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Princípios e Métodos da Autoeducação

OLAVO DE CARVALHO

Aula 02: Pesquisa bibliográfica e autoeducação


02 de outubro de 2012

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso de Filosofia Online.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

Então vamos lá, sejam bem-vindos, vamos começar novamente. Ontem eu dei algumas ideias sobre
condições psicológicas que cercam esta atividade [a filosofia], nós vamos voltar a esse tema mais
adiante, mas hoje eu queria entrar mais na parte prática de princípios e métodos.
A primeira coisa que você tem que tomar consciência quando você entra nessa aventura da
autoeducação, é entender que a autoeducação é educação; e educação não é algo que você possa
praticar na base do puro empirismo, quer dizer, você não vai, sem saber nada, tentar se ensinar alguma
coisa sem saber coisa nenhuma a respeito do que é ensinar e educar. Portanto, o item um do processo
da autoeducação, é você se informar sobre a educação. Então se o sujeito perguntar “Qual é a primeira
coisa que eu devo ler?” (supondo-se que você seja um ignorante completo, porque não existe um
ignorante completo.
A primeira coisa é você arrumar uma boa História da Educação e você pegar ali quais foram os
momentos culminantes do processo educacional, quer dizer, quando a arte de educar atingiu um alto
nível de eficiência e quase genialidade. Evidentemente você vai ver que no ocidente (pelo menos), o
primeiro momento deste tipo é presentado pela própria pessoa de Sócrates.
Mas, depois você verá um florescimento do ensino universitário entre os séculos XII e XIII no
ocidente; um outro no tempo do Romantismo Alemão (fim do século XVIII e começo do século XIX) e
depois um florescimento extraordinário do ensino universitário em Viena, no começo do século XX.
Então são somente quatro exemplos.
O que não impede também que você procure se informar sobre outras modalidades de educação que se
manifestaram em outros lugares, como por exemplo, o ensino do Vedanta na Índia, que é feito por um
método tradicional há milênios e continua imutavelmente, o treinamento dos letrados chineses. Quanto
mais informação você tiver sobre as várias técnicas e programas de educação que houve ao longo da
história, mais facilmente você poderá colher o que é melhor para você.
Eu estou dizendo isso porque eu mesmo fiz isso. Fui levado a esse negócio de autoeducação não por
uma escolha pessoal, mas pela força das circunstâncias, de repente me vi no mato sem cachorro: “Não
tem ninguém aqui em quem eu possa confiar para me ensinar e eu também, evidentemente, não posso
ensinar a mim mesmo a partir do nada; então só o que resta fazer é procurar aprender com quem sabe”.
Um segundo elemento é o seguinte, você verá que se você tomar a sua própria pessoa num momento
qualquer do seu desenvolvimento, este por exemplo, você verá que você tem, pelo menos, três graus de
conhecimentos diferentes, ou seja, coisas que você conhece com gradações diversas. Primeiro, existem
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conhecimentos fundamentais que já se incorporaram nos seus mecanismos de percepção e que


determinam a sua maneira de perceber o mundo, você talvez não se lembre de onde adquiriu estes
princípios ou estas chaves, e, talvez, você nem tenha clara consciência de quais são elas. O
precedimento mais fácil para você identificar isso é justamente você ver as diferenças de opinião que
existe entre você e outras pessoas. Às vezes não se trata apenas de diferenças de opinião a respeito
disso ou daquilo, mas de chaves gerais que já orientam a sua percepção em um sentido e talvez oriente
a outra pessoa em um outro sentido.[00:05] É sempre interessante você observar isso aí, ou seja, quando
você se mete em discussões (aliás, eu recomendo que não se metam em discussões, eu dou esse
conselho insistentemente aos meus alunos).

Em geral, nós entramos em uma discussão por um impulso, por uma reação que nós temos diante de
algo que nos desagrada, que nos choca ou nos incomoda. Então, movidos por essa emoção, nós
respondemos. Mas isso aí é a mesma coisa que você entrar em um ringe de boxe só porque você está
com raiva do Mike Tyson, você provavelmente vai apanhar ou ser humilhado. Nunca entre em uma
briga quando você tem um motivo emocional pra entrar nela, nunca faça isso, você só vai entrar na
briga quando está perfeitamente calmo, quando você sabe o que está fazendo e quando você está se
divertindo muito com aquilo. Isso quer dizer que a própria motivação emocional impele você ou à
derrota ou ao exagero ou à injustiça, e alguma coisa errada você vai fazer.

Notem que ao longo dos milênios, o número de pessoas que participaram de discussões públicas é
muito pequeno, é ínfimo; e que, nos últimos anos, nas últimas décadas (sobretudo com o advento da
internet) esse número se multiplicou formidavelmente. Na mesma medida que se multiplicou, as
opiniões perderam valor, por exemplo, o sujeito escreve alguma coisa [na Internet] e aparecem mil
reações. Eu pergunto: será que algum desses leu as outras 999? Ninguém leu nada daquilo, ninguém
está se lixando. É claro que, às vezes, eu entro também em uma dessas discussões (em geral, só para
me divertir, para falar alguma coisa engraçada). Hoje, por exemplo, tinha um artigo do (?), que é um
ex-muçulmano, que colocou um título assim: “Os muçulmanos me aterrorizam”, lembrando as coisas
que ele viu na cultura islâmica etc. E daí entrou um sujeito lá, de má vontade, e escreveu assim: “Os
Batistas me aterrorizam”. Aí eu não resisti, e pensei: “Vou ter que entrar nisso aí” e escrevi lá uma
perguntinha: “Eles cortaram o seu clítoris?”. Já que ele tem tanto medo dos Batistas…bom, o outro tem
alguma razão para estar com medo dos muçulmanos. Mas é assim, é só piada, não é uma participação
intensa, não é algo que tenha peso para mim; e geralmente, eu só entro quando estou seguro de que a
coisa é assim. Se eu me sinto realmente chocado ou ofendido, eu engulo a minha raiva. Porque eu não
vou estar agindo como profissional, vou estar [agindo] como um amador. Aliás, é como aquela famosa
história islâmica de que Ale, o genro de Maomé, era um grande espadachim, um grande guerreiro, e
numa das batalhas ele conseguiu desarmar o inimigo e acossá-lo, encostou a espada na garganta do
cara. Neste momento, sujeito começou a xingá-lo de tudo quanto é nome. Foi quando ele pegou a
espada, colocou-a na bainha, e foi embora. Aí o cara falou: “Poh, você me encosta na parede, encosta a
espada na minha garganta e eu ainda te xingo, você vai embora por quê?”. Ele disse “Não, é porque até
agora eu era um soldado, mas se eu matasse você agora, eu seria um assassino”. Quer dizer, ele já não
estaria mais agindo como um profissional. Isso aqui é fundamental, mas isso é um parêntese que estou
fazendo.

Você não precisa, na verdade, entrar nas discussões, o simples fato de você ouvir uma opinião que é
contrária a sua ou que é chocante para você, pode ser um estímulo para que faça essa pergunta: “Como
essa pessoa percebe as coisas?”. O que significa que você vai ter que fazer uma espécie de um
exercício stanislavskiano de identificação com uma mente que é totalmente diferente da sua.
Stanislavski é o grande diretor teatral russo que criou…(aliás, vocês podem aprender muito com esses
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dois livros A construção do personagem e A preparação do ator). Esses dois livros tem muitas dicas
para quem não se interessa absolutamente pela profissão teatral e que não quer ser nem ator nem diretor
teatral, porque são dicas a respeito do aprendizado e da educação em geral. Eu tive a imensa sorte de
estudar com um discípulo, aluno de Stanislavski que foi o diretor teatral Eugênio Kusnet em São Paulo.
Eu não tinha a menor ambição de me tornar ator um dia mas eu sabia [00:10] que ali havia conhecimentos
psicológicos de importância (aliás, quando eu contei ao Kusnet que eu não pretendia ser ator, ele não
escondeu o seu alívio e disse: “Você foi o pior aluno que eu já tive” [risos]. Eu disse “Não, não se
preocupe eu estou aqui só para pegar umas dicas de psicologia, eu não vou submeter a plateia à minha
humilhante presença”). Stanislavski usava uma técnica que se chamava memória afetiva; e a memória
afetiva consiste em que, quando você ler o texto que você vai representar, você deve buscar na sua
memória situações análogas àquelas que são vivenciadas pelo personagem, de modo que, você
recordando isso, você sinta uma emoção que é análoga à que o personagem quer expressar (quando se
diz análogo, análogo é uma mistura de semelhança e diferença). Qualquer situação que possa produzir
uma exteriorização de emoção, similar à do personagem, serve; não precisa ser igual.

Um outro exemplo que ocorre é o do psiquiatra William Sargant, que examinava os soldados que
vinham da guerra da Coreia com traumas de guerra. Ele tentava produzir neles uma reação catártica,
quer dizer, algo que os fizesse revivenciar aquele sofrimento e desse uma descarga emocional de modo
que o complexo psicológico, criado em torno do trauma, se desfizesse; e ele descobriu que não
precisava ter a menor ideia de quais foram as situações traumáticas, ele podia inventar uma situação
traumática qualquer, e, por hipnose, induzir os camaradas a sentir que eles estavam vivenciando aquilo;
e isso dava a situação catártica que ele queria. A mesma coisa funciona no caso do método do
Stanislavski: a situação que você revivencia, que puxa da sua memória, ela só precisa ser
esquematicamente parecida com a do personagem. Um exemplo que ele conta [o Stanislavski] (que
virou um clássico) foi quando ele precisava representar uma peça em que o personagem tentava um
suicídio mas no momento culminante, faltava coragem e ele desistia; encostava o revólver na cabeça e
desistia. E ele dizia “Poh, onde é que eu vou encontrar na minha memória alguma coisa parecida com
essa?”. Ele procurou, procurou, e não tinha nada. Foi quando ele lembrou de um negócio, ele lembrou
que quando fazia muito frio na Rússia (aqueles 40º abaixo de zero) e ele tinha que tomar banho e não
tinha água quente. Ele encostava a mão na torneira, mas depois se acovardava e desistia. Ele então, na
hora de representar aquela cena, se recordava dessa passagem da sua existência. É claro que há uma
desproporção enorme entre você tomar banho e se suicidar, o risco não é comparável, mas
estruturalmente, é a mesma coisa.

Você pode usar esse mesmo processo para você entender profundamente uma opinião diversa da sua;
ou seja, você vai participar imaginariamente e afetivamente, das condições existenciais que geraram
aquelas opiniões, sem que você precise, intelectualmente, aprovar a opinião. Você coloca a aprovação
ou a desaprovação de lado e diz: “Bom, agora não estou interessado nem em aprovar, nem em
desaprovar, isso eu deixo para depois. Primeiro eu quero entender profundamente, entender não só o
conteúdo verbal explícito das afirmações, mas entender a percepção que esteve por baixo dela”. Muitas
opiniões erradas apenas são expressões inadequadas de percepções perfeitamente reais. Quando as
pessoas não sabem os nomes das coisas, quer dizer, se no seu repertório de conceitos e símbolos, não
existir a figura adequada para expressar o que ela está percebendo, ela usa uma outra. Então, na
verdade, ela não disse o que percebeu, ela disse uma coisa parecida, mas que coloca ela própria numa
pista errada, ou seja, a percepção dela vai em um sentido e a inteligência dela, o raciocínio, vai em
outra direção.

Tem autores cuja obra inteira está afetada disso, eles realmente não conseguem dizer o que percebem,
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eles dizem sempre outra coisa, e, quando essa coisa que eles dizem parece com aquilo que outras
pessoas dizem, [00:15] com aquilo que circula no seu grupo de referência, eles têm, não só a impressão
de que conseguiram se expressar, mas de que estão dizendo a verdade; quando na verdade não disseram
nem mesmo o que perceberam.

Este é um exercício, você deve sempre treinar isso: nunca discutir nada se você não fez primeiro a
identificação Stanislavskiana com aquilo.

Esse preceito é baseado em uma frase de Leibniz que eu li muitos anos antes. Ele diz assim: “Eu
concordo com tudo quanto eu leio”. Leibniz é uma das grandes inteligências da humanidade, ele deve
ter lido milhares de asneiras ao longo da sua vida; então por que ele diz que concorda com isso? É
simples: porque no momento em que ele está lendo, ele está tentando pensar, perceber e sentir como o
autor daquilo que ele está lendo. Isso quer dizer que ele concorda naquele momento, não
necessariamente depois.

Você distinguir esses dois momentos, o momento da compreensão e o momento do julgamento, é


fundamental para qualquer aprendizado que você faça. Em geral, as pessoas criam uma tremenda
dificuldade de aprendizado por uma recusa obstinada de se identificar com aquilo que elas não
concordam; então isso quer dizer que se você não concorda na primeira, você já cria uma reação, fecha
o seu aparato receptivo, e você não percebe nada mais. Essa é outra regra: não tenha medo de se
contaminar com qualquer ideia que pareça adversa ou repugnante. Você pode levar isso até as suas
últimas consequências.

Um autor que é especialista em escrever coisas repugnantes, é o filósofo romeno Emil Cioran. Ele diz
coisas do seguinte teor: “Não tem importância que o universo não faça sentido, porque o universo não
merece mesmo”. Parece meio chocante, mas como é que ele percebe isso? O que ele percebeu? O que
ele sentiu? Como ele estava realmente vendo o mundo nesse instante?

É uma operação puramente imaginária, na qual, às vezes, uma ou outra informação histórica ou
biográfica pode ajudar você a compreender, mas o essencial não é histórico nem biográfico, o essencial
é a operação imaginária de identificação, como se você mesmo estivesse dizendo aquilo.

Não há ideia, não há opinião, não há afirmação, por mais extrema e repugnante que lhe pareça, que
você não possa pensar em algum momento, isso é muito importante. Por exemplo, você imagina que é
um sujeito cristão, crente; eu lhe digo: “Bom, nunca lhe passou pela cabeça alguma frase horrivelmente
blasfematória, uma ofensa a Deus?”. Passa, naturalmente, só que ela passa e você não a guarda, não a
retém como sua, você entende que é apenas uma possibilidade que passou pelo seu cérebro, e que não
corresponde ao que você deseja acreditar. Isso quer dizer que nenhuma opinião, nenhuma sentença,
nenhuma afirmação nos é totalmente estranha; então nós temos que levar essa elasticidade de
imaginação até o seu último limite.

