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P en sa m en to e “L ir i s m o P u r o ”

NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES


ENSAIOS DE CULTURA 34

Leila V. B. Gouvêa

edu sP
Há poetas cujo poder de convocação do
leitor advêm não da imediata explicitação dos
múltiplos temas poéticos dos nossos dias, mas
da convicção íntima de uma lírica ultra-sensível
e auto-exigente, que aposta muito no recolhi­
mento profundo de um canto aparentemente
“intemporal”. E este o caso da poesia de Cecília
Meireles, poeta maior da literatura moderna,
cuja aparentemente paradoxal “modernidade”
é avaliada neste estudo de Leila Gouvêa - a partir
de agora indispensável para a discussão e com­
preensão, em alto nível, da obra ceciliana.
Salta à vista a admiração da pesquisadora e
intérprete tanto pela figura humana combativa
de Cecília como pela arte de sua lírica supe­
rior, em que o esmero formal não representa
resignação estética, mas lapida um profundo
desencanto das expectativas do espírito. A
conversão da angústia em beleza, do grito em
transfiguração, corresponde, nas palavras de
Leila, a uma “distensão buscada no ordenamen­
to de palavras”. Tensão e distensão sucedem-se
em círculo: o equilíbrio da forma transpira
as dissonâncias mais íntimas. E precisamente
nesse registro que este estudo localiza a parti­
cular resposta da poeta à modernidade: em vez
de tratar do restritivo que se materializa nas
circunstâncias históricas, Cecília remonta às
fontes das limitações humanas. Nesse sentido,
seu “lirismo puro” não deixa de ganhar o peso
de um resoluto contraponto ao que a moder­
nidade costuma privilegiar, tautologicamente,
como a vantagem do “moderno” - tendência
que se alastra em nossos dias.
P ensamento e “L irismo P uro ” na P oesia de C ecília M eireles
E n sa io s de C u ltu ra 34

PENSAMENTO E “LIRISMO PURO”


NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

Œ SP UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO L eila V. B. G ouvêa


Reitora Suely Vilela
Vice-reitor Franco Maria Lajolo

|ed^P EDITORA DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

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COMISSÃO EDITORIAL
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C o p yrigh t © 2 008 b y L e ila V. B. G o uvêa

Ficha catalográfica elaborada pelo Departamento


Técnico do Sistema Integrado de Bibliotecas da USP

Gouvêa, Leila Vilas Boas.


Pensamento e “Lirismo Puro” na Poesia de Cecília Meireles /
Leila V. B. Gouvêa. - São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 2008.
248 p.; 16 x 23 cm. - (Ensaios de Cultura; 34)

Inclui anexos.
Inclui Bibliografia.
ISBN 978-85-314-1042-0

1. Literatura Brasileira (Crítica e interpretação). 2. Poesia


3. Cecília Meireles I. Título. II. Série.

CDD-869.8992 Para Manuela e


Fábio,
presente e memória.

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Printed in Brazil 2008

Foi feito o depósito legal


SUMARIO

Prefácio............................................................................................................... 11
Introdução...........................................................................................................15

1. Sobre a Obra Im atu ra...................................................................................25


Três Livros de Ju ven tu d e............................................................................. 25
Época da S em a n a ......................................................................................... 47
Idéias Estéticas: Dois D ocum entos........................................................... 54

2. Transfigurações do R e a l.............................................................................. 65
Que Problem a?..............................................................................................65
Coreografia Urbana e Sobrenatural......................................................... 72
Música e Im agem ...........................................................................................82

3. Da Transfiguração à Rcinvenção................................................................93
Negação do S en sível.....................................................................................93
Reinvenção do R e a l.................................................................................. 103
Alegorização P latônica............................................................................ 107
Sondagens M etafísicas.............................................................................. 116

4. Inconsciente, Mito, M em ó ria................................................................... 125


Representação das A usências................................................................. 126
Ressonâncias de uma P alavra................................................................ 131
Imagens: Mito, M em ória......................................................................... 146
M itopoética................................................................................................. 155
Mito, Inconsciente, “Lirismo Puro” ..................................................... 162

5. Sentimento do T e m p o ............................................................................. 167


O Canto Encalacrado............................................................................... 167
PREFACIO
Incursão na H istória................................................................................. 178
Um Poema Em blem ático......................................................................... 193

Conclusão T entativa........................................................................................ 211


B ib liografia...................................................................................................... 221
Anexo: Sugestões para uma Antologia Contem porânea..........................239

A fortuna crítica de Cecília Meireles está aquém da importância de


sua obra. Neste estudo acurado de Leila Gouvêa, em que o trabalho minu­
cioso de análise brota da dedicação fervorosa, o leitor encontrará uma bus­
ca dos fundamentos dessa importância aliada à tentativa de compreensão de
sua poesia, através da leitura cerrada de inúmeros poemas e de um exausti­
vo comentário sobre sua pureza e significação.
Embora boa parte da crítica a tenha sempre avaliado positivamente,
como ocorreu com alguns poetas modernistas da primeira hora, e mais
tarde, com os críticos Darcy Damasceno, Otto Maria Carpeaux, Alfredo
Bosi, entre outros, a singularidade de Cecília no quadro do Modernismo e
um juízo algo restritivo de Antonio Cândido, serviram de acicate para o
desenvolvimento do trabalho e justificativa de seu modo de ser mais ínti­
mo. É como se Leila, angustiada diante das lacunas da bibliografia ideal e
da falta de um reconhecimento completo, quisesse cumprir de algum modo
a tarefa de preenchê-los, numa entrega generosa a seu objeto de estudo, que
se reflete no tom reivindicatório e apologético que atravessa sua argumen­
tação. Mesmo quando não chega a nos convencer, ela ressalta as qualidades
de uma obra de primeira plana e nos estimula a entendê-la melhor.
Trata-se, em linhas gerais, de uma interpretação que nasce de uma
identificação profunda, mas não exclui o distanciamento crítico, traduzido
em esforço analítico e na investigação das bases de pensamento em que se
PEN SA M ENTO E 'L IR IS M O Pl R O ' NA PO ESIA l)E C EC ÍL IA M EIR EL ES l'REEACIO 1:1

fundariam as intuições cristalizadas nas imagens poéticas da autora de Via­ longo dela, muito além das ligações com o grupo espiritualista da revista
gem. Sem perder a consciência crítica, o esforço de entendimento acompa­ l esta, que lhe marcaram, com alguma ingenuidade, os primeiros versos.
nha aqui um olhar apaixonado que adere à visão lírica de Cecília, assina­ Podem ser notados não apenas nos tons esfumados, na sintaxe fluida e no
lando sua força de conhecimento, como no final da década de 1930 já o gosto das toantes, procedimentos recorrentes de sua prática poética, mas
fizera Mário de Andrade. E persegue seus desdobramentos até o espraiar-se também nas afinidades mais secretas de seu imaginário, no espiritualismo
da dim ensão metafísica. É, portanto, uma reivindicação de valor e, ao de vários matizes a que a levaram suas inquiétudes e, principalmente, no
mesmo tempo, um mergulho investigativo no vasto mar de mistérios e próprio modo de conceber a imaginação poética como forma de conheci­
vaga música que lhe caracterizam a obra, sobretudo naqueles momentos mento. Esta herança decisiva que os simbolistas receberam dos românticos
poéticos em que a evanescência se abre para a transcendência e a imagem nunca se arrefeceu nela e representa uma tendência fundamental de sua
catalisa o que está além do que é dito. personalidade poética.
Este último ponto é nevrálgico e constitui precisamente o divisor de Poeta da transitoriedade, da ausência, do inefável, Cecília, com seu
águas da crítica diante da obra de Cecília. Por isso mesmo, torna-se o alvo puro canto, desafia a crítica a interpretar o sentido que lhe dá transcen­
principal e subreptício de todo o livro de Leila Gouvêa. E que desse ponto dência, sem abdicar de sua distância do mundo. Mas não será sempre assim
depende uma questão fundamental: ou o poema ganha em textura e com ­ com a mais alta poesia da canção que encanta, refugiando-se em si mesma?
plexidade, condensando o infinito no finito em irradiante significação, ou O desafio crítico que essa obra representa e a que Leila procurou respon­
se limita ao lacre do verso definitório e à imagem explicativa, fazendo der. não constituirá, no limite, o desafio de toda lírica essencial? Aprofundar
fenecer seu encanto sonoro e aparente enigma - limite em que incidiu a a leitura do enigma, revelar as razões de sua insolubilidade, decifrar o
restrição de Antonio Cândido. paradoxo dos ecos do mundo na própria ausência, parece ser a única res­
Cônscia dessa dificuldade, Leila cede à melíflua embriaguez do ritmo posta crítica adequada a esse desafio. Tarefa em aberto de que os críticos
que sempre cativa, mas busca nas imagens a carga de pensamento capaz de ainda não deram conta.
despertar o leitor para os problemas humanos, a experiência histórica, o Creio também, como afirma Leila na conclusão de seu trabalho, que
“rumor do mundo” que de alguma forma ficaria ressoando na ausência de é na direção da poesia moderna dentro da tradição pós-simbolista interna­
mundo ceciliana. Arrisca-se, assim, na tarefa bastante problemática de res­ cional - a tradição de Yeats, Rilke, Valéry, Juan Ramón Jiménez e tantos
gatar vínculos ocultos com o mundo terreno de que essa obra aparentemen­ outros - , que se deva dirigir toda tentativa de caracterização da obra de
te se afasta, para pairar nas regiões elevadas da “pastora de nuvens”, distan­ Cecília. Mas, embora ajude, essa caracterização decerto não bastará para
te do êfemero chão do cotidiano. O trabalho insiste na dimensão maior dar conta da fisionomia particular de um poeta, que é preciso esquadrinhar
dessa poesia pura que, sem nunca abrir mão de seu modo de ser lírico, teria na sondagem profunda de seus próprios meios de expressão e da sociedade
renovado, com matéria e sensibilidade brasileiras, a tradição do Lied em em que se produziu. De qualquer forma, das características semelhantes
língua portuguesa, como já observara Carpeaux. sempre podem surgir pistas para o mergulho nas obras individuais. Lem­
No quadro da poesia modernista, Cecília Meireles manteve sempre bremos, um pouco, nesse sentido, palavras sábias de Rilke em Os Cadernos
uma rara e solitária independência, em bora os contatos de amizade e a de Malte Laurids Brigge:
relação com a crítica de Mário de Andrade e Manuel Bandeira tenham sido
decisivos para ela. Ambos souberam vê-la a fundo e jam ais deixaram de Para escrev er um verso, um v erso só , é p reciso ter v isto m uitas cid a d es, h o m en s e
c o isa s. É p reciso ter exp erim en ta d o o s ca m in h o s de p a íses d e sc o n h e c id o s, d esp ed id a s já
louvar a pureza de sua inspiração, a filiação às fontes da tradição lírica
há m uito previstas, m istérios da infância que ainda não se esclareceram , m ares e noites rias
portuguesa, que lhe valeu bons leitores em Portugal, a refinada arte do
v ia g en s. N em basta ter reco rd a çõ es de tudo isso . E p reciso saber e sq u e c ê -la s quando se
verso, perfeitamente casada às necessidades expressivas, e a “graça aérea de tornaram num erosas, e é p reciso ter grande p aciên cia para esperar até que v oltem . Porque
suas imagens”, conforme apontou com precisão Bandeira. as record a çõ es - isto ainda não é a p o esia . S ó q uando se incorporaram em n ó s, quando já
Essa independência certamente se nutria de uma completa fidelidade
às raízes simbolistas de sua lírica, cujos ecos permanecem constantes ao
II PENSAMENTO E 'LIRISM O PURO" NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

não têm nome e já não se distinguem de nosso ser, só então pode acontecer que numa hora
rara surja a prim eira palavra de um verso1.

Não será esta uma perfeita descrição do que fez Cecília? Não estará
aqui descrita a exata atitude que condiz com sua experiência poética? Não
será esse vasto mundo visto, esquecido e recriado pela imaginação poética,
que é outra forma da memória, o que continua a ressoar em seu mar de
INTRODUÇÃO
ausências?
Creio que o livro de Leila Gouvêa, seu trabalho empenhado de mui­
tos anos, ajuda-nos a penetrar, com lucidez e alguma perplexidade, no fas­
cínio do espelho dessas águas em que uma grande poeta sem nunca se
reconhecer inteiramente se interroga a si mesma, em meio à fugacidade de
tudo, sobre o sentido de sua recorrente canção.

Davi Arrigucci Jr.

O intuito deste livro é contribuir, por meio do esforço analítico-


interpretativo e comentários críticos sobre poemas, para a compreensão da
poesia lírica de Cecília Meireles, que hoje, transcorridos mais de quarenta
anos de sua morte, decerto emerge como uma das mais permanentes e, ao
mesmo tempo, desgarradas de seu tempo estético, o modernismo, ao me­
nos conforme tem sido compreendido no Brasil. Essa permanência pode
ser comprovada também por uma sorte de ressurgimento crítico dessa líri­
ca, o qual, especialmente de uma década para cá, é possível observar em
nossas academias, inclusive na Universidade de São Paulo - onde, até iní­
cio da década de 1990, registrava-se uma única dissertação de mestrado
acerca da obra poética de Cecília Meireles, o precioso trabalho de llka B.
Laurito sobre o Romanceiro cia Inconfidência'.
Minha pesquisa, apresentada originalmente como tese de doutorado em
2003 na Universidade de São Paulo, demandou muitos anos, mais do que eu
por várias vezes me propusera. Isso se deveu não somente aos tateios lentos
e ao tempo de maturação da crítica aprendiz - afora contratempos de or­
dem e dimensão várias - como também à minha ambição de recortar o
trabalho analítico a partir de um olhar de conjunto sobre essa vasta obra,
1. Cito a partir de uma tradução de Otto Maria Carpeaux, em páginas notáveis que dedi­
cou a Rilke, em sua História da Literatura Ocidental, Rio de Janeiro, Edições O Cruzei­
ro, 1964, vol. VI, p. 2803. I. Tempos de Cecília, 1975.
Il) PEN SA M E N T O E "L IR IS M O PU R O ’ NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR EL ES INTRODUÇÃO 17

formada por mais de 1500 poemas repartidos em trinta livros (doze dos tradições poéticas e filosóficas, universais e da língua portuguesa, desde as
quais póstumos), além da prosa, constituída por cerca de 2600 crônicas - mais remotas até algumas das práxis contemporâneas - as quais subjazem
um terço, se tanto, já reunido em livros. Considere-se ainda mais de cin­ amalgamadas em seu tecido poético, de modo quase sempre velado, sob a
quenta estudos e conferências, algumas centenas de cartas, mais traduções, aparência de simplicidade ou mesmo singeleza. Foi o que me levou a percor­
peças de teatro, desenhos e aquarelas, em boa parte ainda inéditos ou disper­ rer insuspeitados caminhos e, em muitos casos, é o que permite transportar
sos, a parte dos quais pude ter acesso ao longo desses anos. Trata-se, sem para a fatura lírica a observação do escritor Jorge de Sena sobre a personali­
dúvida, de um dos mais fecundos legados de nossa literatura e, decerto, o dade da mulher: “[...] um ser humano extremamente complexo e aterradora­
mais extenso já deixado por uma escritora no Brasil, a qual, entretanto, em mente simples”6.
que pese a dicção feminina em muitos poemas, não produziu propriamente
“poesia feminina”, mas de caráter universal e cm sua maior parte concernente
à condição humana, conforme já reconheceu a crítica23. E ST A D O DA C R ÍT IC A
O cotejo pontual entre a lírica e a prosa, especialmente a das crônicas e
artigos sobre educação - trincheira preferencial de lutas da escritora na polis Referi-me, inicialmente, a desafio de “compreensão”, e não propria­
histórica1- , além de propiciar uma sondagem de como se dava o recolhimento mente de reavaliação da lírica ceciliana, tendo em vista a recepção crítica
da matéria para sua escrita nos dois registros, não deixa de descortinar o que se majoritariamente favorável a seus livros, tanto os de juventude como os de
configura, conforme bem formulou Alcides Villaça, como a “dialética entre a maturidade, embora boa parte dessa fortuna convirja na identificação de uma
ação positiva da mulher e da intelectual e o recolhimento lírico mais ensom- “voz distinta”, uma singularidade ou estranheza, mesmo um “problema" face
brado, no qual declinam-se e declinam altivamente (paradoxo ceciliano?) as à poética de nosso modernismo. Ainda assim, o coro dos contrários nessa
aspirações essenciais”4. Dialética e paradoxos que, por sinal, estão presentes na recepção foi relativamente magro, apesar de por vezes ruidoso, como no
estrutura da lírica da “serena desesperada” - objeto nuclear deste estudo -, caso de Agripino Grieco, que, entretanto, apenas abordou a obra imatura.
polarizada entre dualismos, antíteses e antinomias, os quais podem refletir a “[...] pouco original, por isso que imitadora de Leopardi e Antero”, registra­
divisão do sujeito, o sentimento silencioso ou transfigurado do caos contempo­ ria - e depois, em uma virulenta entrevista dada em Lisboa, acusaria a escri­
râneo, o frustrado anseio de absoluto. Enfim, a subjetividade cindida nos tem­ tora de "plagiar" Fernando Pessoa. É verdade que paralelismos com o poeta
pos modernos, fragmentada em múltiplos eus. A distensão era buscada no dos heterônimos foram encontrados ou discutidos, mas de modo crítico, por
ordenamento de palavras, na síntese da poesia, na serenidade da forma. "Na alguns estudiosos7. Diante do perfil mais de ataque do que de verdadeira
poesia encontro a paz interior”, terá dito Cecília em uma entrevista5. Eis por que reflexão ou "exame” de parte de um autor nunca isento de certo viés sexista,
a escolha de um desses pares de pólos de tensão - pensamento e "lirismo puro", convirá lembrar a desmontagem da produção crítica de Grieco empreendida
conforme conceituado por Mário de Andrade - como título desta pesquisa. por João Luiz Lafetá no ensaio "Retórica e Alienação"8.
Outra aporia, que penso servir de álibi consistente para a extrapolação
de vários dos meus prazos, refere-se à erudição que fui aos poucos flagrando
na escrita da autora, tão vasta quanto discreta, à recorrente reminiscência de 6. “Algumas Palavras”, 1988, p. 35. Outro crítico português, Vitorino N em ésio, entendeu
que nossa escritora foi “humanista que libou o mel das grandes culturas”. “Leitura Se­
manal - Um Livro de Cecília Meireles”, 1949, p. 1.
7. Agripino Grieco, “Quatro Poetisas”, 1932. pp. 201-204; e também “Uma Entrevista com
2. Entre outros. Otto Maria Carpeaux, "Poesia Intemporal”, 1960, pp. 203-208. Agripino Grieco”, 1952. pp. 1 e 5. A aproximação a Ixopardi e a Antero talvez não lograsse
3. Ver Valéria Lamego, A Farpa na Lira. Cecília Meireles na Revolução de 1930, 1996; e desmerecer uma autora então com menos de trinta anos. Quanto à aproximação com
também Jussara Pimenta, Cecília Meireles e a Criação da Biblioteca Infantil do Pavi­ Fernando Pessoa, ver entre outros: Ana Maria Domingues de Oliveira, De Caravelas, Mares
lhão Mourisco 11934-1937), 2001. e Forcas: Um Estudo de “Mensagem ” e “Romanceiro da Inconfidência ”, 1994; Francisco
4. Cf. "Sobre Cecília em Portugal”, prefácio a meu estudo biográfico Cecília em Portugal Cota Fagundes, “Fernando Pessoa e Cecília Meireles: a Poetização da Infância”, 1981, pp.
2001. p. 15. 15-22; e Nelly Novaes Coelho, “Cecília Meireles e Fernando Pessoa”. 1996, pp. 21-30.
5. Cf. Flora Machman, “C ecília Meireles: Na Poesia Encontro a Paz Interior"'. 1962. 8. João Luiz Lafetá, 1930: A Crítica e o Modernismo, 1974, pp. 41-74.
18 PEN SAM ENTO E “L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES INTRODUÇÃO 19

Descontadas algumas ressalvas, as avaliações positivas foram produ­ metros e dos consoantes parnasianos, os esfumados de sintaxe e as toantes dos
zidas especialmente por nossos modernistas, a começar pela leitura seminal simbolistas”, mas também as “aproximações inesperadas dos surrealistas” 111.
de Mário de Andrade, em 1939, à qual me reportarei mais de uma vez ao O grande lírico dos “versos espetados” não esteve sozinho na identificação de
longo deste livro - e quero aqui reconhecer desde já a notável contribuição surrealismo em Cecília - que mais de uma vez explicitou empatia com a
do Estudo Crítico da Bibliografia sobre Cecília Meireles, de Ana Maria literatura de Breton, Aragon, Éluard, Jacob e Soupault. Aos dois últimos
Domingues de Oliveira, para o mapeamento da fortuna e da recepção críti­ chega a se referir, ao lado do próprio Bandeira, em um texto póstumo, “Pe­
cas à obra ceciliana, o qual registra perto de mil textos, publicado em 2001. queno Poema Fúnebre”. Outro egresso do modernismo, Ménotti dei Picchia
Mário detectou a “rara independência” e a passagem “não exatamente incó­ chegaria a escrever que o surrealismo “predomina na poética desta singular
lume” da escritora pelo modernismo, mas mediante uma “firme resistência artista”, enquanto o português Nuno de Sampaio localizou como suas princi­
a qualquer adesão passiva”. Desvendou, ainda, não apenas o “ecletismo pais fontes o “lirismo do cancioneiro e do romanceiro”, ao lado do “purismo
sábio” da linguagem poética como também a vertente metafísica nessa poe­ sobrenatural dos surrealistas” 11.
sia - na detida análise do poema “Eco”, inserido depois em Vaga Música Murilo Mendes e Carlos Drummond de Andrade também leram com
(1942) - , além de assinalar o salto qualitativo entre a obra de juventude e a penetração a poesia de Cecília Meireles. O primeiro publicou, original­
de maturidade, iniciada em Viagem (1939). Foi sobretudo ele, quem, desta mente na revista Vanguarda, o talvez primeiro texto crítico sobre o Roman­
vez em uma carta repleta de comentários mal-humorados face a uma con­ ceiro da Inconfidência (1953), nele encontrando “poesia social de alta cate­
ferência de Cecília Meireles que acabara de ouvir - texto, com efeito, por goria”, enquanto Drummond é autor de mais de uma dezena de artigos
demais alusivo e ambíguo - , avaliou que o segundo livro da obra madura sobre a escritora, parte dos quais com alguma avaliação de sua lírica, como
(Vaga Música), embora “fora do tempo, pior que a conferência neste sen­ a de que as “notações” cecilianas da natureza consistem em “esboços de
tido”, ressalvava, “é a melhor coisa de lirismo puro que nunca se escreveu quadros metafísicos” 12.
neste país”. Especialmente no quinto capítulo deste volume, abordarei a Cabe ainda destacar as leituras importantes de Otto Maria Carpeaux -
questão da tão propalada “intemporalidade" do discurso poético ceciliano. que, a par haver compreendido essa poesia como de “perfeição intemporal”,
Convirá, contudo, assinalar desde já que, ao leitor da produção ensaística considerou a escritora “o poeta clássico do modernism o” e, como que
de Mário de Andrade - o qual ao longo de toda a sua vida de crítico perse­ ecoando uma insinuação anterior de Mário de Andrade, aproximou essa
guiu o “lirismo puro” na poesia do modernismo brasileiro, isto é, aquele lírica da “poesia pura”, especialmente a de linhagem espanhola; Paulo
brotado da conexão com o inconsciente no instante de criação poética - , Rónai, um dos primeiros a identificar o “platonismo” nessa lírica; Álvaro
não será difícil dimensionar o impacto desse desabafo9*. Lins, que passou batido por alguns dos mais fortes poemas de Mar Absolu­
Manuel Bandeira, talvez o mais prolífico crítico ceciliano dentre os to, porém localizou o embate entre a artífice e a poeta - esta última ceden­
modernos, e que dedicou à escritora aquele célebre “Improviso” (Belo Belo), do lugar à primeira nos poemas menores - e percebeu a “singular mestria”,
entendeu que o domínio da técnica, reconhecidamente alcançado pela escri­ a “calma segurança de quem exerce um comando” na construção da escrita;
tora desde Viagem, era de natureza “informadora”, e não “decoradora da o maior exegeta em vida da escritora, Darcy Damasceno, autor do ensaio
substância”. Reiterou também o “ecletismo” das soluções estéticas percebido “Poesia do Sensível e do Imaginário”, que introduz quatro das edições da
por Mário, porém foi mais explícito, ao identificar nesse tecido poético as Obra Poética e da Poesia Completa, decerto o primeiro a abordar a questão
“claridades clássicas, as melhores sutilezas do gongorismo, a nitidez dos

10. Manuel Bandeira, “C ecília Meireles”, 1946, pp. 166-168.


1 I . Ménotti Del Picchia, "O Inconsciente na Poesia" e Nuno de Sampaio, “O Misticismo
9. Ver “Cecília e a Poesia" e “ Viagem ", O Empalhador de Passarinho, 1972, pp. 71-75 e
Lírico”. Em Cecília Meireles. Obra Poética, 1958. pp. LV-LVIII e LVIIl-LXII.
161-164; e também Moacyr Werneck de Castro, Mário de Andrade. Exílio no Rio,
12. Murilo Mendes, “A Poesia Social”, em Cecília Meireles, op. cit., pp. LXV-LXVII; Carlos
1989, pp. 197-200; e ainda a marginália contida no exemplar que pertenceu a Mário de
Drummond de Andrade, “Cecília: Imagens para Sempre", 1964; e também "Retrato
Andrade do livro Viagem: IEB-USP.
Natural". 1949.
20 PENSAMENTO E "LIRISMO PURO" NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES INTRODUÇÃO

tias ressonâncias da lírica barroca ou maneirista; mais recentemente, Miguel belga Mélot du Dy, que na década de 1950 traduziu para o francês “A Elegia
Sanches Neto, que revisitou a obra ccciliana no ensaio “Cecília Meireles e sobre a Morte de Gandhi”, além de incontáveis hispano-americanos. O olhar
o Tempo Inteiriço”, o qual introduz a quinta edição da Poesia Completa, estrangeiro por vezes captou o que muitos de nós não percebêramos, como a
publicada em 2001, no centenário de nascimento da autora. Sem esquecer, crítica à opressão da mulher em vários poemas ou as distâncias do “exótico”
mais para trás, Mário Faustino, que, além de haver localizado pelo menos na aproximação de Cecília da literatura e da filosofia “orientais”, conforme
“cinqüenta grandes poemas” na produção ceciliana até 1957 - ajuntando a analisou Darlene Sadlier.
ponderação: “quantos poetas em nossa língua já assinaram cinqüenta gran­ No âmbito da Universidade de São Paulo, onde esta pesquisa foi origi­
des poemas?" - , tocou numa questão que considero de alta relevância, a do nalmente apresentada, além de teses e dissertações recentes1314, será necessário
que chamou de "prolixidade”, de excesso de produção1'. O que nos coloca lembrar a leitura muito restritiva da poesia ceciliana feita por Antonio Cândido,
aquele desafio formulado por Croce de separar, na obra de cada autor, o em co-autoria com José Aderaldo Castello, incluída no terceiro volume da
que é e o que não é poesia - e, em vista disso, procurei indicar uma antolo­ Presença da Literatura Brasileira, na qual, apesar do reconhecimento da “ri­
gia sugestiva com os títulos dos melhores poemas, na qual incluí mais de queza de imagens”, enfileiram-se avaliações negativas como “um todo unifor­
cem textos e que se encontra em anexo, no final deste volume. me e linear”, ausência de “qualquer impulso de investigação temática”, “versos
Ainda é preciso lembrar algumas dezenas de artigos de intelectuais por­ intencionalmente definidores”, “falso virtuosismo”, excessiva clareza. Leitura
tugueses, especialmente alguns achados relevantes de autoria de Adolfo Ca­ que, afinal, precede uma arguta seleção de poemas. Voltarei a esse texto co-
sais Monteiro, João Gaspar Simões, Jorge de Sena, Vitorino Nemésio ou assinado pelo grande mestre - de quem me orgulho de haver sido aluna e de
Fernando Cristóvão, entre outros. Como grande parte da fortuna ceciliana, quem meu esforço analítico é também tributário; e que honrosamente me orien­
são textos, quase sempre, desprovidos de abordagem analítica, diversamente tou na montagem de uma seção de livros que coordenei na imprensa no passa­
do que ocorre com a penetrante tese de doutorado Cecília Meireles, uma do - , porém desde já gostaria de avançar ao menos a questão da ausência de
Poética cio Eterno Instante, defendida em 1993 pela professora açoriana qualquer referência ao Romanceiro da Inconfidência, tido por muitos críticos
Margarida Maia Gouveia, publicada em Lisboa. Da mesma forma, deve-se como obra maior ceciliana, e que efetivamente representa um tournant nessa
lembrar os trabalhos acadêmicos de outros estudiosos estrangeiros ou radica­ poética15. Muito diversa é a leitura de Alfredo Bosi, empreendida desde 1961
dos em outros países, como Darlene Sadlier, entre outros Imagery and Theme em ensaio no qual fala em “milagre de lirismo” e qualifica Cecília Meireles de
in the Poetry o f Cecília Meireles, Universidade de Indiana, publicado em "altíssimo poeta” - avaliação reafirmada em outras abordagens críticas, inclu­
1983; Rubén Victor Garcia, Modernity and Tradition in Cecília Meireles, sive em recente ensaio que agora integra sua coletânea Céu, Infernol6. A pro­
Universidade do Texas, Austin, 1975; e, mais recentemente, Inês Cavalcanti, pósito de textos recentes, devo ainda destacar a contribuição crítica de João
Poèmes en Regard, Cecília Meireles et Sophia de Mello Breyner, Sorbonne Adolfo Hansen no ensaio “Solombra, ou a Sombra que Cai sobre o Eu”, de
Nouvelle, Paris III. Destacam-se ainda ensaios como os dos também norte- onde emerge uma leitura inovadora do talvez mais hermético dos livros
americanos John Nist, Henry Keith e Raymond Sayers, dos franceses Francis
Utéza e André Camlong - o deste último consistente em uma estimulante
investigação sobre a “metafísica” ceciliana - , do indiano Dilip Loundo, que 14. Como as de Ana Maria Domingues de Oliveira. Miriam B. Puzzo, Glória M.V. Kirinus.
inventariou as ressonâncias da índia na obra e na vida da escritora, ou do Murilo Marcondes de Moura. Maria Deosdédite G. Chaves, Maria Rejane Tito, Sílvia
Helena Trevisan, Irene da Silva Coelho e José Carlos Zambolli - parte delas consistindo
em estudos comparados com outros autores. Já em 2005-2006, a esse esforço interpre-
tativo no âmbito da USP vieram somar-se a dissertação de Maurício Baptista Vieira e a tese
13. Otto Maria Carpeaux, op. cit. Ver também: "As Revoltas Modernistas”, 1966, sobretudo de Jussara Neves Resende.
p. 3 323; Paulo Rónai, "O Conceito de Beleza em Mar Absoluto", 1948, pp. 53-57; 15. Antonio Cândido e José Aderaldo Castello. Presença da Literatura Brasileira, vol. 3,
Álvaro Lins, "Dois Poetas e uma Poetisa”, 1947, pp. 92-99; Darcy Damasceno, "Poesia 1967, pp. 114-115.
do Sensível e do Imaginário”, em Cecília Meireles, op. cit., pp. XI-XL1I: Mário Faustino, 16. Alfredo Bosi, "Círculo Mágico", 1961. p. I. O ensaio, hoje inserido no livro do autor
"Cecília Meireles: Canções". 1957; ver também “A Poesia 'Concreta’ e o Momento Céu, Inferno, é "Em torno da Poesia de Cecília Meireles", apresentado originalmente ao
Poético Brasileiro", Poesia - Experiência, 1977. pp. 209-218. Seminário Internacional pelo centenário da escritora, em 2001. na USP.
22 PENSAMENTO E "L IR IS M O PU RO" NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES

