemplo,
um juiz honesto no Brasil, ele é beatificado. Não é assim? Mas ele não está lá para ser honesto? Não é
normal que seja honesto? Você deveria ficar assustado quando ele é desonesto, não quando é honesto.
Isso quer dizer que o caos estético se prolonga em um caos moral, em um caos ético, as pessoas não
sabem distinguir o certo do errado, o bem do mal e, por isso mesmo, a medida das possibilidades
humanas, tanto possibilidades intelectuais quanto morais, é muito baixa e a medida das possibilidades
práticas é mais baixa ainda.

Eu vivi no Brasil 58 anos, eu nunca tive uma única ideia que todo mundo não dissesse que ia dar
errado. Nunca, nenhuma. Eu nunca ouvi alguém dizer: “Poh, legal, vá em frente, isso é bom!”; nunca
na minha vida. Até os trinta e poucos anos eu era trouxa e acreditava nos caras, mas um dia eu falei
“Epa, espera aí! Acho que estou sendo otário porque os caras estão me recomendando a derrota, a
depressão e eu estou acreditando”. Uma hora você tem que tampar os ouvidos: “Quer saber, eu não
acredito em você, eu acredito em mim”. Durante um certo tempo eu tive que fazer assim: eu não
acredito em ninguém, eu só acredito em mim. Por uma questão [02:20] de sobrevivência porque não tinha
bons conselheiros. No Brasil, todo mundo é mau conselheiro. Por exemplo, você tem um problema
com a sua mulher e vai perguntar para os seus parentes. Eles vão dizer: “Ah, separa logo!”. Não é
assim? As pessoas adoram um fracasso matrimonial, principalmente as sogras, as mães “Por que você
casou com aquela desgraçada? Tem que separar logo, volta para mamãe”. Todo mundo é assim, isso é
regra, não estou caricaturando não, estou falando com base na experiência.

A primeira vez que eu conheci um nego que me deu um bom conselho era um estrangeiro, que foi o Dr.
[Juan Alfredo César] Müller, que era um argentino, nasceu na Argentina e foi criado na Suíça. Ele me
dava bons conselhos. De brasileiro mesmo não veio nada. É este o ambiente no qual vocês estão, tanto
que o Brasil é campeão mundial de depressão, isso não é brincadeira, não é um dado externo. Você está
no meio depressivo e isso significa que o seu intercâmbio com as pessoas também tem um forte
elemento depressivo, e se você não aprender a se defender dessa depressão, você vai afundar junto com
todo mundo. O fracasso no Brasil é considerado uma coisa normal. Todo mundo deve fracassar, só
meia dúzia que dá certo porque roubou. Não é assim? Esse é o outro impacto que eu tive aqui nos
Estados Unidos. Para as pessoas aqui é normal dar certo, e de vez em quando, alguma coisa dá errado.
É claro que essa mentalidade americana, que ainda é saudável, não se observa mais na política. Na
política isso sumiu, brasilianizou-se de vez; mas na sociedade, na vida diária, você ainda vê isso aí.

Aluno: O Senhor fala mais desse Brasil campeão mundial da depressão, mas dizem que na Suécia
existem mais do que (…)

Olavo: Não, essa estatística é recente, deste ano [2012], de casos clinicamente diagnosticados de
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depressão.

Aluno: Eu vi estatísticas de que na Suécia era assim porque lá era mais socialista do que o Brasil.
Será que o Brasil, então, já ultrapassou a Suécia?

Olavo: Não sei se isso é causado pelo Socialismo, mas, certamente, esse caos estético e ético tem muito
a ver com isso. Tudo ali naquela sociedade é muito complicado.

Quando você não tem normas claras, você nunca sabe se você está acertando ou errando. Tudo depende
de uma decisão arbitrária das pessoas na hora. Você está à mercê de malucos que vão te julgar de
acordo com, sei lá, a menstruação mental deles no momento. Por exemplo, a aceitação social. Aqui nos
Estados Unidos, como é que as pessoas fazem amizade? Elas fazem amizade em círculos de pessoas
que estão interessadas nas mesmas coisas. Você gosta de estudos bíblicos? Então você vai lá no círculo
de estudos bíblicos e faz os seus amigos ali. Você gosta de basquetebol? Você vai no círculo de
basquetebol e faz os seus amigos ali. Isso significa que o círculo de amigos tem uma homogeneidade,
tem uma certa coerência. No Brasil, todo mundo é amigo de todo mundo. Mas o que significa ser
amigo? Peça um dinheiro emprestado e você verá, já perdeu o amigo. Claro que existem exceções, mas
as exceções são tão notáveis, justamente porque são exceções.

Eu conheci pessoas boníssimas no Brasil, primores de generosidade, mas era assim: um, dois…que
você nem podia contar: eu não vou contar para ninguém que ele é bom porque senão vão começar a
falar mal dele.[02:25] Vão dizer: ah, é um trouxa!

Esse é um ambiente estético, cognitivo e moral, no qual vocês vão tentar fazer alguma coisa. A
autodefesa do imaginário é absolutamente fundamental. Isso também tem um risco, evidentemente: eu
vou me fechar no meu mundo imaginário, mas eu vou ter que continuar me comportando como se eu
fosse uma pessoa normal igual a eles, então eu tenho que aprender a imitar a loucura geral que eles
chamam de normalidade, e eu vou ter que saber durante quantas horas por dia eu aguento fazer isso.
Tem um limite, uma hora, duas horas…mais do que isso você começa a se acanalhar, então daí você
foge e volta para casa. De certo modo, você tem que ser uma ilha, mas, de vez em quando, você tem
que sair da ilha para comprar comida. Então, acho que por hoje é só.

Transcrição: Diego Fernandes e Silvio Sandro.


Revisão: Diego Fernandes e Silvio Sandro [silviosiandro@gmail.com].

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