Nós temos que meter na nossa cabeça: nós podemos compreender tudo que nós vemos e ouvimos, e
podemos compreender não somente no sentido verbal, formal e imediato, mas podemos entender na sua
motivação. Muitas vezes é justamente nesse trajeto que vai da percepção, passando pela motivação, até
a expressão verbal, que as pessoas erram; e você vai mostrar o erro não por que você sente diferente da
pessoa, mas porque a pessoa não sabe o que sente.

Não sei se está ficando claro isso, mas o indivíduo não sabe exatamente o que ele percebeu, está dando
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o nome errado, ele se equivocou no trajeto da expressão. Notem bem, este é outro item fundamental: a
expressão do que você percebe, do que você sente, é o instrumento fundamental da sua própria
educação; quer dizer, a primeira habilidade [00:20] que você deve tentar desenvolver é essa de você dizer
o que percebe. Dizer o que percebe, dizer o que pensa, dizer o que sente, da maneira mais
personalizada possível, a mais exata possível.

Por exemplo, se nós passarmos um exercício para essa classe e dizer, vocês vão descrever esta sala,
vocês tem dez minutos para descrever essa sala. Você vai ver que, na quase totalidade dos casos, se
produzirão descrições que se parecem com qualquer outra sala, ou com muitas outras. Vai faltar aquele
elemento particular; é isso que na linguagem se chama a propriedade do vocabulário: você usar o
termo próprio ou invés de usar o termo genérico.

Hoje em dia a dificuldade de encontrar o termo próprio é quase universal no Brasil, as pessoas sempre
designam as coisas com o nome de uma classe genérica à qual aquilo pertence, classe na qual se inclui
muitos outros objetos que não aqueles dos quais ele está querendo dizer. Então o desenvolvimento do
vocabulário deve vir pari passo com o desenvolvimento da sua capacidade de observação e distinção
daquilo que é mais específico e mais próprio da situação, do objeto ou da pessoa que você está
querendo expressar.

O descuido com a expressão verbal…muitas pessoas dizem: “Ah, mas eu não preciso disso, eu quero
estudar, sei lá, a Filosofia da Matemática ou qualquer outra coisa na qual eu não preciso ter habilidades
artísticas”. Besteira, quem não tem habilidade artística, não tem nada!

Você não pode começar o seu aprendizado pelos elementos racionais já estruturados como Ciência e
Filosofia, isso é impossível, porque como dizia Aristóteles: “Todo conhecimento começa pelos
sentidos”. Você começa por perceber fisicamente alguma coisa, esta coisa em seguida é elaborada na
sua memória e imaginação, onde você cria esquemas, por assim dizer, visíveis, que representam aquilo
para você. São destes esquemas que você pode tirar um conceito abstrato, e assim você pode operar
com o conceito abstrato. Mas tudo vai começar com a percepção sensível, e da percepção sensível até o
conceito, há uma série de transformações. Isso que dizer que, se você tem o conceito abstrato, mas não
sabe qual foi a sequência inteira das transformações que vem desde a percepção sensível, então
literalmente você não sabe do que você está falando. É como a pessoa que tivesse lido o conceito de
vaca em um dicionário, mas nunca viu uma vaca, então por mais claro que seja o conceito, se aparecer
uma vaca na sua frente você não vai reconhecer. Então a base do conhecimento não se faz com
conceitos mas se faz com percepções e imagens; e o mundo das percepções e imagens é o mundo da
arte.

Isso não quer dizer que você vai ter que desenvolver as suas habilidades artísticas até um nível
profissional, mas você precisa desenvolvê-la até aquele ponto que é necessário até para as atividades
intelectuais mais distantes da arte, até para você estudar Biologia, Geologia ou qualquer outra ciência.

Estou cansado de ver pessoas que são profissionais da ciência e que, dentro do vocabulário da sua
ciência, não sabe distinguir o que é um conceito científico ou o que é uma figura de linguagem. E se
você não sabe essa distinção, então você não conhece realmente o objeto do qual você está falando;
porque um conceito científico expressa uma classe de objetos e uma figura de linguagem expressa uma
impressão que você teve diante de um objeto singular. Essas duas coisas são enormemente diferentes, e
se você não sabe mexer com as duas, então você de fato não sabe qual é a ligação entre o que você está
pensando e o objeto real.
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Então, de cara, [00:25] dominar a linguagem até o ponto de tornar-se um escritor, você não precisa ser o
melhor dos escritores, você não precisa ser um grande artista da palavra, mas observe que os grandes
nomes da ciência, em todos os setores, sempre foram excelentes escritores. Por exemplo, quando você
lê, sei lá, Henri Poincaré, que era um matemático, físico, o negócio é de uma elegância extraordinária.
Na França, Buffon tornou-se um modelo de estilo; e tudo isso é por um motivo muito simples: as
habilidades puramente racionais se desenvolvem em cima das habilidades perceptivas e imaginativas,
elas não vem sozinhas.

Aristóteles já tinha percebido que você não elabora os conceitos a partir da simples percepção sensível
dos objetos, mas a partir da imagem que foi conservada na memória; e esta imagem já é,
evidentemente, trabalhada. Quer dizer, quando você viu diversos entes da mesma espécie e você
conserva uma imagem que simboliza todos eles, nessa imagem, você tem toda uma tensão entre o
individual e o geral. É como se diz “ela é apenas uma vaga, mas não significa só uma vaga, ela
significa todas as vacas”, que é uma coisa que no mundo da percepção sensível, é impossível; uma vaca
real só pode ser aquela vaca e não todas as vacas; mas na sua imaginação, uma “imagem de vaca” pode
significar “vaca em geral”. Então é a imaginação que faz a ponte entre o mundo real, a que você tem
acesso pelos sentidos, e o mundo dos conceitos abstratos e do raciocínio; e se esse trabalho de
imaginação foi mal feito, o seu conceito estará mal feito.

Isso também quer dizer que se você desenvolver habilidades lógico-racionais extraordinárias, sem ter
feito esse trabalho, o seu pensamento vai se constituir e uma casca de racionalidade aparente sobre uma
reação totalmente irracional que você tem com os objetos do mundo real. Você não vai perceber qual é
a sua situação, onde está o objeto, o que ele significa para você, não vai perceber nada, e,
evidentemente, aquele simulacro de racionalidade que você aprendeu, só vai enganar você mesmo;
porque quem leu o que você escreveu ou ouve o que você está dizendo, vai perceber que tem alguma
coisa estranha ali, alguma coisa errada; às vezes não sabe exatamente o quê, mas com um pouco de
prática você acaba percebendo que esse sujeito não sabe do que ele está falando, ele só sabe a estrutura
geral dos conceitos e das articulações entre conceitos.

Aluno: É isso que causa a estranheza quando vou ler sociólogos falando alguma coisa?

Olavo: Ah, mas sem sombra de dúvida, sem sombra de dúvida; porque estão lidando com conceitos
apenas.

Aluno: (inaudível).

Olavo: Perfeitamente. Agora mesmo quando eu estava vindo para cá, eu estava lendo uma coletânea de
escritos de autores brasileiros sobre o fenômeno da contracultura dos anos 60. Eles pegaram aquelas
manifestações todas da música, o florescimento de experiências lisérgicas, novas modas etc, e
começam a analisar, à luz da filosofia de Walter Benjamin ou de Herbert Marcuse, então eu digo “Ah,
mas que coisa bonita, você está pegando, por um lado um fenômeno cultural que você observou, que é
visível (por exemplo, você poderia assistir o filme Woodstock) e por outro lado você tem conceitos
filosóficos altamente elaborados, e você parte de um para o outro sem fazer nenhuma ponte. Quer dizer,
quem disse que esses conceitos se aplicam a essas situações? Você só pode saber isso se você
compreender as situações em toda a densidade da sua existência material, real. Você não pode, por
exemplo, assistir um espetáculo de teatro, pegar algumas obras estéticas que você percebeu e começa e
começa elaborar a partir do que você leu em Herbert Marcuse, Schelling, Karl Marx ou Aristóteles;
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você tem que saber de onde saiu aquela peça e porque fizeram.

Hoje para mim está [00:30] muito claro, por exemplo, que todo o movimento de contracultura dos anos 60
foi uma etapa do processo globalista evidentemente, por que de onde saiu aquilo? Saiu de pesquisas
feitas em laboratórios financiados por Rockefeller e outros; por exemplo, todo o trabalho do Alfred
Kinsey ou do…como se chamava aquele cara do LSD?…Timothy Leary. Essas pesquisas são todas
financiadas por essa gente, com a finalidade de provocar uma mudança social e cultural.

Então, se você sabe a origem, então você entende o verdadeiro sentido, que não é um sentido que você
sacou por analogias com conceitos filosóficos, não! Você recompôs a sequência de uma ação, uma ação
planejada e intencional, racional; e que de certo modo, se auto explica. Você não precisa interpretá-la,
ela já vem interpretada pelo seu próprio autor, ele fez tal e qual coisa com tal e qual propósito para
desencadear tal ou qual efeito; não há o que interpretar. Então eu vendo os escritos daqueles autores
brasileiros tão inteligente, tão cultos; e a nenhum deles ocorreu sequer a ideia de rastrear de onde saiu
isso e por que foi feito.

Por exemplo, às vezes você não tem os elementos históricos, mas você pode conjecturá-los; e você cria
uma hipótese, guardando-a para ser confirmada mais tarde. Por exemplo, você pode pegar um objeto
industrial, observar a forma do desenho, e você pode, a partir daquela forma, fazer analogias com
conceitos filosóficos maravilhosos, fazer lindas interpretações etc; mas ocorre o seguinte: tudo isso é
você que está pensando, não foi o autor do desenho. Eu tenho que saber o que ele pensou e não o que
eu penso, senão a minha interpretação vai sair voando. Portanto, às vezes, você não tem as
informações.

Por exemplo, um fenômeno que sempre me chamou a atenção, foi a mudança dos desenhos dos
automóveis nos Estados Unidos, eles mudaram completamente de estilo, e hoje eles não tem
comparação com os carros dos anos 60, 70 etc. Primeiro que todos os carros ficaram iguais, eles
seguem todo o mesmo esquema; antigamente cada fábrica tinha o seu próprio estilo. Por que aconteceu
isso? Eu não sei, eu não tenho informação histórica. Mas não adianta eu tentar dizer, agora vou aplicar
aqui os conceitos de Walter Benjamin, Georg Lucas ou sei lá, de qualquer outro, para interpretar isso aí,
não, não é isso que eu tenho que fazer. Eu tenho que olhar a própria forma do objeto e ver o que ele
representava para quem o desenhou.

Por exemplo, se você desenha um carro que é para dar uma impressão de potência, de poder, coisa
imponente, é totalmente diferente se você desenha um carro que é para dar a impressão de coisa
inofensiva, isto é visível na formar; só que eu ainda não sei por que o sujeito fez isso. Eu posso até
conjecturar, mas eu só vou saber a coisa mesma na hora que eu tiver os elementos históricos, interpretar
direitinho, o sujeito fez assim porque ele queria obter esse efeito.

Você pode observar isso em todos os produtos artísticos e industriais que te rodeiam. Perceba, por
exemplo, que nos desenhos animados infantis, a partir de um certo momento, o pessoal começou a
insistir na ideia de apagar a diferença entre a ideia de beleza e feiura, e mostrar isso para as crianças.
Nós sabemos, e hoje está mais do que provado, que as crianças têm um senso inato de beleza; isso foi
confirmado mil vezes: um bebê que não sabe falar ainda, ele sabe distinguir uma forma harmônica de
uma forma desarmônica. Mas você pode, através da educação (não digo mudar isso), mas você pode
criar uma rede de dificuldades para que ela expresse o seu senso natural, e no trajeto da percepção à
expressão, ela cometa um erro, [00:35] então ela não consegue mais dizer o que ela percebe, o que ela
sente. Ela diz o que o código ensinado, aprendido, lhe permite dizer, porque ela não tem outro
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instrumento.

Então você cria uma impropriedade vocabular obrigatória, ou pelo menos, viciosa. E notem bem, as
pessoas que estão hoje entre 20 e 40 anos, todos padecem disso. Isso é por causa do famoso
socioconstrutivismo, que é método ou sistema que adotaram para alfabetização, no qual você não
adquire o domínio fonético-silábico básico, mas você parte direto para funções superiores da
linguagem; então você vai se expressar. Se você não tem sequer…Dante dizia que a gramática é a
construção material da linguagem, se você não tem os elementos materiais da construção da linguagem,
você não a domina. A sua auto-expressão será apenas cópia de elementos convencionais que lhes são
transmitidos, quer dizer, se você não tem o elemento material, então você não pode fazer a construção
do seu jeito. Você vai fazer do jeito que aprendeu com alguém, imitar; e pior, vão dizer que você está
sendo criativo.

Não precisa dizer então que esse tipo de ensino deforma a sua capacidade de expressão ao ponto de que
nunca mais você consegue dizer o que você está pensando ou o que está percebendo, você só consegue
dizer aquilo que já está convencionado para dizer. Porque para construir a sua expressão, você precisa
construí-la desde os elementos materiais mais básicos, que são os fonemas. Se você não sabe os
fonemas e já sabe as palavras, com as suas conotações semânticas consagradas, então você só sabe
dizer aquilo que já ouviu.

As pessoas que estão com 50 ou 60 anos escaparam disso. Alguns mais jovens também escaparam
porque esse negócio do socioconstrutivismo não foi adotado universalmente assim, ele veio sendo
aplicado gradativamente, então alguns escaparam, mas, em geral, é o método pelo qual aprenderam.

Voltando, a primeira coisa para se educar, você precisa saber algo sobre educação e, é claro que, se
você estudar uma história da educação, não estará interessado em ser um educador (alguém pode estar,
mas, em geral, não é o que nós queremos); de tudo que você ver ali, você pode colher alguns
elementos. Por exemplo, se você ler os diálogos de Platão, você verá que Sócrates tem toda uma
maneira de ir cavando entre as dificuldades até fazer as pessoas verem alguma coisa. Você pode
aprender a fazer isso consigo mesmo, ou seja, quando tiver dificuldade de entender algo, você pode
montar ali uma contraposição dialética, como aquela de Sócrates, até que enxergue a coisa. Em suma,
você pode, ao longo da história, ir colhendo vários elementos, ou de inspiração ou de técnica para
aprimorar os seus estudos.