cecilianos, o qual insere na “grande tradição da lírica moderna” e do qual O estudo do poema “Memória” (Vaga Música) levou-me, no capítulo
desentranhou uma “teoria” da própria poética da autora17. quarto, a uma reflexão sobre o modo de composição em conexão com o
inconsciente no instante poético e sobre a presença do mito na lírica ceciliana.
Aí dialogo especialmente com Mário de Andrade e sua pesquisa do “lirismo
OS C A PÍT U L O S D E S T E L IV R O puro”, e investigo como a forma contida, a musicalidade e o ritmo regular,
longe de constituírem uma submissão à tradição, podem consistir em meio
No primeiro capítulo, empreendo uma revisita à poesia imatura cecilia- de acesso ao plano onírico e mítico e de acesso órfico ao invisível - aqui
na - compreendida pelos livros Espectros, Nunca Mais... e Poema dos Poe­ entendendo por orfismo, em síntese, não apenas o mergulho do eu poético
mas e Baladas para El-Rei, escritos entre os dezesseis e os 21 anos - , onde se em planos mais profundos da psique, mas também a arte concebida sob “o
sobressai a dicção pamaso-simbolista e neo-simbolista, procurando resgatar espírito da música”, de feição não mimética, o que aproximará uma tal poé­
as primeiras “presenças fecundantes” nessa lírica e dar algumas respostas a tica da chamada poesia pura18.
algumas incógnitas renitentes sobre a personalidade literária. Tencionei tam­ Na quinta seção, munida sobretudo de alguns ensaios de Walter Ben­
bém rastrear o pensamento estético da escritora numa época de alta eferves­ jamin, procuro refletir sobre a presença e o sentimento do tempo histórico
cência da vida cultural brasileira e internacional - aí me circunscrevendo na obra poética ceciliana, abordando em especial o Romanceiro da Incon­
prioritariamente à década de 1920 e início do decênio seguinte, auge de fidência (1953), composto pela autora em época de crise que denomino do
nosso modernismo. Entretanto, não me estendi nessa seção ao que chamo de “canto encalacrado”, afinal deflagrada por esse mesmo “sentimento do tem­
“obra de transição”, configurada pelos livros póstumos Cânticos e Morena, po” . Recorrendo, mais à frente, sobretudo à teoria de Friedrich Schiller em
Pena de Amor, além de um punhado de poemas esparsos em publicações Poesia Ingênua e Sentimental, analiso, por fim, o que considero o mais
várias, os quais antecedem o início da maturidade plena. extraordinário texto da “lírica de guerra” da autora, “Lamento do Oficial
Os demais capítulos têm como eixo a análise e a interpretação de por Seu Cavalo Morto”, de Mar Absoluto - livro que, a par os “intemporais”
poemas da fase de maturidade. No segundo, investigo sob que transfigura­ “Motivos da Rosa” e o acento místico-metafísico de muitos poemas, é atra­
ções da experiência sensível uma das pedras de toque do modernismo - o vessado pelo canto fúnebre de “lamentos” e baladas de guerra. O poema foi
cotidiano - comparece na lírica ceciliana, mediante o estudo de dois poe­ escolhido para análise não apenas por ser emblemático da intensidade de
mas: “Por Baixo dos Largos Ficus” (Mar Absoluto, 1945); e “Improviso uma poética vista ainda por alguns como apenas “delicada" ou “suave”,
para Norman Fraser” (Retrato Natural, 1949). mas, também por condensar de modo privilegiado a ética humanista e pa­
No terceiro, com a análise do poema “Reinvenção” (Vaga Música, cifista da escritora, porque emerge como uma metáfora - como também se
1942), fui levada à sondagem da genealogia do pensamento e da “metafísica” verifica no Romanceiro da Inconfidência - de seu sentimento da história e
que atravessam toda a lírica de Cecília Meireles, interpondo-se recorrente­ da condição humana.
mente ao sensível. Pude reconhecer nessa etapa, ao lado do budismo e de
*
outras tradições filosóficas orientais, o platonismo como genealogia primor­
dial, bem como ressonâncias recorrentes de toda uma tradição de poetas da
tradição platônica ou neoplatônica, que vão de Petrarca a Camões, de Este livro consiste na versão ligeiramente modificada de minha tese
Baudelaire e Mallarmé a Fernando Pessoa - e em nossa literatura, de Augusto de doutorado, defendida em 2003 na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciên­
dos Anjos a um certo Drummond. cias Humanas da Universidade de São Paulo. É indispensável assinalar,

1 8. Ver. entre outros: Dante Tringali. “O Orfismo”, e Guacira Marcondes M. Leite. "O Mito
17. Originalmente apresentado ao Seminário Internacional pelo centenário da escritora rea­ de Orfeu na Modernidade Poética Francesa", em S. M. Carvalho (org.), Orfeu, Orfismo
lizado em 2001 na USP. e Viagens a Mandos Paralelos, 1990, pp. 15-23 e 67-78.
•24 PEN SAM ENTO E "L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR EL ES

1
aqui, meu reconhecimento a todos os que contribuíram para o desenvolvi­
mento de minha prolongada pesquisa.
Em primeiro lugar ao meu orientador, Alcides Villaça, que acolheu
meu projeto em tempos ainda tão pouco cecilianos e cujas competência e
paciente confiança foram decisivas para a conclusão deste trabalho. Aos pro­
fessores Davi Arrigucci Júnior e João Adolfo Hansen, cujas importantes su­
gestões e correções em meu exame de qualificação muito contribuíram para SOBRE A OBRA IMATURA
o desdobramento analítico da pesquisa; e àqueles que participaram da banca
de meu doutorado, e cuja leitura da tese original não apenas me estimulou a
publicar o trabalho como consistiu em fonte de tentativas de aperfeiçoá-lo: [...] não se pode compreender, ou propriamente
professores Antonio Carlos Secchin, Ana Maria Domingues de Oliveira, apreciar, a obra ulterior [de um grande p oeta]
Vagner Camilo e, uma vez mais, João Adolfo Hansen, além de meu próprio sem antes estudar e estim ar aquela que a
antecedeu; e a obra dos últimos anos sempre
orientador.
deita alguma luz sobre a dos primeiros,
Agradeço ainda a todos os meus professores de pós-graduação, pelo
revelando-nos uma beleza e uma significação
que com eles pude aprender, e em especial ao professor Alfredo Bosi, pela que não havíamos percebido até então.
atenção generosa aos meus projetos cecilianos; T. S. Eliot, sobre Yeats'
ao poeta e filósofo Herculano Villas-Boas, pelas preciosas indicações
bibliográficas na área da filosofia;
à atriz Maria Fernanda, filha de Cecília Meireles, pelas longas con­ T R Ê S L IV R O S DE JU V E N T U D E
versas e pela confiança;
e a minha filha Manuela, que por muitos anos conviveu com o meu Quem era aquela normalista carioca que, antes de haver completado
apaixonado empenho; além de meu insubstituível com panheiro Fábio dezessete anos, escrevera os dezessete sonetos que comporiam seu primeiro
Alvim, que presenciou a gênese deste trabalho e me assegurou, com sua livro. Espectros, publicado em 1919? E que, em 1921, tinha prontos os
sensibilidade ímpar, os primeiros e fundadores estímulos; versos livres de Poema dos Poemas?' Onde estava, o que pensava e o que
por fim, meu reconhecimento, in memoriam, a meu pai, Herculano escrevia durante a Semana de Arte Moderna de 1922 e nos anos que a
Gouvêa Netto, e a meus amigos Ruy Affonso Machado e Serge Wehrlé. sucederam? Estas são algumas das mais remotas incógnitas das muitas que
ainda encobrem o fazer poético de Cecília Meireles, a parte das quais ten­
*
tarei dar algumas respostas neste capítulo.
O exame de sua obra imatura, a qual a poeta: deixou de incluir tanto em
Registro ainda meu agradecimento à Capes e ao Centro Nacional de sua Obra Poética - a cuja primeira edição assistiu, em 1958 - como na
Cultura de Portugal, pelas bolsas concedidas em etapas anteriores de minha Antologia por ela mesma organizada no início da década de 1960, pode ser
pesquisa. um primeiro passo não apenas para se responder às perguntas acima formu-

.* De Poesia e de Poetas, 1991a, p. 347.


1. O livro, ainda inédito, foi resenhado em 1921 por A. J. Pereira da Silva. Desse autor, ver
"Poema dos Poemas”, 1921. p. 3.
2. Para designar Cecília M eireles, usarei neste livro o termo “poeta” e não "poetisa", em
conformidade com Otto Maria Carpeaux, que afirmou: "A sra. Cecília Meireles não é
poetisa, mas poeta; e grande poeta”. "Poesia Intemporal", 1960, p. 204.
SOItRE A O RRA I M A T ER A
2ti PEN SAM ENTO E ‘ L IR IS M O PI RO" NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES

con to as árvores da prim avera, que vem os da janela, não se preocupam co m as folhas mortas
ladas como também para se tentar uma compreensão mais abrangente do
no ú ltim o o u to n o 5.
conjunto de sua poesia. Cabe, desde já, perguntar: por que a escritora traçou
uma implícita linha divisória entre a obra de juventude e a de maturidade,
Aparentemente Cecília não seguiu senão em parte esta epígrafe, uma
iniciada em Viagem? Embora, ao que se sabe, ela não se tenha detido a
vez que, segundo a lenda, teria contribuído posteriormente para o sumiço
explicar essa cisão, parece claro que isto se deu pelo fato de não considerar a de cópias da plaquete de estréia - uma delas afinal foi localizada por Anto­
primeira como parte da identidade poética e estilística alcançada na maturi­ nio Carlos Secchin, que a inseriu na mencionada edição de 2001 de sua
dade, possivelmente atribuindo-lhe o estatuto de primeiras “exercitações”, Poesia Completa, 37 anos depois da morte da escritora6*.Mas ressalta desde
conforme a expressão de Croce. “Qual o poeta que não se envergonha e aí uma diretriz que nortearia toda a obra ceciliana, especialmente a de
desejaria eliminar do mundo [...] muitas de suas composições que, não maturidade, iniciada com Viagem (1939): a busca de um ideal artístico, da
obstante, exigiram todo o empenho de suas forças no momento em que as “perfeição”, como fruto da permanente insatisfação com o já realizado. O
escreveu?”, indagou o pensador italiano, ecoando ponderações de Hegel’. No que, em parte, refletirá o ideal da lírica trovadoresca provençal, igualmen­
lento processo de maturação poética que atravessam múltiplos autores - e te herdado por Petrarca e pelo petrarquismo, poéticas que a escritora, reco­
este foi o caso de Cecília Meireles - , nem todos terão manifestado auto-rigor nhecidamente, conheceu como certamente poucos no Brasil. E como se a
a ponto de considerar apenas a produção de maturidade na reunião de sua poeta elegesse a atividade com a linguagem como terreno de busca do
obra, como fez a escritora carioca. A mesma preocupação em relação ao que absoluto e do inefável que atravessaria quase toda a sua lírica, assim confe­
incluir ou não como obra definitiva - o que está longe de significar que tudo rindo “fundamento ontológico” à forma poética. Mas não se tratará apenas
o que foi incluído poderia passar por seu posterior crivo crítico - ela terá da forma, para quem, já madura, diria entender a poesia com o prática
revelado quanto à obra inédita, de publicação póstuma, que não pôde revisar “vital", e assim enunciaria a idéia do “poema perfeito”:
devido ao agravamento de sua doença nos primeiros anos da década de 1960,
tarefa que teria sugerido fosse delegada a escritores e críticos amigos, como f . . ] o e x c e s s o de in teresse p ela form a p od e inutilizar a ex p ressã o e v ice-v ersa . T o ­
Carlos Drummond de Andrade ou Darcy Damasceno34. d os sab em que um p o em a p erfeito é o que apresenta form a e ex p ressã o , num ajustam ento
A epígrafe do parnasiano francês François Coppée ( 1842-1908), trans­ e x a to . N ã o sei se a s c o n d iç õ e s atuais d o m un d o perm item e s se eq u ilíb rio , porque serão
raros o s p oetas tão em esta d o d e v iv ê n c ia puram ente p o ética , liv res d o atord oam en to do
crita do original em Espectros, emerge como uma primeira pista.
tem p o, q u e co n sig a m fa zer do grito, m ú sica - isto é , que criem a p o esia co m o se form am
o s cristais. [...] afin a l se sen te que o grito é o grito; e a p o esia já é o grito (co m toda a sua
[...] o p oeta não d ev e m ais se ocupar d o que já realizou , m as so m en te do q u e ainda
força) m as transfigurado1.
se propõe a fazer. S eu son h o é a p erfeição, que d e v e orientar o seu p rogresso, e não o
su c e sso [...]; e [...] um a vez, im presso, seu livro não d eve m ais lhe inspirar cu id ad os, a ssim
Nesta enunciação de possível extração croceana8, identificam-se dire­
trizes como cuidado alquímico no trato com a linguagem, ajuste “exato” e

3. Benedetto Croce, A Poesia, 1967. pp. 197-198. N o sétimo volume da Estética, Hegel
5. Do “Avertissement” ao Cahier rouge, em Cecília Meireles, Espectros: Poesia Completa
considera que, se o poeta conservou "a energia da intuição e do sentimento”, é a matu­
- Edição do Centenário, 2001, vol. 1. p. 6. (Responsabilizo-me pela tradução deste e
ridade, e não a juventude, “a melhor idade para a produção poética”. 1964. pp. 86-87.
de outros textos em língua estrangeira transcritos ao longo deste estudo.)
4. Conforme informação que obtive da família da escritora. Quanto aos livros póstumos,
6. Sobre a “lenda” do desaparecimento de Espectros, ver: Dom ingos Carvalho da Silva,
incluem desde o que acima classiftquei como “obra de transição” ( Cânticos, do final da
“Notícia de um Livro Renegado”, 1992, pp. 22-24.
década de 1920, e Morena Pena Je Amor, do fim do decênio de 1930). além de perto de
7. Entrevista concedida em 1949 a Haroldo Maranhão, transcrita na Poesia Completa, 4.
quinhentos poemas posteriores, enleixados provisoriamente em pastas, no aguardo de
ed., 1994. pp. 89-90.
uma releitura, sempre adiada em meio aos múltiplos afazeres - e que devido à doença não
8. Em sua distinção de poesia e arte, Croce, que tão recorrentemente usa a palavra "transfi­
pôde ser feita - , entre os quais é preciso destacar Poemas Italianos, compostos durante seu
guração”, define a primeira como aquela “em que é perfeita a interpenetração de conteú­
interregno na terra de Dante em 1953. De outro lado, pude observar que a escritora cos­
do c forma, em que é obtida a suprema simplicidade na mais bola elaboração”. Op. cit.,
tumava rever e alterar poemas já publicados em revistas e periódicos antes de sua inserção
1967. p. 158.
em livro, porém não mais os revia nas reedições dos volumes.
liS PEN SA M ENTO E "L IR IS M O P I R O ' NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES SO BRE A OBRA IM V IT R A ‘-"l

equilibrado de forma e expressão, estado de “vivência poética”, coexistência pela da Bíblia - cinco dos poemas versam sobre personagens desse livro
de técnica e de inspiração, transfiguração órfica do “grito” em “música”. São canônico. Outro (“Brâmane”), que representa o êxtase estóico de um místico
alguns dos avatares do ideal artístico ceciliano, tão identificáveis na obra de hindu, indica que já se iniciara na pesquisa dos aludidos textos orientais, os
maturidade - do “sonho de perfeição” ou de permanência explicitado desde a quais, conforme já referido, tanto impregnariam seu sentimento do mundo.
epígrafe do livrinho de estréia. Idéia que terá embasado a “pulsão de escre­ O segundo soneto ("Defronte da Janela em que Trabalho” ), talvez como
ver”, como se a autora esperasse expressar o que julgava ainda não haver ressonância de Yeats, alude ao mito celta do druida. “Lendo Beaumarchais” é
conseguido no próximo texto ou poema, reservando ao instante da escritura o subtítulo ao penúltimo soneto da plaquete, “Evocação”. “Sortilégio”, que
ainda cm devir a disponibilidade de seu tempo e o melhor de sua força vital. encerra o volume, tematiza o ocultismo, tão presente no romantismo alemão
“Sempre vem um vento que apaga a palavra que eu precisaria... Enfim, até a e. depois, no simbolismo, o que também indicia que a jovem autora já ia se
morte há sorte... Pode ser que algum dia eu chegue a dizer uma coisa aproximando da poética simbolista, e isso ainda se depreende na possível
satisfatória”, escreveu em 1947 a um amigo, quando três de seus livros de reminiscência de Cruz e Sousa na “sidérea luz” de “A Belém!”. “Herodíade”
maturidade já estavam publicados1'. poderá ainda indicar o início de leituras de Mallarmé - conquanto essa perso­
O reconhecimento dessa incessante procura pela poeta de resto em er­ nagem bíblica apareça em múltiplos autores desde o barroco.
ge como um dos raros consensos da crítica. Cecília Meireles “estava sem­ Mas o procedimento - distanciamento do eu. inversões sintáticas, léxi­
pre empenhada em atingir a perfeição [...]”, notou Manuel Bandeira910*12. Ou, co em parte castiço e preciosístico (alfarrábio, pélago, selvática, fú!gicla,
conforme Paulo Rónai: “A busca da perfeição total, tão patente na sua hulha, augusta, ergástulo), praticamente abandonados na obra de maturida­
poesia, era nela um instinto inato e nuançava todas as suas iniciativas”, aí de - e a temática são predominantemente neoclássicos e parnasianos, esta
também aludindo a trabalhos de tradução da escritora". Por sua vez, Otto última privilegiando figuras históricas (Cleópatra e Marco Antônio, Dom
Maria Carpeaux dizia, sobre a obra madura, tratar-se de “poesia de perfei­ Pedro e Inès de Castro, Maria Antonieta, Nero, Joana d'Arc), além de míticas
ção intemporal” 13. Ideal dc "perfeição” estética que, como se verá na análi­ e bíblicas (Herodíade e Salomé, Cristo, Judite, os Reis Magos, Sansão e
se de poemas da obra madura, apresenta contrapartida ética de inspiração Dalila). O autor do prefácio, Alfredo Gomes, professor de Cecília Meireles
principalmente órfico-pitagórica e platônica e inclui ressonâncias de tradi­ na Escola Normal do Rio de Janeiro, notou a recorrência de sonetos que
ções místico-filosóficas orientais, como o budismo e o taoísmo. Vale lem­ tematizam grandes personalidades femininas, o que poderá sugerir o estudo
brar o Livro cio Caminho Perfeito do chinês Lao Tsé (c. 570-490 a.C.), de paradigmas na jovem que convivia ainda em um ambiente restrititivo à
fundador desta última, um dos pensadores abordados por Cecília Meireles atuação e à projeção da mulher. Nesse texto rigorosamente parnasiano. Go­
especialmente em sua prosa13. mes, todavia, mais esclarece sobre a personalidade e o caráter da jovem
Espectros inclui quinze sonetos em versos decassílabos e dois em normalista - que apresenta como ser de eleição, “alma de musa em figura
alexandrinos. Seu breve exame revela que a adolescente já acumulara um mortal”, dotada de ética ímpar - do que sobre os sonetos de estréia14.
acervo considerável de leituras ao arriscar-se no terreno da poesia, a começar Textos como “Antônio e Cleópatra”, “Sansão e Dalila” e “Noite de
Coimbra” pintam cenas carregadas de idílio sensual - sensualismo bastante
escasso nas outras obras - , privilegiando, como a maioria dos sonetos, o
terreno da poesia-pintura, num esforço de representação mimética, de ob­
9. Carta de 24 fev. 1947 a Armando Cortes-Rodrigues, arquivo do Instituto Cultural de
jetividade, ao qual Cecília Meireles renunciaria já nos dois livros publica­
Ponta Delgada.
10. Apresentação da Poesia Brasileira, op. cit., p. 156. dos poucos anos depois, na década de 1920.
1 I. "Adeus à Amiga", Suplemento Literário. O Estado de S.Paulo, 14 nov. 1964. No entanto, além do vocabulário parnasiano, os mesmos sonetos tam­
12. “Poesia Intemporal”, op. cit., pp. 205 e 208. bém revelam a escolha de um léxico que ascendería à condição de símbolos
13. "No livro do Tao, Lao-Tse' observa a identidade do princípio espiritual com o princípio
terreno. Prega o vazio de desejos, a falta de am bições, o desprendimento de todos os
interesses terrenos”, esclarece a própria Cecília M eireles. Cf. aula de 22 nov. 1937,
estenegrafada por uma aluna: Fundação Casa de Ruy Barbosa. 14. Transcrito em Poesia Completa, 5. ed. (do Centenário), 2001, vol. 1, pp. 7-14.
30 PEN SA M ENTO E "L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES SO BRE A OBRA IM ATU RA 31

axiais na linguagem ceciliana de maturidade - principal mente noite, vento, soneto, "que lembra, apenas por leve sugestão, o admirável poema de Edgar
sombra, nuvem, cavalo (ainda como “ginete” e “corcel”), ave, efêmero, Poe” 16. Naturalmente, ele se referia ao célebre “O Corvo” - e, com efeito, em
além de flores, êxtase, alabastro, espectros. E alguns deles já antecipam o ambos encontramos o eu poético mergulhado em estudos durante a noite e a
procedimento visionário e a atmosfera de mistério noturno recorrentes na aparição progressiva ou repentina de figuras míticas, como que pelo efeito da
obra posterior. E o caso do texto que abre e dá título ao volume: exaustão e da noite17. A ressonância de Poe sobre a jovem Cecília pode ainda
ser flagrada já no título de seu livro seguinte - Nunca mais...; “nevermore”
Espectros torna-se refrão no mesmo “O Corvo” - , o que indicia a atualização da jovem
escritora, mais do que se tem suposto, com as dissonâncias e ambiguidades da
Nas noites tem pestuosas, sobretudo,
Quando lá fora o vendaval estronda poesia moderna, desde os seus precursores.
E do pélago iroso à voz hedionda Registre-se, por fim, o escasseamento progressivo, desde Espectros,
Os céus respondem e estremece tudo, da publicação de sonetos pela autora, formato apenas muito raramente re­
tomado na obra de maturidade, o que pelo menos um crítico entendería
Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda, como distanciamento da tradição a que tantos outros subordinaram sua
Erguendo o olhar, exausto a tanto estudo.
escrita poética1*. Parte considerável dos sonetos que ainda escreveu nas
Vejo ante mim, pelo aposento mudo,
Passarem lentos, em morosa ronda, décadas de 1920 e de 1930, ela admitiu haver destruído, em uma carta.
"Que versalhada eu tinha [...]. Já há tempos destruí uns 100 ou 150 sonetos
Da lâmpada à inconstante claridade e outras miudezas. Que fazer? Eu por mim não os queria” 19. Nesse caso, a
(Que ao vento ora esmorece ora se aviva, mencionada “linha divisória” entre a obra assumida e a “rejeitada” foi bem
Em largas sombras e esplendor de sóis),
mais radical.
Silenciosos fanstasmas de outra idade,
Ainda há sonetos no segundo livro ceciliano (Nunca Mais... e Poema
A sugestão da noite rediviva dos Poemas), cujas composições teriam sido escritas entre 1920 e meados
- Deuses, demônios, monstros, reis e heróis. do ano seguinte20. Cecília ainda firmava sua escrita poética, mas é inegável
que já caminhara passos consideráveis desde a plaquete de estréia, buscan­
Como em vários dos sonetos, verifica-se a representação de um cená­ do novas estruturas estróficas, ritmos e metros - e já praticando o verso
rio, como que se armando um suspense com vistas a uma ação ou aparição no livre. Dos 21 poemas reunidos em Nunca Mais... (na realidade, este é o
terceto final. No caso de “Espectros”, figuras “que se manifestam no reino do primeiro de um par de livros em um só volume), nove foram compostos
luto” 15, a noite e a exaustão do estudo - rito de passagem da “alma ávida” em octossílabos, três em redondilha maior, dois em decassílabos e um em
rumo à voz poética de maturidade - atuam como enfraquecimento do estado versos polimétricos (“À Que Há de Vir no Último Dia”), além dos seis
consciente, qual um entorpecente que dá ao eu poético acesso a um outro sonetos, que se servem de alexandrinos e decassílabos. Quanto à estrutura
tempo, remoto, e a visões míticas, homéricas e clássicas. Esse procedimento,
já bastante distante das práticas parnasianas, e as figuras míticas reunidas no
verso final como que prenunciam a conexão com planos mais profundos da
16. “Cecília M eireles”, 1952, p. 266.
mente no instante poético, isto é, a poética órfica de maturidade. 17. “The Raven'T'O Corvo”, em Fernando Pessoa. Poeta - Tradutor de Poetas. Org. Arnaldo
No conhecido encorajamento que emprestou à jovem escritora logo da Saraiva. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999. pp. 152-159.
publicação do livrinho, em 1919, João Ribeiro classificou como “belo” esse 18. A “quase total inexistência de sonetos em toda a poesia que escreveu e publicou a partir
de 1929 [...] significará talvez [...] uma consciente ou inconsciente necessidade de as­
sumir uma certa 'distância' perante” a tradição poética portuguesa "de que tão amiúde
a consideravam tributária". David Mourão-Ferreira, "Temas e Motivos", s.d., p. 151.
19. Carta de 24 mar. 1938 à escritora portuguesa Maria Dulce de Castro Osório.
15. Cl. Walter Benjamim, Origem do Drama Barroco Alemão, 1984, p. 217. 2 0. Cf. Arquivo Darcy Damasceno, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro, pasta 26, 2, 35.
32 PEN SAM ENTO E “LIR ISM O PU R O " NA PO ESIA DE C EC ÍLIA M EIR ELES SOBRK A OBRA IM AT U R A

estrófica, Nunca Mais... inclui desde o terceto em terza rima e a quadra ao logo depois do aparecimento do livro: “Uma poetisa quase sem palavras.
quinteto, além do soneto. Uma poetisa apenas música. Uma poetisa Chopin”21.
E também sabido que a ex-normalista passara parte da adolescência A plasticidade, predominante em Espectros, cede lugar em Nunca
estudando música (violino e canto; mais tarde tocaria violão), além de lín­ mais... não apenas à musicalidade. Nesse livro (com 21 textos, número
guas e literaturas estrangeiras, iniciando então a sólida formação cultural idêntico ao de Poema dos Poemas e de Baladas para El-Rei, o que sugere
humanística posteriormente reconhecida por mais de um crítico. Conforme a o recurso à mística dos números)24, o eixo da poesia ceciliana já havia sido
“Notícia Biográfica” em sua Poesia Completa, ingressara no Conservatório deslocado do objeto para o sujeito, da exterioridade para a inferioridade, de
de Música do Rio também em decorrência do “sonho” de “escrever uma onde, afinal, apenas esporadicamente sairia na obra madura. Intensifica-se
ópera sobre São Paulo, o apóstolo”21. Fatos como esses, além da aproxima­ o tom melancólico, prenunciado em poemas de Espectros, e é recorrente a
ção da poética simbolista - indiciada ainda pelo uso da cor branca e suas alusão a sentimentos como tédio, tristeza, desilusão e a própria melancolia.
metáforas (neve, lírio) - , talvez ajudem a explicar a musicalidade em surdina Aos temas bíblicos e históricos da plaquete de estréia sucedem paisagens
das composições de Nunca Mais... Um “poeta pode lucrar muito com o desoladas e vagamente irreais, a vã espera de um outro (ou do Outro), a
estudo da música”, especialmente quanto à “noção de ritmo e de estrutura”, alma que era “iluminada” e obscureceu, a “Renúncia” orientalista (grafada
ritmo que pode “levar ao nascimento da idéia e da imagem”, lembra-nos com maiúscula, como outros substantivos abstratos, à maneira barroco-
Eliot22. Mais adiante, na análise de poemas da maturidade, irei me deter no simbolista) e o afastamento do mundo. Há, por vezes, dificuldade em se
procedimento ceciliano de embalar-se em ritmos e na musicalidade das pala­ reconhecer um tema, diante da cadência embalante dos versos, de sua at­
vras para adentrar o inconsciente e garimpar imagens. mosfera crepuscular, outonal, matizada por raras pinceladas cromáticas
Em Nunca Mais..., oito composições levam a sugestão musical já no (preto, azul, além do branco). O que leva a pensar no “penumbrismo"
título: “Canção Desilusória”, “Intermezzo”, “Cantiga Outonal”, “Agitato”, identificado por Norma Goldstein no primeiro Manuel Bandeira e outros
“Berceuse”, “Canção Triste” (uma alusão à “Valsa Triste” de Sibelius?), poetas: “Intimismo, temas relacionados ao quotidiano, sentimentos melan­
“Noturno de Amor”, “Dança Bárbara”. Dois compositores são nomeados cólicos, gosto pela penumbra e pelo crepúsculo, evocação, sugestão, misté­
nos poemas (Gounod e Chopin). Instrumentos musicais - uma lira, uma rio. tudo composto em versos cujo ritmo em liberação e cujo meio-tom
guitarra e um cravo já apareciam em Espectros - comparecem em poemas, musical se opunham à eloquência parnasiana em moda”21. A liberação do
como o violino (“Agitato” ). “Velhos órgãos”, além de “árias mortas”, são ritmo seria detectada sobretudo no segundo segmento do livro. Poema dos
referidos em “A Chuva Chove” . O léxico da morte perpassa bom número Poemas, que abordarei adiante.
de poemas, até aludir ao desaparecimento do sujeito e atingir a indagação Alguns dos símbolos de maturidade, vários deles já insinuados no
paroxística em “Panorama Além...” : “Por que foi que eu morri? Quando léxico de Espectros, conforme referido, começam a emergir recorrente­
foi que eu morri?”. mente: noite, vento, sombra, alma e sonho, ao lado de outros que se escas-
Com o uso recorrente de aliterações, assonâncias, rimas nasaladas e seiam posteriormente (brumas). Há ainda abuso do emprego de maiúsculas
refrões, Nunca Mais... desprende uma musicalidade em tom menor, próxi­ e das reticências, como que simbolizando a afasia da perplexidade suscita­
mo à litania, o que faz lembrar a poética de Verlaine, as lições de Edgar A. da pelo mistério da existência e da morte.
Poe e, ainda, o verlainiano Alphonsus de Guimaraens. Musicalidade que
foi corretamente observada pelo crítico português José Osório de Oliveira,2
2 3 . Fernando Cristóvão, “Compreensão Portuguesa de Cecília Meireles", 1978. p. 22.
2 4 . Ver, entre outros. José Miguel W isnik. “Harmonia das Esferas". 1989, pp. 91-95. O
número 7 (do qual 21 é múltiplo), vinculado à perfeição, “será interpretado tradicio­
2 1. Poesia Completa, 4. ed., op. cit., p. 84. Além de francês, inglês, espanhol, italiano, alemão, nalmente com o uma harmonização do divino [...] e do humano [...]”, p. 92. Vale lem ­
estudou, entre outras línguas, grego e latim, hebraico e sânscrito. Cf. carta de 21 abr. 1946 brar que Solombra, último livro publicado em vida da poeta - afora Ou Isto ou Aquilo,
a Armando Cortes-Rodrigues. de poemas para crianças, que lhe sucedeu - . contém 28 poemas, outro múltiplo de sete.
2 2 . T. S. Eliot, “A Música da Poesia”, De Poesia e Poetas, op. cit., pp. 54-55. 2 5 . Do Penumbrismo ao Modernismo, 1983, p. 13.

1
SOBRE A OBRA IMATURA
34 PENSAMENTO E "LIRISMO PURO’ NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

A ressonância simbolista é evidente, mas parece vinculada não apenas Outra ressonância é a da Bíblia, que, mais de uma vez, Cecília - autora,
ao decadentismo brasileiro e português, conforme se tem analisado, como décadas depois, da conferência “A Bíblia na Poesia Brasileira”10 - incluiu
também ao simbolismo de expressão francesa. A opção pela renúncia como entre as suas leituras recorrentes. O Apocalipse e o Eclesiastes são referidos
saída aos embates terrenos ressoará Cruz e Sousa, além dos ideais orientalistas em dois poemas (“Dança Bárbara” e “À Que Há de Vir no Último Dia...”).
já mencionados. Ecos de Antonio Nobre, e mesmo de Antero, também foram Mas o que emerge como mais relevante na inflexão verificada já em
detectados por mais de um crítico26. Há referência explícita (e algumas im­ Nunca Mais... são alguns dos traços de modernidade (embora nem sempre
plícitas) a Verlaine, cuja poesia Cecília Meireles glosa mais de uma vez (no próximos do Modernismo), a começar no plano da forma, com maior lim­
soneto “A Chuva Chove" e em “Agitato”) - , e a quem viria a dedicar uma peza no vocabulário e na sintaxe. Quanto à expressão, um desses traços diz
póstuma “serenata”, datada de 1944, apesar de haver reconhecido seu poste­ respeito à negatividade, que se identifica em poemas como o soneto que dá
rior distanciamento do autor de Romances sans Paroles1728.Em “A Elegia do título ao livro, em versos como: “Todas as negações. Todas as negativas.
Fantasma”, os tercetos rimam sucessivamente em a, e, i, o, u (alusão a [...] Nenhum mais. Ninguém mais. Nada mais. Nunca mais...”, o que ainda
Rimbaud?), como num jogo verbal em que brincasse com o verso, conforme faz ressoar Allan Poe. De resto, esse silencioso “nada mais” (invertido para
já se notou. Maeterlinck também tem sido identificado entre as primeiras “mais nada” ) aparecerá recorrentemente em poemas da maturidade11. A
presenças fecundantesA segunda pessoa é quase sempre indefinida ou inalcançável, como também
Um poema de Nunca Mais..., "Canção Triste”, refere ainda o medieval se observa na obra madura. Embora nomeie esparsamente figuras religio­
François Villon - o “mais completo, porque mais humano, dos poetas” se­ sas ou míticas em alguns poemas (Nossa Senhora, ísis, degoladores, qui­
gundo Carpeaux21' - , cujo famoso verso "Mais où sont les neiges d'antan?”, meras, princesas), o sujeito lírico depara-se com avatares do que Hugo
da “Ballade des Dames du Temps Jadis”, não apenas aparece em epígrafe, Friedrich chamou de “transcendência vazia” - a busca do absoluto, do divi­
como também é encaixado modemamente, no original francês, como refrão no ou mesmo do outro é sempre frustrada: “Não me ouvirás” ; “Eu já nasci
que arremata cada estrofe. E já um prenuncio do tema clássico c barroco da desiludida,”; a alma é “um deserto branco” ; “E nada existe... Meu vulto é
brevidade da vida, do heraclitiano fluxo permanente e irreversível do tempo longe... ausente...”. A poeta já opera uma radicalização da distância e da
e das coisas, que viria a se tornar axial em toda a poética ceciliana. Soa, ausência: “o próprio abandono esperando o abandono!...” (“À Que Há de
ainda, moderno o emprego da onomatopéia (“Ploc...Plac...”) no poema de Vir no Último Dia...”). O que parece vir ao encontro do que Alfredo Bosi
forte carga emotiva sobre a vã espera de um outro, “A Que Há de Vir no assinalou sobre a escritora ao detectar em sua poesia o “sentimento da au­
Último Dia...”. sência e do nada” 12. Ou do que Friedrich escreveu sobre Mallarmé, o gran­
de aspirante do nada: “O silêncio penetra em sua poesia por meio das coisas
A ch u v a d esc e vagarosa... C ontinua... caladas porque ‘abolidas’”33.
P lo c... P la c... E n in gu ém ... B éatitudes d e so n o ... E uma beleza imatura a que se desprende de alguns desses poemas,
E eu so zin h a , esperan do o s T eus p a sso s na rua, que já denotam considerável domínio da técnica a serviço dos esboços de
c o m o o próprio ab an d ono esperando o ab an d on o!...
uma visão própria das coisas e do mundo, e que já parecem transcender os
horizontes delimitados da poesia feminina praticada na época, conforme

2 6 . Quanto a Antonio Nobre, ver: Nelly Novaes Coelho, “O Eterno Instante na Poesia de
Cecília Meireles". 1993, p. 38; e Leodegário A. de Azevedo F-, Poesia e Estilo de Cecí­ 30. Rio de Janeiro, Centro Cultural Brasil-Israel, s.d. [folheto]. Na obra de transição More­
lia Meireles. 1970. p. 24. Quanto a Antero de Quental, ver: Margarida Maia Gouveia. na, Pena de Amor, a escritora mais uma vez glosaria a Bíblia, nomeadamente o Cântico
Cecília Meireles - Uma Poética do Eterno Instante. 2002, pp. 76, 88-89. Esta autora dos Cânticos de Salomão.
também menciona Antonio Nobre. 3 1. Ver, entre outros: “Motivo”, em Viagem; “Campos Verdes” e “Reinvenção”, em Vaga
2 7 . "Serenata para Verlaine”, Poesia Completa, 4. ed., op. cit., pp. 987-988. Música.
2 8 . Leodegário Azevedo Filho, op. cit., p. 31 3 2 . História Concisa da Literatura Brasileira , 1970, p. 512.
2 9 . Otto Maria Carpeaux, “Poesia e Ideologia”, 1943, p. 31. 3 3 . Hugo Friedrich, Structures de la Poésie Moderne, 1976, p. 157.
% l’KN SAM ENTO E “L IR IS M O P L R O ' NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR EL ES SOItRE A OBRA IM AT U R A

reconheceu Emilio Moura em 192414. Vê-se, ainda, que algumas tentativas último lugar, “cingidos de cardos” (“Epigrama n. 13”, Viagem). O canto
imagísticas prenunciam realizações da maturidade. E o caso de As nu­ apenas se torna possível num espaço desreificado, acessível por meio de sím­
vens passam desiguais,/com sonolências de rebanho” (“Depois do Sol...”) bolos, isento do uso instrumental das coisas.
em relação à “pastora de nuvens” de “Destino” ( Viagem) - imagem quase O sujeito lírico subtrai a representação da modernidade histórica c os
obsessiva na obra madura. seus aparatos de seu território poético, movimento que muitas vezes foi
Ao menos um poema (“Canção Desilusória”) roça um dos aspectos sentido ou interpretado como pouco moderno ou “intemporal”. Tal silen­
que eu gostaria de enfatizar aqui: o sentimento ceciliano da modernidade. cio, contudo, pode configurar-se, antes, como um movimento de resistên­
Transcrevo uma de suas estrofes, que sucede àquela em que reitera o verso cia, no sentido conferido por Adorno ou Alfredo Bosi.
“O encantamento está perdido...” :
| ...] C on ceb em a lírica co m o alg o contraposto à socied ade, absolutam ente individual.
Já não se pode m ais sonhar!... | Insistem l que assim d ev e continuar, que a ex p ressão lírica, subtraída à gravidade objetiva,
Em v ã o se canta ou se deplora! faça aparecer a im a g em d u m a vida livre da co erç ã o da prática v ig en te, da utilidade [...].
T o d o s o s so n h o s são de outrora... C ontudo, esta ex ig ên cia à lírica, a da palavra virginal, em si m esm a já é social. Ela en v o lv e
V êm de um so n h o prelim inar... o protesto contra um a situ a çã o so c ia l, exp erim en tad a por cada um c o m o h o stil, estranha,
Em vão se canta ou se dep lora... fria, op ressora [...]. P rotestand o contra isso , o p o em a ex p ressa o so n h o de um m undo em
Já não se p od e m ais sonhar!... que a situ ação seria outra [...],

A consciência crítica da modernidade histórica, capitalista e burguesa conforme Adorno17.


(que a poeta clamaria de maneira até contundente em centenas de cartas e Data de 1920, conforme anotações de Darcy Damasceno1*, o início das
crônicas, em conferências e em combativos artigos sobre educação ou mes­ leituras intensivas de obras de autores orientais pela poeta, a começar por
mo política)15 emerge, já em Nunca Mais..., como um obstáculo ao sonho e Rabindranath Tagore, do qual viria a traduzir várias obras. Naquele mesmo
ao canto - o primeiro sentido como impossível, o segundo “vão”. Seria essa decênio, ela também traduziría cerca de 150 de contos de A.v Mil e Uma
percepção do desencantamento do mundo o que levaria Cecília Meireles a Noites, a partir da versão francesa de J. C. Mardrus19. A julgar por uma carta
expulsar, recusar e banir a modernidade - o transitório e o contingente do (e também por “Brâmane”, um dos sonetos de Espectros, o qual já mencio­
tempo presente e urbano, segundo Baudelaire1'’ - de quase toda a sua poesia? nei), as leituras de textos orientais e mesmo as idéias pacifistas devem ter
Seria por isso que, mestra depois em criar efeitos oníricos, teme e destrói começado antes de 1920. Gandhi “foi um dos meus maiores amores da ado­
tantos sonhos na obra de maturidade? Estas são algumas das perguntas a que lescência”, escreveu4". Na maturidade, além de poetas hebraico-israelenses.
se tentará responder neste livro, e que me parecem ser das mais conspícuas no
estudo dessa poesia lírica. Produção poética que, do início ao fim, com raros
interregnos - e pelo menos um deles grandioso: o Romanceiro cia Inconfi­ 37. "Conferência sobre Lírica e Sociedade”, em Adorno et ai. Textos Escolhidos. 1980, p. 203.
De Alfredo Bosi, ver “Poesia e Resistência”, O Ser e o Tempo da Poesia, 1990. pp. 141-192.
dência, de 1953 - , persegue o que a sociedade industrial excluiu: o canto e o
3 8 . Arquivo Darcy Damasceno. Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro, pasta 26. 2, 35.
sonho, o sublime e o mágico. Tentar reinstaurá-los tem como preço a 3 9 . "Não será novidade di/.er que o público feminino sempre se mostrou muito vibrátil ù
marginalidade e o exílio do poeta, conforme clama Cecília em poemas da fascinação de Tagore. Basta ver-se a lista de suas tradutoras. [...] Para os que ainda, por
esse motivo, fossem capazes de fazer qualquer discriminação intelectual desfavorável,
maturidade: o “povo” do cantor é o dos “mendigos estóicos”, dos “excluí­
não seria ocioso recordar a admiração que manifestaram pela sua obra escritores como
dos” (“Estirpe”, Viagem). No desfile do drama social, vão os “bardos” em3456 William Butler Yeats, Romain Rolland, Paul Valéry. André Gide - para só falar nos mais
próximos de nós |...|" , assinalou Cecília Meireles na apresentação à sua tradução de
Çaturanga. 1973, p. 81. Ainda de Tagore traduziu Sete Poemas de Puravi, Minha lid a
Vizinha. Conto. Mashi, O Carteiro do Rei. {As Mil e uma Noites. Rio de Janeiro, Anuário
3 4 . ‘‘Poetisas - do Esphinges ao Numa Mais...". 1924, pp. 197-198. do Brasil, s.d. - contos publicados em fascículos no final da década de 1920.)
35. Ver, entre outras, a crônica “Pequena V oz”, Crônicas de Viagem-2, 1999. pp. 193-197. 40. Carta a Armando Cortes-Rodrigues, datada de 30 jan. 1948, logo depois de ter tomado conhe­
3 6 . Charles Baudelaire, “La Modernité”, 1992, p. .355. cimento do assassinato do Mahatma e de haver escrito a “Elegia sobre a Morte de Gandhi”.
38 PENSAMKN TO E "LIRISMO PURO" NA POESIA DE CECÍLIA M EIR EL ES
SO BRE A OBRA IM ATU RA 39

traduziría os chineses Li Po e Tu Fu e se referiría na obra em prosa, além de


nismo, o misticismo (por vezes pagão) e mesmo a ética de Cecília Meireles,
a pensadores como Buda, Confúcio e Lao-Tsé, aos Vedas e a uma antiga
conforme alude em poemas de maturidade:
estética indiana da sugestão e do pathos (Rasa) atribuída a Bharata (século
III), a múltiplos escritores como os persas Gazzali, Kayam, Saadi, Hafiz,
Firdusi, o árabe Haji Abdul el-Yez, os indianos Kalidassa, Kabir, Mirabai, Esta sou eu - a inúm era.
Tulsidas, os japoneses Kikaku e o “divino” Bachô, tornado “monge budista”. Q ue tem de ser pagâ c o m o as árvores
e , c o m o um druida. m ística .!...]
Este pequeno ex em p lo de com p aixão, con servad o num breve poem a japonês de tre­
zen to s anos, em o cio n a e con fun d e estes n o sso s gran d iosos tem p os bárbaros. M as sua luz ( “C o m p ro m isso ” , M ar A bsoluto)
não se apaga, e até se vê m elhor - porque vastas e assustadoras são as trevas de n ossos dias.
É sabido que a escritora nunca se vincularia a uma religião específica,
Assim comentou em uma crônica um hai-kai - cuja “extrema concisão demarcando desde muito jovem as suas distâncias do catolicismo conserva­
de forma”, observou, seduzia tantos poetas ocidentais - de Kikaku, corrigido dor então reinante44.
pelo “grande poeta Bachô”, em texto que inclui, a propósito, uma de suas Embora o título pareça ser, de fato, uma alusão a Cântico dos Cânticos
críticas veementes ao seu tempo presente41423. Em outra crônica (“São Belos, de Salomão (do Velho Testamento da Bíblia), Poema dos Poemas - livro
Estes Dias...”), esta escrita na índia, traçaria um breve paralelo entre a poesia que reparte com Nunca Mais... um mesmo volume de versos - já revela
ocidental e a oriental: forte eco orientalista, conforme se reconheceu: “O lirismo tagoreano, o
Oriente com a sua bruma espiritualizada, com a sua ânsia de sonhos e
É preciso vir ao Oriente para se ver a importância atribuída à palavra dos p<x-tas. É bem nirvanas, encontrou, naturalmente, ressonância nessa musa perturbadora.
verdade que estes poetas do O riente, quer os an tigos, quer os de hoje, estão sem pre co m os [...] sob o céu tagoreano, a sua alma brasileira floriu”, registrou Emílio
o lh o s m uito acim a d os tem as que dão renom e à m aior parte d o s seu s eo lcg a s ocid en tais.
Moura, ainda em 192445. Contudo, o que primeiro chama a atenção nas 21
A q u i, o poeta é verdadeiram ente um a criatura de e le iç ã o , um inspirado, um m en sageiro de
a v iso s sobre-hum anos. N este m undo, banhado de filo so fia e m isticism o, não há lugar para
composições de Poema dos Poemas (unidas por um tema único e subdivi­
a pequena co n fid ên cia do poeta do O cidente, co m problem as sentim entais [,..]4-. didas em três seções, com simbólicas sete unidades cada uma e títulos que
associam a palavra poema a substantivos abstratos como “fascinação”, “es­
O “caráter do pensamento oriental está mais impregnado de poesia que o perança”, “humildade”, “sabedoria”- e um concreto: “lágrimas”) é a sus­
ocidental, com exceção dos gregos” e em seus poetas encontram-se “magnificên­ pensão das rimas e o emprego, em todas elas, do verso livre, dispostos em
cia” e “abundância de imagens", observou Hegel41. Leituras como essas, que por longas ou únicas estrofes. Os poemas devem ter sido escritos em 1920 ou
certo contribuíram para que atingisse a concisão epigramática na forma e o poder 192146 pela autora, que, conforme já referido, privilegiaria em boa parte da
imagístico da maturidade, moldariam, muito mais do que as dos textos do cristia­ obra de maturidade a contenção do verso medido - e que foi “talvez o
poeta moderno que modulou com mais felicidade os metros breves”, se-

4 1 . "O Divino Bachô", Escolhei o seu Sonho, 1964. pp. 11-13. Ver também "Transparência
de Calcutá". Crônicas de Viagem-3, 2000, pp. 209 e ss„ em que revela que seu interesse
4 4 . “V. me fala, na sua carta, do neocatolicism o daqui. Eu vivo muito afastada de todos os
pela índia teve início por ocasião da atribuição do prêmio Nobel a Tagore - em 1913.
grupos literários, porque no Rio, em geral, não há nada mais em desacordo com uma
portanto, quando contava onze ou doze anos. N o capítulo quarto, abordarei o curso
alma de artista que a alma dos artistas. Tenho sentido de longe essas insinuações eclesiás­
que ministrou em 1937 na Universidade do Distrito Federal, em que a escritora se de­
ticas. Estou no período de observações. Os neocatólicos, com o os velhos católicos, não
tém em muitos outros autores e textos também orientais. (Uma das melhores fontes
são maus apenas com o poetas: antes o fossem. Mas que é uma seita, comparada com o
sobre as leituras indianas da escritora consiste no ensaio de Dilip Loundo, “Cecília
infinito, Augusto?” Carta de Cecília Meireles a Augusto Meyer (1930), Arquivo Darcy
Meireles and índia”, 2003, pp. 13-49. a que tive acesso em 2004.)
Damasceno, Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.
4 2 . Crônicas de Viagem-2, op. cit., pp. 211-215.
4 5 . Op. cit., p. 198.
4 3 . Hegel. Estética, op. cit., pp. 47-48 e 97.
4 6 . Cf. nota 1 deste capítulo. O livro ainda inédito foi resenhado em setembro de 1921.
40 PEN SA M E N T O E “L IR IS M O P I R O ’ NA POESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES S01ÎRE A (MIRA IM ATU RA

gundo Alfredo Bosi47. O verso livre de Poema dos Poemas mostra-se mais República, que teria origens orientais, Platão refere-se aos oito círculos
de corte neo-simbolista ou penumbrista do que modernista, e nele por ve­ estelares - o Zodíaco contendo sete planetas50. No entanto, Buda atravessou
zes, apesar do fôlego bem mais curto (nunca ultrapassa as treze sílabas), os “sete céus para atingir o ‘ponto mais elevado’” e também pregou a
ressoarão ecos do bucolismo desregrado de Walt Whitman em Folhas de compaixão e a sabedoria51.
Relva: “os meus pés corriam ligeiros pela relva, [...]” (“Poema da Ansieda­ Quanto à glosa com o bíblico Cântico dos Cânticos, a própria escrito­
de”); “Já muitos sóis / e muitas luas / passaram, sobre a montanha / de que ra daria uma pista indireta, em texto muito posterior, em que trata de ou­
fiz o meu lar...” (“Poema da Esperança”); “Eu quero ser igual / à terra tros autores:
negra, / igual aos rios esquecidos, / igual ao vento humilde, / àquele que
anda de rastros, / chorando, / a beijar as folhas / que o vento das alturas / O apaixonado diálogo [do Cântico dos Cânticos] representaria a conversa amorosa
de Deus, o esposo, com o povo de Israel, a esposa. Mas pelos termos em que está vasado
matou...” (“Poema das Súplicas”).
o belíssimo poema, houve quem o tomasse como obra profana e erótica. A Igreja, aceitan­
Os versos de Poema dos Poemas devem ter sido escritos quando a do a santidade do texto, interpreta-o como o diálogo de am or entre o Cristo, o esposo, e a
escritora contava dezoito anos - e, com efeito, apesar da liberação da mé­ Igreja ou a Alma cristã, a esposa. E desse texto do Antigo Testamento San Juan de Ia C ru/
trica, mostram-se mais ingênuos e imaturos do que os da primeira parte do faria a paráfrase simplificada, conhecida pelo nome de Cântico Espiritual entre a alma e
volume (Nunca Mais...). Vê-se em sua leitura que Cecília ainda perseguia Cristo, seu esposo: Adonde te escondiste, / Amado, y me dejaste con gemido...52
uma imagística própria, terreno no qual, reitero, se mostrará mestra na
obra de maturidade, buscando direcionar as metáforas ainda esforçadas e E possível que a jovem poeta tenha de fato se inspirado também na
por vezes com alguma reminiscência parnasiana para o abstrato (“músicas lírica m ística de San Juan de la Cruz, que retoma a teoria platônica da
[...] imateriais como silêncio” ; “teu vulto [...] é um palácio branco [...]”; elevação do amador a “um grau superior de perfeição", encontrada em
“seguindo a luz dos teus olhos, / subindo por ela, caminhando pelo teu Petrarca na imagem da fusão do amante na amada - e que ressoaria em
olhar/como por uma escadaria d ’astros...”. clássicos ou maneiristas como Camões e John Donne51.
O primeiro grupo de composições expressa, conforme se reconheceu, Bom número das 21 composições de Poema dos Poemas expressa a
a busca da “ascese espiritual” à la Teresa d ’Avila48 rumo ao "Eleito" de contradição entre o espaço luminoso e inatingível onde mora esse enigmá­
natureza divina - cuja genealogia transcendental, entretanto, jam ais se es­ tico Tu, pelo qual amorosamente anseia o sujeito lírico, e o lugar de tristeza
clarece: seria Deus? Seria Cristo? Seria Buda? Ou o inteligível platônico? e de sombra onde este vive. O conjunto de poemas segue uma curva que se
Uma leve inflexão reencarnacionista, ou ressonância da doutrina órfico- inicia na aspiração de chegar ao Eleito, passa pela constatação da inacessibi­
pitagórica, platônica e budista da metempsicose ou transmigração das al­ lidade de realização desse desejo, a que se sucedem a renúncia e o refúgio
mas (em referência a outros poetas, Cecília usaria a expressão “intuição na natureza (segmentos onde se localiza o possível eco de Whitman), para
mística”)49, já pode ser identificada, como no verso: “o sono sem lembran­ desembocar no resignado retorno ao convívio humano - onde, afinal, resi­
ça / dos que vão renascer” (“Poema das Lágrimas”). E a “oferenda” que diría o Eleito: “Eleito, Eleito, ó meu Eleito, / mas então, / era aqui embai­
precede os poemas (“A Ti. / ó sol do último céu, / por quem sofre / toda a xo que estavas?” Retorno que se reveste de propósitos inconformistas, soli­
imensa/misériaAla minha treva”) tanto poderia vincular-se ao Apocalipse dários e sociais: “Dar a serenidade dos meus olhos / aos cegos, / para verem,
como a Platão ou ao budismo. “Ultim o céu" referirá o Empíreo, onde / e, aos enfermos, / dar a minha coragem / de caminhar! / Ser a lágrima dos
habitam os deuses (ou Deus), visão inefável. No mito de Er, no fecho da

5 0 . Platão, A República, 1996, pp. 616-b, 617-c. Sobre a hipotética origem oriental do
mito. ver Introdução, pp. XLII-XLI11.
4 7 . História Concisa da Literatura Brasileira, op. cit., p. 513. 5 1 . Cf. Mircea Eliade. Mitos, Sonhos e Mistérios. 1989, p. 98.
4X. Cf. Nelly Novaes Coelho, op. cit.. p. 40. Ver também Kliane Zagury. Cecília Meireles. 5 2 . Conferência inédita “Religião e Poesia”, jan. 1963.
1973, p. 25. 5 3 . Ver Antonio José Saraiva, Luís de Camões, 1972, principalmente pp. 88-89; e Northrop
4 9 . "Religião e Poesia”, conferência inédita. A ssociação Brasileira de Imprensa, jan. 1963. Frye, Anatomia da Crítica, 1973. p. 144.
42 PENSAMENTO K "LIRISMO PURO' NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES
SOU RE A OBRA IM ATU RA El

pobres, / e a sua bênção...” (“Poema da Renúncia” ); ou “Cheguei entre os / que, no meu êxtase,/nem sabia qual fosse / cada um de nós”. Além disso,
homens, / [...] Cheguei aonde vivem as multidões, / aonde há velhos, dolo­ um esboço da saída da natureza como repertório de símbolos já transparece
rosos, [...]Senhores e escravos sofrendo... [...]” (“Poema do Regresso”). A como alternativa à inviabilidade da transcendência.
referida curva encerra-se, assim, na conquista final da sabedoria, na volta à Um comentário não assinado sobre Poema dos Poemas indagava, em
polis: “Sabedoria! Sabedoria! / Só te encontrei nos abismos, / quando vim 1924: “[...] quantos se irritarão a essa ousadia de formas, a essa falta de
descendo / da altura da solidão...Depois do renunciamento... / [...] faze-te rima e a essa absoluta liberdade de ritmos - muito mais do que a essa
meu Destino... / Deixa-me viver em Ti!..." (“Poema da Sabedoria"). audácia de concepção - principalmente porque, no presente caso, o poeta é
A sabedoria encontrada nos “abismos”, palavra-chave do simbolis­ uma mulher...”56. De fato, a circunstância de ser um poeta do sexo femini­
mo, seria a saída, na constatação da impossibilidade de transcendência. A no, além do mais ao mesmo tempo místico e anticatólico e já revelando a
esta inacessibilidade também se referiu Cecília Meireles, em conversa com busca de um caminho estético autônomo, parece ter despertado, já nos anos
um interlocutor privilegiado, algumas décadas depois, ao m encionar “a de 1920, a “irritação” de mais de um crítico57.
impossibilidade de comunicação humana com o ente superior”54. Fechado Em fevereiro de 1922, quando transcorria em São Paulo a Semana de
o acesso ao absoluto, a poeta, sem, no entanto, desistir jam ais de buscá-lo, Arte Moderna, Cecília Meireles teria começado a escrever Baladas para El-
passaria a trilhar, em meio à “floresta de símbolos” da natureza, recorren­ Rei (publicado em 1925)58. Tinha vinte anos. Trata-se de um conjunto de 21
temente um caminho poético de procura da própria identidade (gérmen do composições ainda de dicção neo-simbolista, em que privilegia dísticos e
amplo acervo de poesia metafísica da maturidade - onde emergem recor­ tercetos em versos tradicionais como o dodecassílabo e o octossílabo. Contu­
rentes indagações do tipo: quem sou? de onde vim? para onde vou?) e de do, o recurso à balada, modelo de composição aparentado ao romance ibéri­
inserção rebelde de um canto radical num “tempo surdo”, como diz em co, originário da literatura popular francesa (foi também empregado por
“Contemplação” (Mar Absoluto). Villon) e escandinava, já revela o início das pesquisas das tradições poéticas,
Contudo, por preludiar a vertente metafísica de sua poesia e constituir, inclusive medievais (e não apenas de origem ibérica), que glosaria ou recria­
de certo modo, uma espécie de programa de vida e de poética em gestação (a ria com frequência na obra de maturidade. Pesquisa que talvez seja herança
resignação em viver com compaixão e sabedoria entre seus semelhantes ou as de propostas do simbolismo. Marcel Raymond observa que foi “um dos
“multidões” - estas, por sinal, rarefeitas em sua obra madura - , onde talvez, méritos dos simbolistas” o interesse, depois dos românticos, pelas formas de
afinal, residissem o sublime e o transcendente), penso que Poema cios Poe­ arte ditas primitivas, assim como o de terem “tentado ressuscitar o espírito
mas consiste no mais relevante dos livros da juventude ceciliana. Registre-se, das criações do folclore” e a “corrente de lirismo popular”. Corrente que
ainda, que nele a poeta já traz à tona algumas das recorrências obsessivas de também seria herdada, conforme Raymond, não apenas por nomes como
sua poesia de maturidade, como a do sonho interdito, a que anteriormente já Paul Fort e Viélé-Griffin, mas também pelo próprio Guillaume Apollinaire,
se fez uma primeira alusão - embora aqui, nesse “Poema da Tristeza”, ela inspirador e mestre das vanguardas francesas59.
assuma o avatar de uma quebra prometeica da interdição: “Sou triste porque Vale acrescentar que, depois de ter sido reaproveitada por românticos
sonhei / coisas inalcançáveis, / que se não devem sonhar...”. Localizam-se ingleses (Wordsworth, Coleridge, Byron) e alemães (Goethe, Schiller, Heine),
também prenúncios da recorrência (rimbaldiana?) do “sobre-humano esfor­ a balada, uma das formas mistas entre o épico e o lírico, foi retomada na poesia
ço de ultrapassar o limite”, conforme definiu um crítico ainda nos anos de
19305\ mas aqui como fusão com o outro (Outro): “estavas tão perto de mim
5 6. Terra de Sol. 1924, p. 326.
5 7. Entre os críticos “irritados" com a poesia da jovem Cecília figuraram: Osório Duque-
5 4 . Ao relutar um telefonema que recebeu de Cecília, em junho de 1958, Darcy Damasceno Estrada. "Registro Literário”, 1923, p. 7; e Agripino Grieco, “Quatro poetisas", op. cit.,
diz ter-lhe perguntado sobre a imagem "nesses rios do céu", no poema “A Menina En­ pp. 201-204. Especialmente de Poema dos Poemas. Grieco diz tratar-se de prosa que
ferma" de Viagem, tendo ouvido essa resposta. Arquivo Darcy Damasceno, op. cit., pretendia ser poesia.
pasta 26, 2, 39. 5 8. Cf. Arquivo Darcy Damasceno. op. cit.. pasta 26, 2. 35.
5 5 . Carlos Queiroz, “C ecília Meireles, Poetisa Européia”, 1934. 5 9. Marcel Raymond, De Baudelaire ao Surrealismo. 1997. p. 63.
44 PENSAMENTO E "LIRISMO PL RO NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES SOBRE A OBRA IMATURA 4:4

moderna espanhola por autores como Jiménez, Alberti e Lorca. No Brasil, Nossa Senhora já não ouve
teria sido praticada por Bilac c, no modernismo, por diferentes poetas como os amargurados gemidos
Augusto Meyer, Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade, Manuel Bandei­ dos que estão mal, dos que estão sós...//[...|
ra, Carlos Drummond, Vinícius de Moraes, entre outros60. Muito tarde! Impossível hora!
A balada que abre o terceiro volume de versos da escritora carioca, e Nossa Senhora está perdida...
que vem sem título, ao repetir a primeira linha de cada estrofe antes de cada Nossa Senhora já morreu...//
quarteto (procedimento retomado em outros poemas, como “Dolorosa”, “De Não temos mais Nossa Senhora!
Nossa Senhora” e “Dos Dias Tristes”), tentará reproduzir a forma predomi­
nante na França no século XIV. No entanto, esse mesmo poema de abertura E possível também deparar com versos indiciadores da metempsicose
refere-se a “luas da Dinamarca” (14“ verso) - país em que teria prevalecido, platônica e orientalista e/ou do princípio do retorno, que já moldam
como em toda a Escandinávia, o caráter épico nesse tipo de composição, com hegemonicamente a mística ceciliana: “Lembrança morta de uma história
o resgate de lendas, contos populares, aspectos mágicos e mitológicos. Mo­ reticente / que nos contaram noutra vida e noutro idioma...”. (“Inicial”).
delo narrativo que está presente no sexto poema do livro, “Sem Fim” (“Era Reencontram-se, ainda, sinais embrionários de outras obsessões temá­
uma vez uma donzela, / nos bons tempos do rei Guntar...”). Mas este é um ticas da maturidade, como a do sonho como ameaça: “Eu sei que os sonhos
caso isolado, uma vez que o tom hegemônico nas demais composições é o têm destino de deserto...” (“Para El-Rei” ). Quanto a esse poema, que dá
confessional, de acento melancólico e nostálgico, que seria predominante na título ao livro, acrescento a interpretações anteriores - que entenderam
balada lírica do romantismo inglês e alemão. Tonalidade que é potencializada "El-Rei” da mesma forma que o “Tu" de Poema dos Poemas; isto é, como
nesse terceiro livro de juventude pelas excessivas repetições e reticências e "metáfora, de ecos medievais”, de “Deus todo-poderoso”61 - a hipótese de
pela representação de ambientes noturnos, penumbrosos, outonais, crepuscu- uma outra. Intuo antes que, nessa balada, a poeta, retomando o tema
lares e recorrentemente funéreos, onde também é possível identificar resso­ trovadoresco do amor cortês, já evoca um amado de carne e osso (o futuro
nâncias de Alphonsus. marido?; afinal, já o estaria namorando), a cuja perda - que se confirmaria
Algumas recorrências estilísticas da obra madura já podem ser rastrea- em 1935 - se refere como num presságio poético: "Por mais que te ame, e
das nesse terceiro livro de juventude, como a tríplice adjetivação (“moroso, que te adore, e que te guarde / Hei de perder-te, com certeza e sem remé­
maquinai, paciente”, em “Final”) - recurso encontrado em Cruz e Sousa -, dio, / hei de perder-te ou muito cedo ou muito tarde // para voltar ao
ou a repentina variação na regularidade, seja com relação ao jogo de rimas desespero do meu tédio...”. Tenderá a reforçar essa hipótese a presença de
(“Suavíssima”), seja quanto ao metro, que pode receber súbito encurta­ outros poemas claramente autobiográficos no volume, como “Dolorosa”,
mento, como em “Dolorosa”, ou ü estrutura estrófica. E ainda o caso dos em que evoca (e invoca) a mãe, que perdera aos três anos, ou a pajem
versos "Quase a gente morre de pena, / vendo que a alma se desilude/tão Pedrina, que lhe contava na infância as “ [...] histórias / de Barba Azul, de
perfeitamente serena” (“Dos Dias Tristes”) em relação a imagens da matu­ Ali Babá, de um rei de França...”, além das “lendas mortas de taperas e de
ridade, como a antitética “serena desesperada” de “Epitáfio da Navegadora” escravas” (“Para a Minha Morta”).
( Vaga Música, 1942), que ressoam o tema barroco da calma estóica no O clamor pelo próprio destino (em “Inicial” ), a deformação da natu­
sofrimento. reza, como nas “estrelas alucinadas” da balada que abre o volume ou em
Encontra-se em Baladas para El-Rei a já mencionada constatação da “Neva a névoa do outono” (em “Do meu Outono”), que ainda ressoará
impossibilidade da transcendência, como no um tanto herético “De Nossa Verlaine, ou, ainda, a flor perversa com ressonância baudelairiana - “flor
Senhora”, que também demarca as distâncias do catolicismo: de escândalo” (em "Da Flor de Oiro” ) - e a compaixão humanista pelos
sofredores (“Dos Pobrezinhos” ou “Soturna”) indicarão, mais uma vez, um
caminho próprio de busca de modernidade poética.
6 0 . Cf. Demetrio Estébanez Calderón, Diccionario de Términos Literários, 1996. pp. 78-
79; e Massaud Moisés, Dicionário de Termos Literários, 1992, p. 56. 61. N elly Novaes Coelho, op. cit., p. 38.
SOBRE A OBRA IMATURA 17
46 PENSAMENTO E "LIRISMO PI RO' NA POESIA DE CEUI.IA MEIRELES