No começo parecerá muito difícil você fazer isso, por exemplo, nas universidades medievais, aos
poucos se consagrou uma disciplina, uma técnica que se chamava disputácio (uma disputa). E a disputa
era a seguinte, você encarregava um aluno de defender uma tese, e um outro de defender a tese
contrária. Mas, ao ouvir a tese adversária, você tinha que, em primeiro lugar, saber repeti-la. Em
segundo lugar, você tinha que saber dividi-la nos seus elementos componentes: as premissas, as
estruturas do raciocínio e as conclusões. Em terceiro lugar, você deveria expressar qual o ponto em que
você vai contestá-la: você vai contestar na premissa? Você vai contestar no raciocínio, você vai
contestar na conclusão? O que você vai fazer? [00:40] Assim, os dois debatedores tinham que mostrar um
domínio total daquilo que o outro disse e não apenas daquilo que eles querem dizer.

Bom, você não tem nenhum professor que possa treiná-lo na disputatio (nem eu vou fazer isso, eu
jamais teria paciência para fazer isso). Eu posso lhes informar que isso existia e dizer, agora vocês se
virem. Aprendam a fazer isso com vocês mesmos.
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Só que a disputatio só sondava os discursos do ponto de vista do seu conteúdo racional expresso, ele
não chegava a sondar as motivações profundas como eu acabei de lhes dizer; ou seja, você pode montar
na sua cabeça uma disputatio muito melhor do que eles faziam na idade média. Porque aos elementos
factuais e lógicos do discurso, você pode acrescentar os elementos psicológicos, motivacionais e
perceptivos que estão por baixo do discurso; ou seja, você pode compreender o discurso do seu
adversário até a raiz psicológica última da coisa. E assim, às vezes, você vai compreender (no caso de o
sujeito estar errado) o erro dele em toda a sua extensão. Não é apenas que você discordar de uma frase
ou discordar de um raciocínio, não! Você vai perceber onde falhou a percepção do indivíduo.

Aluno: E ajudá-lo professor?

Olavo: Claro, se ele estiver vivo. Eu usei essa técnica para um estudo que eu fiz do Maquiavel. Eu
estava interessado no seguinte: o que Maquiavel está enxergando? Como ele vê a sua própria situação?
E como, à luz da sua própria situação, ele entende as situações politicas nas quais ele está falando?
Então, evidentemente, é uma operação psicológica que tem que ser feita toda no imaginário, mas que
tem que ser feita sob controle para você alcançar um grau de certeza suficiente.

Por exemplo, quando Maquiavel, para contestar uma ideia, ele cita um trecho bíblico que não tem nada
a ver com aquilo, e interpreta o trecho bíblico de uma maneira que não tem nada a ver com o texto
bíblico. Espera aí, isso não pode ser estupidez, porque se fosse estupidez, seria demais. Ele não pode
não ter percebido que ele fez isso. Então, se ele fez, ele tem alguma intenção. Quer dizer, por baixo do
que o sujeito está escrevendo, você vai tentar descobrir uma motivação e um quadro de percepção: o
que ele está percebendo? Como ele está realmente percebendo a situação?

Aluno: Seriam elementos da paralaxe cognitiva, é isso?

Olavo: Não, no caso do Maquiavel, não; é sacanagem mesmo.

Paralaxe cognitiva é assim, é um negócio que pressupõe, primeiro, uma construção intelectual de
altíssimo nível e, segundo, que o sujeito seja perfeitamente honesto naquilo que ele está fazendo; quer
dizer, é algo que ele realmente não está enxergando. No caso do Maquiavel, você pode perceber ali
alguns elementos de paralaxe, mas eu não quis nem entrar nisso, eu só estou vendo, vamos dizer, os
pontos onde ele deliberadamente engana o leitor.

Aluno: Professor, quem falou que para cada loucura existe um método?

Olavo: Shakespeare.

Aluno: E captaria isso…

Olavo: Ah sim, sim. Mas acontece que a maior parte dos leitores nem percebe a loucura do Maquiavel.
Porque eles não comparam o que Maquiavel disse aqui com o que ele disse ali, e quando percebem eles
acham que é apenas uma contradição lógica, um engano ou coisa assim. Eu digo não, às vezes não é.
Maquiavel é um homem monstruosamente inteligente, o que não quer dizer que ele tenha clareza sobre
o que ele está percebendo e falando, ele não tem. É um homem confuso, que pega uma situação
confusa e quer gerar um pouco mais de confusão.

Aluno: Um Dugin da vida…


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Olavo: Ah, o Dugin é isso, sem dúvida, sem sombra de dúvida. É um confusionista profissional.

E os autores que são assim, confusionistas propositais, são os mais difíceis de você entender. Porque
tudo ali tem três, quatro, dez sentidos, dez intenções, e o cara não é translúcido; eu não recomendo
vocês começarem estudar por uma coisa assim, por uma coisa desse tipo. [00:45] É melhor você pegar um
autor que é totalmente sincero no que ele está dizendo; ou que é louco mesmo, porque se for louco,
você identifica a loucura. Jean Jaques Rosseau, por exemplo, ele é muito confuso, mas ele é louco
mesmo. Ele não está a fim de enganar ninguém, ele simplesmente não sabe do que ele está falando, ou
seja, não há relação entre o que ele sente no momento que escreve, o que ele quer expressar e o que ele
realmente vivenciou, não tem relação nenhuma; mas em outros casos, não.

Por exemplo, se você ler Voltaire, as obras de Voltaire estão cheias de mentiras, mas as mentiras não
tem essa profundidade, este jogo labiríntico que tem no Maquiavel. Ele simplesmente pegou um dado
aqui e falsificou lá; então é muito mais fácil de você se orientar, de saber quando ele está dizendo a
coisa tal como ele a percebeu, e, às vezes, Voltaire tem uma imensa capacidade para fazer isso. Voltaire
era um tremendo historiador, é um dos fundadores da ciência histórica, se você quer saber. Quando ele
mente, ele está de sacanagem, mas ele não tem essas dez camadas de disfarce que tem Maquiavel,
então é muito mais fácil.

Em outros autores, por exemplo, se você ler o ensaio do Eric Voegelin, On Hegel-A study in Sorcery
(Hegel – Um estudo de feitiçaria), verá que em Hegel, temos essa camuflagem, muito bem disfarçada,
dificílima de pegar, e só um gênio como Eric Voegelin conseguiria desfazer a mágica, por assim dizer.

Outras vezes, o intuito de decifrar em profundidade, eu acho que, às vezes, confunde mais a coisa. Por
exemplo, o Leo Strauss tinha ideia de que na época da Renascença muitos escritos eram camuflados
por medo da censura, então ele acha que todos os escritos têm que ser decifrados como se tivessem um
código secreto. Eu digo bom, às vezes tem, às vezes não tem. Quando ele fez um estudo sobre
Espinoza, eu acho que metade daquilo é verdade e a outra metade ele inventou; o coitado do Espinoza
não pensou nada daquilo. Então na verdade você não sabe, ou seja, essa tentativa de buscar a motivação
profunda, ela tem que ser levada pelo bom senso e pela modéstia, só dá para compreender até um certo
ponto. Ninguém vai assim decifrar completamente os segredos de Maquiavel ou do Espinoza, você não
vai fazer isso.

Mesmo os textos que não tem enganação nenhuma, por exemplo, os textos de Aristóteles, são
rascunhos de aula; quer dizer, ele não esperava que aquilo fosse publicado, era apenas para a orientação
dele. Então ali não tem mentiras, não tem camuflagens, não tem nada. Mesmo ali você vai encontrar
muita confusão, dificuldade e contradição. Mas com uma certa prática de Aristóteles, a coisa mais
constante que você percebe, em Aristóteles, é um esforço monstruoso para dizer as coisas exatamente
como ele está vendo. Eu acho que Aristóteles é o autor mais honesto que eu já li, porque mesmo em
Platão tem alguma sacanagem, Sócrates tem alguma sacanagem…o Sócrates descrito por Platão tem
outra sacanagem ainda; mas em Aristóteles não tem isso. Talvez tivesse nos escritos públicos que se
perderam, mas naquelas anotações de aula não tem nada, ele está espremendo o cérebro para conseguir
a expressão mais exata possível.

Embora sejam apenas rascunhos e, portanto, não tem elegância literária, mas tem uma qualidade
literária enorme, que é a precisão. Nesse sentido, ler Aristóteles é aprender a falar; quer dizer, quando
você ainda não tem domínio do objeto, você está sondando, está investigando e, portanto, não sabe
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exatamente o que dizer. Aristóteles é um mestre em fazer essa transição do desconhecido para o
conhecido; quando ele não sabe do que ele está falando, ele tem a exata medida do lhe falta. [00:50]

Continuando, a aquisição da capacidade expressiva é uma coisa básica, indispensável, ninguém pode
desprezar isso. O indivíduo que acha que por que ele foi estudar Física ou Matemática, ele é
infinitamente superior do que aquele que está estudando Letras ou Ciências Humanas, só mostra que é
um cretino.

Um segundo ponto, conhecer alguma coisa, com razoável nível de eficiência, é saber graduar o grau de
certeza que você tem a respeito, e nesse sentido, eu não preciso me estender muito porque eu já fiz
aquela apostila Inteligência, Verdade e Certeza, onde eu explico essa gradação dos seus conhecimentos
segundo os graus de credibilidade tal como expresso por Aristóteles. Ou seja, quando você acha que
sabe alguma coisa, você deve se perguntar: eu sei isso com certeza absoluta? Sei isso com
probabilidade razoável? Sei isso apenas porque parece que sei isso? (verosimilhança, parece porque
concorda com o que outra pessoa está dizendo) ou sei isso apenas como uma possibilidade, como algo
que imaginei?

Se você não tem essa graduação, é a mesma coisa que dizer “eu não sei nada!”. Porque se eu não sei
quanto vale o conhecimento que eu tenho, não sei qual o grau de certeza daquilo, então eu estou na
total incerteza. Eu não conheço uma escola, uma universidade ou uma escola primária que ensine as
pessoas a fazer isto, que é graduar e avaliar o nível dos seus conhecimentos e das suas opiniões sobre o
que quer que seja, quando isso é, evidentemente, uma coisa básica.

Essa gradação é um exercício que eu recomendo: quando você pensa qualquer coisa sobre o quer que
seja, faça a graduação. Você pode ler lá no Inteligência, Verdade e Certeza e no livro sobre Aristóteles,
exatamente como é a distinção desses quatro graus. Mas para fazer isso, você tem que fazer um outro
exercício preliminar (esse eu aprendi com o filósofo francês Alain Émile Chartier), que é pensar aquilo
que você pensa, ou seja, você dizer para você mesmo, exatamente o que você pensa sobre alguma
coisa; de preferência, alguma coisa sobre a qual você sabe pouco, portanto, você estará na pura esfera
da possibilidade, do imaginário, mas exatamente o que você imagina?

Por exemplo, se eu lhe pergunto sobre algum processo natural que você desconhece? Eu pego uma
determinada planta e pergunto: “Em que espécie de terreno nasce esta planta?” Supondo-se que você
não sabe nada, nem de Botânica, nem de Geologia, nem de coisa nenhuma. Então você vai ter que
imaginar aquilo, você vai criar alguma opinião que é totalmente imaginária.

Note bem, nós temos milhares dessas opiniões, a quase totalidade das opiniões que nós temos são desse
nível, são sobre coisas que nós desconhecemos totalmente. Nós não expressamos completamente essas
opiniões, e na medida que nós não as expressamos, nós não temos o poder de análise crítica sobre elas,
então elas começam a ter um poder sobre nós, ou seja, as opiniões que mais nos governam, que mais
nos escravizam, são justamente aquelas que nós não conseguimos expressar. Porque elas ficam numa
espécie de névoa pré-verbal dentro de você, elas se apresentam sob a forma de um sentimento, de uma
reação, de uma emoção, e não se verbalizam completamente.

Quando nós as expressamos, em 99% dos casos, nós percebemos que elas são pura besteira, mas se nós
não chegamos a expressá-las, elas conservam sobre nós um poder [00:55] mágico. Então esse é o
exercício: pensar aquilo que você pensa. Mas pensar explicitamente; pensar e expressar, não precisa
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escrever, mas diga com começo, meio e fim exatamente o que você pensa sobre isso. Às vezes nós
temos vergonha de fazer isso porque nós temos um vago pressentimento de que é uma bobagem. Mas
não interessa se é uma bobagem, diga qual é a bobagem, não julgue primeiro, deixe para julgar depois.
Esse exercício habilita você a fazer com você mesmo o que depois você vai fazer com os autores que
você ler: o que o sujeito está percebendo mesmo, por baixo do que ele diz?

É interessante você fazer esse exercício em questões científicas já resolvidas há muito tempo porque
depois você pode conferir em um livro de ciências, biologia, física etc. Por exemplo, você especular a
composição química de algum objeto cuja composição você desconhece. Tente imaginá-la e diga,
francamente, o que você está pensando, e depois você vai ver no livro de Química ou de Física, que
aquilo é uma mera bobagem ou que você acertou por mera sorte.

O fundo da nossa atitude perante o mundo é constituída quase que inteiramente dessas opiniões,
opiniões sobre coisas incertas. Não é possível você chegar a um domínio do seu universo de
pensamento sem você passar por essa peneira, e depois que você fizer isso muitas vezes, você vai ver o
seguinte: a maior parte das minhas opiniões sobre tudo o que existe não tem mais a mínima
importância, porque eu mesmo não acredito nelas. Depois que você fazer essa experiência, pergunte
para você: quantas vezes eu entrei em uma discussão para afirmar uma coisa que eu não acreditava de
maneira alguma e só me pareceu conveniente dizer aquilo? Claro que eu não estou dando esse preceito
por moralismo mas porque isso é indispensável para o seu desenvolvimento intelectual.

Muito bem, então eu falei dos graus de credibilidade, para você aprender a graduar os seus
conhecimentos, e portanto, você vai graduar também a importância e o valor que você dá para eles. Eu
disse no começo que uma primeira distinção é entre…comecei explicar isso mas não terminei. Você
tem três níveis de conhecimentos, primeiro você tem aqueles básicos, que constituem as chaves da sua
percepção do mundo; em segundo, você tem um círculo de conhecimentos que não são tão básicos, mas
nos quais você acredita ou que acredita possuir; e você tem um terceiro círculo de conhecimentos
possíveis, que de certo modo, você não tem, mas que estão ao seu alcance a qualquer momento que
você queira, você pode representar isso como uma biblioteca. Se você observar uma biblioteca, você
verá ali livros que marcaram a sua vida para sempre, você nunca mais vai esquecer aquilo. Tem outros
que você leu e que tem uma certa importância para você mas que não são coisas básicas, não são os
founding fathers da sua inteligência. E tem uma série de livros que você não leu, só lambeu, mas você
sabe que está lá, e que se você precisar, você vai lá. Essa é a primeira classificação, os três níveis de
conhecimento.

A segunda classificação é das gradações. Mas veja o seguinte, eu aprendi com Aristóteles que o
princípio da ordem é a classificação. Se você entra em um quarto onde está tudo fora de lugar, é por
quê? É porque as coisas estão misturadas, por exemplo, você tem aqui, um livro, um sanduíche e um
sapato. O que há de errado nisso? Não tem nada de errado [01:00] só que as coisas não estão nas suas
devidas classes. Quantas vezes eu não vi donas de casa entraram no quarto dos seus filhos e olharem, e
ficar absolutamente assim: “Não sei por onde começar”. Isso acontece, não é? Elas não sabem por onde
começar porque não perceberam que arrumar as coisas fisicamente só é possível depois que você as
classificou mentalmente: isto é uma meia, isto é um sanduíche, isto é um cotonete, isto é um sapato,
isto é um livro, e assim por diante.

Isso quer dizer que o conjunto dos conhecimentos que você tem, eles só valem na medida em que você
saiba classificá-los, e a gradação dos três níveis de conhecimento e a gradação dos quatro níveis de
credibilidade, são só duas chaves classificatórias, mas existem muitas outras. Conhecer essas chaves
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classificatórias é muito mais importante do que você ler todos os livros da humanidade. Eu sempre digo
o seguinte, se você tiver uma enorme biblioteca na qual você não leu nenhum livro, mas você sabe a
respeito do que cada um é, e onde ele está na relação com os outros livros, você sabe mais do que o
sujeito que tivesse lido aquilo tudo sem classificar. Porque o primeiro tem o acesso, as chaves que
abrem para aquele conhecimento, e o segundo só tem uma mixórdia mental. Existem várias chaves
(antigamente quando eu dava o curso chamado Introdução a Vida Intelectual, eu dava uma série de
diagraminhas, vou ver se ainda os encontro para dar para vocês).

Uma chave importante é a dos gêneros literários, se você não sabe a que gênero pertence aquilo que
você está lendo, você realmente não sabe o que pode esperar daquilo, não sabe qual é o nível de
credibilidade e predicação que o sujeito está pretendendo alcançar, e você, em suma, não sabe como
julgar aquilo. E um conhecimento que você não sabe julgar, não sabe quanto vale, é a mesma coisa que
um conhecimento que você não tem.

Conhecer algo, saber algo, é saber se aquilo é certo, provável, verossímil ou meramente possível. Tente
imaginar algo que você sabe, mas que você não sabe graduar dessa maneira. Examine e veja: “De fato,
eu não sei nada a respeito”. Também pode ser que a sua classificação não corresponda a verdade, ou
seja, algo que você saiba como mera possibilidade, mas que você crê firmemente, você afirma que é
uma certeza.

Note bem, para as pessoas religiosas, isso aí é um problema, porque elas acabam confundindo o que é a
fé religiosa com o que é mera crença reiterada; quer dizer, você vai reafirmar uma coisa mil vezes e
dizer “Bom, isso é um ato de fé e portanto eu acredito”. Mas logo em seguida eu digo “Mas espera aí,
você acredita mesmo?”. Uma coisa que você não consegue imaginar e que, portanto, você não
consegue graduar nos níveis de credibilidade, você não a conhece de maneira alguma; então como é
que você vai dizer que você tem fé naquilo. O que você está chamando de fé é apenas uma maneira
enfática de você valorizar a sua ignorância como se você fosse fonte de conhecimento. Outra coisa,
você só pode ter fé em alguma coisa quando você a entende perfeitamente.

Aluno: É como em Santo Agostinho? Ver para compreender e compreender para ver. [trecho
duvidoso].

Olavo: Claro, claro, se você não sabe o que é, como você vai dizer que tem fé? O sujeito chega aqui e
fala trucks é drows [palavras duvidosas], foi Deus que disse, você acredita? Você não sabe do que eu
estou falando, como você vai acreditar ou não? Você pode dizer “eu estou disposto a acreditar quando
entender, portanto eu tenho… eu lhe concedo a credibilidade prévia”. Mas não posso dizer “É porque
tenho fé naquilo”. Você tem apenas uma disposição de crer, mas ainda não crê. Para crer, você precisa
entender do que ele está falando. [01:05]

Entre as várias classificações… quer dizer, você deve aprender a classificar tudo, todos os
conhecimentos que você tem e tudo o que você pensa. Primeiro, classificar a ordem da importância
subjetiva; isto é uma coisa básica para mim, isso formou a minha mente: isso é simplesmente uma coisa
que eu sei ou é uma coisa que eu posso vir a saber a qualquer momento que eu queira? Por exemplo,
em uma discussão, é básico você saber isso aqui. Segunda classificação, os graus de certeza; terceira
classificação, são os gêneros literários, como eu já escrevi um livro sobre isso, eu não preciso me
repetir, mas, o que são os gêneros literários? São diferentes possibilidades expressivas que o ser
humano tem e que, uma vez que você adotou uma delas, isso determina umas consequências sobre o
restante do que você vai dizer.
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Por exemplo, se você está escrevendo uma narrativa, com o propósito de que seja uma narrativa
verossímil, porque, às vezes, você está narrando uma coisa que aconteceu, que é verdadeira, mas isso
não quer dizer que você saiba expressá-la com verossimilhança; nunca aconteceu de você dizer uma
coisa perfeitamente verdadeira e as pessoas não acreditarem? Para mim já aconteceu muitas vezes.

Isso quer dizer que a veracidade intrínseca dos fatos narrados nem sempre corresponde a
verossimilhança da narrativa que você produz. A verossimilhança depende não só de você mas depende
da cabeça do ouvinte, coisas que são verossímeis para um, para outros são completamente impossíveis.
Isso quer dizer que você vai ter que ajustar a sua linguagem à cabeça do ouvinte. Você tem por um
lado, os dados, aquilo que você quer dizer; e por outro lado, você tem a grade, a peneira mental com
que o seu ouvinte vai filtrar aquilo, e você vai ter que ajustar uma coisa à outra. Aqui entra diretamente
o problema dos gêneros literários, por exemplo, uma narrativa que se pretenda verossímil,
historicamente, factualmente, é muito diferente de uma narrativa que só se pretenda ser verossímil
imaginariamente. Quando você assiste uma peça de teatro, você sabe que aqueles acontecimentos não
são verdadeiros, mas você aceita vivenciá-los como se fossem verdadeiros durante o período, durante o
tempo da peça. Então você fica lá, você sofre com a Desdêmona, tem as dúvidas com o Hamlet, se
sente injustiçado com o Antígona etc, mas nada disso aconteceu; é uma verossimilhança imaginária ou
puramente artística. Mas se você quer dar uma verossimilhança factual, você precisa de algo além
disso.

Às vezes, você tem o conhecimento de coisas que aconteceram, mas você não tem prova alguma. Então
você sabe que o máximo que você vai alcançar é uma verossimilhança artística. Muitas vezes as
pessoas fazem isso, elas conhecem certos fatos, mas não tem prova nenhuma, então elas fazem um
romance com aquilo, ou algo que, declaradamente, é um romance ou uma narrativa histórica, que não
pretende ser acreditada factualmente logo na primeira. Você pode contar a história e dizer “Olha, vocês
acreditem se quiserem, se não quiserem, danem-se”; essa é uma opção de gênero literário. Mas a partir
do momento em que você decide escolher uma linha, o restante do que você escreve ou narra, vai ter
que ser coerente com aquilo, senão não funciona, você não pode passar de um nível para outro. Eu
sugiro que estudem esse meu livretinho dos gêneros literários e, de cara, aprendam a distinguir [01:10]
qual é o gênero daquilo que vocês estão lendo, porque é o gênero que vai determinar o que vocês
podem esperar daquilo.

Quantas vezes você não vê julgamentos errados proferidos sobre livros ou quaisquer escritos porque
simplesmente o crítico ou leitor não sabe qual é o gênero que aquilo pertence. Por exemplo, quantas
vezes… isso já aconteceu milhares de vezes, o sujeito leu um artigo meu e [diz] “Ah!, ele não deu as
fontes!”. Eu respondo, você pensa que eu estou escrevendo o quê? Um estudo acadêmico? No
jornalismo a citação das fontes é meramente opcional. Mas o cara não sabe o que é jornalismo. É claro
que eu posso ter as fontes e se me pedirem, eu posso até dar, mas, em um artigo de jornal, se você for
citar todas as fontes, elas vão comer metade do seu espaço. Em um jornal você tem um espaço
determinado, por exemplo, os artigos que eu escrevo para o Diário do Comércio tem 5500 toques, entre
sinal letras e espaço; não pode passar disso, e eu por procuro gastar até o último pedacinho que eu
posso. Se eu for citar um livro, com editora, data etc, comi uma linha e meia. Dois, comi três linhas.
Qualquer jornalista profissional sabe disso, mas, se a pessoa que lê não sabe qual é o gênero, então ela
vai fazer uma cobrança indevida e, naturalmente, um julgamento errado. Assim, o problema dos
gêneros literários, eu já resolvi, eu já escrevi um manualzinho, então é possível simplesmente seguir
aquilo.
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Então aí você tem três chaves classificatórias, você tem o da importância subjetiva (sem o qual não é
possível fazer mais dada, pois se você nem sabe qual é o valor que a coisa subjetiva tem pra você, então
realmente você não sabe nada a respeito). Em segundo lugar tem a gradação da credibilidade objetiva,
que não coincide necessariamente com a primeira, quer dizer, pode ter coisas que para você são de um
valor extraordinário, que são aquilo que você mais crê, que é a base da sua vida, mas que você não tem
certeza alguma; e pode ser outra coisa, que você tenha certeza absoluta mas que não tem valor para
você. Então na medida que você tem duas chaves, você tem uma série de relações entre elas, uma série
de classificações secundárias que aparecem da simples comparação entre os resultados da aplicação das
duas chaves; com os gêneros literários, você tem uma terceira.

Agora, existe uma que é absolutamente fundamental, que é um negócio que se chama sistema das
ciências, o sistema dos conhecimentos humanos. Por exemplo, se você entra em uma universidade,
você vai ver que existe um departamento disso, um departamento daquilo… tem um departamento de
Letras, tem um departamento de Filosofia, tem o departamento de ciências exatas, o departamento de
ciências biológicas, não tem isso? Muito bem, essa distinção é meramente administrativa, isso quer
dizer que entre as disciplinas estudadas aqui e as estudadas ali, pode haver uma série de mediações e de
terrenos disputados. Por exemplo, se você ler o livro do Miguel Reale, Lições Preliminares de Direito
(ou sobretudo, a Filosofia do Direito), você verá que houve décadas de discussões sobre qual é
propriamente o terreno do direito, ou onde não é possível distinguir entre o que é Direito, o que é
Sociologia, o que é Economia, o que é Ética etc. Então isso quer dizer que o terreno das ciências não é
um problema que venha resolvido e, você saber exatamente quais são as principais classificações dos
conhecimentos humanos que existem atualmente, e quais são os problemas e as dificuldades que
existem no meio dessas classificações, é uma coisa que vai adiantar o expediente formidavelmente
quando você for estudar [01:15] qualquer obra em particular ou qualquer tema em particular.

Note que tudo que eu estou falando são distinções meramente formais e, de certo modo, são
preliminares a aquisição de conteúdos. Por exemplo, para você classificar uma biblioteca inteira, algo a
respeito dos livros você precisa saber, mas você não precisa tê-los lido inteiros.

Claro que a aquisição dessas chaves formais, por sua vez, necessitam de algum estudo. Mas eu estou
dizendo, se vocês concederem a esses assuntos que estou falando, a essas chaves, algum tempo, vocês
verão que daí para adiante, a aquisição de conteúdo se torna enormemente mais fácil. Ainda com a
seguinte vantagem de que você não está adquirindo um conhecimento especializado antes de saber de
que gênero a espécie é. É evidente que todo conhecimento sério é um conhecimento especializado,
porém, se o cara não sabe de que gênero é a espécie, ele realmente não sabe nada; e isso acontece…nas
universidades brasileiras isso acontece em 100% dos casos; ou seja, o indivíduo não sabe onde, dentro
do universo da cultura, está aquilo que ele está estudando. Isso quer dizer que mesmo que ele saiba
tudo que ali se ensina, ele não pode entender nada. É impossível ele entender o que quer que seja,
porque ele vai tomar a distinção daquela disciplina como se fosse uma coisa objetiva, que vem da
própria natureza das coisas, e não vai entender que aquilo saiu de uma série de discussões e decisões
que foram tomadas, decisões que podem, inclusive, terem sido erradas.

Isso quer dizer que para você ser um bom profissional em um ramo especializado, você precisa ter uma
imensa cultura geral? Claro que não, mas você precisa ter essas chaves classificatórias para você saber
onde você está e, se for preciso, você retornar, retroagir, desde a sua especialidade até o tronco de onde
aquilo saiu. Você pode acompanhar, por exemplo, as discussões que aparecem no período de formação
das ciências, ou seja, a ciência está em busca do seu objeto e tentando compreender quais são as
distinções entre ele e os objetos circundantes. Porque se você não tem essa distinção, você não pode
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obter um método específico para estudar aquilo; uma ciência começa com a busca do seu objeto e, na
origem da ciência, você vai ver que a origem é sempre uma confusão entre objetos distintos.