É PO C A DA SE M A N A
Em 21 de abril de 1928, Augusto Meyer escrevia de Porto Alegre
uma carta a Cecília manifestando “emoção pela mão que escrevera 'Dolo­
rosa’ e 'Para El-Rei’”. Este poema, aliás, insere um verso que ecoa outras A leitura de poemas da maturidade poderá decerto se iluminar, um
buscas da obra de maturidade: “de quem perdeu toda a coragem do Impos­ pouco, com uma breve investigação preliminar sobre o que fazia e pensava,
sível...” . Enfim, M eyer acrescentava, referindo-se aos escritores gaúchos no Rio de Janeiro, a jovem poeta que já experimentava o verso livre na
com os quais se relacionava: “Somos todo um grupo a reservar para V. um época da Semana de Arte Moderna em São Paulo. Circunstâncias biográfi­
fervor devoto”62. cas podem contribuir para a compreensão de sua inserção, como colabora-
Alguns críticos entenderam que nesses livros de juventude já se en­ dora, em algumas das publicações do chamado grupo espiritualista e neo-
contram as principais “ linhas de força” da poética ceciliana63. Talvez seja simbolista de Tasso da Silveira no Rio, e mesmo depois, em Festa. Cecília
um exagero. Mas seu exame, ainda que breve, emerge como uma necessá­ Meireles tinha vinte anos (completados em 7 de novembro de 1921) quan­
ria antecâmara à análise da obra de maturidade, conforme recomendou do se deflagrou o grande grito de nosso modernismo, em fevereiro de
Eliot a propósito de Yeats. 1922. Lecionava no ensino primário desde os dezesseis, e já colaborava em
Com uma única exceção (a de Osório Duque Estrada, que Oswald de publicações como Revista da Semana, onde estreou com o conto “Si Suste­
Andrade classificaria como o “pior crítico do mundo”)64, a crítica da época nido” e onde publicou a sua talvez primeira canção - “Canção do Cavaleiro
recebeu bem a amostragem da jovem poeta. Ao escrever sobre Nunca Nostálgico”, modelo lírico que já privilegiaria no livro Nunca Mais..., no
Mais... e Poema dos Poemas, Amadeu Amaral destacou a “simplicidade”, o qual já revela o aproveitamento da mitologia medieval recorrente no sim­
"apuro emocional” e o misticismo dos versos, e identificou em Verlaine bolismo francês e no wagnerismo67. Por essa época, também colaborou em
uma das possíveis reminiscências da autora65. Por sua vez, Theodomiro Careta (poema “Béatitude”), Para Todos, e logo a seguir em O Mundo
Tostes, ao escrever sobre o mesmo livro, nele encontrou o “ideal budista da Literário, Arvore Nova e Ilustração Brasileira.
Renúncia”, e acrescentou: “Muitas vezes não fala, mas sugere. É sugestão a Creio ser necessário atentar para o fato de que, órfã (sua família então
sua poesia”. Para mais adiante revelar uma compreensão penetrante da na­ se resumia, como se sabe, à avó nascida nos Açores), a jovem trabalhadora
tureza de sua musicalidade: “Em Cecília Meireles, porém, a preocupação da educação Cecília Meireles - embora ao que pude verificar já relativa-
musical não é exclusiva. Na música deliciosa dos seus versos, entre ima­ mente atualizada com a literatura européia que fermentou as vanguardas -
gens duma delicadeza estranha e duma originalidade inesperada, há sempre teve uma trajetória socioeconômica distante, menos disponível, daquela do
uma idéia dominante”66. O que se confirmará em muitos poemas de matu­ “grupo fixado na ponta de lança da burguesia culta, paulista e carioca [...],
ridade, os quais conciliam pensamento e imagem, idéia e lirismo puro. cuja curiosidade intelectual [podia] gozar de condições especiais como via­
Se for possível elencar algumas das vertentes da poética ceciliana a gens à Europa, leitura dos derniers cris, concertos e exposições de arte”.
partir da pequena safra de leituras críticas da obra imatura, parece que Isto é, do grupo que, segundo Alfredo Bosi, teve como ponto de encontro
assim podería ser sua síntese: espiritualidade, simplicidade, orientalismo, a Semana de Arte Moderna de 1922 - conforme minuciosamente relatado
musicalidade, herança do simbolismo, auto-investigação. A que eu acres­ por Mário de Andrade, que também demarcou as diferenças de contexto
centaria: negatividade, essencial idade, inquietude místico-metafísica e - à entre as duas metrópoles da época. Rio e São Paulo68. Assim, parece lúcido
exceção de Espectros - recusa de representação mimética do real sensível. entender que sua ausência na Semana terá se dado mais em decorrência dc
circunstâncias sociobiográficas do que por divergências estéticas que a jo ­
6 2 . Encontrada no Arquivo Darcy Damasceno, op. cit.
vem escritora, que atravessou um lento processo de maturação poética.
6 3 . Margarida Maia Gouveia, op. cit., p. 93; Eliane Zagury, op. cit., pp. 30-31.
6 4 . Arnaldo Saraiva, O Modernismo Brasileiro e o Modernismo Português, vol. Documen­
6 7 . Revista da Semana, 1921. (Sobre o wagnerismo, ver Jeanine Moulin, “Poète de la
tos Inéditos, 19S6, p. 70. .
Tradition”, Apollinaire..., 1952, p. 76.)
6 5 . “C ecília M eireles”. O Elogio da Mediocridade. 1976. pp. 157-164. (Publicado origi­
nalmente na Gazeta de Notícias, 16 set. 1923.) 6 8 . História Concisa da Literatura Brasileira, op. cit., p. 375; e Mário dc Andrade, “O Mo­
vimento Modernista”, Aspectos da Literatura Brasileira , s.d., pp. 231-255.
6 6 . “Uma Grande Poetisa”, 1925.
48 PENSAMENTO E ‘LIRISMO PURO" NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES SOBRE A OBRA IMATURA ■111

conforme referi, talvez ainda não tivesse condições de formular. Convirá Lima e, na primeira, Carlos Drummond de Andrade72, merece reflexão a
ainda lembrar que, segundo Anna Balakian, na virada da década de 1910 entrevista que Andrade Muricy concedeu à pesquisadora Neusa Pinsard
para a de 1920 o simbolismo atingia seu "apogeu” na Europa, e The Waste Caccese, afirmando que foi em casa de Cecília Meireles, no Rio de Janeiro,
Land, de T. S. Eliot, "Le Cimitière Marin”, de Valéry, e a Segunda Antolo­ que se estruturou a publicação, "com o auxílio do eminente ilustrador Cor­
gia Poética, de Jiménez - todas obras de 1922 - , estão “cheias de caracte­ reia Dias”7'. Embora Muricy não o tenha explicitado, parece lícito supor
rísticas simbolistas”69. que as reuniões dc "estruturação" de Festa tenham acontecido na residência
Em outubro de 1922, Cecília Meireles casou-se com o artista plástico do casal muito mais em decorrência de Correia Dias - que concebeu o
português Fernando Correia Dias, nove anos mais velho e que já desfrutava projeto gráfico da publicação74 - do que da participação mais ativa de Ce­
de prestígio, tanto no Rio como em Portugal (onde vivera até 1914), como cília, sempre “resistente” a uma "adesão passiva” a qualquer programa ou
artista gráfico, caricaturista, capista e ilustrador de publicações literárias70. movimento, conforme viria a reconhecer Mário de Andrade, ou conforme
Primeiro, em A Águia e na Rajada portuguesas, depois, entre outras, em ela mesma explicitou mais de uma vez75.
Fon-Fon, Rajada, A Aguia e Revista da Semana no Brasil. Aqui, desenhou No acervo de anotações que deixou com vistas a uma biografia que não
capas de livros e ilustrações reconhecidas como inovadoras e de alta quali­ chegou a realizar, Darcy Damasceno relata um telefonema que recebeu da
dade plástica, como as de Nós e de Encantamento, de Guilherm e de poeta, em que esta esclarecia que “mesmo no início não se filiou a grupos
Almeida, de Pergaminhos, de Gustavo Barroso, além de obras da própria (nem ao de Festa). [...] A inspiração católica dos espiritualistas seria obstá­
Cecília (Nunca Mais... e Poema dos Poemas, Baladas para El-Rei, o volume culo a qualquer ingresso” nesse grupo, disse-lhe textualmente Cecília, con­
de prosa para o ensino básico Criança, meu Amor, publicado em 1924 - em forme as anotações. As distâncias da escritora dos núcleos católicos, especial­
que a autora revela um ideário marcadamente igualitário e fraternal - , e a já mente os mais conservadores, como o Centro D. Vital criado por Jackson de
referida tradução ceciliana de As Mil e Uma Noites). Segundo Herman Figueiredo, foram enfatizadas em recente dissertação de mestrado. Por mili­
Lima, foi Correia Dias o introdutor no Brasil do recurso gráfico do ex- tar com fervor em prol da Escola Nova, Cecília Meireles e os outros intelec­
libris, tendo desenhado o da própria Cecília, que trazia a inscrição defini­ tuais que a propunham, como Anísio Teixeira e Fernando de Azevedo, eram
dora: “...como uma cegonha que sonha, que sonha e sonha...”71. vistos com desconfiança pelos conservadores, e por vezes taxados de ateus e
Será elucidativo não subestimar o papel de Correia Dias na aproxima­ comunistas pelos obscurantistas. Em seu interregno de jornalismo diário
ção da jovem professora de rodas literárias como as que deram origem às ( 1930-1933), principalmente depois de passar a criticar com veemência na
revistas Árvore Nova (1922), Terra de Sol (1924) e Festa (1927-1928 e imprensa carioca o projeto de ensino religioso do governo pós-revolucioná-
1934-1935), das quais foi capista e ilustrador. Afinal, todas elas tiveram rio de Vargas, em sua defesa de um ensino laico, universal e plural, a escrito-
como eixo o escritor Tasso da Silveira, próximo de Correia Dias e estreito
colaborador de outro amigo deste, o jornalista e editor português Álvaro
Pinto, que nos anos de 1920 fundara no Rio a editora Anuário do Brasil.
7 2 . Murilo Mendes, n. 3. set. 1934. p. 4; e n. 5, dez. 1934. p. 9: Mário de Andrade, n. 1, jul.
Em Terra de Sol, que foi dirigida por Pinto e por Silveira, e cuja capa 1934. p. 3; e n. 8. maio 1935. p. 11: Jorge de Lima, n. 1, jul. 1934. p. 3: Carlos Drummond
foi desenhada por Correia Dias, colaboraram, entre outros, Ronald de Car­ de Andrade, n. 3 (I a fase), dez. 1927. p. 11. Observação: na edição de jul. 1934. Cecília
valho, Afrânio Peixoto, Tristão de Ataíde, Andrade Muricy, Murilo Araú­ Meireles. Mário de Andrade e Jorge de Lima publicaram poemas na mesma página - e
Vicente Huidobro e Pablo Neruda na p. 9.
jo, Nestor Victor, José Geraldo Vieira. Quanto a Festa, em cuja segunda
7 3 . Neusa Pinsard Caccese, Festa - Contribuição para o Estudo do Modernismo, 1971. p. 228.
fase colaboraram também Murilo Mendes, Mário de Andrade, Jorge de 7 4 . Ver Andrade Muricy, Panorama do Movimento Simbolista Brasileiro, 1973, vol. 2, p. 1164.
7 5 . Mário de Andrade. "Viagem". O Empalhador de Passarinho, op. cit., p. 161. Quanto a
Cecília Meireles: temperamento “de rara autonomia”, cf. Andrade Muricy (op. cit., vol.
2. p. 1165). a escritora várias vezes demarcou sua independência face a movimentos e
6 9 . Anna Balakian, O Simbolismo. 1985, p. 121. escolas. Uma de suas afirmações a respeito é a seguinte: "Também não me preocupam
7 0 . Ver Arnaldo Saraiva, op. cit., vol. 1, sobretudo pp. 95 e 211-214. as escolas literárias senão de um pomo de vista histórico. [...] Acho que todos aprendem
7 1 . Cf. Yone Soares de Lima, A Ilustração na Produção Literária, 1985, p. 192. com todos”. Poesia Completa, 4. ed.. op. cit., p. 87.
50 PENSAMENTO E "LIRISMO PURO’ NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES
SO BRE A OBRA IM ATU RA

ra atraiu para si as reservas ou a franca hostilidade do establishment alinhado Jammes [...] foi o de fazer refluir a poesia do ‘ideal’ e do âmago tenebroso
com a Igreja. O que, mais de uma vez, viria a lhe acarretar dificuldades da consciência para o universo das coisas e dos sentimentos simples”80. É
profissionais e financeiras, conforme exporei adiante76. possível que Jammes, entre outros, tenha repercutido de maneira distinta
No plano literário, uma das diferenças com o grupo de Festa foi na busca do universo das coisas simples em Bandeira e Mário, de um lado,
assim formulada em recente trabalho crítico: “Cecília transgride os pa­ e em Cecília, de outro - para me ater aos poetas do período que começaram
drões em que se filiava o fazer poético de Festa pela sua religiosidade sob ressonâncias parnaso-simbolistas.
cósmica e imanentista, pela atitude acentuadamente filosófica e conceptual Com amparo nas observações de Alfredo Bosi quanto a Bandeira e
que à crença na ressurreição prefere a racionalidade mística [...], experi­ Mário, de um lado, e em poemas cecilianos da época, de outro, parece lícito
mentando o divino na convivência com os seres criados, longe pois da supor que esses três poetas compartilharam, pelos anos de 1910-1920, um
m ística de total transcendência que atraía” Tasso da Silveira77. Penso tra- círculo assemelhado de leituras. Em síntese, os modernistas da Semana, como
tar-se antes de um pensamento de extração m etafísica do que de “religio­ grande número de poetas europeus modernos - Shelley e Baudelaire foram
sidade” - e voltarei ao assunto na análise de poemas da maturidade. Já os precursores - , incorporaram, é ocioso reiterar, as cidades e os aparatos da
algumas convergências de sua escrita poética com propostas estéticas de modernidade urbana em seus versos, assim como o banal e o prosaico, mui­
Festa - entre as quais a de pensamento filosófico, apreço às tradições e tos deles reservando à alteridade e ao mundo um tratamento coloquial. Isto é,
moderação nas soluções formais - penso advirem antes da herança sim- sua poesia absorveu a realidade imanente e contingente, fonte privilegiada
bolista comum e do lirismo essencial do que de algum com prom isso dou­ daquela “busca das coisas simples”. É também sabido que Cecília seguiu por
trinário ou ideológico com o grupo de Silveira - com o qual, entretanto, uma outra vertente, que procurarei descrever nos capítulos seguintes.
a escritora manteve certa amizade. Convirá ainda lem brar a leitura radi­ Já em sua poesia de juventude - e principalmente na obra madura - , o
calm ente diferente feita por M ário de Andrade da lírica de Cecília mundo industrial e urbano, possivelmente pela deliberada recusa da repre­
Meireles e a de Tasso da Silveira no Empalhador de Passarinho, diferen­ sentação do real imediato, a que já aludi, está radicalmente ausente, en­
ças que concernem sobretudo ao acolhimento radicalm ente distinto, por quanto o prosaico e o banal quase sempre só comparecem mediante trans­
cada um, da “poesia do subconsciente". figurações líricas. O tratamento da alteridade e do mundo permanece, desde
Conforme já reiterado, pela época da Semana a escritora já tinha pron­ aí, elevado à segunda pessoa (do singular ou do plural), refratário ao colo­
tos os versos livres de Poema dos Poemas e compunha as Baladas para El- quial. O “universo das coisas simples”, como também o das complexas,
Rei. Por essa época, deve também ter escrito o poema “Prece (à Maneira de seria buscado preferencialmente na “floresta de símbolos” da natureza -
Francis Jammes)”, espécie de profissão de fé contra o plágio78. Recorde-se um dos índices da “intemporalidade” - , e não na urbe histórica, tão presen­
que, conforme a historiografia, ao lado de M aeterlinck e Laforgue, o te em tantos outros grandes poetas de seu tempo. O que, por paradoxal que
elegíaco Jammes foi um dos poetas que, “com seus ritmos esgarçados e pareça, não avalio como um afastamento da modernidade poética. Mário
seus tons melancólicos, chegaram até a nossa poesia”, não sendo “difícil de Andrade, que em 1939 se revelaria um arguto leitor da poesia ceciliana,
descobrir traços de sua presença nos maiores modernistas, Bandeira e Má­ já no “Prefácio Interessantíssimo” considerava que “escrever arte moderna
rio de Andrade”79. De acordo com Marcel Raymond, o “desígnio de não significa jam ais [...] representar a vida atual no que tem de exterior:
automóveis, cinema, asfalto”81. Na juventude ou na maturidade, a poeta
carioca nunca viria a se deixar seduzir pela triunfante civilização da técnica
7 6 . Arquivo Darcy Damasceno, cit., pasta 26. 2. 39. (Trata-se da dissertação Cecília Meireles ou por sua atmosfera positiva, ufanista e utópica - as quais, também pela
e a Criação da Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco, de autoria de Jussara S. Pi­
menta, op. cit. Ver ainda Valéria Lamego, A Farpa na Lira. Cecília Meireles na Revolu­
herança romântico-simbolista, deplorava - , preferindo dizer o que Alfredo
ção de 30, op. cit.)
7 7 . Margarida Maia Gouveia, op. cit.. p. 101.
7 8 . Publicado em Árvore Nova. abr. 1923.
8 0. Op. cit., pp. 63 e ss.
7 9 . Cf. Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira, op. cit., p. 298.
8 1. Em João Luiz Lafetá (org.), Mário de Andrade, Literatura Comentada, 1990, p. 129.
32 PENSAMENl'O K “I.IRISMO PURO’ NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES SOIl R K A ORRA IM A I T RA 5.H

Bosi chamou de “resíduos de paisagem, de m em ória e de sonho que a Inconfidência deixou de ouvir totalmente as propostas paulistas de renova­
indústria cultural ainda não manipulou”8283. ção e, depois, a alternativa que os chamados espiritualistas lhe desenharam,
Em suma, cedo Cecília Meireles se embrenharia por uma vertente de com Festa™, a começar pelo tema da brasilidade. Ainda nos anos de 1920,
“irrealismo” - ou de “irrealidade fundamental”, para empregar a expressão que ela escreveu um punhado de poemas e textos sobre o assunto, entre os quais
Augusto Meyer utilizou sobre Rimbaud81 -, talvez como resposta à pulsão de “Terra de Cactus Duros” (versos livres), “O Canto da Jandaia” (prosa poé­
desentranhar um lirismo “puro”, absoluto, para o que perseguiu o transcen­ tica) e “Carnaval” (versos livres)87, o primeiro dos quais - por tratar-se
dental e o sublime num espaço desreificado, numa zona simbólica, distantes do daquele que apresenta menor grau de, por assim dizer, divagação lírico-
real contingente que os baniu. Ao cscrcvcr sobre a poesia “sentimental” (ou metafísica - creio ser interessante transcrever aqui:
moderna), Schiller reconheceu que muitos poetas transportaram o seu palco
para “o simples estado bucólico, longe da azáfama da vida citadina, assinalan­ Terra de cactus duros.
do seu lugar antes do início da cultura, na idade infantil da humanidade”84. Terra de fogos bárbaros.
Tu, sim, que e's minha, grande terra fatal...
“Transporte” que pode ser recorrentemente flagrado na poesia madura de Ce­
cília, na qual se localizam seus melhores poemas.
Tu, sim, que és minha,
Foi talvez também por essa recusa da representação do real imediato Para que eu te dê forma nova,
que a vanguarda européia na qual a poesia ceciliana mais viria a beber na Para que transfigure o teu sofrimento,
obra de maturidade tenha sido o surrealismo - conforme reconheceram Para que te faça como um grande céu grandioso,
críticos como Manuel Bandeira, Ménotti dei Picchia e o português Bruno Convertendo em silêncio e louvor
Tudo o que em ti era chorar!
de Sampaio, entre vários outros - , entendido pela historiografia como um
neo-romantismo. Reportando-se a Julien Gracq, também Hugo Friedrich
Como os demais dessa safra, este não poderá ser incluído entre os seus
assinala que o surrealismo nada mais é do que “uma das múltiplas formas
bons poemas, e a autora também não o inseriu na Obra Poética de 1958,
da moderna ‘nostalgia do mistério’”, e o próprio Breton, no segundo Ma­
que reservou, conforme já assinalei, à produção de maturidade. E como se,
nifesto, chamaria o movimento de “cauda do romantismo”85.
atendendo a um apelo poético externo, ela se desviasse do “coração da
Contudo, na obra de juventude, a poeta, se já a intuira, ainda não
lírica”, onde podia lograr melhor fatura.
encontrara plenamente a saída da natureza como repertório de símbolos,
Convirá ainda lembrar, nesse enfoque de suas primeiras tentativas pelos
descortinada a partir de Viagem ( 1939). Nos livros da década de 1920 (com
temas da brasilidade, as incursões de Cecília Meireles pelo desenho e pela
as exceções já mencionadas em Poema dos Poemas), comparecem noites,
pintura, no final dos anos de 1920 e início dos de 1930. Em boa parte
outonos, “tardes sombrias”, nuvens, luas, rosas, mas ainda desprovidos de
desses trabalhos figurativos, elegeu como tema o folclore afro-brasileiro
um recorte simbólico nítido, ao lado de cenários subjetivos onde o sujeito
(uma coleção deles seria reunida no volume póstumo Batuque, Samba e
poético desenrola um monólogo interior. Mesmo o oceano - elevado à
Macumba)™. Já tendo lido seus poemas de juventude, o crítico português
potência de “absoluto” no terceiro livro de maturidade - ainda aparece
esporadicamente, desprovido da carga simbólica posterior, que muitas ve­
zes confinará com o inconsciente. 8 6. “[...] fazer viver, pela arte, mais luminosa do que tudo. a realidade brasileira. Porque ela
Apesar da opção por uma vertente apartada daquela dos grandes mo­ é que está integrada em nós: em nosso instinto, em nossa inteligência, em nosso mundo
moral.” Tasso Silveira, “A Enxurrada", Festa, n. 4 (I a fase), jan. 1928. p. 4. Foi nesse
dernistas, não se dirá, entretanto, que a futura autora do Romanceiro da artigo que o autor explicitou as metas de “Velocidade. Totalidade. Brasilidade e Univer­
salidade” com vistas à renovação defendida pela revista.
8 7 . Em Festa, respectivamente n. 1. out. 27, p. 5; n. 3. dez. 1927, p. 4; n. 5. fev. 1928. p. 9.
82. “Poesia Resistência”, O Ser e o Tempo da Poesia, op. cit., p. 142. 8 8 . Publicada originalmente pelo Mundo Português (Lisboa, 1935), essa conferência, ilustra­
83. Le Bateau Ivre, Análise e Interpretação, 1955, p. 142. da pelas aquarelas e guaches da escritora, teve edição da Funarte / Instituto Nacional do
84. Friedrich Schi 11er, Poesia Ingênua e Sentimental, 1991, p. 83. Folclore (Rio de Janeiro, 1983) e, mais recentemente, foi reeditada em formato ntenor
85. Hugo Friedrich, op. cit., p. 167; André Breton, Les Manifestes du Surréalisme, 1946, p. 134. pela Martins Fontes.
SOBRE A OBRA LMA'l I RA
54 PENSAMENTO E ‘LIRISMO PURO" NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES

marido, Fernando Correia Dias, recebia regularmente no Rio as publica­


Osório de Oliveira por sinal anotaria acerca dos guaches e aquarelas da
ções literárias lusíadas desde a sua transferência para o Brasil, em 1914 - a
escritora: o que a poeta pouco considerou em seus versos [a temática da
começar pela célebre Orpheu, que lançou o movimento em Portugal em
brasilidade] “aproveitaram-no os olhos da pintora”. Ele ainda faria uma
1915, e Presença, editada entre 1927 e fim da década de 1930 - na qual
observação lapidar sobre o “irrealismo” poético antes referido: “O país em
colaboraram os brasileiros Cecília Meireles e Manuel Bandeira. A “poesia
que vive o seu espírito não existe em parte alguma. E um país de sonho,
da exploração psicológica, nos poetas portugueses em torno da revista Pre­
vago, impreciso, indefinido, como os dos contos de fadas. Tudo nos poe­
sença, de Fernando Pessoa até José Régio, aparecerá como caso especial de
mas de Nunca mais... pertence a outro mundo, que só ela sabe onde fica.
poesia surrealista”, observaria Otto Maria Carpeaux92.
Nem ela, talvez”, já prenunciando a conexão com o inconsciente que se
Nesta seção, porém, vou ater-me a apenas dois desses documentos,
pode detectar na obra madura*'1. Andrade Muricy também escrevería sobre
que datam do fim da década de 1920 até meados da de 1930, e são mais
esses desenhos que tematizaram o folclore de origem africana, consideran-
coetâneos, portanto, com nosso modernismo. Um deles é O Espírito Vito­
do-os - equivocadamente - “anteriores” à publicação da Antologia Negra
rioso - uma alusão a Hegel? Ou ao poema “A Vitória do Espírito” do, nas
por Biaise Cendrars e ao mergulho de Morand e Gide no “mundo negro”'*0.
palavras de Cecília, “profundo, trágico, infinito”, mas também “reacioná­
Produção plástica que seria exposta no Rio de Janeiro em 1933, quando
rio” Augusto dos Anjos? Em todo caso, numa afirmação que aludirá à
Mário de Andrade dava seqiiência às suas pesquisas afins sobre as expres­
mímese aristotélica, ela esclarece: "O homem começa por imitar a natureza
sões míticas e folclóricas do Brasil.
ou o mundo objetivo, continua imitando-se a si mesmo, na análise de sua
individualidade, e termina pela tentativa de imitação do sobrenatural, na
ânsia de divinização, na vitória final do espírito sobre a contemplação de
ID ÉIA S E STÉTIC A S: D O IS D O C U M E N T O S
todas as aparências”91. Trata-se da tese publicada em 1929, com que, como
é já bastante conhecido, concorreu, aos 27 anos, à cadeira de literatura da
A tentativa de resgate do pensamento estético ceciliano nos anos que
Escola Normal do então Distrito Federal, tendo sido, apesar de haver obtido
sucederam à Semana de Arte Moderna tem de passar pela releitura de tex­
a mesma nota que o candidato escolhido, preterida por um concorrente - em
tos seus que ficaram perdidos no tempo. E sabido que a escritora não for­
parte, possivelmente, por suas já então notórias posições anticatólicas, mal­
mulou propriamente uma arte poética ou textos de ordem doutrinária. Con­
tudo, seu pensamento estético pode ser rastreado também em dezenas de vistas pela banca alinhada à Igreja94.
ensaios ou conferências, escritos na maioria entre as décadas de 1930 e Nesse trabalho, lamentavelmente desprovido de bibliografia, mas em
que cita en passant Aristóteles, Nietzsche e Góngora, a escritora faz uma
1960, além, é claro, de sua própria lírica, afora as crônicas. Alguns desses
leitura historiográfica da tradição poética de expressão portuguesa desde o
estudos têm grande relevância para a compreensão de sua leitura da poesia
classicismo até “nossos dias” (meados dos anos de 1920). Trata-se, como
moderna, como é o caso da conferência inédita “Religião e Poesia” - talvez
a última que, já doente, pronunciou, em 1963, na Associação Brasileira de
Imprensa - ou do prefácio que antecede a antologia Poetas Novos de Por­ 9 2 . “As Revoltas Modernistas”, História da Literatura Ocidental, vol. 7, op. cit., p. 3244.
9 3 . Cecília M eireles, O Espírito Vitorioso , 1929, pp. 29 e 70.
tugal, que, a pedido do escritor Jaime Cortesão, organizou no início da
9 4 . O teor um tanto herético de algumas colocações na própria tese e as inclinações por uma
década de 1940, e no qual deteve-se particularmente em Fernando Pes­ m ística heterodoxa, algo reencarnacionista, latentes em seus livros anteriores, devem
soa89091. De fato, deve-se considerar que Cecília Meireles teve acesso precoce ter influenciado a banca, que preferiu C lóvis do Rego Monteiro, mais afinado com o
ao modernismo português, até por motivos biográficos, uma vez que seu grupo em que pontuava o “neocatólico” Tristão de Ataíde. Ver Eliane Zagury, op. cit.,
p. 15; e também Marco Antônio de Moraes (org.), Correspondência Mário de Andrade
& Manuel Bandeira, 2000, sobretudo p. 460 e notas 53 e 54, p. 461. Vale enfim lem­
brar que essa derrota levaria a escritora ao interregno de jornalismo diário (1930-1933),
quando refletiu e defendeu ardorosamente as reformas da educação concebidas por
8 9 . “A Poetisa do Brasil", 9 out. 1934.
Fernando de Azevedo e A nísio Teixeira em prol de um ensino laico e universal. Cf.
9 0 . A Nova Literatura Brasileira, 1936, pp. 48-55.
Valéria Lamego, op. cit., e Jussara Pimenta, op. cit.
9 1 . 1944, pp. 15-53.
56 PENSAM K N TO E “L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C EC ÍL IA M EIR ELES
SOIUU A OBRA IM A T I RA