Por exemplo, nós sabemos que existe um livro de geometria de Euclides; a partir do momento em que
Euclides escreveu aquele livro, o objeto chamado Geometria estava perfeitamente delimitado. Você não
confunde, por exemplo, o objeto chamado Geometria com a Agrimensura; mas antes confundia. Isso
que dizer que o objeto chamado Geometria não veio pronto, foi necessário distingui-lo de muitas outras
atividades que antes se mesclavam com a Geometria. A partir da hora que foi delimitada, nós sabemos
o que é Geometria e não confundimos mais com o resto, está resolvido o problema? Não, não está,
porque na própria maneira de você distinguir o objeto você tem que partir de certos princípios que
transcendem o horizonte daquela ciência, e a relação entre a ciência e os princípios nunca está
totalmente esclarecida. Por exemplo, não é possível criar uma geometria sem ter a noção do que é
espaço; mas espaço é uma noção geométrica? Não, a noção de espaço transcende infinitamente a
Geometria. Isso que dizer que [01:20] o primeiro sujeito que delimitou o campo da Geometria, partiu de
elementos que não eram geométricos. Por exemplo, pode haver geometria sem dedução lógico-
analítica? Não. Mas a dedução lógico-analítica depende da Geometria para o que quer que seja? Não,
ela é um conceito lógico, você pode aprender a lógica inteira sem saber nada de Geometria.

Isso quer dizer que na primeira delimitação da ciência, você já está usando elementos que você colheu
de outros conhecimentos, de outras ciências, que a partir dali não podem ser julgados pelos critérios da
própria ciência que você está fundando. Por exemplo, quando Émile Durkheim, no livro As regras do
método sociológico, delimita a Sociologia como o estudo dos fatos sociais, em seguida define o que é
um fato social; mas ele não discute a noção de fato. A noção de fato, ele recebe de uma tradição lógico-
metafísica de milênios e, uma vez que ele aceitou essa noção e a usou como princípio para fundar uma
nova ciência, essa ciência não pode retroagir sobre a noção de fato; quer dizer, a discussão do que é um
fato e do que não é, não faz parte da Sociologia. E você pode dizer que essa discussão está totalmente
resolvida a partir do momento que Émile Durkheim funda a Sociologia? Não, a questão continua,
filosoficamente, você continua discutindo, o que é um fato e até se existem fatos. Por exemplo, no
Tractatus Logico-Philosophicus, Ludwig Wittgenstein define o fato como uma alteração do estado de
coisas. Mas isso “dá muito pano para a manga”, porque logo que eu li isso, me perguntei “mas se o
estado de coisas não muda, ele deixa de ser um fato?”. Por exemplo, aqui temos uma montanha e ela
nunca saiu do lugar, ela deixa de ser um fato só porque não aconteceu nada com ela? Então é um
problema, a definição de fato, mesmo para uma mente poderosa como a de Ludwig Wittgenstein, não é
uma coisa tão fácil.

Isso quer dizer que os territórios das ciências são entidades mais ou menos móveis e que estão
permanentemente se mesclando e entrando em estado de crise; e que só se você tiver uma visão do
estado geral, da estrutura das ciências em um determinado momento histórico, então você entende o
que é cada uma das ciências. Porque nunca se trata de uma distinção entre objetos físicos, tão distintos,
por exemplo, quanto esta mesa é do chão em que ela se apoia, nunca é assim.

Assim, o conhecimento do sistema da ciência, do sistema dos conhecimentos humanos, é a condição


preliminar indispensável para que você entenda cada uma das ciências ou cada um dos ramos de
estudo. É mais importante você ter essa chave classificatória geral do que você conhecer qualquer uma
das ciências em particular.

Aluno: Professor, essa ordenação dos livros, de modo geral, é possível fazer por meio da leitura
inspecional do Mortimer Adler?
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Olavo: Ah, é o que você vai ter que fazer, claro, a leitura inspecional. Sei lá na minha biblioteca eu
acho que tenho uns 7 ou 8 mil livros; de, pelo menos metade deles, eu só fiz leitura inspecional, quer
dizer, eu li o índice, o prefácio, a conclusão, um pedacinho no meio, eu sei do que se trata. Está lá,
quando eu precisar, eu vou lá, eu não estou perdido, mas eu não conheço o conteúdo, eu só conheço a
posição esquemática dele no conjunto. Agora, conhecer a posição esquemática de tudo no conjunto, é
muito mais importante do que você conhecer cada uma das ciências em particular. Vocês viram alguém
em alguma universidade ensinar uma coisa dessa? Nunca, ninguém! Eu digo, sem isso você não
entende nada, ou seja, isso que estou ensinando para vocês é a base de qualquer estudo universitário do
que quer que seja.[01:25] Por isso que eu afirmou taxativamente, não há ensino universitário no Brasil.

A noção de universidade sai de um duplo sentido da palavra universitas. Em primeiro lugar, essa
palavra designava o universo dos professores e alunos, quer dizer, a classe letrada de modo geral.
Depois adquiriu o sentido universitas cienciare et literare, que dizer, universidade é o universo das
ciências e das letras.

Evidentemente algo da estrutura da universidade você conhece; mas experimente fazer um teste, você
vai em uma universidade qualquer, na Universidade de São Paulo e encontre um aluno qualquer, um
aluno de Biologia e diga “Me descreva a estrutura desta universidade, a divisão dos departamentos
etc”; a maior parte deles não sabe nem isso, ou seja, ele não sabe onde está o departamento dele (ele
sabe onde está apenas fisicamente, ele sabe chegar lá). Agora você pode aprofundar a pesquisa e dizer
“Porque a divisão é essa? Quem determinou que seria assim e por quê?”. Isso 100% não sabe, não é
100% não dos alunos, mas dos professores. Mas você poderia ainda perguntar: “Bom, e a divisão não
poderia ser outra?”. O sujeito vai entrar em um estado de perplexidade total; e assim você faz a
pergunta decisiva “Você tem certeza que essa divisão em departamentos coincide com as divisões
objetivas dos objetos estudados?”. Pronto, acabou! Você matou o cara.

Então é por isso que eu digo para você, não um único estudante universitário no Brasil, e não há uma
única universidade no Brasil; porque ser um estudante universitário, é saber isso, senão é a mesma
coisa de estudar em uma escola isolada. Eu faço aqui uma escola de corte e costura, e as meninas vão
estudar ali, elas não precisam saber qual é a relação entre corte e costura com a ciência econômica, com
a engenharia, com a filosofia; não! Elas vão só vão estudar corte e costura; então é uma escolinha
profissional. No Brasil, na melhor das hipóteses, você tem escolinhas profissionais.

Aluno: Professor, poderia pegar a classificação do Aristóteles: ciências teoréticas, práticas…

Olavo: Não, existem milhões de divisões diferentes, nenhuma delas resolve o problema nunca. Mas
você ter uma visão da dificuldade geral das classificações, é você ter uma visão geral do que é possível
ao ser humano saber em um determinado momento histórico; e se você não tem isso, você não tem
nada, você está realmente estudando corte e costura.

É evidente que não pode haver corte e costura se não existem tecidos e linhas, não é verdade? Se não
existisse tecidos e linhas, ninguém poderia aprender corte e costura; não pode haver tecidos sem haver
uma indústria têxtil. A mulher que está aprendendo corte e costura precisa saber alguma coisa a respeito
da indústria têxtil? Absolutamente nada; ou seja, ela desenvolve a atividade dela dentro de um
panorama no qual ela ignora tudo. Isso é o contrário do estudante universitário, o sujeito que sabe
apenas desempenhar a sua tarefa, mas não sabe quais são as bases sociais, econômicas, intelectuais etc
dela e não tem nenhuma responsabilidade sobre isso, é apenas um trabalhador braçal, não é um
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universitário jamais.

Ser um universitário é saber exatamente onde está aquilo que você está estudando. É claro que você
precisará conhecer a sua disciplina própria em profundidade; mas se você não sabe onde ela está, é a
mesma coisa de dizer que você não sabe nada a respeito dela. Porque você são sabe graduar o valor
daqueles conhecimentos, e você não sabe a importância dela para as disciplinas circunvizinhas. Ora,
qualquer conhecimento importante que seja alcançável em qualquer ciência tem necessariamente
importância para disciplinas circunvizinhas porque ele vai ser usado por profissionais de outras áreas
que não irão verificar em profundidade o que [01:30] você disse; por quê? Porque elas partem do
princípio de que você é um profissional e sabe o que está dizendo.

Por exemplo, sei lá, um médico que está estudando…está atendendo um paciente que está com uma
determinada doença, ele sabe que para essa doença existe uma certa proporção de casos que são auto
remissíveis, curam sozinhas (tem uma história do Darcy Ribeiro, que foi internado com câncer; e o
médico falou para ele: “Esse caso tem 32% de auto remissão”. Então ele disse: “Tô nessa”, e foi para
casa; e sarou!). Muito bem, o médico conta com essa informação; mas ele precisa tê-la produzido por si
mesmo? Ele precisa ser um profissional da Estatística, da Epidemiologia? De maneira alguma, porque
ele conta com outro profissional, confiável, que produziu aquilo. O que uma ciência produz tem que
servir de base para o que outras ciências estão estudando, senão tudo para de funcionar.

Por exemplo, se você estuda direito criminal, algo você precisa saber sobre a psicologia da mente
criminosa. Mas você precisa ter produzido esse conhecimento pessoalmente? Você precisa ser um
psiquiatra também? Claro que não. Então você confia na informação que recebeu de outro profissional
universitário. Toda e qualquer atividade científica se apoia em conhecimentos que vem de fora,
produzidos por outros profissionais.

Isso quer dizer que se você não sabe qual é a importância relativa que o conhecimento que você está
produzindo tem para as outras ciências, você não é capaz de avaliá-lo. Por ser que aquilo que lhe custou
anos de aprendizado, de pesquisa, não sirva para absolutamente nada e não tenha importância alguma;
e pode ser que seja uma coisa decisiva. Se você não sabe avaliar o que você tem na mão, então na onde
você está? Você está na história do “oncovim, oncotô e poncovô” (vocês sabem da história não é? O
japonês levou uma pancada na cabeça…acordou e “oncovim?”– quer dizer: de onde eu vim;
“oncotô?”– onde eu estou? E “poncovô?” - pra onde eu vou?).

Então eu digo, se não existe essa clara consciência do sistema da ciência e da sua articulação, não há
ensino universitário algum. E é claro que o estudo do problema dos sistemas da ciência, é, em si
mesmo, uma especialidade, e das mais difíceis. Mas eu sugiro que você dedique a essa especialidade
algum tempo, antes de você entrar nos conteúdos de qualquer ciência em particular.

Se você já tiver aprendido essas quatro coisas: primeiro, a ordenação da importância subjetiva dos
conhecimentos; segundo, a gradação de credibilidade, o valor do conhecimento; terceiro, o gênero
literário no qual as coisas se expressam e quarto, o lugar daquele negócio do sistema das ciências, você
já é um homem eruditíssimo, sem ter estudado nada em particular; e notem bem, esse estudo, em si
mesmo, é difícil e complexo.

Aluno: Professor, e o senhor falou na questão das chaves, vai até qual?

Olavo: Não, o número de chaves não acaba mais. Amanhã eu vou entrar em outras chaves mais
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específicas, com relação a cada área em particular, mas (…)

Aluno: O sistema das ciências…

Olavo: Sim, o sistema das ciências. É um nome, pode ter outro nome que você queira.

O sistema das ciências não coincide, necessariamente, com a estrutura administrativa das
universidades, não coincide com a ordem das bibliotecas; porque cada uma dessas outras chaves
classificatórias atendem a um outro objetivo, que não é esse nosso. Por exemplo, a ordem das
bibliotecas é simplesmente para facilitar você encontrar os livros; sem contar que [01:35] a ordenação de
uma biblioteca não precisa necessariamente atender aos cânones gerais da biblioteconomia. Por
exemplo, se você for na minha biblioteca, você vai ver que existe uma certa divisão por assunto; porém
tem um pedaço que está tudo misturado. Mas o que é isso? Por exemplo, eu tenho aqui à minha
esquerda, o conjunto dos livros que uso para a minha pesquisa da mente revolucionária. Aquilo pode
vir de qualquer lugar, de qualquer ciência…está tudo misturado, mas é de acordo com a minha
conveniência (isso não quer dizer que a ordenação por assunto está bonitinha, não está não).

Mas eu conheço pessoas que arrumam a sua biblioteca de acordo com a classificação decimal de
Dewey. Isso significa que ele não usa a biblioteca para absolutamente nada; essa classificação foi feita
para um usuário genérico, ou seja, qualquer pessoa, com qualquer finalidade, entra na biblioteca e vai
encontrar os livros dessa maneira, não é para um usuário específico, que é o dono da biblioteca. Se for
para um usuário específico, então ele tem que saber: eu tenho essa biblioteca para quê? É só para
enfeitar? É só para dizer que eu sou um sujeito erudito? Se for para isso também: uma biblioteca só
para mostrar para as pessoas. Pode-se fazer. Pode ser uma biblioteca de bibliômano; é outra coisa. A
minha biblioteca é uma biblioteca de um pesquisador; então tem que estar de acordo com as
conveniências da minha pesquisa e não com uma ordem abstrata qualquer.

Assim surge um problema terrível, o sistema do conhecimento correspondem com a divisão objetiva
dos entes do mundo real, ou como dizia Russerl, corresponde com a divisão das diferentes ontologias
regionais? Porque tem algumas ciências que estudam isso e outras que estudam aquilo; essa
diferenciação entre este objeto e aquele objeto, existe apenas no método da ciência ou como uma
distinção objetiva, real entre os objetos? Tem uma frase dele que eu acho maravilhosa “não existe uma
embriologia dos triângulos e nem uma trigonometria dos leões”; ou seja, ele está dizendo que entre
esses objetos existe um abismo ontológico real, nada do que você estude sobre um poderá fundamentar
nenhuma conclusão que você tire sobre o outro. No entanto, às vezes, existem interseções de objetos de
uma ciência que tira conclusões sobre outra. E existe o famoso problema da técnica, que eu já abordei
em outras aulas, que eu digo que qualquer objeto técnico condensa em si elementos cognitivos de
proveniência variada, tirados de ciências incomunicáveis entre si, onde não há nenhum princípio
comum.