ela mesma o classifica, de uma “rápida revista da evolução” dessa poesia, Ao abordar os “modernos” com precaução - “Nada mais fácil nem
mas aí já se percebe um conhecimento sólido da tradição literária da lín­ mais difícil do que falar de coisas contemporâneas” - , não incluiu textos do
gua9596.Embora se esquive ao falar dos contemporâneos, seu gosto estético modernismo brasileiro, mas, surpreendentemente, inseriu fragmentos da
já pode ser aí rastreado. Logo no início, ela afirma entender a Antiguidade “Ode Triunfal” do aqui ainda ignorado Fernando Pessoa, na pele de Álvaro
clássica como “simbolista”: de Campos - poema tido como um dos manifestos do chamado futurismo
português - , sem, entretanto, identificar o autor. Sobre os “modernos”,
[...] o clássico grego, como o oriental e o latino, era, realmente, comparado com o que
escreveu:
se passou a chamar clássico depois da Renascença, não clássico, mas simbolista. Os deuses
que figuraram no clássico da Antiguidade são formações mitológicas em plena florescência:
Talvez tenha havido vozes desencontradas, nesse extraordinário festim mundial. Mas
simbolização do mistério humano e divino, de onde os sábios têm colhido toda a riqueza
interpretativa dos segredos mais transcendentes, que são a própria essência desses mitos'*’. foram ficando diluídas, na sua diabrura clownesca, porque outras, revestidas de majestade e
divindade, anunciavam a sua aparição. Nem por isso, contudo, perdem esses primeiros en­
saios dos poetas modernos o valor que se lhes deve reconhecer. São uma guisalhada festiva
Mas Cecília restringe-se, no estudo, ao que chama de “ciclo das tenta­ de liberdade, a todos os respeitos. Caricaturais, muitas vezes, souberam ser sutilmente en­
tivas” - o qual, segundo ela, tem início no classicismo da renascença, passa genhosos nessa caricatura. E dentro da máscara bizarra que propositadamente escolheram,
pelo romantismo e pelo simbolismo e registra “no tempo atual” sua última para horrorizar, surpreender, alucinar, traziam, como um punhal nos dentes, o brilho do Es­
fase. Ilustra essa assertiva principalmente com poemas de Camões, Gregó- pírito que se eterniza. Espírito Vitorioso1” .
rio de Matos, Gonzaga, Cláudio, Bocage, Álvares de Azevedo, Herculano,
Antero, Augusto dos Anjos, Antonio Nobre, Eugênio de Castro e, em par­ Esse bom acolhimento da poesia moderna não soa surpreendente para a
ticular, Cruz e Sousa, sobre quem anota: apreciadora de Max Jacob, André Breton. Philippe Soupault, Louis Aragon,
Paul Éluard. Guillaume Apollinaire, Vicente Huidobro, além da “geração de
Couberam-lhe todas as heranças do romantismo: o naturalismo, o cientificismo, o 27” espanhola, entre tantos outros vanguardistas100. Dcteve-se, ainda, nos
satanismo... Transfigurou-as todas. Coube-lhe também o culto parnasiano da forma. Ape­ “homens que receberam a herança do simbolismo”, e à sua missão:
nas, em lugar de, com a perfeição da forma literária, celebrar a beleza das formas objetivas,
nela derramou o sangue de seu pensamento e do seu coração1'7. Encontraram o gosto da beleza exterior, límpida e harmoniosa, última remaneseêneia
clássica, reflorescente no parnasianismo; um pouco do venenoso travo do naturalismo, e
Amava, sem dúvida, Cruz e Sousa, cuja poesia chegou a ilustrar, e ainda um vislumbre da frieza científica. [...] tinham de ser fraternais e generosos, simples
sobre cuja obra pronunciaria uma conferência98*. Em consonância com a e sinceros, sensíveis a todas as angústias e fortes para suportá-las sem vacilações [...] sen­
historiografia posterior, considerava então o simbolismo, cujas inovações tindo a condição livre dos homens, e rebelando-se contra os dogmatismos hipócritas e as
convenções que só as rotinas sustentam [...]. Com isso tudo, um grande espírito de humil­
destaca, como uma “segunda corrente rom ântica”, ainda distinguindo a
dade, uma universal intenção de beleza. (... | Glória de ter uma linguagem nova, como que
“forma pela forma” parnasiana e a “forma pelo espírito” simbolista. profética, [...] dialogando com as realidades imediatas e com as mais longínquas abstra­
ções. [...] Existir, pelo seu v e r b o - [...] istoé, ser integralmente, realizar. V erem cada coisa
o seu aspecto sublime e celebrá-lo, e estimulá-lo, e sugeri-lo.[.„] Desintegrar as cores,
9 5 . O Espírito Vitorioso, op. cit., p. 111. Um estudo recente assim avaliou esse trabalho
decompor os movimentos, os ritmos, as proporções. E, também, desarticular todo o
ceciliano: “A autora revela conhecimentos não só de história da literatura e da educa­
convencionalismo das palavras. E inutilizar a rotina dos raciocínios. Parar, em meio da
ção. mas também de teoria literária e estilística. [Há o esboço d e| uma conceituação do
texto poético que se generalizaria trinta anos mais tarde”, aproximando tal conceituação
da teoria de Jakobson sobre a função poética da linguagem. Em Norma Goldstein et a i,
“A Múltipla Cecília", artigo inédito.
9 9 . O Espírito Vitorioso, op. cit., pp. 118-120.
9 6 . Cecília M eireles, O Espírito Vitorioso, op. cit.. pp. 28-29.
100. Jacob e Soupault são citados - ao lado de Manuel Bandeira - no póstumo “Pequeno
9 7 . Idem, p. 97.
Poema Fúnebre": Poesia Completa, 4. ed.. op. cit., p. 986. De Breton ela elogiou obras
9 8 . Conferência proferida em 18 de maio de 1933 na Sociedade Pró-Arte, Rio de Janeiro. como L ’Amour Fou, em cartas a Cortes-Rodrigues (24 fev. 1947, entre outras) e a ele se
Um dos desenhos, datado de 1933 e denominado “O Caminho da Glória”, saiu em refere na mencionada conferência “Religião e Poesia" (inédita). Quanto aos demais,
Festa, n. 1., 2“ fase, jul. 1934. refere-se a eles em crônicas e entrevistas.
S O R R E A O R R A 1M A T I 1RA 59
5H PEN SAM ENTO E "L IR IS M O Pt R O " NA POESIA DE C E C ÍL IA M EIR EL ES

continuidade geral, tomar conhecimento do instante, e agir de acordo com a sinceridade das composição dos movimentos e do ritmo e, principalmente, a “destruição dos
reações que se originarem de um contato previamente despojado de quaisquer preconcei­ raciocínios”. Isto é, concomitantemente com o abrigo de uma poética de
tos. Regendo todo esse aparente caos, o impulso profundo para o melhor, para o superior, busca do transcendental e do sublime, e de abrigo do espírito, Cecília já
para o abstrato. Espírito vitorioso101. parece atentar (e dirigir-se) para a prática de uma poesia de deformação do
"real" e de ruptura com os nexos lógicos1"1. Voltarei também a esse ponto,
Missão (e herança) que, em boa parte, viria a assumir ela mesma, logo mais, no estudo de sua poesia de maturidade.
especialmente na obra de maturidade, e que parece encerrar, até certo pon­ Mas é na conferência Notícia da Poesia Brasileira, proferida em 1934
to, um projeto pessoal de inserção na modernidade literária pela via do em Lisboa e depois em Coimbra, quando Cecília Meireles apresentou - pio­
chamado “pós-simbolismo internacional”, teorizado, entre outros, por Cecil neiramente, ao que se sabe - nossa poesia modernista aos portugueses, que se
Bowra102. Note-se que essa “poética do instante”, de procura do sublime e encontra com maior nitidez a sua leitura do movimento que sucedeu à Sema­
do belo, que bem compreende mas não adere à “diabrura clownesca” e na de Arte Moderna106. O texto de 54 páginas, que foi editado pela Universi­
repele “os dogmatismos hipócritas”, inclui a defesa não apenas de um certo dade de Coimbra, é entrecortado por generosas transcrições de poesias de
ecletismo estético - que Mário de Andrade seria o primeiro a rastrear na dezenove de seus confrades, entre os quais Mário. Bandeira, Jorge de Lima
leitura de seus poemas de maturidade101 - , como também a da decomposi­ (os três em que mais se demora), Oswald de Andrade, Raul Bopp, Augusto
ção órfica do real e da instauração de “uma linguagem nova”, com a desar­ Meyer, Ribeiro Couto e os recém-estreantes Carlos Drummond de Andrade e
ticulação do “convencionalismo das palavras”. Qual seria essa linguagem Murilo Mendes. É de se destacar o espaço exíguo, se comparado com o
nova a que a poeta alude? A escrita clean, limpa de derramamento e elo- reservado aos acima mencionados, que dedicou àqueles que pertenciam ao
q ü ê n c ia - “sem palavra a mais”, escreveu Mário sobre Viagem - , que viria grupo do qual se costuma afirmar que estaria mais próxima, no Rio de Janei­
a caracterizar sua obra de maturidade? Convém lembrar também a admira­ ro, nomeadamente Tasso da Silveira e Murilo Araújo107.
ção da escritora pela poética de Vicente Huidobro, na qual, conforme a De fato, a conferência faz um balanço da “revolução ocorrida na lite­
tradução da própria Cecília, se inscrevem tópicos que convergem em sua ratura brasileira" desde as vésperas da Semana, e delineia o contexto que a
escrita madura, tais como: precedeu: "quase não havia mais que uma escola, o parnasianismo, e uma
forma literária, o soneto”, inicia, mencionando ainda “a passagem melan­
Toda poesia autêntica tende para os últimos limites da imaginação e ninguém tem o cólica dos últimos sim bolistas” - em cujo grupo, obviam ente, não se
direito de apontar ao poeta um “non plus ultra". O poeta é homem que rompe os limites. 1...]
autoinclui. Critica a Academia Brasileira de Letras, que “zelava pela tradi­
Poeta: tens diante de ti um papel, é preciso enchê-lo com tudo quanto não seja dem ais1" .
ção, premiava a boa métrica e escolhia para as suas poltronas não os bons
escritores, propriamente, mas os que reunissem certos dotes mundanos, um
O ideário estético em gestação em O Espírito Vitorioso contempla al­
pequeno mundo oficial [...]” l0li.
guns aspectos posteriormente inventariados, com variações terminológicas,
Mas o que emerge como mais relevante no texto é a leitura que fez do
por autores que teorizaram a poesia moderna, a começar por Huidobro, e
“Prefácio Interessantíssimo”, de Mário, e do manifesto Pau Brasil, de Oswald.
pelo próprio Mário. Entre eles, incluem-se a desintegração das cores, a de­
bem como de poemas de ambos. (Depreende-se de sua correspondência da

m i. O Espírito Vitorioso, op. rit., pp. 114-116.


102. The Heritage o f Symbolisai, 1947. Críticos com o Alfredo Bosi (História Concisa da
105. Ver, entre outros, Hugo Friedrich, op. cit., pp. 264-268; e Mário de Andrade, "Prefácio
Literatura, op. cit., p. 513) e Jorge de Sena (Estados de Cultura e Literatura Brasileira,
Interessantíssimo", op. cit.
1988, pp. 27-32), com efeito, aproximaram-na dessa corrente intervalar da poesia
106. Cecília Meireles. Notícia da Poesia Brasileira, 1935.
moderna.
107. Leu apenas um poema de Silveira ("O Deserto Interior”) e outro de Murilo Araújo (“To­
103. "Viagem [...] é boa prova desse ecletism o sábio, que escolhe de todas as tendências
ada do Negro no Banzo"), em comparação com pelo menos oito de Mário e outros
apenas o que enriquece ou facilita a expressão do ser”. Mário de Andrade, "Viagem".
tantos de Bandeira e Oswald.
O Empallutdor de Passarinho, op. cit., p. 161.
108. Notícia da Poesia Brasileira, op. cit., pp. 5-6.
104. Cecília Meireles, “Vicente Hidobro”, A Manhã, 24 nov. 1944.
60 PEN SA M ENTO E "L IR IS M O P I R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES S O M O A OURA IM ATU RA

época que ela teve dificuldade em reunir livros de nossos modernistas cm um minucioso estudo, acompanhado da organização de uma antologia, pu­
Portugal, e isso talvez explique o fato de não ter abordado textos estéticos blicados postumamente"2 - , bem como pela manutenção do distanciamento
posteriores, como “A Escrava que Não é Isaura”, de Mário, e o “Manifesto em relação a Oswald.
Antropófago”, de Oswald). Transcrevo alguns excertos da conferência: Conviria ainda enfatizar, com base nessa conferência, que, nos anos
em que já escrevia os poemas da fase de maturidade (período que se inicia
A longa citação deste "prefácio interessantíssimo” [.v/c. | tem, na verdade, a sua razão em 1929), Cecília Meireles revelava clareza e visão crítica do contexto
de ser: escrevendo-o para definir o seu livro e a sua atitude artística, Mário de Andrade definia estético em que se inseria, o Modernismo, e face ao qual, apesar de ter
de algum modo a ansiedade e a orientação de poetas sem manifesto, que não participavam
absorvido (ou, melhor dizendo, filtrado) tendências - várias delas presen­
mais, e muitos nem tinham chegado a participar nunca, do que então se chamava passadismo -
embora também fugissem a pertencer, como ele mesmo o pretendia, a grupos que, investindo
tes na ensaística de Mário de Andrade, a começar pelo anti-academismo e
contra as prisões de determinadas escolas, armavam futuras prisões nos seus programas pela fuga às “convenções” - , conforme se verá, manteria sempre uma pos­
renovadores. | ...] Isento de preconceitos, confessa, porém, que se pode ser poeta moderno tura de reconhecida autonomia e independência. Mas fica patente a sua
com temas antigos, e com temas eternos"’''. adesão ao imperativo modernista de despertar a “Bela Adormecida” soter­
rada nos bosques parnasianos e simbolistas.
Essa leitura, igualmente muito pessoal, parece referir-se não apenas à A poeta que permaneceu lírica no auge dos anos de “diabrura clownesca”
postura de Mário frente ao movimento renovador - em relação á qual reve­ não desdenhou as tradições - nem Mário o fez. Com um olho no passado e
lou empatia - , mas à dela própria. Afina), sempre enfatizou sua indepen­ outro no presente, aprendeu pacientemente com elas até lograr transfigurá-
dência face a movimentos e escolas, e, como sabemos, privilegiaria, na las na tessitura de uma linguagem própria e limpa. E o que se depreende nas
obra madura, os “temas antigos” e “eternos”. raras ocasiões em que assentiu (ou teve oportunidade de) comentar suas “fon­
Quanto a Pau Brasil de Oswald, do qual igualmente selecionou lon­ tes”. "Cada um de nós é uma repercussão. Mais ainda: inúmeras repercus­
gos excertos, reconheceu a influência que esse texto e os breves poemas sões”, afirmaria ainda em O Espírito Vitorioso. Vinte anos depois (1949),
que o ilustram exerceram sobre “a poesia brasileira destes dez últimos quando da publicação de Retrato Natural seu quarto livro de maturidade,
anos” 109101. Finalmcnte, comparou os dois ideários estéticos: seria mais explícita, em resposta a uma questão sobre as “raízes espirituais da
sua poesia”:
O desvairismo de Mário de Andrade fora uma teoria muito simpática, pois, concen­
trando intenções essenciais, comuns aos poetas novos de então, vinha mais preocupada em
Os autores nunca sabem dizer bem essas coisas, porque, na verdade, a poesia, pra­
debater problemas ideológicos do que em fixar e, mais do que isso, limitar formas de ex­
ticada de um modo “vital”, está isenta das claridades da lógica. [...] Em todo caso, se for
pressão. Seu mérito era acordar a própria poesia - Bela Adormecida numa floresta de lu-
possível considerar “raízes espirituais” aquilo de que mais gosto, ou que mais repercute em
gares-comuns - e, principalmente, não pretender formar discípulos, pois seu próprio autor
mim, lembrarei o oriente clássico e os gregos; toda a Idade Média; os clássicos de todas as
I... 1, logo depois de a descobrir, partiu de si mesmo para a conquista de outras verdades,
línguas; os rom ânticos ingleses; os simbolistas franceses e alemães. E principalmente a
convencido da instabilidade eterna da vida e dos inúmeros rostos do sonho. Pau Brasil, ao
literatura popular do mundo inteiro, e os livros sagrados"3.
contrário, foi uma poesia desejosa de viver e de fazer ad ep to s"1.

Essa auto-indicada isenção das “claridades da lógica" é outro dos aspec­


As diferenças de opção aí manifestadas seriam talvez responsáveis pela
tos que importarão no exame de sua obra madura. A escritora já abordara
posterior aproximação da poeta de Mário de Andrade - com quem no ano
anteriormente esse ponto, no discurso que preparou com vistas à recepção do
seguinte à conferência ( 1935) iniciou correspondência; a quem dedicaria um
poema (“2" Motivo da Rosa”, Mar Absoluto); e sobre cuja poesia escreveu
112. A correspondência foi transcrita em Cecília e Mário, 1996. pp. 289-309. O estudo e a an­
tologia também estão em Cecília e Mário. Resta lamentar o possível sumiço de uma carta em
109. Idem, p. 19. que Mário comentava Vaga Música, à qual Cecília alude em Cecília e Mário, p. 300.
110. Idem, p. 26. 113. O Espírito Vitorioso, op. cit„ p. 106; e entrevista a Haroldo Maranhão, transcrita na Poesia
111. Idem, pp. 27-28. Completa. 4. ed.. op. cit„ pp. 89-90.
1)2 PENSAMENTO E "1.IR1SMO PU RO* NA POESIA DE CECIEIA MEIREEES
SOBRE A OURA IM AT U R A o:t

prêmio da Academia Brasileira de Letras ao livro Viagem, em 1938 - ao qual Maeterlinck, Tagore, As Mil e Uma Noites. Moshé Smilansky e outros poe­
concorrera com o intuito de pagar dívidas com o dinheiro da premiação -, tas hebraico-israelenses, os chineses Li Po e Tu Fu, Tchékov, poetas árabes e
texto que, contudo, se recusou a 1er na cerimônia em virtude da censura prati­ persas e poetisas japonesas entre os autores que Cecília traduziu desde a déca­
cada em vários trechos pelo núcleo conservador da instituição. Citando Rilke e da de 1920 até início da de 1960, parte desses trabalhos como exercício
Lorca - assassinado dois anos antes pela guarda de Franco - , registrou: “técnico-lírico”, sem projeto de publicação"7.
Poucos meses antes de morrer, em 1964, também em uma entrevista
Recordai Rilke [...]. Esse que fez da sua solidão uma pura experiência poética, e
jornalística, ela voltaria a se referir, com a discrição de sempre, ao “ecletismo”
cujas elegias, ambíguas como os textos sagrados, deixaram entre os poetas a sensação de
um companheiro sobrenatural, disse uma vez em assuntos de arte “quase tudo é inex­ dc suas fontes:
primível, e se agita numa região impenetrável.” Recordai também Garcia Lorca, esse espa­
nhol bravio. tão oposto a Rilke, esse cigano para quem o mundo foi uma correria de cores Agradam-me imensamente os poemas anônimos da literatura oriental antiga, da in­
e de músicas: “Um poeta não pode dizer nada da Poesia. Isso deixa-se para os críticos e os diana, por exemplo. A poesia medieval me encanta. A dos trovadores, as gestas, os cantos
professores. Mas nem tu nem eu nem nenhum poeta sabemos o que é Poesia. [...] da minha dos jograis, os cantares da Provença, de Espanha e de Portugal. Gosto muito da poesia
poesia é que não poderei falar nunca. E não por ser inconsciente, em relação ao que faço. inglesa, e Keats é meu favorito. Shelley também tne agrada bastante. Os simbolistas são
Ao contrário, se é verdade que sou poeta pela graça de Deus - ou do demônio - também interessantes
é certo que o sou pela graça da técnica e do esforço [...]” IIJ.
Explicitações como essas - somadas às tentativas de identificar alguns
Esforço, técnica, silêncio sobre o próprio fazer poético. Foram esses al­ dos primeiros vínculos e posicionamentos, empreendidas neste capítulo -
guns dos caminhos que levariam Cecília Meireles à identidade lírica que ela esclarecem que a poeta culta Cecília Meireles, afeita ao universalismo, não
mesma reconhecería, assim como a crítica, a partir de Viagem. Mário de limitou suas garimpagens às fronteiras de seu tempo nem de seu próprio
Andrade não hesitou em assinalar o salto qualitativo: “Com Viagem ela se espaço lingüístico, numa incessante revisita a múltiplas experiências e tra­
firma entre os maiores poetas nacionais”, escreveu em 1939. Bandeira também dições. Parece ter seguido um caminho similar ao de Valéry, quando este
logo viría a dar seu testemunho: “Cecília é, sem sombra de dúvida, a mais recomendou: “Convém, e isto é importante, acrescentar [a esse conjunto de
forte, a mais completa organização poética feminina que apareceu no Brasil. E invenções] certas renovações, [...] como os empréstimos de formas puras
em matéria do verso é tão ágil, tão apurada, que com ela poderia aprender ou cultas, tomados aos séculos XVI, XVII e XVIII, e cuja elegância é
qualquer marmanjo - em primeiro lugar o que assina estas linhas”, escreveu o talvez imprescritível” " 9.
poeta depois de 1er Vaga Música (1942)“\ É essa identidade lírica de maturi­ Desse modo, atribuir unicidade ou mesmo hegemonia à tradição da
dade que procurarei desentranhar nos capítulos que se seguem. lírica portuguesa na genealogia das “fontes” cecilianas, como têm feito
De outro lado, esse horizonte literário de múltiplas “idades estéticas”, muitos críticos, creio que implicará o risco de enveredar por um caminho
mencionado no excerto da entrevista que transcreví - para empregar palavras interpretativo redutor. Carpeaux parece ter tido uma boa compreensão des­
de Mário no mencionado ensaio sobre Viagem -, emerge parcialmente tam­ sa identidade poética multifacetada quando assinalou: “Em linguagem clás­
bém nos trabalhos de tradução de Cecília Meireles, que, nos anos de 1950, sica portuguesa e com sensibilidade inconfundivelmente brasileira já escre-
Mário Faustino consideraria como um de “nossos três ou quatro melhores
tradutores” "'’. Cabe destacar Rilke, Lorca, Tagore, Virginia Woolf, Ibsen,I
117. A lista parcial de suas traduções está em Poesia Completa. 4. ed.. op. cit.. pp. 97-98.
Depois da publicação desta (1994). apareceu Poemas Chineses, 1996. A tradução de
Tchékov (diretamente do russo) é mencionada por Cecília em sua correspondência e a
I 14. Em Cassiano Ricardo. A Academia e a Poesia Moderna. 1939, pp. 175-180, sobretudo de poetisas japonesas e poetas árabes e persas foi referida em conversa pela atriz Maria
pp. 1 7 9 -1 8 0 .
Fernanda, filha da escritora.
115. "Viagem", op. cit., p. 164. Manuel Bandeira. “Cecília. Maria Isabel e José Carlos”, 118. "Ouvindo Cecília Meireles”, entrevista a Flora Machman, 1964.
Poesia e Prosa. vol. 2, 1958, pp. 323-324. 119. Aptid Gilberto Mendonça Telles, Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro, 1994,
I 16. “C ecília Meireles: Canções", 1957. p. 30.
64 PEN SAM ENTO E “L IR IS M O P I R O ' NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES
2

veu Cecília Meireles poesias que pertencem ao patrimônio da melhor poe­


sia universal deste século” 120. Ainda assim, é preciso destacar um trabalho
importante de garimpagem de suas fontes lusíadas, especialmente quanto à
recorrência dos motivos trovadorescos medievais na obra madura: o ensaio
“Cecília, a dos Olhos Verdes”, de Nádia Battella G otlib121. Por relevantes e
irrecusáveis que se mostrem essas vinculações, o esforço de compreensão TRANSFIGURAÇÕES DO REAL
do “ecletismo sábio” (ou do “nomadismo estético”)122, com que se depara a
partir de Viagem, demandará um horizonte interpretativo mais amplo, ain­
da que mais complexo, problematizado e decerto arriscado.

Q UE PROBLEM A?

Em 1939, pouco depois da premiação - precedida de muita contro­


vérsia - do primeiro livro ceciliano de maturidade, Viagem, pela Academia
Brasileira de Letras, Manuel Bandeira se referiu à autora como “uma voz
distinta” na poesia brasileira de seu tempo1. Anos depois, o crítico português
Adolfo Casais Monteiro chegaria a mencionar a existência de um “proble­
ma Cecília Meireles”2. A própria polêmica que precedeu a premiação de
Viagem - e polarizou a facção mais conservadora da Academia (representa­
da por Olegário Mariano e Fernando Magalhães), que se opunha à conces­
são da láurea à poeta, e aquela outra mais afinada com o modernismo
(encabeçada por Cassiano Ricardo e Guilherme de Almeida), partidária
entusiasta do prêmio à escritora - parece dar conta da “distinção” e do
“problema” colocados por essa lírica'.

120. "Tendências Contemporâneas”, História da Literatura Ocidental, op. cit.. p. 3325.


121. Em O Mestre: Ensaios sobre a Literatura de Língua Portuguesa, 1998, pp. 440-458. 1. Manuel Bandeira, “Sorriso Suspenso”, Andorinha, Andorinha, 1966, p. 209.
122. Cf. já mencionado, o termo “ecletism o sábio” foi usado por Mário de Andrade, em O 2. Adolfo Casais Monteiro, “Cecília M eireles”, 1972, pp. 139-144.
Empalhador de Passarinho. Quanto à expressão “nomadismo estético” ou literário - ou 3. Sobre a controvérsia da premiação, ver Cassiano Ricardo, A Academia e a Poesia Moder­
seja, o aproveitamento de múltiplas tradições nas “viagens" poéticas - é empregada por na, 1939. O volume traz inclusive a íntegra do discurso censurado de Cecília Meireles -
Margarida Maia Gouveia, op. cit., pp. 17 e ss. primeira mulher a ser premiada na área de poesia pela instituição.
66 PEN SA M E N T O E ‘ LIR ISM O Pl R O ” NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES TRANSEIOURAÇOES DO REAL 67

Por via da análise de alguns dos poemas que considero particularmente vizinha, um recorrente piano que, por vezes com inflexão metafísica, pare­
representativos da obra madura ceciliana, escolhidos entre os que penso abrigar ce atravessar toda a sua lírica, como numa das Canções:
o que Croce conceitua como “estado de espírito fundamental do autor”4, neste
e nos capítulos que se seguem procurarei colher elementos com o intuito de O noite, negro piano,
- os sonhos soam longe. [...]
contribuir para o esclarecimento da singularidade identificada nessa poesia.
A música se inclina
Desde já, é possível considerar que um dos diferenciais mais flagrantes
o pensamento insone:
da lírica de Cecília Meireles face à poesia brasileira de seu tempo localiza-se em que clave se escreve
no reduzido aproveitamento, em seu universo de temas e motivos, da matéria o itinerário do homem?
do cotidiano e do banal, da cidade e do povo, do humorístico e do prosaico -
ou seja, do concreto e do empírico, cuja representação nutriu boa parte das - o que faz lembrar Mário de Andrade quando mencionou alguém que
experiências estéticas de nosso modernismo. Afinal, a redescoberta do Brasil chamara o Rio de Janeiro de “cidade dos pianos”8. Onde, nessa poesia, o
empreendida pelos modernistas também não deixava de configurar o reco­ “tumulto das ruas”, o tentacular espetáculo urbano, com sua população que
lhimento da matéria da exterioridade sensível. Já em Cecília, é como se hou­ “engole a poeira das fábricas”, com as multidões presentes na poesia mo­
vesse uma cisão entre a intelectual e a cronista, capaz de mergulhar também derna desde Shelley e Baudelaire?‘; Onde a representação visual da cidade,
nas experiências públicas de seu tempo, como as das lutas educacionais e as tão identificável na Itabira, na Belo Horizonte ou na Rio de Janeiro de
dos embates acerca do folclore, de recolher os eventos prosaicos do cotidiano Drummond, no Recife e também no Rio de Manuel Bandeira, na Paulicéia
e da cidade como matéria para suas crônicas - a ponto de aconselhar com de Mário de Andrade? Na carioca e urbana Cecília, o canto com freqüência
humor, em uma delas, a oferta como presente de prosaicos pacotes de feijão prescinde de notação de circunstância espacial, como acontece em seu fa­
em um Natal de carestia5 - , e a poeta. Como Mallarmé, Cecília Meireles moso “Motivo” :
devia entender a poesia como o único terreno onde se tornava possível anular
“a contingência do real, sua estreiteza, sua indignidade”6. Eu canto porque o instante existe
Menos do que nas soluções formais, como o recurso ao verso livre - do e a minha vida está completa. [...]
(Viagem)
qual lançou mão, de modo muito peculiar, em grande número de poemas
desde a década de 1920, conforme abordado no capítulo anterior - , residirá
A ausência dessa notação confere um aspecto de inespacialidade a boa
na rarefação de muitas das bandeiras temáticas de nossos poetas modernistas,
parte de sua lírica de maturidade. A poeta com frequência canta ou reflete
especialmente a do aproveitamento da matéria prosaica do cotidiano, o
de um lugar que não é público nem privado, nem rural nem urbano, nem
desgarramento dessa lírica do contexto estético de sua contemporaneidade.
burguês nem proletário, que é, antes, ideal ou imaginário. E tem consciên­
Afastamento que levaria José Paulo Paes a nela identificar a aura de “poesia
cia dessa inespacialidade:
nas alturas”7.
Quanto à representação da cidade - no que diz respeito à audição, por
[...]
exemplo - , o sujeito poético ouve sons e ruídos quase extra-urbanos, como se eu nem sei onde estou,
o latido de um cão (“Eco”), a “música do vento” nas árvores, o canto da como posso esperar que algum ouvido me escute?
("Discurso", Viagem)

4. Benedetto Croce, A Poesia, 1967, principalmente pp. 176-177.


5. “Compras de Natal”, em Carlos Drummond de Andrade et al„ Quatro Vozes, 1984, pp.
8 0 -8 1 . 8. Citando Araújo Porto Alegre, em Pequena História da Música, 1980. p. 167.
6. Cf. Hugo Friedrich, Structures de la Poésie Moderne, 1976, p. 150. 9. Walter Benjamim, “Paris do Segundo Império”, Charles Baudelaire, um Lírico no Auge
7. “Poesia nas Alturas”, 1997, pp. 35-36. do Capitalismo, 1991, sobretudo pp. 54-56.
Ü8 P K N SA MENT 0 K "L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES TRANSFIGURAÇÕES D 0 REAL 69

Só vejo o que nao vejo e que não sei se exisie. na lírica ceciliana. Por vezes hegemonicamente representados, como nos
(Solombra-3) mencionados poemas de viagens, muitos deles com olhar agudo e crítico,
como os que tratam do cenário hipercapitalista norte-americano - entre
Se apenas esporadicamente - como nos “poemas de viagens”, quando outros, “Pomba em Broadway” (Retrato Natural) ou o póstumo “U.S.A. -
o eu poético, como que relaxando seu eixo lírico fundamental, muitas ve­ 1940”, no qual traça em metros curtos um quilométrico painel crítico da
zes abre-se com maior desenvoltura à representação do mundo contingente sociedade consumista dos Estados Unidos e sua parafernália de mercadorias,
e sensível1" - traz vestígios do espaço de sua experiência, esse canto ou sem deixar de lembrar a guerra, que então se desenrolava. Este é um dos
reflexão também deixa amiúde de ostentar marcas de seu tempo presente, raros poemas em que chega a usar o "pra" marioandradino, e mesmo a
insurgindo-se assim como “intemporal”, conforme observou Carpeaux11. registrar a fala das ruas (veja-se também “M ensagem”, Poemas Italianos).
Considerando o envolvimento da intelectual Cecília Meireles com as
questões de seu tempo - especialmente na área educacional - e o teor urba­ [...]
no e contemporâneo de grande parte de suas crônicas, essa inespacialidade Andar, andava;
e essa intemporalidade cm sua lírica devem ser interpretadas como clara­ com 15 cents
mente deliberadas. Tais ausências ou negatividades farão parte do caminho comprava coisas
muito diversas:
poético que a poeta escolheu, independente da leitura que fizeram do mo­
ovo, presunto,
dernismo nossos outros principais poetas, embora dela aproveitando o que cinto, revista...
lhe parecia convir. Quanto à forma, esse aproveitamento não deixou de Meninos, muitos,
incluir a ordem direta do discurso, o vocabulário quase sempre trivial, o nem 5 cents
tom antieloqiiente, cool e antioratório. Em 1939, Mário de Andrade já para a alegria
do peppennint!
percebera nessa lírica a “resistência a uma adesão passiva” às propostas de
[..]
nosso modernismo, que já ia avançado na época - sem que com isso deixas­ - enquanto ao longe
se de situar a autora “entre os maiores poetas nacionais” 12. morrem milhares
Com efeito, essa lírica, quando não de interioridade pura, filtra da de compatriotas
exterioridade o que lhe convém, segundo um ethos próprio e um modo desajustados,
muito peculiar de olhar e de recolher a matéria do real observado. e outros milhares
tranquilamente
são concebidos
O que sou é o que vejo.
pra morrer,
Vejo e sou meu olhar.
[...]
(“U.S.A - 1940", Poemas de Viagens)
diz a poeta em outra das Canções.
No entanto, o cotidiano, o urbano e mesmo o banal e o prosaico, Conforme já aludi, é como se, fora de seu contexto habitual, se alte­
pedras de toque de boa parle do modernismo, aparecem esporadicamente 102 rasse o pathos do sujeito lírico, que desse outro modo podia recolher e
trabalhar com mais desembaraço a matéria sensível observada. Mas, no
mais das vezes, o prosaico e o banal atuam, nessa poética, como estímulo
10. Vejam-se, entre outros, nos Poemas de Viagens, o quilométrico "U.S.A. - 1940", além
que desencadeia um processo de transfiguração, no sentido que Croce em ­
de "Old Square”, “Corrida Mexicana", “Imagem” e “Paris", em Poesia Completa, 4. presta ao term o13, seja por via da indagação metafísica (veja-se “Domingo
ed., 1994; em Vaga Música, “Dom ingo de Feira", “Mexican List and Tourists”; em
Retrato Natural, "Pomba em Broadway".
11. "Poesia Intemporal”, 1960, pp. 203-208. 13. “[...] o sentimento e a realidade só devem ser reencontrados na transfiguração operada
12. "Viagem", O Empalhador de Passarinho, 1972, p. 164. pelo poeta f...]”. Benedetto Croce, op. cit., p. 87. Ver também pp. 89 e 116.
70 PEN SA M EN T O E "L IR IS M O PU RO" NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES
TRANSFIGURAÇÕES DO RF.AL 71

na Praça” de M ar Absoluto) ou da mediação simbólica, da deformação da lembrar que na obra em prosa ceciliana o tema do trabalho - especial­
onírica ou da metamorfose do banal no maravilhoso, no sublime ou no mente o trabalho humilde e anônimo - é recorrentemente abordado. Como
sobrenatural. a labuta dos lixeiros e carteiros do Rio de Janeiro, dos garçons e engraxates
do Sul ou dos pedreiros e artesãos da índia.
Venho de cam inhar por estas ruas.
Tristeza e mágoa. Mágoa e tristeza.
Debruço-me à janela, para sentir o ar, a luz, a tranqüilidade deste meio-dia de Patna.
Tenho vergonha dos meus sonhos de beleza.
| ... | E, ao contem plar estes pedreiros ocupados em tarefa tão simples, recordo os templos
que já vi, as colunas lavradas de mil desenhos minuciosos, paredes recobertas de lâminas
diz o poema “Transeunte” {Mar Absoluto), expondo o choque entre a rea­ de nácar, de ouro, espelhos, as filigranas de mármore, os deuses de pedra [...] - e passam
lidade de seu tempo e o sonho - e admitindo envergonhadamente o ideal diante dos meus olhos mãos seculares, milenares, perfis de artífices inclinados para o seu
platônico ou a “religião da beleza” a que se devotou um de seus mais caros primoroso trabalho que o tem po não desgasta, anônimos artífices que amamos tanto sem
poetas, o romântico John Keats14. E como se em parte de sua lírica houves­ sabermos quem foram, apenas pelo que as suas mãos deixaram, e que os fez imortais.
se por vezes uma antinomia, por vezes uma dialética, entre os olhos corpo­
rais e os “olhos do entendimento”. registra em uma crônica de 1953, decifrando o trabalho anônimo e invisí­
O mundo dos trabalhadores explorados, por exemplo, próprio de seu vel do passado sob o esplendor dos m onumentos16. Como o faz ainda cm
ambiente urbano, surge muito pouco na lírica da autora que viu tão bem a outros poemas de viagem, com o “ Discurso ao Ignoto Romano”, “Via
escravidão, bem como fatos históricos como a exclusão social e a espolia­ Appia” (Poemas Italianos) ou “Participação” (Poemas Escritos na índia).
ção colonial nessa alegoria do Brasil contemporâneo em que consiste parte Pelo fim dos anos de 1930 e início dos de 1940, morando em um aparta­
considerável do Romanceiro da Inconfidência. mento em frente ao mar, Cecília Meireles ia, como todo mundo, observar a
cena urbana de sua varanda carioca. O que via a poeta? No admirável poema
E a vida, em severos lances, "Distância” (Mar Absoluto. 1945), flagra-sc o mesmo mecanismo de intros-
empobrece a quem trabalha pecção, o mesmo estado de cisma, o mesmo procedimento transfigurador refe­
e enriquece os arrogantes. [...] rido, que neste caso levam à indagação sobre a própria identidade:
("Romance XIX” )

Quem sou eu. a que está nessa varanda,


Já se ouve cantar o negro.
em frente deste mar, sob as estrelas,
Que saudade, pela serra!
vendo vultos andarem?
Os corpos naquelas águas,
- as almas, por longe terra.
Em cada vida de escravo, pergunta. E a estranheza se intensifica ao se perceber tão distante daquele
que surda, perdida guerra! recorte de realidade entrevisto
(“Romance VII”)
como se esta varanda fosse a lua.
Esse livro, que será abordado no quinto capítulo deste estudo, repre­
senta, entretanto - como a própria escritora reconheceu - , por recolher a Esse poema inclui dois dos motivos mais freqüentes na lírica ceciliana
matéria épica da história, um tournant em seu discurso lírico15. Valerá ain­ de maturidade: a busca da própria identidade e o sentimento de depaysement,
de exílio, de distância - o qual, por vezes, na filha e neta de açorianos, soa

14. Cf. entrevista a Flora Machman. Correio da Manhã. 4 jan. 1964.


15. “[...] este é um livro diferente, tão diferente de tudo quanto fiz até agora que, ou será
muito bem recebido, ou ninguém lhe dará importância nenhuma. [...]”. Carta ao escri­
16. “A Modesta Patna”, Crônicas de Viagem-2, 1999, p. 252. Ver também, entre outras,
tor Armando Cortes-Rodrigues, 6 dez. 1950.
“Boas Festas”, Crônicas em Geral-1, 1998, pp. 66-72.
TRANSFIGURAÇÕES DO REAL
PEN SA M ENTO F. "L IR IS M O P I R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES

desm anchada ao vento crespo


como resíduo insular biográfico, atávico, noutras emerge como de natureza que à noite regressa ao mar.
temporal, ou ainda ontológica.
Vão passando os varredores;
vão passando e vão varrendo
C O R E O G R A F IA U R B A N A E S O B R E N A T U R A L a terra, a lembrança, o tempo.

E, de momento em momento,
Mas é em outro poema, do mesmo M ar Absoluto, secundário apenas a
varrem seu próprio passar...
uma primeira leitura (“Por Baixo dos Largos Ficus”), que se pode flagrar de
maneira privilegiada esse procedimento que aqui denomino transfiguração E um poema da exterioridade, construído na terceira pessoa, de extra­
do real ou da experiência, e desta vez com relação a uma cena do cotidiano da
ordinária simplicidade vocabular, rítmica e sintática, cujo andamento acer­
cidade. O sujeito poético apenas orienta o discurso pelo olhar lírico, e parece ca-se ao da prosa. Nele, diversamente do que ocorre com muitos outros
se encontrar naquela mesma varanda referida em “Distância”. Nesse poema,
nessa obra, a notação de circunstância espacial da cena observada aparece
marcadamente visual, também estão ausentes, como em quase toda a sua
já no título e é reiterada com insistência na prim eira estrofe. O uso da
lírica, quaisquer vestígios do mundo industrial, como carros e outras máqui­
redondilha maior e da rima alternada em ar - esta percorre o poema até a
nas e apetrechos urbanos. Trata-se de uma exterioridade filtrada pelo ethos
antepenúltima estrofe, quando é suspensa, para reaparecer no verso final -
do sujeito lírico. Porém aparecem trabalhadores da cidade, na pessoa dos
acentua o tom aparentemente banal da composição. À primeira leitura,
varredores da limpeza pública, que hoje denominamos garis.
parece tratar-se de um poema descritivo de uma cena prosaica do cotidiano
da cidade: a dos varredores que limpam a orla marítima, recolhendo os
Por Baixo dos Largos Ficus
dejetos deixados pelos moradores e pelos casais de namorados que ainda há
Por baixo dos largos ficus pouco trocavam carícias nos bancos de pedra instalados sob as árvores, em
plantados à beira-mar, frente à praia. Mas o caráter descritivo, representativo da cena real obser­
em redor dos bancos frios vada, só se confirma na primeira estrofe. Esta, no entanto, já abriga um
onde se deita o luar, movimento deformador do observado, ainda discreto: o verso que atribui
vão passando os varredores,
sensação térmica aos bancos em volta dos quais varrem os trabalhadores da
calados, a vassourar.
limpeza, e aquele que personifica o brilho da lua:
Dirieis que andam sonhando,
se assim os visseis passar, em redor dos bancos frios
por seu calmo rosto branco, onde se deita o luar,
sua boca sem falar
- e por varrerem as Bores Com o apelo à cumplicidade de hipotéticos leitores, na abertura da
murchas, de verem amar.
segunda estrofe - invocados de modo distanciado, cerimonioso, na segunda
E por varrerem os nomes
pessoa do plural - , o olhar lírico abruptamente amplia a fissura do discurso
desenhados par a par, descritivo e da representação mimética de que pareciam dar conta os pri­
no vão desejo dos homens, meiros versos:
na areia vã de pisar...
- por varrerem os amores Dirieis que andam sonhando,
que houve naquele lugar.
A atribuição, ainda que sugestiva e hipotética (no condicional), do
Visto de baixo, o arvoredo
ato onírico a trabalhadores que executam uma ação concreta e cotidiana soa
é renda verde de luar.
74 IM*.N SA M K N K l E “LIR ISM O PU R O " NA PO ESIA DE CEOII.IA M EIR ELES
1'RANSFIGl'RAÇOES 1)0 REAL 7.7

como anúncio da transfiguração que o sujeito lírico - presente pelo olhar - Mas a alienação captada neste e em outros poemas, como no acima mencio­
passa a operar no poema. A reiteração aliterada dos verbos de ação e do nado "Distância”, de Mar Absoluto - “Sabem, acaso, os vultos, quem vão
gerúndio (vão passando, vão varrendo) e a fluidez do ritmo reforçam a sendo? / Sentem o céu, as águas, quando passam? / Ou não vêem ou não
representação da marcha ritmada dos varredores, dando a impressão de um lembram?” -, extrapola o nível social e penetra o plano existencial. Tal alie­
quadro em movimento, enquanto o contraste das rimas toantes nos primei­ nação é objeto da reflexão da escritora também em sua correspondência.
ro e terceiro versos das primeiras estrofes com a alternância da mencionada
consoante (ar) instala uma dissonância sonora, que sugerirá a estranheza A criatura hum ana sempre me pareceu sonâmbula, entre bastidores de um teatro
semântica do cenário por fim construído. grande e espantoso. Ora está no cenário, ora na platéia. Mas sempre sonâmbula. E t'a/.-se,
Mas o que varrem esses trabalhadores? Primeiro, as flores / murchas - desfaz-se ou não se faz isto, aquilo, aquiloutro, porque são ordens do Diretor, que se cum ­
envergonhadas? céticas? - de verem amar. Depois, os nomes desenhados prem por magnetismo, por hipnotismo etc. Um excesso de estado de consciência desorga­
niza tudo.
p a r a par na areia onde os transeuntes pisam - o que ainda soa como
perfeitamente plausível. Contudo, os agentes do poema ainda varrem os
escreveu ao amigo Cortes-Rodrigues18.
amores, e aí o olhar lírico já deixou o terreno do real concreto para introdu­
No poema em análise, o principal movimento transfigurador da pai­
zir oniricamente o abstrato. Procedimento que gradualmente se intensifica
sagem observada pode ser identificado na imagem cromática e sinestésica
na penúltima estrofe:
do quarteto com que a poeta, como que imitando o vento que desfaz a
filigrana da copa das árvores, desmancha a simetria, a estrita regularidade
vão passando e vão varrendo
a terra, a lembrança, o tempo. dos sextetos em que vinha construindo o poema:

- tempo abstrato que degrada os objetos sensíveis, que tudo arrasta para a Visto de baixo, o arvoredo
é renda verde dc luar,
decadência, e cuja ação devastadora é simbolizada no poema pela imagem
desmanchada ao vento crespo
das flores murchas. Tempo que tudo transforma em lembrança ou esqueci­ que â noite regressa ao mar.
mento, obsessivo na poética da autora do emblemático “Retrato” ( Viagem).
Mas o poema ainda não se encerra. Evitando o desfecho aforístico, acres­ Nesse quarteto, a imagem, de impacto expressivo extraordinário, pa­
centa um arremate outra vez perfeitamente realista no dístico final: rece evocar poetas do barroco espanhol, como Francisco de Quevedo:

E, de momento em momento, Ia crespa tempestad dei oro undoso,


varrem seu próprio passar.

diz o verso de um soneto a ele atribuído111.


“Realismo” que ressoará uma crítica social ao fato de que o trabalho
Convirá lembrar a relevância da repercussão do barroco na poesia mo­
humilde não deixa rastros nem vestígios, como a autora registra, por exem­
derna. Recorda Otto Maria Carpeaux que, enquanto na Espanha a chamada
plo, em muitas de suas crônicas, como a parcialmente transcrita pouco antes.
“geração de 27”, com Federico Garcia Lorca, Rafael Alberti e outros,
"[...] as pedras e as grades da cadeia contaram sua construção - o suor e os
redescobria Góngora, e adentrava numa fase surrealista pela porta gongórica,
castigos incorporados aos seus alicerces [...]", disse em uma conferência17.
na Inglaterra T. S. Eliot voltava aos “metaphysical poets” e retomava-se a
leitura de John Donne; na França o abade Henri Bremond - um dos teóricos

18. Carta de 19 jul. 1946, op. cit.


17. “Como escreví o Romanceiro da Inconfidência”. Romanceiro da Inconfidência, 1989,
19. “Afeetos vários de su corazón, flutuan do en las ondas de los cabe lios de Lisi”. Francis­
p. 13.
co de Quevedo, Antologia Poética, 1994, p. 104.
76 l’EN SAM KNTO E “L IR IS M O P IR O " NA POESIA DE C EC ÍL IA M U R E I ES IRANSFIGURAÇO ES 1)0 REAL

da "poesia pura" - reintroduzia os poetas précieux franceses na cena literária; tismo, como as de Quevedo e Góngora - em particular o conceptismo das
e, na Alemanha, Walter Benjamin reabilitava a lírica e o drama barrocos imagens, objeto do estudo de Garcia Lorca. No já clássico ensaio “Poesia
germânicos. “A poesia moderna revela analogias surpreendentes com a poe­ do Sensível e do Imaginário”, Darcy Damasceno terá sido o primeiro críti­
sia barroca”, especialmente mediante o “choque violento das metáforas e a co a identificar na "mina barroca” a origem dos “filões mais ricos” da lírica
completa transfiguração lírica da realidade”, assinala Carpeaux. ceciliana, especialmente pelo veio quevedcsco, “de conteúdo mais melan­
Entre os hispano-americanos, Alfonso Reyes foi “um dos primeiros a cólico"27. Com os barrocos ou maneiristas, a escritora carioca compartilha­
reabilitar Góngora”20. Enquanto embaixador do México, o escritor Reyes ria ainda outros aspectos referidos por Lorca: além do anseio classicizante
residiu no Rio na década de 1930, tornando-se amigo de vários de nossos pela perenidade do poema - “A poesia é uma imortalidade das coisas mais
poetas e artistas - Manuel Bandeira cita seu nome no “Rondó dos Cavali­ efêmeras”, registrou Cecília em uma crônica211- , o amor pela “beleza pura
nhos"21 - , entre os quais Cecília Meireles. Um pequeno ensaio da década de e inútil”, a falta ou o distanciamento do “senso da realidade real”, a percep­
1980 chega a analisar a correspondência trocada entre Cecília e Reyes, ção da “fugacidade do sentimento humano”29.
mencionando a “afeição” que ambos dedicavam à poesia de Góngora2223. Procedimento e motivo que vêm trabalhados neste "Por Baixo dos Lar­
Antes disso, em seu estudo O Espírito Vitorioso, de 1929, a escritora cario­ gos Ficus". Algumas das obsessões lexicais cecilianas, que com frequência
ca já se refere a Góngora - além de Lope de Vega - ao comentar Antonio são atribuídas ao simbolismo (nácar, alabastro, cristal, aljôfar, brunido, al-
Nobre; “O exotismo das metáforas não traduz a vacuidade nefelibata de fombra, ouro, prata, mesmo rosas), talvez lhe advenham de Góngora. Queve­
que superficialmente o acusou a crítica prudente. O fenômeno já se obser­ do e outros autores do seiscentismo, os quais também reaproveitaram Petrar-
vara no seiscentismo, quando imperava Góngora”21. ca ". Dois dos signos mais encontrados nesses poetas espanhóis por seus
Garcia Lorca (um dos modernos poetas espanhóis lidos intensamente estudiosos - vento e água - também se incluem entre os símbolos mais co­
por Cecília nos anos de 1930)2425dedicou-lhe o ensaio “A Imagem Poética de muns da poética dessa irmã “do vento e da água" (“Discurso”, Viagem). Com
Dom Luís de Góngora”, no qual analisa o seu “senso da metáfora" e a sua efeito, mais de um crítico encontrou o aproveitamento também do poeta
percepção de que “a eternidade de um poema depende da qualidade e da andaluz na poesia ceciliana. O português Vitorino Nemésio chegou a esclare­
travação de suas imagens”21. É pelo jogo de metáforas que Góngora logra cer, contudo, que não se tratava do “gongorismo datado, da moda estilística”
deformar o sensível - ou as "tópicas tradicionais da pastoral”, conforme da época, porém o "interno e conceptual”, o qual "deu a Cecília Meireles a
prefere João Adolfo Hansen; ou ainda a natureza, segundo Dámaso Alonso26. fundura da especulação, a finura do ideato lírico”1'.
Mestra das imagens plásticas e poderosas, parece plausível supor que Mas não será apenas a herança “maneirista” a ressoar nesse poema
Cecília Meireles tenha estudado empenhadamente toda a poesia do seiscen- ceciliano. O fato de que a espécie de árvore a que se referem os versos (ficus)
de fato existia (ainda existe?) na orla carioca não subtrai a sua forte carga
simbólica, sobretudo em relação à tradição filosófico-religiosa (do budismo
2 0 . Otto Carpeaux. “Tendências Contemporâneas”. I% 6, em op. cit., pp. 3246-3248. ao cristianismo) em parte aproveitada na composição. No poema, o apelo
2 1 . Estrela da Vida Inteira, 1988, p. 136. (Meu colega J. Helder Pinheiro A lves chamou-
me a atenção para um certo paralelismo entre o poema em análise e a “Canção do Vento
tenderá antes ao budismo: a figueira perpétua dos Upanixades e de Bhagavad
e da Minha Vida" de Bandeira - em op. cit., pp. 150-151. Contudo, encontrei mais Gita é considerada a árvore do mundo, que une a terra e o céu, e teria sido ao
diferenças do que semelhanças entre ambos - e. quanto à fatura, uesle caso a com posi­
ção ceciliana, menos romântica e confessional, parece melhor.)
2 2 . James Willis Robb, “Alfonso Reyes y Cecília Meireles: una Amistad Mexicano-Brasilena”, 2 7 . "Poesia do Sensível e do Imaginário”, 1958, p. 4L
1981. pp. 120-126, sobretudo p. 124. 2 8 . “A Sombra da Pirâmide de Cestius”, Crônicas de Viagem-2, op. cit., p. 114 (aí aborda
2 3 . O Espírito Vitorioso, p. 86. Keats e Shelley).
2 4 . Por ela citado no mencionado discurso que se recusou a 1er. em 1938, quando da 2 9 . Federico Garcia Lorca, op. cit., p. 77. Ver também Arnold Hauser. Origeii de la Litera­
premiação de Viagem pela Academia Brasileira de Letras. tura y dei Arte Modernos, vol. 3. 1974, pp. I 19-121. principalmente.
2 5 . Federico Garcia Lorca. Prosa Viva, 1975. p. 76. 3 0. Ver também João Adolfo Hansen, Alegoria. 1986. (É verdade que muitas dessas palavras
2 6 . Cf. Dámaso Alonso, “Claridad y Belleza de las Soledades", 1982, p. 16. (Quanto a João são recorrentes em textos ainda anteriores, com o nos contos de As Mil e Uma Noites.)
Adolfo Hansen, fez esta observação durante a defesa de minha tese.) 3 1 . “A Poesia de C ecília M eireles”, 1970, p. 323.
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pé de uma árvore dessas que Buda recebeu a iluminação12. Em uma crônica, Vedas e também nos eleatas e em Platão, que fala na tragédia e na comédia
a própria poeta chegou a discorrer sobre o significado dessa espécie de árvore da vida e vê os homens como “joguetes” nas mãos dos deuses. Afinal, como
para o budismo. Buda, o Siddharta Gautama, que “não podia esquecer o observou a própria poeta, Buda e Platão foram quase contemporâneos16. O
sofrimento do mundo”, sentou-se sob o pipal - “o ficus religioso”, grego considerado um dos fundadores da dialética também terá contribuí­
do para moldar o ethos poético ceciliano - e sobre isso me deterei adiante,
[...] concentrou-se e esperou que, pelas portas do pensamento, lhe chegasse a com ­ na abordagem de outro poema.
preensão da natureza da dor [...] e da maneira de vencê-la [...) Ele queria libertar o homem A idéia “da insignificância ontológica do mundo da existência empírica,
do jugo do sofrimento. E, à sombra do pipal, seu pensamento se abriu ao conhecimento da natureza [...] falsificadora da [...] imagem da realidade” captada pelos “da­
perfeito. Tornou-se o previsto iluminado: o previsto buddha. O pipal tomou-se uma árvore
dos da experiência sensível”, que se encontra em Platão e nos eleatas, ainda
s a g ra d a -o ficus religioso. [Sentado sob ele], Siddharta recebeu a revelação [...] da causa
dos renascimentos, e do meio de extinguir os desejos11.
emerge, conforme Arnold Hauser, na tradição literária, como em Calderón de
la Barca, autor de La Vida es Sueno, em Montaigne e Shakespeare, entre mui­
Conforme esclareceu em crônicas e cartas, a poeta descobriu o budis­ tos outros autores que provavelmente repercutiram na escrita de Cecília, e aos
mo na adolescência e seus ensinamentos muito terão marcado a sua ética e quais é necessário acrescentar Camões17. Na verdade, essa idéia deve remontar
a sua visão do mundo14. A prática, ainda que temporária, da meditação aos primórdios da poesia escrita, sendo encontrada ainda em Li Po e Tu Fu,
oriental, a que ainda aludiu em sua correspondência, terá repercutido tam­ poetas chineses já do século VIII de nossa era traduzidos por Cecília Meireles.
bém em sua poética, particularmente no que diz respeito ao distanciamento “Já que a vida é ilusória como um sonho, / por que nos atormentamos?”, dizem
reflexivo sobre o real sensível, ao autodomínio e à paciente elaboração da versos de Li Po na tradução da escritora18.
forma. Segundo a tradição budista, também os sentimentos e desejos aca­ Em “Por Baixo dos Largos Ficus”, na penúltima estrofe, um terceto -
bam conduzindo o ser humano à infelicidade, e não há “nada de absoluto” única estrutura ímpar da composição - , a autora suspende o encadeamento
nos prazeres, que também podem causar a dor323435. Isto é, o amor pode ser dos enjambements em pares de versos, como que sugerindo o afastamento
uma ilusão e os prazeres revelarem-se vãos. O que poderá esclarecer o dos casais ou de seu jogo idílico, cujos vestígios são levados pelos varredo­
significado - com conotação budista - desse adjetivo duplamente utilizado, res. O gestual contínuo destes é mais uma vez reiterado. Mas a encadeação
com inflexão reflexiva, no poema: binária é retomada no dístico final, em que os varredores apagam as marcas
de suas próprias pisadas.
no vão desejo dos homens O poema, que inicialmente apenas parecia consistir na descrição de
na areia vã dc pisar. uma cena prosaica do cotidiano da cidade onde viveu a poeta, encerra as­
sim uma densidade estética e ética insuspeitada às primeiras leituras. Ela
Adjetivo que encerra um conceito sobre a cena observada, e pode advém do progressivo distanciam ento do real - à maneira atribuída a
configurar uma crítica à inconsciência, à alienação da condição humana, Góngora, e tão usual na poesia moderna, e que também é encontrada na
suscetível de se deixar tomar pelas paixões, e ainda uma contida, quase tradição platônica e budista; do cume imagístico no quarteto - com que
elíptica, advertência sobre o caráter ilusório das aparências do mundo. A ainda parece ecoar o seiscentismo espanhol, mediante a possível ressonân-
percepção do mundo sensível como ilusão é encontrada no budismo, nos
3 6 . No texto taquigrafado por Vera Teixeira (sem revisão da professora) do curso sobre técnica
e crítica literária que deu na Universidade do Distrito Federal em 1937. Cecília Meireles
3 2 . Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos, 1991. considera que dos livros sagrados hindus “decorrem noções que se vão encontrar nos gre­
3 3 . Cecília Meireles, "Grutas de Ajantá”, Crônicas de Viagem-3, 2000. pp. 191-193. gos Platão e Pitágoras". Sobre o budismo, especiftcamente. diz que mostrará "que tudo que
3 4 . Ver, entre outros textos: Fernando Cristóvão, "Cartas Inéditas de Cecília Meireles a Maria não é o Deus supremo é ilusório, é transitório, é precário” (original na Casa de Rui Barbosa).
Valupi”, 1982, p. 69. 3 7 . Cf. Arnold Hauser, op. cit., pp. 118-121 (valerá observar que são fartas as referências
3 5 . Cf. Michel Hulin, Les Plus Beaux Textes de l ’Hindouisme et du Bouddhisme, 2000. pp. a esses escritores mencionados por Hauser nas crônicas e cartas da escritora brasileira).
5 2 -5 3 . 3 8 . Li Po e Tu Fu. Poemas Chineses, 1996, p. 18.
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cia daquele verso atribuído a Quevedo; e da alusão ao caráter ilusório, ocidental dos pierrôs - lunaires, talvez, segundo a “música calada” com que
fugaz e vão dos sentimentos ou desejos humanos, encontrada ainda nos Schõnberg, utilizando o poema Pierrot Lunaire do simbolista belga Albert
maneiristas, no platonismo e no budismo, entre outras tradições. A budista Giraud, revolucionou a música do Ocidente41. E como se esses trabalhadores
aqui simbolicamente presente pela espécie de árvores sob as quais se ama­ urbanos estivessem mascarados de branco, à luz do luar, realizando, como
vam os namorados e trabalhavam os varredores. autômatos ou sonâmbulos - como que “sonhando” - , o trabalho mecânico de
Mas não se trata de um poema apenas de cunho místico e fdosófico recolher ou apagar indistintamente flores, nomes, amores, terra, lembrança,
platônico e orientalista. A ocidental e aficionada pelas artes modernas Cecília tempo, e o próprio vestígio de sua passagem pela cena. O que, novamente,
Meireles3940cria nele o efeito, que fica como resíduo final da leitura, de uma ecoará o sentimento maneirista ou barroco de que a vida é como que um
coreografia mundana e urbana - ou de um quadro em movimento, acima espetáculo, é ilusão, jogo, aparência - e, afinal, convergirá com a carta
referido. Quadro coreográfico mimeticamente representado pela forma - por ceciliana sobre o “sonambulismo” da criatura humana, parcialmente trans­
via da regularidade rítmica das redondilhas, do encadeamento “par a par” dos crita páginas atrás. Volto, aqui, a lembrar Carpeaux, que identificou “analo­
versos, dos recursos sonoros como a aliteração no deslizante v, da rima con­ gias evidentes entre a mentalidade barroca e a mentalidade do século XX”42.
soante que se repete regularmente, até o “desmanche” da estrutura estrófica No poema ceciliano, a visualização dessa cena urbana transformada
regular com a introdução de um quarteto (como que também desmanchada em espetáculo fantasmagórico ou sobrenatural, de impactante estranheza,
pela ação do golpe de vento, a regularidade estrófica não é mais retomada), consiste na principal fatura, e aí reside o seu principal valor estético: a
o que configura um recurso técnico banal, porém aqui muito eficaz. transfiguração do concreto e do urbano numa cena insólita, numa paisagem
A estranheza da cena coreográfica captada no palco profano da rua entre real e onírica, entre factível e sobrenatural, que poderá ainda evocar
advém da estrutura sonora, como as dissonâncias configuradas no contraste algumas telas de De Chirico, artista particularmente admirado por Cecília
entre as rimas toantes e a incidência reiterada da mesma rima consoante. Meireles.
Mas origina-se principalmente de procedimentos semânticos, como a mis­
tura de concreto e abstrato, de objetivo e de subjetivo, com que suspende a Tudo é como um chamado, um aviso, um apelo, um convite à aventura mágica do
representação do real que o olhar recortou, passando a misturar realidade e espírito. Apenas essa eloquência é completamente inefável: transmitida em silêncio e em
segredo, com o revelação ou iniciação. Incomunicável de outra forma, já que a sua natu­
irrealidade. Em síntese, enquanto o significante hospeda a analogia, o sig­
reza m ística impede explicações raeionalistas. O problem a de De Chirico foi, talvez,
nificado instaura a dissonância, daí emergindo a tensão primordial do poe­ encontrar a expressão do enigma e a sua legibilidade. Há muito, há imensamente da Itália
ma. A poesia moderna é a consciência da dissonância “dentro da analogia”, nestes quadros: mas de uma Itália que se universaliza. Os cavalos recurvos e impetuosos
observou Octavio Paz3". que neles se movem não são apenas os das bigas e quadrigas rom anas - porem mais
Advirá a estranheza, ainda, do efeito de surpresa da imagem princi­ arcaicos, com o sangue e os músculos da mitologia. E das estátuas que repousam nestas
pal, no quarteto, e da visualidade patética dos varredores: praças e nestes inesperados planos de sombra e luz, não e' simplesmente a forma durável
que se representa, mas, através dela, o modelo de outrora, que as inspirou, ou o seu
protótipo. E tudo isto é tão verídico, tão atual, que pensamos saber em que lugar exato se
com seus calmos rostos brancos,
encontra o ponto de partida dessa inspiração - sentindo-o, ao mesmo tem po, fora da
sua boca sem falar,
realidade espacial, e para sempre inalcançável, a não ser em memória. [...] Seus m últi­
plos retratos [...] contam a sua própria aventura, sua capacidade de desdobramento: vida
Estes versos dão uma pincelada de sobrenatural, de fantasmagórico, a poliédrica. onde o Oriente e o Ocidente se refletem, o sonho e a realidade se abraçam, o
essa coreografia urbana e aparentemente prosaica, fazendo evocar a figura visível e o invisível se com pletam , o passado e o presente se unificam , a face humana
procura o seu espelho sobre-humano. M uitas vidas, sobre infinitas mortes. [...] O mes­
tre é hoje um clássico moderno.
3 9 . Especialmente nas cartas a Armando Cortes-Rodrigues, ela relata os inúmeros concer­
tos, balés e dramas a qué costumava assistir, na então capital da República ou em via­
gens, tendo inclusive visto o próprio Stravinsky reger “O Pássaro de Fogo”. 4 1 . Cf. The New Grove Dictionary o f Music and Musicians, 1980.
4 0 . Los Hijos dei Limo, 1974, p. 84. 4 2 . "Tendências Contemporâneas”, op. cit., p. 3248.
82 PEN SA M E N T O E ‘L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES
TRANSFIGURAÇÕES DO REAL 8.1

Assim escreveu sobre o artista italiano41 - e se verá, ao longo deste Percorre-lhe a pele brilhante,
livro, quanto tais percepções podem ser transpostas para sua própria poe­ abre-a, leve. de lado a lado.
sia, motivo por que me estendi nesta transcrição.
Úmido deus de água e alabastro
Também este “Por Baixo dos Largos Ficus”, embora com o recurso de
aparece o peixe despido.
apenas um tipo de verso - e o mais tradicional da língua portuguesa - , enco­
bre uma tensão entre tradição e contemporaneidade. Será modernista pela E, como os deuses, pouco a pouco,
ordem direta e pelo tom despretensioso, cool; pela simplicidade vocabular e vai sendo pelo homem destruído.
sintática; pela economia verbal e pela estranheza visual e semântica instaura­
da. A relação som e sentido parece extrapolar a reiterada herança simbolista Ah, mas que delicado culto,
que elegante, harmonioso trato
no fazer poético ceciliano, ressoando também a musicalidade seiscentista e,
ainda, a de poetas sânscritos da Antiguidade, entre os quais Kalidassa - igual­ se pode dispensar a um peixe
mente referido por Cecília Meireles em poemas e crônicas - , considerados como um deus exposto num prato!
mestres em fazer o som ecoar o sentido4344. O poema contém ainda um acento
“maneirista”, no possível aproveitamento de Quevedo e do barroco, e uma Vinde ver, tiranos do mundo,
esta suprema gentileza
reflexão de ceticismo - de desengano - frente à aparência do mundo e aos
sentimentos humanos, de fundo budista e platônico, também encontrado no
de comer! - que deixa perdoado
theatrum mundi barroco45. o gume da faca na mesa!