Por exemplo, você tem aqui um negócio chamado computador. O primeiro elemento que entra aqui é
um negócio chamado código binário, sem código binário, não tem computador; mas existe o tal
negócio do circuito integrado. Do código binário, você pode deduzir alguma coisa para a construção do
circuito integrado? Nada. E vice-versa? Também não. Isso quer dizer que o sujeito tem que inventar
uma maneira de articular o circuito integrado com o código binário, ou seja, fazer com que a circulação
de eletricidade represente para ele, signifique para ele, alguma coisa do código binário, como poderia
significar letras ou qualquer outra coisa. Em terceiro lugar, existem elementos de metalurgia, que
também não podem ser deduzidos dos circuitos integrados e nem do código binário. Existe a química
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dos plásticos, existe a ergonomia, que deriva da anatomia e da fisiologia, ou seja, as teclas têm que ter o
tamanho do dedo humano, você não pode fazer teclas deste tamanho [01:40] e nem teclas microscópicas.
O que determina o tamanho das teclas tem algo a ver com o código binário, com o circuito integrado,
com a metalurgia ou com a química dos plásticos? Absolutamente nada. Não há princípios comuns aos
quais você possa deduzir os conteúdos dessas várias ciências, elas estão tão separadas quanto os
triângulos estão separados dos leões.

Mas nem todas as ciências estão separadas assim, por exemplo, a Química não está muito separada da
Física, ou seja, aquilo que a Física descobre influencia o que a Química pode estudar ou não. Isso quer
dizer que entre as várias ciências existe, desde a separação abissal, até a contiguidade, a mescla e a
fusão. Saber isso é você ter o mapa daquilo que se conhece em um determinado momento histórico no
qual você vive. Se você fosse conhecer o conteúdo dessas ciências, então eu digo, “Bom, só se você
fosse Deus”. Mas formalmente, conhecer a estrutura, a ordem e a articulação comum; é obrigatório
saber. Assim como em uma biblioteca, você não pode exigir que o bibliotecário tenha lido todos os
livros, mas ele tem que saber onde eles estão e mais ou menos sobre o que eles versam.

O que estou ensinando aqui para vocês é a base de todo e qualquer conhecimento que mereça o nome
de universitário. Por incrível que pareça, isso está sendo dado por indivíduo que é totalmente alheio a
universidade brasileira, e eu só tenho esse conhecimento porque eu sou alheio a universidade brasileira,
se eu tivesse ido lá, eu não teria adquirido essas coisas. E eu as adquiri porque eu coloquei o problema
da autoeducação para mim mesmo quando eu era muito jovem; eu pensei: “O que eu preciso saber para
entender alguma coisa daquilo que eu mesmo estou falando?”. E essas classificações, eu comecei a
especular isso muito jovem ainda. Claro que depois desenvolvemos muito coisa, por exemplo, apareceu
o negócio dos [a Teoria dos] Quatro Discursos etc; mas eu garanto para você, os quatro níveis de
credibilidade, eu já conhecia eles muito antes de ler Aristóteles; e se eu não os conhece, eu não os teria
reconhecido em Aristóteles. E eu os conheci do esforço de classificar aquilo que eu mesmo sabia: antes
de dar uma opinião, vejamos o quanto eu acredito nela.

Quando eu era mais jovem, era conhecido no meio pelo seguinte, eu era o cara que nunca dada nenhum
palpite, eu ficava sempre quietinho. Quando aparecia uma discussão, alguém falava:

– Eu quero saber a sua opinião?


– Você tem certeza que você quer saber a minha opinião? Quanto tempo você vai me dar para eu
explicar a minha opinião?
– Meia hora.
– Ah, meia hora já está bom. Agora você fica quieto e escuta o que eu vou dizer.

Eu analisava as coisas seriamente ou então ficava quieto, não entrava em bate-boca. Isso, na verdade,
até me deu um certo prestígio, porque eu era um sujeito que, mais ou menos, sabia o que estava
falando. Na barbearia que eu costumava frequentar, às vezes, surgia alguma discussão… e os caras não
sabiam…daí falavam assim: “O professor sabe”. Já me chamavam de professor antes de eu ser
professor. Por quê? Porque eu levava as coisas a sério; e seu eu não sabia, eu dizia: “Não sei e não
tenho a menor ideia”. A distinção entre o que você sabe e o que não sabe não é uma coisa básica?

Uma outra classificação que você pode fazer é a que eu tirei do livro do Jean Fourastié, Les conditions
de l'esprit scientifique (um livro maravilhoso, recomendo a leitura, está aí uma sugestão para a vida
editorial) que é o que ele chama de mapa da ignorância, que é você classificar o que lhe falta saber
para entender alguma coisa que você quer entender. Isso aqui também é básico para você iniciar
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qualquer pesquisa. Se você ignora tudo (como diz Aristóteles “todo conhecimento parte de algum outro
conhecimento”), então você vai adquirir um conhecimento completo a partir de um conhecimento
incompleto. [01:45] O conhecimento incompleto é constituído, sobretudo, de imaginações e dúvidas. Mas
quais são as dúvidas? E que informação você teria de adquirir para responder essas dúvidas?

Isso aqui é muito importante, e eu percebi isso muitos anos antes de ter lido o Jean Fourastié por ter
começado a trabalhar como repórter; e o repórter, quando sai para a rua, ele tem que levar uma lista de
dúvidas, ele tem uma informação preliminar sobre alguma coisa, por exemplo, sei lá, quanto aumentou
o custo de vida no último mês? Você sai para fazer uma matéria sobre isso. Em primeiro lugar, você
precisa saber que existe custo de vida, eu preciso ter alguma ideia de quanto as coisas custavam na
véspera; preciso saber onde estão as pessoas que estudam isso e eu preciso ter uma série de elementos
comparativos. Então eu saio com uma lista de perguntas, não saio no vazio, a lista de perguntas é o meu
mapa da ignorância a respeito daquele ponto. Isso em jornalismo chama-se pauta. O que é uma pauta?
É o mapa da ignorância de um ponto específico.

Mas você pode progredir e fazer o mapa da ignorância do conjunto dos assuntos que você está
estudando. Então, às vezes, as pessoas me perguntam “o que eu devo ler?”. Eu digo “você saltou sobre
muitas perguntas”. O que você deve ler? Eu digo, bom, você já sabe mais ou menos o que você quer
estudar? Você já sabe onde está aquilo? Você sabe quais são os limites de possibilidades daquilo? Por
fim, você fez o mapa da sua ignorância a respeito? Não? Então como eu vou dizer o que você deve ler?

Afinal, ler é apenas uma maneira de adquirir conhecimento, existem muitas outras. A que eu mais gosto
não é ler, é perguntar. Eu adoro encontrar alguém que saiba alguma coisa e que me dispensa de ler
aquele negócio. Inclusive o meu interesse por Filosofia nasceu no dia que um sujeito fez isso comigo, o
sujeito tinha estudado o livro do Heidegger, O que é metafísica, e disse “sente aí que vou te explicar o
que está nesse livro”. Ele contou todo o livro, com começo, meio e fim; eu fiquei maravilhado e disse
“agora eu não preciso ler o livro, é como se eu tivesse lido o livro, agora eu já sei tudo, agora eu posso
ler o livro seguinte. Então eu vou ler outro livro do Heidegger; e posso entender melhor porque você já
me explicou esse”. Perguntar é uma maneira de você saber as coisas, a outra é simplesmente você
observar e contar para você mesmo o que você sabe; enfim, o livro entra no fim do processo.

Para você chegar a ler com proveito algum livro, existem muitas coisas que você precisa saber. Existe
também um outro elemento que se chama antecipação. É você tentar imaginar como é o objeto que
você ainda não conhece e que você vai tentar estudar. Por que você precisa fazer isso? É porque assim
você tem uma superfície de contraste, se você não imagina nada, então as coisas não tem valor, não tem
importância para você “imagino que é assim, vamos ver se é”. Opa! A visão que você vai ter agora é
muito mais nítida. A partir do mapa da ignorância, você pode fazer as suas conjecturas sobre o que você
vai aprender e até sobre o livro que você vai ler. Então você pode chegar no livro e dizer “aposto que
esse sujeito vai dizer tal e qual coisa”. Aí ele diz um negócio completamente diferente… “opa! Ficou
muito mais claro!”

Tudo isso que estou falando não implica nenhum conhecimento material do conteúdo das várias
disciplinas, mas essas chaves classificatórias são uma disciplina em si mesma, que são os princípios da
educação universitária. Os princípios constitutivos da ideia mesma de universidade, a ideia de
universidade está intrinsecamente ligada a ideia de sistemas das ciências. Então por hoje, vamos parar
por aqui. [01:50] Tem perguntas?

Aluno: O senhor fala para a gente que a gente precisa fazer a classificação para entender as coisas
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dentro dos seus lugares, existe uma maneira ou cada um tem que encontrar a sua forma (…).

Olavo: Não, não, você tem que saber, tem que procurar a informação que existe a respeito, desde a
primeira classificação que existe, em Platão você tem um rudimento de classificação, em Aristóteles
você tem outro, depois você tem a estrutura das universidades medievais e a estrutura das universidades
modernas; procure se informar sobre isso. Quem organizou essa universidade e porque ele fez assim?
Quer dizer, no fim você vai inventar uma classificação que sirva para você. Mesmo essa classificação
estará constantemente mudando, mas você não pode operar no vazio, vai ter que ter algum material.

Por exemplo, experimente pegar um organograma de universidade. Por exemplo, quando o Ogham
Rogeston veio para os Estados Unidos e foi procurar emprego nas universidades, os caras ficaram
desesperados porque não sabiam onde colocá-lo, porque ele articulava muitas disciplinas diferentes e
não estava formalmente vinculado a nenhuma delas. Na Alemanha ele dava aula em uma faculdade de
direito, mas o que ele fazia era misturar Teologia com Filosofia e Sociologia etc. Então aqui a divisão
era muito mais rígida do que na Alemanha. Lá eles colocavam o sujeito em uma faculdade qualquer e
ele se virava, mas aqui não, aqui tinha que corresponder direitinho.

O próprio Eric Voegelin conta que após ficar durante anos lecionando aqui [Estados Unidos], ele foi
para a Alemanha (mas já não era a velha Alemanha, de tradição universitária, era a Alemanha
moderna), e quando chegou lá, ele foi falar na faculdade de Ciência Política, e, teoricamente, o tema
era ciência política. E os camaradas ouviram aquilo e disseram “mas o que é isso que ele está falando?
Ele não falou de soberania, ele não falou de legitimidade, ele não falou de estrutura do estado…que
disciplina é essa?

Isso quer dizer que não correspondia a divisão do objeto tal como estava consagrado naquela
universidade, nem por isso o objeto deixava de existir. Você pode levantar questões que não tem como
ser respondidas dentro da esfera de uma disciplina em particular. Por exemplo quando ele [Eric
Voegelin] pergunta… quando ele tenta escrever o livro A história das ideias políticas, mas [ele pensa]
“espera aí, mas não existem ideias políticas, existem situações e experiências humanas que as pessoas
vagamente expressam através dessas ideias. Então temos que tentar fazer uma história dessas
experiências”. Então entra a psicologia da percepção, entra a memória afetiva do próprio Eric Voegelin,
entra tudo isso…mas isso aí pertence a qual disciplina? Você não pode nem dizer que é um negócio
interdisciplinar, porque para ser interdisciplinar seria preciso que cada aspecto já estivesse elaborado
por uma ciência em particular e, às vezes, não está.

Aluno: Não seria uma técnica por trás, para você compreender a Psicologia (…)

Olavo: Não, você pode estar abrindo uma nova ciência. Veja, na técnica…isso não é uma técnica
porque na técnica você não tem a menor ambição de articular intelectualmente os vários aspectos da
coisa, você só articula fisicamente, esse objeto condensa em si enumeráveis conhecimentos que não
tem conexão entre si, e não respondem a um princípio comum e nem jamais poderão responder. Mas se
você está fazendo uma ciência, você está procurando um princípio comum, só que esse princípio não
pertence nem a esta ciência, nem àquela, nem aquela outra, então estão fundando uma outra ciência.
Um objeto novo que não estava abrangido nas ciências anteriores.[01:55]

Aluno: Quando o senhor falou da técnica filosófica, uma série de etapas (…)

Olavo: Bom, mas isso é uma outra coisa, não era o que o Eric Voegelin estava tentando fazer, ele não
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estava tentando expor a técnica filosófica, ele estava tentando tratar determinados problemas filosóficos
específicos, e tratá-los em um nível onde é difícil você saber onde termina o tratamento filosófico e
onde começa a ciência política, não é possível pra saber, porque é da natureza do objeto mesmo, o
objeto, ele existe na realidade e ele não foi generoso o suficiente para consentir em se definir de acordo
com as disciplinas existentes, ele misturou tudo.

Em geral, o problema da divisão das disciplinas é um problema gravíssimo, porque quanto mais
claramente você delimita o objeto de uma ciência, menos ele pode corresponder a um objeto real,
porque você só está estudando um aspecto dele, aspecto considerado abstrativamente, sem levar em
conta os outros. E esse objeto, considerado abstrativamente, não pode existir na realidade; então vamos
dizer, essa tensão entre o objeto das ciências e o fato concreto, é uma coisa que ninguém pode perder de
vista. Mas hoje em dia se tornou obrigatório perde de vista, se tornou quase obrigatório o idiota
universitário acreditar que o objeto da ciência dele existe e é até mais real do que o fato concreto. O
número de imbecis que procede assim é um negócio abismante.

O que é isso? É, vamos dizer, uma espécie sem gênero. Eu não contra a ciência especializada, ao
contrário, se não é especializado, não é sério, você é apenas um generalista que está dando opinião
sobre tudo. Então tem que ser especializado, mas você tem que saber de onde sai a espécie “do quê?”.
Mas se você não sabe que maça não é uma espécie de bicho, por mais que você saiba sobre a maça,
você não vai entender nada. Então a espécie sai de um tronco que é o gênero. O pior dos erros é tomar
o conjunto das ciências que você está estudando como se ele fosse uma realidade, quando ele só se
torna uma realidade quando ele é reencaixado na concreção dos vários elementos que compõem o
objeto.

Vamos supor que há um crime. Você pode estudar o crime somente sob o aspecto jurídico? Algum
crime é compreensível somente pelo aspecto jurídico? Não, naturalmente ele tem um aspecto
psicológico, um aspecto sociológico, um aspecto físico (alguma coisa deve acontecer no mundo físico,
não existe crime abstrato) e assim por diante. E ainda vão existir aspectos que não são estudados por
nenhuma ciência em particular. Se você pegar, por exemplo, a seleção da arma do crime: qual arma ele
usou e por que ele usou? A multidão de conhecimentos que você precisa ter para responder a essa
simples pergunta não está abarcado em nenhuma ciência em particular.