Em sua pele cintilante,


M Ú SIC A E IM A G EM nítido, tino, íntegro, certo.

jaz o peixe - ramo de espinhos


O modo como a lírica ceciliana opera a transfiguração do cotidiano e musicalmente descoberto.
do banal pode ser flagrado de maneira também privilegiada no “Improviso
para Norman Fraser”, do livro Retrato Natural (1949). Diversamente da O fim venturoso! Invejai-o,
visualidade ostensiva, hegemônica, do poema anterior, este improviso sus­ corais, anêmonas, medusas!
tenta mutuamente o musical e o plástico, o visual e o sonoro. Trata-se de
Vede como era, além da carne,
outro poema da “exterioridade cotidiana”, em que é possível arriscar a
frase secreta, em semifusas!
identificação do espaço onde transcorre a cena do discurso: um restaurante -
o que depois se confirmaria por uma carta da autora, citada adiante. O poema trata de uma prosaica e frugal refeição, onde se serve peixe, a
qual a poeta compartilha com outras pessoas, entre elas um músico, o anglo-
Improviso para Norman Fraser
chileno Norman Fraser, que visitava o Rio de Janeiro. Ao descobrir o livro
O músico a meu lado come Viagem, de Cecília Meireles, durante os anos de guerra em Londres, ele ficou
o pequeno peixe prateado. entusiasmado a ponto de traduzir para o inglês e musicar vários dos poemas,
conforme a própria escritora relatou em outra carta46. A ele Cecília Meireles
dedicaria ainda uma das canções do livro M ar Absoluto.

4 3 . "Sem Título”, Crônicas de Viagem-3, op. cit., pp. 175-178.


4 4 . Cf. Alex Preminger (ed.), Encyclopedia o f Poetry and Poetics, 1965, p. 385.
4 5 . Arnold Hauser, op. cit., pp. 120-121. 4 6 . Carta a Armando Cortes-Rodrigues, 24 jun. 1946.
84 PEN SA M ENTO E “L IR IS M O PU RO" NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES IR W 'U t. t RAI O H 1)0 REAL 85

No “Improviso para Norman Fraser” verifica-se um duplo paralelismo. I lá séculos, um poeta oriental teve essa idéia de mandar à sua amada uma mensagem
O prosaico transfigura-se, a partir da justaposição de imagens e da relação por intermédio de uma nuvem. E só há pouco tempo se inventou o correio aéreo - quando,
na verdade, já não há mais amadas nem mensagens que valham a pena. E digam que os
som e sentido, na execução de uma partitura musical (de um improviso), que
poetas não são sempre os precursores!4'1
aos poucos vai introduzindo um desenho ou uma pintura ao olhar do leitor.
Diversamente da coreografia anterior, esse poema dá, ao final da leitura, a
Diz o “ Improviso do Amor-Perfeito” :
dupla impressão de se ter ouvido uma música e de se ter visto um quadro.
Segundo Nietzsche, se é possível considerar a poesia lírica como uma Naquela nuvem, naquela,
“fulguração da música nas imagens e pensamentos que imitam sua força, é mando-te meu pensamento:
preciso indagar sob que forma a música se manifesta neste espelho”47. Pro­ que Deus se ocupe do vento.
posta que procurarei seguir nesta análise.
Neste improviso não há, como no poema anterior, uma imagem de Nele, Cecília estará dialogando com o “poeta oriental” referido na crô­
poder excepcional, que eclipsa as outras configurações metafóricas. Aqui, nica, o indiano Kalidassa, especialmente com seu poema dramático A Nuvem
o “pequeno peixe prateado” e “brilhante” vai se metamorfoseando gradual Mensageira. Também dramaturgo, viveu nos séculos IV e V e considera-se
e visualmente pelo jogo metafórico, como que ao som do improviso, até que seu estilo é marcado pela graça, poder sugestivo e economia verbal50. A
reduzir-se à condição de esqueleto, de uma natureza morta. O texto acaba poeta voltaria a dialogar com outra obra de Kalidassa, O Anel cie Sakúntala -
fazendo lembrar telas do período figurativo de Picasso ou os “Arenques” obra referida por Guillaume Apollinaire em La Chanson chi Mal-Aimé51 - no
de Van Gogh, embora esses últimos mantenham-se íntegros e encarnados, poema “Shakúntala", do livro póstumo Poemas de Viagens.
diversamente do “peixe despido” ceciliano. Mas creio ser o improviso dedicado ao músico Norman Fraser o que
A poeta de Canções, Cânticos e Vaga Música, autora de múltiplos emerge como o esteticamente mais bem realizado dos quatro existentes em
prelúdios, baladas, cantigas, cantatas, modinhas, árias, serenatas - sem dei­ Retrato Natural. “Inspiração casual” - gerada pelo cotidiano, embora tecni­
xar de mencionar as copiosas, algumas delas antológicas, canções - , in­ camente trabalhada com empenho nos velhos dísticos oriundos das poesias
cluiu quatro improvisos em Retrato Natural. Usado pela primeira vez no grega e latina - é o que sobressai da leitura. Estruturada em doze pares de
início do século XIX na França, o improviso (ou impromptu) consiste em dísticos, a composição se tece em octossílabos - com a redondilha maior,
uma composição musical para instrumento solo, em geral o piano, cuja além do verso polimétrico ou livre, uma das fórmulas métricas preferenciais
natureza pode ocasionalmente sugerir a improvisação, embora o nome se da autora. Já o aspecto gráfico do improviso sobre a página denota a regula­
origine na maneira casual como a inspiração para determinada peça pode ridade e a sim etria dos versos, com o que mimetizando, à m aneira das
ocorrer ao compositor. Lizst, Chopin, Schumann e Schubert foram alguns "frase(s) secreta(s) em semifusas”, uma partitura musical. As rimas alter­
dos compositores que escreveram improvisos48. Na poesia brasileira, tam­ nadas a cada dois pares de dísticos conferem uma sonoridade clássica ao
bém Manuel Bandeira escreveu “improvisos”, dedicando um deles a Cecí­ poema, podendo evocar a música de Schubert, autor da "Truta” - embora
lia Meireles, em que traça um penetrante retrato lírico da poeta, sua con­ essa peça, originalmente um lied, tenha sido transcrita para quinteto de
temporânea e amiga, no Rio de Janeiro. piano e cordas, não configurando um improviso para instrumento solo.
Dentre os improvisos reunidos cm Retrato Natural, considero que dois Os quatro primeiros pares de dísticos fecham-se, cada um deles, em si
têm valor estético excepcional. No “ Improviso do Amor-Perfeito”, a poeta mesmos, dando um andamento mais rápido à composição, à maneira do
resgata o motivo da nuvem mensageira, originário da literatura sânscrita, allegro musical, de modo compatível com o movimento ágil dos talheres.
conforme menciona na bem-humorada crônica "Exercício Nefelibata” :

4 9 . “Exercício Nefelibata”, Crônicas de Viagem-1, 1998, p. 72.


4 7 . Friedrich Nietzsche, Lu Naissance de la Tragédie, 1964. p. 45. 5 0 . Cf. Alex Preminger (ed.), op. cit.
4 8 . Cf. The New Grave Dictionary o f Music and Musicians, op, cit. 5 1 . Cf. Jeanine Moulin, “Poète de la Tradition”, Apollinaire..., 1952, p. 11.
T R A N SH C I KAÇOKS 1)0 REAL 87
86 PEN SAM ENTO E “L IR IS M O PU R O ” NA POESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES

A interjeição (“Ah!”) na abertura do quinto dístico instala os enjambements afinal, num dos símbolos da tradição cristã, onde se multiplicou milagrosa­
entre as estrofes, e interrompe o movimento descritivo da refeição - de mente para saciar a população faminta, e também está presente na tradição
resto já transfigurada por via da metáfora que eleva o peixe à condição de filosófico-religiosa da índia55.
“úmido deus”, o qual, O poema, de fato, reúne um motivo e símbolos recorrentes na poética
ceciliana. Primeiro, a música, através do músico, que pelo manuseio dos talhe­
(...) com o os deuses, pouco a pouco, res vai deixando o peixe “musicalmente descoberto”. Nele estão também im­
vai sendo pelos homens destruído. plicitamente presentes a água e o mar, nas figuras metonímicas do peixe, dos
corais, anêmonas e medusas - os seres marinhos convocados, no imperativo,
Trata-se de uma alusão à modernidade burguesa desprovida de deuses - para o espetáculo da consumação e destruição final do pescado, à maneira de
“ [...] ó mundo sem deuses, sem sonhos, sem lares!”, diz um verso elegíaco parentes chamados para o rito de um funeral, nos últimos dois pares de dísticos.
de “Partida”, Viagem -, de uma referência sutil à evanescência dos mitos As palavras anêmonas e medusas instauram alguma ambiguidade entre o real e
da Antigiiidade, que a poeta tanto estudara desde a infância, conforme rela­ o mítico: a primeira referirá aqui as “anêmonas do mar”, não a flor em que no
tou52. Desde as primeiras metáforas e a interjeição, o sujeito lírico, aqui mito Adônis foi transformado, enquanto a segunda aludirá antes às “águas-
também elíptico, presente apenas pelo olhar, já instaurou a reflexão e o vivas” que vivem no ambiente marinho do que à figura mitológica que, segun­
juízo sobre a cena observada. Isto é, acionou seu ethos. Mais do que o do Paul Diel, simboliza a imagem deformada do eu56.
poema anterior, esse improviso alia a coexistência de sensível e conceituai, Nomeado quatro vezes ao longo do texto, o peixe é o signo que imanta
recorrente na poética ceciliana, conforme já observara Darcy Damasceno53. a principal constelação de adjetivos (prateado, brilhante, leve, cintilante,
As aliterações dos primeiros versos - pequeno peixe prateado; Per­ íntegro etc.). Positividade que dá conta da beleza do pequeno ente cuja
corre-lhe a pele brilhante; aparece o peixe despido; pouco a pouco; exposto integridade mencionada vai sucumbindo pela ação dos talheres e do apetite
num prato - , pelo efeito das oclusivas bilabiais surdas, parecem representar humano. A acumulação de adjetivos, os três primeiros assonantes e todos
o retinir dos talheres, ressoando o corte do peixe pelo “gume da faca”; e eles semanticamente assemelhados - “nítido, fino, íntegro, certo”, que ocu­
também a execução musical que “aos poucos”, pelo jogo metafórico, o pam todo o 18“ verso, elevando pela insistência a tensão poética - , é outro
poema vai trazendo à tona na mente e no ouvido do leitor. Mas, novamen­ recurso recorrente na lírica ceciliana, embora nela se encontre, com muito
te, se a forma representa o real observado, o significado o transfigura, maior frequência, a tríplice adjetivação.
principalmente pelas imagens; “úmido deus de água e alabastro”, “frase
secreta em semifusas”, “ramo de espinhos” - esta, uma alusão ao mito de Eu não dei por essa mudança
Cristo, já implícito pela carga simbólica do peixe. Convirá lembrar que tão simples, tão certa, tão fácil.

esta última imagem aparece transmudada em “ramo de ossos” no epílogo


do bem mais grave Solombra, de 1963, já como referência às metamorfo­ conforme um de seus mais conhecidos poemas, “Retrato”, de Viagem. A
ses da condição humana pela ação do tempo - e da morte. presença da palavra alabastro - ao lado de nácar, que não é encontrada aqui,
Nesse improviso, como ocorre em a “Maçã”, o peixe é carregado de mas em inúmeros de seus poemas - emergirá não apenas como um resíduo
ressonâncias arquetípicas, bíblicas e clássicas, conforme a conhecida análi­ do simbolismo na poesia ceciliana de maturidade, como também ressoará
se de Davi Arrigucci Júnior do poema de Manuel Bandeira54. Consiste, tradições anteriores, como a petrarquista e a maneirista, anteriormente men­
cionadas (Vejam-se, apenas em Poemas Italianos, “Alabastro”, “Natureza
quase Viva”, “Writ in Water” - que alude a Keats - , “Ah! Santa Maria”).
52. Ver a mesma crônica “Exercício Nefelibata”, Crônicas de Viagem-1, op. cit., sobretudo
p. 69. No quarto capítulo, abordarei também o curso sobre mitologia e literatura minis­
trado em 1937 pela escritora.
5 5. Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, op. cit.
5 3 . “Poesia do Sensível e do Imaginário”, op. cit., sobretudo pp. 41-42.
5 6 . Idem.
5 4 . Humildade, Paixão e Morte, 1990, p. 36.
«X PEN SA M E N T O E 'L IR IS M O P I R O ' NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR EL ES
ÏR A NSFK 4 RACOES DO REAL W

Os demais adjuntos adnominais desse improviso, igualmente positi­


tenção de carne é uma das “injunções órficas, sendo atribuída a Orfeu por
vos - delicado, elegante, harmonioso, venturoso etc. - , qualificam o ato de
Eurípides e Aristófanes, além de Platão” e se fundamenta na crença na
sua progressiva metamorfose em “ramo de espinhos” e “frase secreta em
transmigração das almas. Conforme colocado por Empédocles - crente apai­
semifusas”. O adjetivo “perdoado” marca como que um empate entre o
xonado na vida órfica - “o animal que se consome pode conter a alma de um
belo ser, ainda há pouco vivo, que acaba consumido, e o músico que o
parente próximo”5*. O que parece advir também dos rituais totêmicos. No
deglute com destreza e elegância impecáveis - isto e', com beleza. Destreza
entanto, a Bíblia, antes de Cristo, já no Levítico, admite o consumo de peixe.
e elegância, afinal, refletidas na construção formal do poema.
A compaixão que se pode identificar na grande admiradora do compassivo e
Muitas outras composições da autora de “Elegia a uma Pequena Bor­
vegetariano Gandhi também terá fundo orientalista. A ocidental Cecília, po­
boleta” - poema emblemático dessa atenção e defesa dos seres mais obscu­
rém, foi vegetariana apenas em algumas fases da vida, segundo também
ros e humildes - dão conta de sua compaixão em relação aos animais (ou
revela a sua correspondência.
insetos) sacrificados, ainda que com a finalidade de alimentar seres huma­
No improviso ao músico inglês, a elegância do comensal faz com que
nos ou outros viventes - ressonância, talvez, também das aproximações
o olhar lírico perdoe a destruição do “úmido deus”. Diversamente de “De­
budistas da escritora, doutrina que prega o respeito à vida em todas as suas
senho” ou de “Natureza M orta”, esse poema é lúdico e leve, dotado de uma
formas, desde as mais humildes e silenciosas. Postura talvez exótica naque­
graça clássica. Mesmo a alusão sutil aos tempos que corriam (o poema foi
les anos de 1940, mas hoje muito mais disseminada e compreendida, em
escrito durante a Segunda Guerra Mundial e em plena vigência do Estado
nossos tempos de maior consciência ecológica. É o caso de “Natureza M or­
Novo no Brasil) mantém o tom divertido:
ta”, de M ar Absoluto, espécie de canto elegíaco ao peixe cuja carne “fina e
translúcida” é devorada pelos comensais de um jantar. Em seus poemas
Vinde ver, tiranos do mundo,
póstumos também se encontra esse surdo protesto em múltiplos textos, esta suprema gentileza
como “O Peixe”, “Máquina Breve”, “Os Três Bois”57*. de comer! [...]

Mal chegaste ao reino dos homens, já te paralisaste e acabaste. Como se a visão daquele “elegante, harmonioso trato” tivesse o dom
Já te cortaram, já te dividiram, já és sangue, pedaço, quase podridão. de abrandar a dureza dos tiranos que espalhavam atrocidades pelo mundo e
no país. Mas fica implícita a reflexão também sobre a destrutividade ine­
diz um dos longos dísticos do primeiro, um lamento à retirada do peixe a rente aos homens, que engloba peixes e deuses; sobre a dialética da vida e
seu “tempo submarino” pelas “leis da terra e do homem”. da morte na existência cósmica, em que a acumulação (de proteínas, ener­
Esse sentimento de perda ou de lamento diante da banalização da gias, riquezas) para um implica quase sempre empobrecimento, espolia­
agressão sistemática a seres vivos por vezes merece de Cecília Meireles um ção, destruição ou sacrifício de outro. O que reflete a dialética heraclitiana:
tratamento solene e preciosístico, como se vê principalmente na elegia à “Imortais mortais, mortais imortais, vivendo a morte daqueles, morrendo a
borboleta, acima referida. No mesmo Retrato Natural, um dos dois poe­ vida daqueles”51'. Essa “harmonia de tensões” também se verifica na cons­
mas intitulados “Desenho” - “Pescador tão entretido / numa pedra ao sol trução formal, especialmente pelo recurso às oposições antitéticas, recor­
[...]” - trata, só que com enfoque metafísico, do mesmo assunto. rentes na lírica ceciliana: deus / despido, destruído; tiranos / gentileza;
A abstinência de todo alimento de origem animal tem origem nas dou­ harmonioso trato / gume da faca.
trinas órfica e também pitagórica, onde consiste em uma das práticas de
purificação, e também se inclui entre as recomendações do budismo. A abs-

5 8 . Cf. W. K. C. Guthrie, "Outline o f Orphie Doctrine”, The Greeks and their Gods, 1950,
pp. 318-326, sobretudo p. 320. Pitágoras também se opunha ao consumo de carne, à
5 7 . Cecília Meireles, Poesia Completa, 4. ed., respectivamente pp. 994-995, 1153-1154 e conservação da vida “pela morte de outro ser vivente”. Cf. Ovídio, Les Métamorphoses,
9 8 6 -9 8 7 . 1955. p. 405.
5 9 . Heráclito, Fragmento 62, Os Pré-Socráticos, 1999. p. 94.
T R AN SI'Kil RAÇOKS DO REAL
90 PEN SAM ENTO E ‘L IR IS M O Pl RO" NA PO ESIA I)E C EC ÍL IA M EIR ELES

Morreu de uma flor na boca:


Trata-se de um texto também marcado pela economia de palavras -
não do espinho na garganta.
procedimento muito bem observado, ainda em 1939, por Mário de Andrade
sobre poemas do primeiro livro da maturidade ceciliana, naquele referido
No im proviso em estudo, o ser sacrificado era o peixe, elevado
ensaio. Economia, por vezes minimalista, que de fato emerge como uma
elcgiacamente à condição imagética de “deus exposto num prato” .
das marcas do estilo ceciliano - veja-se “Canção Mínima”, de Vaga Músi­
Encerrado o movimento dos talheres (ou instrumento musical?, pode-
ca, por exemplo, que aproxima, como que numa rápida gradação cinema­
se perguntar o leitor), a imagem abstrata que o poema traz à mente é a de que
tográfica de zoom, o abstrato e o imperscrutável ao sensível, em escala
o comensal teria executado um solo para violoncelo (como que pelo manu­
decrescente de dimensões e amplitudes de significado:
seio adestrado de garfo e faca), representado na composição por meio da
relação de som e sentido. Jogo que penso responder à indagação nietzschiana
No mistério do Sem-Fim,
anotada no início desta análise. Contudo, o improviso também permite
equilibra-se um planeta.
visualizar o “ramo de espinhos / frase secreta em semifusas” como um dese­
E, no planeta, um jardim, nho ou pintura, neste caso figurativa. Música e imagem terão sido os proce­
e, no jardim, um canteiro; dimentos fundamentais dessa transfiguração.
Tempos depois de realizada esta análise, pude encontrar em uma carta
no canteiro, uma violeta,
de Cecília Meireles a seguinte anotação sobre a circunstância em que esse
e, sobre ela, o dia inteiro,
improviso foi escrito:
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta. [...] almoçavamos juntos num hotel do porto, de onde se avistam as embarcações co­
loridas que vêm para o mercado, e o inglês que nos convidara escolhera pescadinhas. Ora. o
Fraser, que estava a meu lado, comeu a sua de tal maneira que me impressionou. Enquanto
Esse recurso técnico de um quase minimalismo verbal, com sua contra­
os outros enchiam os seus pratos de destroços lamentáveis, ele procedia com sábios movi­
partida de concentração de significado, decerto adveio do “empenho monacal”
mentos, discretos e eficazes, e fiquei absorta - mas tambént só eu sou bastante lunática para
com que a poeta estudou a tradição poética da língua, conforme observou isso... - ao ver como levantou a pele, lhe retirou a came de alabastro, como lhe deixou apenas
Damasceno60. Como pude verificar em minha pesquisa, essa reflexão envol­ o ramo do esqueleto, intacto como o vestígio de um fóssil. Tudo com tal perícia que não
veu, entretanto, muitas outras tradições, além daquela de nosso espaço parecia comer, mas desenhar ou fazer música. Então lhe fiz esse improviso6’.
lingüístico- algumas das quais até aqui já inventariadas. Tal “empenho” terá
viabilizado à poeta o rito de passagem do esforço de juventude - a “luta mais Olhar minucioso, atento, por vezes microscópico, que denota a capta­
vã” drummondiana - ao domínio técnico que, afinal, lhe daria acesso à ex­ ção do sensível em todas as suas manifestações e filigranas. Na transcrição
pansão da imaginação e à transfiguração do real que passou a operar de modo que fez do poema nessa carta, Cecília ainda empregava o adjetivo “aéreo”,
simples, encantatório, por vezes quase mágico, em poemas como o “Impro­ em lugar de “certo”, no verso:
viso para Norman Fraser”.
Pelo manejo virtuosístico da técnica, aliado à submissão à "ditadura nítido, fino, íntegro, certo,

do imaginário”, a que se referiu Hugo Friedrich61, Cecília Meireles conse­


guiu nessa composição transfigurar a morte em beleza - outro procedimen­ E o belo verso “musicalmente descoberto” - que, afinal, parece con­
to recorrente em sua poética, encontrado em alguns de seus poemas como ter a chave da alusão ao manejo dos talheres à maneira de um instrumento
“Pássaro", do mesmo Retrato Natural: musical - ainda aparecia na forma, bastante inferior, de “fóssil do seu pró­
prio mistério”. Verso que perdeu em transcendência para ganhar em valor

6 0 . Damasceno, op. cit., p. 26.


62. Carta a Cortes-Rodrigues, 10 jun. 1946, op. cit.
6 1 . Hugo Friedrich, op. cit., pp. 12 e ss.
1)2 PEN SAM ENTO E ‘ L IR IS M O P IR O " NA PO ESIA DE C E C IU A M EIR ELES

3
sugestivo e estético. O que sugere que a composição não foi tão improvisa­
da assim.

A transfiguração do sensível por vezes é tão forte na lírica ceciliana que


abstrai quase todo resquício da experiência para, como no descarnamento do
DA TRANSFIGURAÇÃO À REINVENÇÀO
peixe, deixar apenas o irredutível. E o caso do poema “Leveza” : “Leve é o
pássaro: / e a sua sombra voante, / mais leve. (...]” - o qual, segundo se vê
A arte “se situa no mesmo âmbito ao lado da religião
em sua correspondência, trata de uma cortina de tule ou voil onde ela mesma
e da filosofia. Em todas as esferas do espírito absoluto,
aplicara os pássaros de cetim que haviam restado de uma velha colcha. Ou de
o espírito se desobriga dos limites estreitos de sua
“Os Dias Felizes”, conjunto de poemas anexados ao fim de Mar Absoluto, existência, na medida em que, a partir das relações
escritos durante breve temporada numa espécie de spa da época, para se contingentes de sua mundanidade e do Conteúdo finito
recuperar do cansaço, série que inclui versos notáveis como: “Todas as pala­ de seus fins e interesses, se abre para a consideração e
vras são inúteis, / desde que se olha para o céu.” (poema que dá título à série). execução de seu ser em -si-e-para-si”.
G.W .F. Hegel '
O cotejo de sua prosa com poesias sobre uma mesma experiência também é
ilustrativo - como no caso das crônicas “Instantâneo de Pampulha” e a “Ba­
lada das Dez Bailarinas do Cassino”, de Retrato Natural, ou de “As Belas e a
Feras” e o poema póstumo “Corrida Mexicana”, entre tantos pares possí­ N EG A Ç Ã O D O SE N SÍV E L
veis61. É como se, no registro poético, a experiência apenas lhe disparasse a
Enquanto no primeiro poema atrás analisado o mundo sensível foi
intuição para o ato transfigurador. Procedimento que a escritora terá herdado
observado e transfigurado pelo olhar lírico e, no segundo, evocou uma
do romantismo alemão, e talvez ainda de Mallarmé, o poeta que “levou mais
experiência que o sujeito poético sensorialmente metamorfoseou e fruiu,
longe” o projeto de transfiguração do real herdado daquele movimento6364.
em “Reinvenção" (Vaga Música, 1942) depara-se com uma oportunidade
singular de sondagem de um outro procedimento recorrente na poética
ceciliana: a negação da realidade, do mundo sensível, ou a denúncia deste
como acidental ou ilusório.

Talvez em pensar que exista


vá sendo eu mesma enganada,

diz uma “Canção” de Mar Absoluto (1945).