Por exemplo, se você disser “ah, eu vou estudar a psicologia do crime e ela vai explicar”, eu digo “não,
você pode estudar a psicologia do crime o quanto você queira e ela não vai explicar porque havia
aquela arma disponível naquele lugar.

Aluno: Foi para corrigir isso que o Mario Ferreira dos Santos criou a filosofia concreta com uma
síntese inicial, analítica (…)

Olavo: Bom, a ideia dele era fazer algo mais do que eu estou fazendo, ele estava tentando elaborar esse
sentido da concretude como uma disciplina filosófica. Não é o que eu estou fazendo aqui, eu estou
dando umas dicas práticas de educação. Quer dizer, no sentido de dica prática, nós não podemos
aperfeiçoar isso até o nível conceitual que ele trata, [02:00] não é possível fazer isso; se você tentar, vai
empacar tudo. Então, se estou fazendo a mesma coisa que o Mário Ferreira dos Santos? Não! É
parecido, mas não é a mesma coisa.

Aluno: Professor, as técnicas do professor Feuerstein podem ajudar em alguma coisa nessa (…)
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Olavo: Pode, mas o Feuerstein ainda está… ele ainda é devedor do socioconstrutivismo sob muitos
aspectos. Eu, sinceramente, acho que a minha técnica funciona melhor do que a do Feuerstein para os
fins que eu estou colocando, quer dizer, eu não estou trabalhando com crianças, eu não seria um
professor de crianças jamais na minha vida, tenho horror disso, dar aula para gente de sete ou oito
anos… então a minha ideia é pegar um jovem adulto, de nível universitário, e trabalhar com essa gente.
E nesse sentido, eu tenho certeza e a experiência confirma, que o que estou ensinando, desperta a
inteligência da pessoa, desperta e potencializa muito; e não sei se nesse nível, o Feuerstein seria de
alguma ajuda. Ele é para casos muito mais desesperados, tais como um mongoloide, um retardado, e
fazer o sujeito aprender matemática. Bom ele sabe fazer isso, eu não sei fazer; mas também não é isso
que estou fazendo aqui, ninguém aqui é um mongoloide. Se chegar um aluno retardado, estou lascado,
não posso trabalhar com um mongoloide porque é preciso um conhecimento especializado que eu não
tenho. Então supondo-se, são pessoas de inteligência normal e que estão travadas por fatores culturais e
não por fatores constitutivos dela. Se o sujeito chegar aqui e eu ver, sei lá, que o problema dele é uma
neurose obsessiva compulsiva, uma paranoia, então eu diria “eu não posso tratar de você, não sou
psicólogo clínico”. Eu conheço alguma coisa a respeito, mas não tenho a prática, e pior, eu tenho horror
de ser psicólogo clínico. Eu tinha muita admiração pelo psicólogo Müller mas eu jamais faria aquilo
que ele estava fazendo, ele tinha paciência com loucos.

O que é uma vocação? Vocação é algo para o qual você tem uma resistência específica. A minha
resistência específica é a burrice humana. Eu aguento doses de burrice. Às vezes a pessoa chega e diz
“professor, eu não sei como o senhor tem paciência”. Eu aguento quantidade ilimitada de burrice, eu
vou lá explicar de novo, não me faz mal isso…mas para a loucura, eu não tenho resistência para isso.

Agora o Dr. Müller ficava 16 horas por dia sentado lá, só tratando de fantasias, de loucuras…sei lá, um
sujeito para ser médico em um hospital…eu fico meia hora em um hospital e já quero vomitar porra;
agora o sujeito fica lá o dia inteiro…. Então a verdadeira vocação é a seguinte: implica que você tem
uma resistência para um determinado fator negativo que você é capaz de enfrentar com serenidade e
sem que te faça mal; a vocação não tem nada a ver com gosto, não é uma questão de prazer. Por que
você só vai fazer as coisas quando elas te darem prazer? Não, você curte o prazer, você enfrenta a dor
sem que a coisa lhe faça mal. Se a sua ponte de resistência é a burrice, é a ignorância, então você é um
educador; que é o que eu sou.

Aluno: Olavo, por falar em burrice, você lembra daquela aula no Rio de Janeiro na Universidade da
Cidade… chegou um sujeito e você tentou fazer ele entender que ele estava presente e até isso ele
negou, e aí ele perguntou assim “professor, o senhor acha que eu sou louco?”, e o senhor respondeu
“não, você é burro mesmo!”.

Olavo: [gargalhadas] O normal da sociedade brasileira, que é a burrice [risos]. Então, eu tenho muita
paciência para a burrice, muita, muita, muita, e ela não me faz mal. Agora, quando é uma burrice
patológica, quando você vê aquela que é [02:05] uma limitação cerebral que o sujeito tem, então eu fico
desesperado, porque eu não sei o que fazer. Eu estou falando a burrice cultural, quer dizer, são pessoas
de inteligência normal que foram danificadas por falhas na sua educação, por falta de disponibilidade
do conhecimento… isso eu sei resolver. Agora o sujeito pode ter um problema neuronal, assim não
adianta eu explicar, ele não vai entender mesmo, então tem que mandar para outra pessoa.

Por exemplo, o Sr. João, motorista de táxi, eu não posso ficar mais de 10 minutos junto com o Sr. João
porque o meu QI baixa, ele tinha uma limitação intrínseca. Tanto que uma vez os cachorros começaram
a latir (e ela [a esposa do Olavo] estava esperando o Sr. João, que iria levá-la para não sei onde), eu
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falei “é o Sr. João”, [ela falou] “ele já aprendeu a latir” [riso de todos]. E o outro motorista, o Sr.
Alcides, ele era um gênio, um homem inteligentíssimo, não tinha cultura nenhuma, mas entendia tudo;
mas o Sr. João me fazia realmente mal… porque dava para perceber que era uma lesão mesmo, não era
má vontade, não era ignorância.

Aluno: Professor, o senhor pode explicar como a gente pode montar o mapa da ignorância, como a
gente faz, por exemplo, se a gente quer pesquisar, estudar e entender (…)

Olavo: Bom, eu vou entrar melhor nisso amanhã…porque você fazer o mapa da ignorância geral é
impossível, o mapa da ignorância com relação a algo que você quer saber, não é só curiosidade, é algo
mais. Bom, a curiosidade é uma condição básica, se você não quer saber nada a respeito… então você
está na….existe uma diferença entre a ignorância e a nesciência. Nesciência é não saber nada sobre
algo que você não precisa saber e nem quer saber. Por exemplo, quantos cabelos têm na sua cabeça?
Você não sabe, não quer saber, não interessa saber e não vai fazer o mais mínimo esforço para saber;
isso chama-se nesciência. Mas a ignorância é você deixar de saber algo que você precisa ou deveria
saber. Por exemplo, o motorista de ônibus que não sabe dirigir um ônibus, é grave né? Então isso é
ignorância. A ignorância sempre tem um elemento culpado, ou a culpa é sua ou é de alguém mais: ou
você não fez o que deveria fazer para saber a coisa ou ninguém te ensinou o que deveria ensinar; a
ignorância nunca é neutra. A nesciência é inocência na verdade, um bebê que nasceu e não sabe falar,
não tem problema nenhum ele não saber falar. No caso, por exemplo, da pessoa mentalmente lesada é
nesciência, ela não sabe e não tem como saber, a não ser que você dê um tratamento; às vezes, você
pode recuperar a pessoa. Dizem que o Feuerstein sabia tratar essas pessoas; eu não tenho a menor ideia
de como se faz isso.

Então, vamos dizer, a esfera, o mal que eu sei tratar é de origem social, cultural e histórica (ou
biográfica também), mas não neurológica, neurofisiológica, não natural; os médicos tratam de males
naturais, às vezes, alguns deles são de origem cultural, mas, em geral, a base é natural.

Isso é uma outra coisa da vocação, você saber: qual é o mal que eu aguento tratar indefinidamente, sem
nunca perder a paciência? Por exemplo, o crime, a corrupção, a injustiça etc, como é que você vai ser
um juiz ou advogado se você não aguenta viver nesse meio? Aquilo é uma sacanagem geral. O meu pai
dizia o seguinte “Às vezes, o juiz é parcial em favor de uma das partes, mas ele é sempre parcial em
favor dele mesmo”. Quer dizer, tem uma base corrupta, desde a raiz, e, no entanto você vai ter que
dizer “ah, excelência” e tal. Então, ou você faz parte do negócio, quer dizer, você é corrupto também,
ou você tem que ter uma resistência para aquilo não lhe fazer mal. Se faz mal…é a mesma coisa de
você ser delegado de polícia e não conseguir ouvir falar de crime. [02:10]

Uma vez eu vi um cara admirável, ele estava depondo em um processo, em um inquérito de estelionato,
que tinha relação com uma seita. Eu fui lá e dei o meu depoimento, na hora que eu estou saindo, tinha
um velhinho gordo, sentado em um canto, ele disse “por favor senhor, venha aqui, eu ouvi o senhor
falar em num negócio de seita, o senhor sabe alguma coisa a respeito de uma seita que faz sacrifícios
rituais de crianças?”. Eu respondi “opa, não! Eram pessoas estelionatárias, apenas metiam a mão no
dinheiro dos outros, não mataram ninguém…”. Daí ele disse “não, é o seguinte, eu pertenci a delegacia
de homicídios, e nós começamos a investigar uma seita que fazia sacrifícios rituais de crianças”. Daí
me mostrou 200 fotos de crianças estraçalhadas, um negócio assim, medonho. E ele disse assim “nós
começamos a investigar e mil vezes armei uma tocaia para pegar os caras e quando chegava lá eles não
estavam mais. Daí eu pedi transferência aqui para a delegacia de estelionato, onde eu não tenho coisa
nenhuma para fazer, e eu dedico todo o meu tempo para investigar esta seita e eu não hei de morrer
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enquanto não pegar esses caras”. Quer dizer, o sujeito estava ali há anos, pensando apenas nessa coisa
horrível, o cara me parou naquilo 10 minutos e eu já fiquei com o estômago embrulhado.

Aluno: O senhor achava horrível…

Olavo: É claro, eu achava horrível e ele também achava horrível, só que o horrível fazia mal para mim
e não fazia mal para ele, ao contrário, despertava nele uma coisa positiva, que era o desejo de ir atrás,
investigar e prender os caras. Não é um negócio admirável? Esse era um policial de vocação mesmo.

Aluno: Isso tem a haver com as punções szondianas?

Olavo: Ah, certamente tem. Mas veja, não é exatamente a punção positiva que te impele a fazer
determinadas coisas, esse aspecto que eu estou falando, nunca vi no Szondi, é a resistência específica
para alguma coisa. Quer dizer, não é que você goste daquilo, é um poder realmente que você tem,
mesmo que você não goste, você tem aquele poder. Alguma outra pergunta?

Aluno: Há como aprimorar isso?

Olavo: Ah sim, muito, muito, muito. A medida que você vai dominando a coisa e você vai aprendendo
a vencê-la, a sua resistência aumenta mais ainda. Às vezes o pessoal não estranha quando eu escrevo
essas coisas, como eu escrevi sobre o Gustavo Moreira ou sobre o Rodrigo Constantino, eu vou
esmiuçar a burrice do sujeito até os seus últimos componentes. Porque isso é importante para que as
pessoas aprendam a vencer os obstáculos mentais do mesmo tipo que tem na cabeça delas. Não me faz
mal nenhum fazer isso, quer dizer, o que eu li de livros ruins, o que eu li de besteira, um outro cara
morreria.

Eu li as obras completas de Marilena Chauí, quase as obras completas do Dr. Emir Saber, quase as
obras completas de Rodrigo Constantino; por quê? Porque esse é o meu domínio, o pessoal às vezes
pensa que é polêmica jornalística; eu digo, eles não estão entendendo direito, isto é Educação. Quer
dizer, eu tenho que entender aonde a sua mente está falhando para eu poder ir lá e conectar o fiozinho
que está faltando. Às vezes é possível fazer isso coletivamente, é possível porque esses problemas são
de origem cultural e não individual. Às vezes, em uma aula, eu pego 20, 30 dessas conexões faltantes e
conexo elas em uma aula só. Um pedaço serve para um, outro pedaço serve para outro, outro para
outro, na média, todo mundo pega, mas eu acho que qualquer aluno meu que permaneça no curso por
algum tempo, ele vê…não é que ele aprendeu algumas coisas, não. Ele está tomando posse da sua
inteligência, ele está descobrindo que ele é inteligente e que ele pode entender as coisas. E quando eu
escrevo essas coisas sobre o Gustavo Moreira ou Rodrigo Constantino, a última intenção minha é fazer
polêmica jornalística, mesmo porque, para quê eu vou discutir com idiota? Agora eu estou mostrando a
idiotice para ver as estruturas da idiotice para que você corrija aquilo em você mesmo, e eu também,
em mim mesmo, não pensem que eu também… eu já fui um Rodrigo Constantino, um Gustavo
Moreira…eu sou um idiota arrependido, [02:15] eu passei a vida inteira…tem a frase do Goete “contra
nada somos mais severos do que contra os erros que abandonamos”. Quer dizer, eu não tive muita
oportunidade de expor a minha burrice em público, só um pouquinho, eu fiz porque, às vezes, eu
escrevi umas coisas e tal…felizmente eu logo percebi que era melhor ficar quieto e tratar das minhas
burrices em privado, e foi por isso mesmo que eu só passei a ter uma atuação pública a partir dos 48
anos, quando as pessoas estão começando a se aposentar.

As experiências que eu tive na militância esquerdista, no início…elas me deram material para eu pensar
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para o resto da minha vida, não só sobre o problema da ideologia, mas sobre a conduta pessoal, dos
valores etc. Não é questão de dizer assim “ah, é porque mudou de partido”, mudar de partido é a coisa
mais fácil, o problema é o de você fazer uma psicanálise, investigar aquilo até o fundo “por que eu
entrei nisso?”, “o que eu estava fazendo lá?”, “o que as pessoas estavam fazendo?”, “o que representa
isso?”.

Aluno: Professor, o senhor citou [inaudível] Engels, Karl Marx (…)

Olavo: Eu li coisa pra caramba desse negócio de comunismo, e não desvalorizo nada disso, não vomito
em cima, de jeito nenhum. Em tudo isso aí há um monstruoso erro de percepção, sem dúvida. Erro de
percepção que se dissemina, se alastra, contamina milhares de pessoas, e é difícil sair de dentro disso, é
muito difícil.

Aluno:É impossível?

Olavo: Não, é muito difícil, mas não é impossível.

Aluno: A questão é exatamente essa, o senhor acredita que todo mundo tem a capacidade de entender
um determinado assunto específico, o senhor acha…imagina os matemáticos…eu tenho a crença
idiota, pessoal, de que existem pessoas que não são capazes de aprender Matemática, e não é uma
doença mental (…)

Olavo: Não, existem limitações cerebrais, existem fatores que são, vamos dizer, de ordem
neurofisiológicos, o indivíduo vai ter uma dificuldade enorme para perceber determinadas coisas, mas
em geral, não é o caso da maioria da população, a maioria não tem problema cerebral algum. Então só
não aprendem aquilo porque não quer, porque tem preguiça, porque acha chato etc, mas, em
princípio… bom, eu acredito que eu sou capaz de entender qualquer coisa, desde que eu queira
entender e que eu tenha um bom motivo para aquilo. Tanto que coisas que eu achava enormemente
tediosas quando eu era adolescente, depois eu vim me interessar muito. Isso é possível para todo
mundo. Mas mesmo que você tenha limitações neurofisiológicas, elas não impedem que você faça
grandes coisas, existem gênios com limitações cerebrais incríveis.

Aluno: Contra-argumentando, em um sentido, agora, puxando bem para a política, porque você falou
“ah, é um erro de percepção monstruoso”; eu fiquei aqui, por minha própria conta, extrapolando e
imaginando que se você fosse um contemporâneo de Marx e estivesse tentando convencê-lo de que ele
está falando besteira, que aquilo tudo é uma grande asneira; eu acharia, na minha suposição, que ele
seria incapaz de compreender você, ele seria incapaz, e continuaria repetindo, dizendo (…).

Olavo: Não, mas em Karl Marx existe um elemento de charlatanismo consciente, muitas vezes ele
saberia que ele está errado e mesmo assim ele vai continuar mentindo.

Aluno: Eu peguei um mau exemplo então.

Olavo: Eu acho que dificilmente existe um erro puramente intelectual, sempre tem um componente
moral envolvido, o sujeito não quer a verdade, isso acontece, ele quer uma outra coisa, que para ele é
mais importante do que saber a verdade a respeito disso ou daquilo. Então é o tal negócio, você vai
precisar fazer aquela operação stanislaviskiana e chegar a entender [02:20] qual é a motivação real, como
ele está vendo as coisas e o que ele quer? E porque quer?
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Aluno:[inaudível]

Olavo: Como é?

Aluno: O Lenin e o Trótski tinham o mesmo erro de percepção do Marx? Tinham o mesmo olhar
desonesto?

Olavo: Bom, Lenin era uma mente muito mais limitada do que a de Marx, muito mais limitada e
especializada, e ele, a vida inteira, só se interessou por uma coisa, ele só queria fazer a revolução e
mais nada. Então ele era incapaz de olhar qualquer coisa, exceto por esse prisma. Então no caso de
Lenin, ele era manifestadamente um psicopata, alguém que tem um problema cerebral grave.

Aluno: Quer dizer, todos no caso sofriam o mesmo problema do Marx…Trotsky, Lenin…

Olavo: Não sei, não sei, não sei. Por exemplo, eu não acho que Stalin fosse um psicopata. No livro do
Lobachevsky, Political Ponerology, ele explica um pouco essa diferença. Ele vai dizer que um
psicopata não tem sentimentos morais e que, no entanto, ele é capaz de reproduzir uma imitação lógica
do sentimento moral, ele não tem o sentimento moral, mas ele compreende o raciocínio que está
subentendido no raciocínio moral. Então ele compreende que você tem aquele sentimento moral e, às
vezes, ele compreende aquilo melhor do que você; só que ele não participa daquilo. Então ele é como,
vamos dizer, um médico que examina um sintoma sem que ele tenha aquele sintoma; evidentemente,
ele pode compreender o sintoma melhor do que o próprio paciente, mas ele não participa daquilo.
Então o sentimento moral, para um psicopata, é como se fosse um órgão doente, que ele está
examinando, quer dizer, ele pode ter uma penetração psicológica terrível, só que é somente
operacional, ele não participa da escala de valores que aquilo contem.

O Lobachevsky diz que Stalin não se encaixava bem nessa categoria, ele coloca o Stalin como um
neuropata, que é um sujeito que tem um problema aqui no lóbulo pré-frontal, no qual o indivíduo é
incapaz de acompanhar o julgamento moral, ele salta direto para a condenação ou absolvição. Isso quer
dizer que Stalin, por assim dizer, era mais normal do que o próprio Lenin; e compreendia melhor as
situações também. Não é preciso dizer que Stalin era um gênio assombroso, muito mais do que Karl
Marx, Lenin ou Trótski. Foi o maior estrategista de todos os tempos. Como é que a gente sabe? Porque
ele conseguiu fazer tudo que ele queria fazer, do jeito que ele quis; e quando dava errado, ele virava e
conseguia fazer dar certo de novo. Acho que dificilmente um psicopata completo chegaria a esse nível
de eficiência. O que você via no Stalin não era a ausência de julgamento moral, às vezes, era o ódio em
estado puro, isso sim.

Aluno: Ele era mau.

Olavo: Ele era mau, era um homem mau, sem sombra de dúvida, era um homem mau. Mas não era
incapaz de fazer um julgamento moral.

Aluno: [inaudível].

Olavo: Quem quer que estivesse no caminho dele. Mas você veja que ele tinha muito mais flexibilidade
intelectual do que Lenin. Lenin era um sujeito para o qual só existia uma coisa, só existia a revolução
comunista. Stalin era capaz de pensar, por exemplo, em termos de nacionalismo russo, em termos das
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conveniências diplomáticas internacionais…tudo isso para Lenin não existia. [02:25] Para o Stalin, por
exemplo, o comunismo era um movimento estritamente internacionalista e considerava qualquer
nacionalismo um inimigo pequeno burgues. O Stalin, com a maior facilidade, se tornou nacionalista da
noite para o dia quando achou que isso era conveniente para a Rússia.

Aluno: Mas ele acabou cometendo um imenso erro, ele [inaudível].

Olavo: Ele obteve tudo o que ele queria.

Aluno: Pois é, mas não foi uma coisa boa, com essa inteligência, mesmo assim [inaudível].

Olavo: Note bem, ele industrializou a Rússia, a Rússia era um país falido, ele transformou em uma
potência, o cara construiu toda a Rússia, você não pode dizer que isso é um nada. Se disser, Lenin o
que fez? Só fez destruição, não construiu nada, Stalin construiu um país e, às vezes, tinha uns pruridos
de moralidade que Lenin jamais teria. Por exemplo, você sabe porque existiu o julgamento de
Nuremberg? Stalin insistiu. Church dizia, vamos pegar logo esses caras, vamos dar um tiro em cada um
e acabou. Stalin falava não, não podemos fazer assim, nós temos que respeitar a forma. Mesmo que
seja um processo falsificado, mas um processo tem que existir. Então você vai dizer, é uma consciência
moral errada, mas baseada no ódio do que em qualquer outra coisa, mas ele não era moralmente cego,
como Lenin.

Aluno: Nuremberg foi uma espécie de teatro então?

Olavo: Sim, igual um teatro, vamos armar um teatro e dar uma satisfação para o mundo, ninguém
queria fazer isso.

Aluno: Stalin era um gênio então?

Olavo: Stalin era um gênio assombroso, ele enganou todo o mundo; agora que começaram a entender o
que ele fez.

Aluno: A tese do Victor Suvorov foi uma grande culpada (…)

Olavo: Perfeito, quem lançou primeiro foi Ernst Topitsch no livro Stalin's War, depois o Suvorov, e
depois o Joachim Hoffmann, que é o melhor de todos. Vários autores estudaram isso, hoje está mais do
que provado que Stalin inventou a Segunda Guerra, e a Rússia, que era um país falido, termina a guerra
como uma potência que domina a metade do mundo, quer dizer, como você vai dizer que ele não fez
nada? Ele foi o grande vencedor da Segunda Guerra, ele inventou e ele ganhou. Ninguém ganhou a
Segunda Guerra, todo mundo perdeu, somente a União Soviética ganhou. Ele ganhou tudo com o
dinheiro dos outros, ele construiu todo aquele parque industrial soviético com dinheiro americano, se
não fossem os americanos, aquilo tudo não existiria.

Aluno: Depois ele pagou?

Olavo: Depois ele pagou? Não pagou um tostão de volta

Aluno: Mas a sociedade russa não ganhou nada (…)


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Olavo: Não, muita gente ganhou, muita gente ganhou (…)

Aluno:[inaudível].

Olavo: Não, não, o nível de vida da população melhorou, você não pode dizer que ele não fez nada.
Quer dizer, é tudo baseado em um julgamento moral errado, mas você não pode dizer “não, foi 100%
negativo, foi 100% ruim”, não, não dá para dizer isso, não dá, não dá mesmo para dizer isso, o cara não
pode construir um país com nada. Quando o cara está inteiramente no mal, tudo que ele faz dá errado,
como se diz “é um fracasso retumbante”. Você pode dizer que a revolução russa foi um fracasso
retumbante, ela não construiu nada, Stalin salvou aquilo, ele foi como Napoleão, você pega um
processo destrutivo e diz “bom, vamos fazer alguma coisa com base nisso, construir algo que
permaneça”. Então, a base industrial permaneceu, a potência militar que ele construiu permaneceu,
aquilo não foi destruído. Agora, por exemplo, a Revolução Francesa, se deixasse, eles acabariam com a
França, mas aí você diz “ah, Napoleão é um ditador, um tirano, um malvado”, sim, mas ele não era
100% destrutivo. Robespierre era 100% destrutivo, [02:30]Napoleão não. Lenin era 100% destrutivo,
Stalin não.

Aluno: Professor, se eu aceitar que ele [Stalin] produziu a Segunda Guerra, penso que ele aproveitou a
Segunda Gerra (…)

Olavo: Ele inventou muito antes, ele já planejava isso na década de 20, planejava usar a Alemanha
como estopim. Hitler nem tinha chegado ao poder quando ele já estava pensando nisso.

Aluno:Esses [inaudível] eu desconheço (…)

Olavo: Não, não, são coisas descobertas mais recente. Os caras começaram a escavar, pegaram lá os
arquivos de Moscou, começou a aparecer coisas, aí começaram a juntar os pontos.

Aluno:O próprio [inaudível] foi inventado lá…

Olavo: Sim, sim, claro, claro. Então a ideia dele era provocar uma guerra, de escala europeia, pelo
menos, para expandir a União Soviética; inventou e fez.

Aluno: A Alemanha era um navio quebra-gelo…

Olavo: Se chama navio quebra-gelo agora…o Hitler entendeu a coisa no último momento, e decidiu
atacar a União Soviética, mas aquilo que o Hitler entendeu naquele momento, o Stalin já tinha
entendido 20 anos antes. Daí ele viu “poh, os caras nos fizeram de trouxas, está nos usando”; ah é
verdade, só que faz tempo que ele estava fazendo isso.

Aluno: O Hitler [inaudível] de atacar a Rússia (…)

Olavo: Sim, mas era por motivos puramente ideológicos, mas ele não acreditava muito nisso, tanto que
depois ele fez aliança com a Rússia, ele não pretendia atacar a Rússia, a ideia não era essa, quer dizer,
os planos de Hitler eram estritamente limitados “ah, Hitler queria dominar o mundo”, isso é besteira, é
só uma figura de linguagem, Hitler queria dominar a Europa Ocidental, essa era a ideia; e uma parte do
território soviético, quer era necessário porque tinha minérios etc, só isso. Agora que ele pretendia
dominar tudo aquilo até o fim da Sibéria, eu digo “ah, não é louco”, ele não precisava de tanto espaço
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assim. Então era só uma região fronteiriça, que ele realmente queria. Mas ele acreditava que toda essa
parte asiática da Rússia nunca seria nada. Hitler tinha muita ilusão na cabeça, ele acreditava, por
exemplo, que os eslavos não seriam capazes, ele achava que eram todos burros, depois levou um susto,
evidentemente. Ele tinha um senso de superioridade absolutamente injustificado. Hitler tinha alguma
capacidade de estratégia militar limitada, muito intensa, mas limitada; e também a ambição dele era
limitada, mas a de Stalin não, era dominar o mundo mesmo, o mundo inteiro vai ser comunista; e nós
vamos até o ponto em que é possível chegar, depois outro vai adiante. O plano que ele [Stalin] traçou,
“eu quero dominar isto aqui”, ele realizou; ao passo que Hitler, não. Tudo o que o Hitler fez deu errado,
no fim das contas; e tudo o que Stalin fez deu certo. Então Stalin é um tipo como Napoleão, era um
homem eminentemente mau, mas que sabia mais ou menos a distinção entre o bem e o mal; e que sabia
construir alguma coisa positivamente, alguma coisa na realidade, que não é assim, apenas um sonho
demoníaco e daí estoura tudo e deixa um cheiro de enxofre no ar, como Hitler fez.

Stalin era muito mais racional do que Hitler. Vocês já viram o discurso de Stalin? Se vocês verem o
discurso de Hitler, é um negócio para efeito psicológico, calculado para desempenhar um certo efeito
na plateia. Stalin não, ele fala como um professor “é assim, assim e assim, pá, pá, pá…”. Era um cara
muito deliberado, isso não quer dizer que eu seja um admirador de Stalin, mas eu acho que não dá para
confundir ele com Lenin, com Robespierre, com esses revolucionários malucos…nem com Mao Tse
Tung.[02:35] Mao Tse Tung era totalmente destrutivo, os caras salvaram a China depois do Mao Tse
Tung, se tivessem deixado ele…aquele negócio da Revolução Cultural, ele destruiria tudo, era um
alucinado, um psicopata mesmo. Veja que a China foi salva pelos Estados Unidos, depois de terminar o
maoismo, aquela loucura toda, daí os Estados Unidos, pouco a pouco, foram entrando lá, dando uma
forcinha; e construíram uma potência. Os americanos construíram uma potência contra eles mesmos,
como eles costumam fazer.

Então, acho que por hoje é isso, até amanhã, muito obrigado.

Transcrição: Silvio Sandro.


Revisão: Silvio Sandro [silviosiandro@gmail.com].

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