[...] no território dos mitos,


fica a memória
mirando a forma ilusória
dos precipícios
da humana e mortal história.
6 3 . "Instantâneo de Pampulha", Crônicas de Viagem-1, op. cit„ pp. 215-220; “As Belas e
as Feras", idem, p. 1-6.
6 4 . Cf. Albert Béguin, L'Âme romantique et le rêve, 1991. sobretudo p. 518. G. W. F. Hegel. Cursos de Estética, 1999. p. 110.
94 PEN SA M EN T O E "L IR IS M O PURO* NA POESIA 1)E C E C ÍL IA M EIRELES
DA TRAN SFIG l'R AÇ A O A REINVENÇÃO 95

escreve, no oitavo segmento de O Aeronauta, a autora do poema “Irrealidade”, lro dei mundo ou da vida es sueno, presentes em autores como Calderón de la
de Mar Absoluto, e de versos como “E é tudo ilusão” (Canções, n. 6). E que Barca?
ainda reitera, em “Mulher ao Espelho”, da coletânea de 1945:
Reinvenção
[...] se tudo é tinta: o inundo, a vida,
o contentamento, o desgosto? A vida só e' possível
reinventada.
e em “Desejo de Regresso”, daquele mesmo livro, duvida:
Anda o sol pelas campinas
e passeia a mão dourada
[...] Marinheiro de regresso pelas águas, pelas folhas...
com seu barco posto a fundo, Ah! tudo bolhas
às vezes quase me esqueço que vêm de fundas piscinas
que foi verdade este mundo. de ilusionismo... - mais nada.
(Ou talvez fosse mentira...)
Mas a vida, a vida, a vida,
Em “Reinvenção”, ao conceito inscrito no dístico inicial - retomado a vida só é possível
reinventada.
no meio e no fim do poema - sobrepõem-se e justapõem -se imagens do
mundo visível. Nota-se, entretanto, desde logo que tais imagens são imedia­ Vem a lua, vem, retira
tamente desfeitas por outras imagens. Diversamente das outras duas com­ as algemas dos meus braços.
posições analisadas, “Reinvenção” é um poema onde também se pode Projeto-me por espaços
flagrar o que atrás se chamou de “inespacialidade”, de ausência de localiza­ cheios da tua Figura.
Tudo mentira! Mentira
ção espacial e também temporal definida. E como se a poeta voltasse os
da lua, na noite escura.
olhos para além do mundo dos fenômenos, criando uma paisagem abstrata,
puramente mental. Não te encontro, não te alcanço...
Segundo Mircea Eliade, para o pensamento hindu - no budismo, nos Só - no tempo equilibrada,
Vedas, no Yogi - “tanto o nosso mundo como nossa experiência vital e desprendo-me do balanço
que além do tempo me leva.
psicológica são os produtos mais ou menos diretos da ilusão cósmica”,
Só - na treva,
simbolizada na imagem dialética do Maya. Esta, diz Eliade, consiste em fico: recebida e dada.
uma “fórmula posta em imagem para exprimir a realidade ontológica, tan­
to do mundo como de toda experiência hum ana”, uma vez que “nem o Porque a vida, a vida, a vida,
a vida só é possível
mundo nem a experiência humana participam do Ser absoluto” . Isto é, para
reinventada.
o pensamento indiano aí simbolizado “a experiência no mundo e na Histó­
ria é desprovida de validade ontológica” 1. Além da referida negação das imagens do mundo sensível, desde as
Em “Reinvenção”, o procedimento semântico de negar a realidade do primeiras leituras chama também a atenção a incidência hiperbólica da
mundo fenomenológico ressoará, como em “Por Baixo dos Largos Ficus”, repetição: a palavra vida surge nove vezes (na terceira e na última estrofes
uma vez mais a tradição místico-filosófica hindu e budista? Ou trará resso­ em quádrupla freqüência); só, treva e tempo aparecem duas vezes e o adje­
nâncias, também como naquele poema, dos tópicos seiscentistas do gran tea- tivo primordial do poema (reinventada), três; os verbos ser e vir também se
repetem. Há, ainda, recorrência de versos e mesmo de estrofes (os dois
tercetos são quase paralelísticos, mudando a conjunção adversativa em cau­
I. Mircea Eliade, Mitos, Sonhos e Mistérios, 1989, pp. 48-51. sai na segunda ocorrência).
96 PEN SA M ENTO E "L IR IS M O P I R O ' NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M E IR E L E S DA T R AN SFIG l RAÇAO A REINVENÇÃO 97

A repetição abusiva no plano lexical empresta tom maior à composi­ mundo inteligível”, onde “no limite do cognoscível” é possível avistar “a
ção e conota o entusiasmo de que o sujeito poético está tomado, levando a idéia do Bem”, causa suprema de "tudo o que há de justo e belo”2.
pensar na tradição platônica do poeta em êxtase ou delírio, tomado pela
possessão divina, que, nos diálogos Fedro e íon, Platão retoma de Homero. Mais ousado do que Aristóteles [...] Platão teria abandonado “o mundo dos sentidos
Neste último diálogo, Sócrates argumenta com o rapsodo íon de Éfeso porque este põe limites muito estreitos ao entendimento", lançando-se, “além deles, nas
acerca da musa que inspira os poetas. Estes perderíam o autodomínio quan­ asas das Idéias, ao espaço vazio do entendimento puro”. Em seu vôo arrojado, Platão teria
pressentido uma realidade diferente da empírica, um mundo supra-sensível, que não pode
do escrevem e, como as bacantes, seriam agitados pelo transporte divino2.
ser decifrado pela simples ação de “soletrar os fenôm enos”,
A negação do sensível no plano semântico e ao tom de entusiasmo
conferido pelas recorrências é possível agregar-se a constatação de dualismo
interpretou Kant4.
ou jogo dialético polarizado nas duas imagens-eixo e antitéticas do poema,
Essa é uma das categorias de limite que a poesia ceciliana recorrente­
inseridas nos dois primeiros sextetos - a primeira personificando o sol, na
mente procura romper. E no espaço do “entendimento puro”, do supra-
segunda estrofe; a segunda personificando a lua, na quarta. É, contudo,
sensível, onde, em inúmeros poemas ao longo dessa obra, o sujeito poético
principalmente o exame das palavras com que a poeta teceu o texto que
procura adentrar. É como se no espaço em branco da folha onde escreveu
acaba por sugerir a possibilidade de tentar-se, desta vez, diretamente o
suas poesias a poeta, por via dos símbolos ou de alegorias, buscasse suprir
recurso à metafísica platônica para a análise.
a insuficiência ou ausência de ideal no mundo das realidades concretas em
A presença das palavras sol e lua, bem como de noite; a alusão ao
que viveu. E é esse abandono da tarefa de “soletrar os fenômenos” que
reflexo do sol nas águas na primeira imagem; o recolhimento do eu lírico
parece conferir a poemas como o aqui estudado o já referido caráter de
na treva; e, mais do que todas, a palavra algemas, eixo de uma das imagens
“inespacialidade” e “intemporalidade” - de abstracionismo lírico, em suma.
primordiais - são indícios já suficientes para se procurar 1er esse poema de
São poemas como que brotados na ausência de qualquer estímulo externo,
modo intertextual com a Alegoria da Caverna constante do diálogo platôni­
desprendidos de qualquer experiência identificável do mundo empírico,
co A República, com a qual trama um diálogo alegorizado ou uma paráfra­
em que a construção mental esvazia “de consistência o mundo dos fenôme­
se poética.
nos, tal como é "dado’ ao senso comum”5. Será ainda oportuno recordar
Nessa alegoria, com que Platão ilustra a teoria das Formas ou das que alguns autores consideram Platão um precursor da arte abstrata6.
Idéias e revela os obstáculos antepostos à investigação da verdade, homens Muito diversamente de representar uma realidade dada ou captada do
algemados, habituados às trevas ambientes, iludem-se ao conferir realidade mundo visível, em “Reinvenção” Cecília Meireles contrapõe o ideal metafí­
a objetos que são apenas a sombra de objetos reais presentes no mundo das sico da união da alma ao Ser - que, afinal, vinha perseguindo desde a obra
idéias. Aí Sócrates cogita que um desses homens fosse conduzido até a luz de juventude, com Poema dos Poemas; Ser que, em “Reinvenção”, está
do sol - astro que “tudo dirige no mundo visível” e que corresponde no platonicam ente sim bolizado no sol e na dem iúrgica “tua Figura” - à
plano sensível ao Bem existente no mundo supra-sensível - , começando a
constatação da impossibilidade de acesso ao plano inteligível ou divino. A
princípio por mirar a imagem do astro na água até poder fixar os olhos no
poeta que no poema “Serenata” enunciou
mundo superior. A seguir, essa mesma pessoa poderia “contemplar o que há
no céu, durante a noite”, olhando para as estrelas e a lua, para então regres­
sar às antigas ilusões que a acorrentavam ao mundo visível. Sócrates com­
para o mundo sensível à “caverna da prisão” - isto é, a vida apreendida 3. Idem, A República, 1996. Livro VII. 514a 518b. (D evo ao professor dr. João Adolfo
pelos sentidos - e a luz da fogueira existente naquela gruta à “força do sol”, Hansen, em meu exame de qualificação, boa parte do estímulo para pesquisar o platonis-
esclarecendo que a saída da caverna corresponde “à ascensão da alma ao mo na poética de Cecília Meireles.)
4. Cf. Márcio Suzuki. O Gênio Romântico, 1998. p. 29.
5. Rubens Rodrigues Torres Fo., "O Sim bólico em Schelling”, Ensaios de Filosofia Ilus­
trada, 1987, p. 144.
2. Platão, ton, 1947, principalmente 533d-e e 534a-e; Fedro, 1962. 244-243. 6. Pierre Maxime Schuhl, Platon et l'art de son temps, 1952, p. XX.
98 PEN SAM ENTO E “L IR IS M O P I R O " NA POESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES DA I R A N S IK .lR A Ç A O A REINVENÇÃO 99

Permite que volte o meu rosto "Reinvenção” a entrega, em plena solidão do eu poético, é acompanhada de
para um céu maior que este mundo. um projeto inconformista, reiterado no conceito triplamente repetido ao
( Viagem) longo do poema:

renuncia, em “Reinvenção”, ao anseio de transportar-se do plano terreno ao A vida só é possível


mundo dos arquétipos, conforme está exposto na teoria platônica das Idéi­ reinventada.
as. Percebe o caminho da transcendência e do sublime como interdito.
“Nenhum poeta ainda cantou nem cantará a região que se situa acima dos O animus réitérante e a pictórica recorrência da palavra “vida” pode­
céus”, diz Platão no mito da parelha alada, no diálogo Fedro. Na “impossi­ rão ecoar, além do referido entusiasmo platônico, o próprio princípio vital
bilidade de se elevarem até a contemplação do Ser Absoluto”, as almas a que a poeta, nesse como em outros poemas, aludiu, como no primeiro
“caem e a sua queda as condena à simples Opinião”. Isto é, restam conde­ segmento de Solombra: “onde as palavras são conchas secas, bradando / a
nadas à dúvida ou ao “erro” das paixões7. vida, a vida, a vida!” . Ou
Como que glosando Platão, Cecília Meireles busca recorrentemente
contemplar ou dialogar com o Ser (ou Deus, nomeado em múltiplos poe­ A serviço da Vida fui
mas), porém o percebe "Calado”, como diz em “Tentativa” (Viagem). A a serviço da Vida vim; [...]
(“Epigrama” / Vaga Música)
epifania não se cumpre, e os versos que se seguem são carregados de silêncio.
Isto é, o sujeito poético bate, também recorrentemente, com a inviabilidade
e que se mostra ancorado no mundo sensível, o qual sensorialmente capta e
da transcendência e imerge na dúvida - a qual, tanto quanto a procura do
frui em tantos outros poemas. A vida cotidiana, abstraída em “Reinvenção”,
Absoluto, atravessa toda a sua lírica.
não permite, afinal, a separação entre aparência e realidade, entre essência
Ai! por mais que se ande, é certo:
e existência, diversamente da dissociação que Platão dialeticamente opera
- não se encontra o hem perfeito. em seus diálogos. E como se nos versos conceituais do poema - A vida só
ép o ssível/ reinventada - , diante da impossibilidade do ideal de um conhe­
E entre o desejado e o aceito cimento verdadeiro, a poeta aludisse à “filosofia da vida” interposta por
dorme um horizonte encoberto. Nietzsche à metafísica socrática e platônica. “O dizer-sim à vida, até em
(“História” , Viagem)
seus problemas mais estranhos e mais duros, a vontade de vida, [...] foi isso
que denominei dionisíaco, foi isso que entendi como ponte para a psicolo­
Suas palavras, nesses intentos, são, como diz no poema justamente
gia do poeta trágico”, esclareceu Nietzsche, para quem “a arte tem mais
intitulado “Diálogo” (Viagem), “a metade de um diálogo obscuro”.
valor do que a verdade”8.
No poema em análise, o sujeito poético, depois de recuar dessa busca,
Em suas imagens, “Reinvenção” encerra uma reflexão dialética acer­
aceita complacentemente circunscrever-se ao sensível - ao plano da “Opi­
ca da aparência e da essência, do sensível e do inteligível - conforme o
nião” - , já que a aspiração ao acesso ao plano transcendente é entendida
significado que atribui Platão a tais palavras - e dessa tensão primordial
como viveiro de miragens e enganos (“piscinas de ilusionismo” ). Subordi­
entre apolíneo e dionisíaco. A própria construção do poema repercute o
na-se ao refúgio “na treva” - o ilusório da vida dos sentidos a que alude
dualismo platônico ao mesclar o conceituai, que se abriga nos versos sobre
Platão - , que a acolhe e à qual se dá. Em outro poema de influxo platônico,
a “reinvenção” da vida, e as imagens do mundo visível. Preso a este, o
“Rimance” ( Vaga Música), refere-se ao próprio corpo que não lhe “servia /
sujeito poético arrisca servir-se das metáforas que constrói como transporte -
senão para ser escrava”, outra ressonância da caverna platônica. Mas em

7. Platão. Fedro, op. cit., 247-248. 8. Friedrich Nietzsche, “Sobre O Nascimento da Tragédia", 1999, pp. 47 e 50.
100 PEN SA M E N T O E “1.IR1SMO PU RO" NA PO ESIA DE C EC ÍL IA M E IR E L E S DA I RANSKK.l RAÇÃO A REINVENÇÃO [UI

que se frustra - do sensível ao supra-sensível, onde habitará a já coloquial tudo dirige no mundo visível, e que é o responsável por tudo aquilo de que
"tua Figura” (um dos significados dicionarizados dessa palavra é a forma eles viam um arrem edo"11.
imaginária que se dá aos seres metafísicos). Busca um diálogo com o Ser, o Na imagem ceciliana, o procedimento reitcrativo (e exclamativo) é
que lucidamente reconhece inviável. Almeja, em suma, uma “visão” ou duplo, como foi dito, voltando a incidir na rejeição da imagem da lua -
uma “intuição i ntelectual” - forma superior de conhecimento - das “Essên­ cuja aparição no poema o sujeito poético a princípio chegou a julgar capaz
cias” que têm por princípio “a idéia do Bem”, conforme está exposto nos de libertá-lo, a ponto de impulsionar projetar-se pelos espaços onde habita­
diálogos Fédon, Banquete e República9. riam o Ser, Deus, as Idéias (ou “tua Figura") - , dando insistentemente
conta a seguir de que se tratava de
- eu procuro o que não se avista,
dentre os fantasmas da esperança! Tudo mentira! Mentira
[...] da lua, na noite escura.
e eu só conheço a tua ausência.//
Eu só conheço o que não vejo.
O aproveitamento aqui da convenção literária da “noite escura”, en­
contrada nos textos platônicos e neoplatônicos, presente desde a Teogonia,
clama o sujeito lírico em "Personagem” / Viagem.
de Hesíodo, e em autores da poesia mística espanhola do século XVI, como
Em “Reinvenção”, a poeta, como que parafraseando no plano da for­
San Juan de la Cruz - no poema “Noche Oscura dei Alma” este, entretanto,
ma o que está dito na Alegoria da Caverna - para a alma que tentou ascen­
faz ressoar a tradição mística cristã, e nele a alma logra alcançar a união
der ao mundo inteligível “as perturbações visuais são duplas, e por dupla
com Deus, no plano alegórico - , encerra outra recorrência da poética no­
causa, da passagem da luz à sombra, e da sombra à luz” 10 - , faz reverberar
turna ceciliana12. Vale lembrar que para Schiller a escuridão é apropriada
o jogo duplo de imagens em justaposição ao conceito. Nos dois primeiros
ao sublime, uma vez que nos entrega “ao pleno poder da imaginação” 13.
sextetos, em cada par imagético a segunda imagem desfaz a anterior. No
Mas, enquanto para o místico católico a escuridão da noite simboliza, con­
primeiro caso, a imagem personificada do sol é desfeita pelos versos
forme observou Carpeaux, as trevas do pecado ou “a ignorância das coisas
divinas no homem caído” IJ, a noite escura ceciliana emerge como ocasião
Ah! tudo bolhas
que vêm de fundas piscinas propícia, seguida da constatação de impossibilidade, de acesso ao insondá-
de ilusionismo... - mais nada. vel metafísico, à transcendência ao mundo inteligível ou divino a que se
refere Platão. Tanto que resta ao sujeito poético comprazer-se em “reinven­
- imagem, introduzida pela interjeição “Ah!”, que acusa a irrealidade da tar a vida” de todo dia, e laica15. A própria poeta demarca as diferenças com
metáfora anterior, procedimento ainda reforçado pelo sintagma, recorrente os místicos católicos em vários poemas:
na poética ceciliana, “mais nada”. A imagem inicial

Anda o sol pelas campinas


e passeia a mão dourada 1 1. Idem, 516b.
pelas águas, pelas folhas... 12. Ver, entre outros, os poemas “Noite” e “A ssovio”, de Viagem; “Mulher Adormecida” e
“N oite”, de Mar Absoluto; “Doze Noturnos da Holanda”; “Som da India”, de Poemas
é, assim, como “bolha”, desfeita pela imagem que se justapõe. Em A Repú­ Escritos na India.
13. Friedrich Schiller, “Do Sublim e”, 1997, p. 157
blica, Platão enuncia acerca do sol “que causa as estações e os anos e que 14. Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental, vol. 2, 1960, p. 999.
15. Conforme abordado no capítulo 1, Cecília Meireles foi crítica ferrenha da Igreja católica
de seu tempo. Quanto a seu “laicismo”, convém lembrar, entre tantos outros textos, tre­
9. Particularmente em A República, op. cit., Livro VII, 534c. cho de uma carta sua ao escritor açoriano Armando Cortes-Rodrigues em que, num tom
10. Platão, A República, Livro VII, op. cit., 518a. muito bem-humorado, afirma: “V. que é devoto, queridinho de Deus, primo dos anjos.
102 PEN SA M EN T O E “L IR IS M O P U R O ' NA POF.SIA DE C EC ÍL IA M EIR ELES I)A TRANSFIGURAÇÃO À REINVENÇÃO 103

Se nao vou ser santa [...] aspiração ao sublime e a especulação místico-metafísica, embora ao poê­
os sonhos de todos por que não me dão?
la, que se insurge contra o “espírito de rebanho”, ela só seja “possível” se
transfigurada19.
diz ao “Calado” em “Tentativa” (Viagem).
O procedimento de desfazer as imagens com outras imagens estaria,
ainda, aludindo à crítica de Platão ao poeta “fazedor de imagens” ou, na
R E IN V E N Ç Ã O D O R EA L
quarta estrofe, literalmente ao “poeta mentiroso” 16, ainda que à “mentira” o
sujeito poético, aqui, seja arrastado pela “noite escura” da ilusão. Aludin­
Os versos conceituais do poema não aludirão apenas à nietzschiana
do, em síntese, à condenação platônica da poesia e da arte como reprodu­
afirmação da existência. Convém aqui lembrar que, face à insatisfação com
ção de imagens sensíveis da realidade aparente, a qual se reduziría a meras
o contexto real, a reinvenção da realidade ou a criação de um mundo ima­
“sombras” do mundo real das idéias. Segundo Platão a obra do artista esta­
ginário é, depois da primeira Revolução Industrial e desde o romantismo,
ria, assim, afastada em grau ainda maior da Idéia ou da Forma do que os
palavra de ordem na criação poética, o que pode ser sintetizado na fórmula
objetos do mundo sensível17. Condenação, afinal, considerada, mas com
de Novalis: “quanto mais poético, mais verdadeiro” .
certeza não endossada por poetas como Cecília.
Diante da impossibilidade de transcendência, o sujeito poético, além
Sob a influência do idealismo filosófico de Fichte, que afirmara o Eu como realidade
de desfazer as próprias imagens (embora com outras imagens), equilibra-se absoluta [...], Novalis recusa o mundo empírico, efêmero e ilusório, e erige-se em demiurgo
“no tempo” da vida humana, desprendendo-se do “balanço”, que simboli­ de um mundo fantástico, pura criação da magia poética. [...] O poeta é o vidente que conhe­
zaria o élan, o ritmo - ou o “transporte divino” que agita o fazer dos ce o sentido oculto das coisas e dos seres, que desposa o mistério, penetra no absoluto e
poetas, a que alude Platão no íon e no Fedro -, com o qual ela pretendería reinventa a realidade.
adentrar o inteligível, e sobrepondo aos versos metafóricos o conceito já
enunciado no dístico inicial. contextualiza Aguiar e Silva em sua Teoria da Literatura. Desde o século
XVIII, a poesia libertou-se do “princípio da imitação” e de qualquer “res­
Só - no tempo equilibrada, ponsabilidade” relativa ao mundo empírico, afirma o teórico. “Mudar a vida
desprendo-me do balanço pelo espírito”, gritou Rimbaud quase às portas do século XX2". E esse projeto
que além do tempo me leva. estético idealista - que encerra a “rebeldia” do ato criador “perante os mode­
los da realidade”, herdado do romantismo, transfigurado no simbolismo e
O sujeito poético “desperta” do “delírio” provocado pelas próprias que iria desaguar no modernismo - que o sujeito poético estará explicitando
imagens em que tentou se deixar em balar - a do brilho do sol e a da enfaticamente nas estrofes conceituais de “Reinvenção”: “A vida só é possível
escuridão da noite - , quando a elas sobrepõe o conceito. Suspende o jogo / reinventada”. Em seu projeto de transfiguração e de reinvenção do real, de
alegórico, arte da invenção (ars inveniendi), conform e a poesia barroca18, rebeldia contra a representação orgânica ou mimética da natureza, ou da
para, com resignação estóica, propor-se a “reinventar” orficamente a vida. experiência, Cecília Meireles parece ter acolhido como poucos de nossos
Em suma, a vida é mais importante do que a alegoria poética, do que a poetas do período modernista esse recado, como se vê no poema em análise.
Em seu estudo da filosofia de Friedrich Schlegel, Márcio Suzuki formula
que o “programa” do romantismo postulou que a “artificialidade” da constru-

veja se arranja perdão para o meu laicismo. só para eu dar uma corridinha até o céu, ver
as pessoas que amei e voltar outra vez para onde tiver de ser" (31 de maio de 1948).
16. Platão. A República, op. cit., Livro II, 382d e ss. 19. Afinal, assinalou a escritora em um artigo da década de 1940: “[...] a vida não pode ser
17. Idem, Livro IX, 595a. apenas esta irrupção intermitente de guerras, de assaltos, de cativeiros, de vilipêndios”.
18. Ver João Adolfo Hansen, Alegoria, op. cit.. sobretudo pp. 72-83; e também Walter "Carta dei Brasil". Realidad. 1947, p. 104.
Benjamim, Origem do Drama Barroco, op. cit., p. 67. 2 0 . Vítor Manuel de Aguiar e Silva, Teoria da Literatura, 1974, pp. 146-147.
104 PEN SA M E N T O E “L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES DA TRANSFKil RAÇÀO A REINVENÇÃO ll>r>

ção filosófica deveria ser “‘devolvida’ à vida, transformando-se em obra de Proposta de “renovação” e de “transformação” que pode ser flagrada
arte"2'. O que remete aos tempos antigos, em que não existia fronteira entre a em “Reinvenção”. A composição é tecida em setissílabos - medida talvez
poesia e a ciência. Princípio que também permeia parte considerável da poesia preferencial da poeta - , com o tríplice recurso ao quadrissílabo e, uma vez,
metafísica ceciliana, praticada como um meio de acesso a uma “verdade ao trissílabo. As estrofes variam do dístico ao sexteto e ao terceto, dispostos
supraterrena”21223.2Ou, conforme a lição de Schelling, como processo de conheci­ arbitrariamente na página. As rimas também incidem de modo irregular. O
mento, conforme ainda em 1939 reconhecera Mário de Andrade, em análise emprego de imagens audazes e antitéticas - nesse poema, são elas que abri­
memorável do poema “Eco”, que depois integraria o livro Vaga Música. gam as correspondências com a caverna platônica - e o hiperbolismo das
repetições também encobrem ressonâncias estilísticas, como se verificou
Eis o que me soa como definição do mais íntimo sentido de poesia [escrevia Mário no poema anteriormente estudado, do conceptismo do chamado Século de
de Andrade depois de transcrever o poema]. A nossa grande poetisa busca penetrar os Ouro espanhol25. Trata-se de um poema de menor musicalidade do que os
arcanos do simples animal [...]. Cecília Meireles, pela sua força lírica de conhecimento, anteriormente abordados, porém a simplicidade deliberada da sintaxe e da
ainda unifica nisso os homens aos irracionais [...] nos identificando a todos, nessa mesma
construção e a economia epigram ática de palavras - que em 26 versos
tristeza de buscar um eco, um sentido, uma identidade maior. [...] com uma escolha inven­
tiva extraordinária, ela caracterizou o trágico de nossa insolubilidade | curtos logra evocar o texto bem mais prolixo da alegoria platônica - são
similares. O que leva a pensar no que diz Bachelard no ensaio “Instante
Desde a primeira fase da maturidade poética ceciliana, Mário nela per­ Poético e Instante M etafísico” :
cebera essa importante vertente da busca de identidade ontológica e de irre­
mediável inquietação metafísica que atingiría seu cume em Solombra ( 1963). Enquanto todas as experiências metafísicas são preparadas por intermináveis prólo­
gos, a poesia recusa preâmbulos, princípios, métodos, provas. [...] A meta é a verticalidade,
Já o poema aqui em análise, que enfeixará, nos sextetos, ressonâncias
a profundeza ou a altura; é o instante estabilizado no qual as simultaneidades, ordenando-
dialógicas com o poeta-filósofo clássico e, nas estrofes conceituais, aludirá se, provam que o instante poético possui perspectiva metafísica26.
ao mesmo tempo à nietzschiana reafirmação da vida e ao idealismo herda­
do do programa romântico - neste caso tanto ao explicitar o projeto de E, como foi dito, por via das imagens sensíveis, sem preâmbulos
“reinvenção” da vida como ao convergir para a confluência de poesia e conceituais ou retóricos, que a poeta alcança evocar a dialética platônica. E o
filosofia - , também encerra uma alusão à concepção ceciliana do fazer aproveitamento da tradição aqui também é operado com liberdade, com o
poético, entendido como reinvenção órfica da tradição. Apesar da referida recurso a palavras triviais - embora algumas carregadas de ressonâncias da
discrição sobre sua própria escrita - no que diferiu de número considerável Alegoria da Caverna. Aproveitamento da tradição que se faz, em suma, não
de poetas de seu tempo - , algumas vezes ela chegou a abordar o assunto. como submissão a cânones, mas com verdadeiro livre-arbítrio, como instru­
Um exemplo é o já mencionado discurso preparado para a recepção, em mento de expressão de uma leitura pessoal das idéias do filósofo grego.
1938, do prêmio da Academia Brasileira de Letras concedido ao livro Via­ Observa-se ainda no poema a tensão entre o ilimitado, configurado
gem. Nesse texto, que, sem ter chegado a 1er, ela divulgou à imprensa na no anseio ou ideal de ultrapassar o limite do “ilusionismo" do mundo sen­
época, Cecília Meireles cumprimentou aqueles que haviam votado "com os sível e de adentrar o absoluto, no plano semântico, e a contenção da métri­
que renovam, contra os que destroem ou estacionam (...]. com os mais ca, reaproveitada da tradição, no plano da forma. E como se, diante do
modernos [...] que não desprezam a tradição, mas que a transformam”24. hiperbólico projeto de alçar-se ao ilimitado do mundo supra-sensível, a
poeta se agarrasse ao terreno seguro da contenção rítmica e métrica, ao
fôlego econômico do verso mais tradicional da língua. Essa tensão entre a

21. Márcio Suzuki, op. cit., p. 97.


22. José Guilherme Merquior, “Poesia para Amanhã: Metal Rosicler", I960.
23. Mário de Andrade. “C ecília e a Poesia”, O Empalhador de Passarinho, 1972, p. 73.
24. A íntegra do texto está em Cassiano Ricardo. A Academia e a Poesia Moderna, 1939, 2 5 . Cf. Arnold Hauser, Literatura y Manierismo, 1974, p. 95.
pp. 1 7 5 -1 8 0 . 2 6 . Gaston Bachelard, O Direito de Sonhar, 1991, pp. 183-184.
106 PEN SAM ENTO E “L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES DA 1R ANSfltU lRAÇAO A REINVENÇÃO

busca do infinito e do absoluto metafísico, no plano semântico, e a conten­ mimética, diz o poeta-filósofo que os “imitadores” podem executar suas
ção da forma e do ritmo é, como já se aludiu em análise anterior, recorrente obras “sem conhecer a verdade, porquanto são fantasmas c não seres reais o
na lírica ceciliana, chegando por vezes ao paroxismo, como se verifica no que eles representam” . Daí adviria a necessidade de supremacia da filosofia
extraordinário poema “Destino”, do livro Viagem. Vazado em hendecas- sobre as formas de criação artística e mitopoética, já que os poetas, ainda
sílabos petrarquistas e dissílabos, nele a “pastora de nuvens”, flutuando em quando inspirados pela divindade, podem interpretar mal suas mensagens31.
“móvel prado, sem noite nem dia”, opera, de modo paradigmático, o rigor Em outro trecho daquela conferência, registrou Cecília:
do pastoreio da forma2728.É como se em poemas como este se pudesse flagrar
A voz irreprimível dos fantasmas, que todos os artistas conhecem, vibra, porém,
a tensa coexistência da vigília apolínea da construção com os excessos
com certa docilidade, e submete-se à aprovação do poeta, como se, realmente, a cada ins­
dionisíacos de ideal no nível semântico. O que também dá conta do dilace- tante lhe pedisse para ajustar seu timbre à audição do público. Porque há obras que existem
ramento do eu lírico entre imagem e conceito, entre lirismo e razão. apenas para o artista, desinteressadas de transmissão; outras que exigem essa transmissão
Em “Reinvenção”, outra alusão ao fazer poético consiste no papel do e esperam que o artista se ponha a seu serviço, para alcançá-la. O Romanceiro é desta
“transporte divino” ou da “inspiração” - ao qual platonicamente referiría segunda espécie12.
aqui a palavra “balanço” - em sua poética. Parece paradoxal que uma auto­
- aí assegurando o comando do poeta em acolher ou rejeitar “fantasmas”,
ra de tão ostensiva lucidez técnica e de construção, embora entendendo a
em fazer coexistir pensamento e lirismo.
arte poética orficamente “como mistério” e como “vidência”2s, pudesse
acolher a idéia platônica de "delírio poético inspirado pelas Musas”, con­
forme está no Fedro: “[...] quem se aproxima dos umbrais da arte poética A L E G O R IZ A Ç Ã O PL A T Ô N IC A
sem o delírio que as Musas provocam, julgando que apenas pelo raciocínio
será bom poeta, sê-lo-á imperfeito, pois que a obra poética inteligente se Em “Reinvenção” - que estaria, assim, na categoria dos poemas me­
ofusca perante aquela que nasce do delírio”2930. nos interessados de “transmissão” - , a analogia com a Alegoria da Caverna
A esse tópico Cecília Meireles se referiu com relativa largueza na remete ainda à linguagem alegorizante de fundo platônico que perpassa
conferência “Como Escrevi o Romanceiro da Inconfidência ”, pronunciada grande número de poemas cecilianos.
em 1955, em que se deteve no modo de composição de todo o poema.
Nesse texto, em que agora se pode perceber platonismo subentendido, ela Não precisaremos falar mais nem sentir;
se referiu ao “apelo” de seus “fantasmas": “Os fantasmas sabiam, certa­ seremos só de afinidades: morrerão as alegorias,
mente, o que queriam dizer; mas o artista deve sempre desconfiar de sua
diz a poeta em “M edida da Significação”, do livro Viagem.
capacidade de entender essas inspirações que se referem a motivos determi­
Em sua concepção romântica da alegoria, Schelling esclarece que a
nados, e contêm uma verdade íntim a” '11. Parece tratar-se quase de uma
exposição “na qual o particular significa o universal, ou na qual o universal é
paráfrase do que Platão, desta vez contradizendo-se em relação ao Fedro,
intuído através do particular, é alegórica Segundo João Adolfo Hansen,
chega a dizer na República. Nesse diálogo, condenando a representação
em sua análise das teorias da alegoria, esse tropo subentende a afirmação de
“uma presença in absentia ”, procedimento retórico que “se exacerba nos
séculos XVI e XVII maneirista e barroco”, operando por analogia. Pode, em
2 7 . Devo consideravelmente a percepção da tensão limite/ilimitado na poética ceciliana a síntese, concretizar abstrações, “tornando-as mais ‘fáceis’”'4.
colocações do professor dr. Davi Arrigucci Júnior, especialmente em meu exame de
qualificação, em 5 de julho de 2000.
2 8 . Cf. o já referido discurso à Academia Brasileira de Letras, em Cassiano Ricardo, op. cit.,
p. 179. Ver também da autora as conferências “A Bíblia na Poesia Brasileira”, s.d., par­ 3 1 . Platão, A República, op. cit. Livro IX, 595a.
ticularmente p. 39; e “Religião e Poesia”, 1963, inédita. 3 2 . Cecília M eireles, “Como Escrevi o Romanceiro da Inconfidência ”, op. cit., p. 22.
2 9 . Platão, Fedro. op. cit., 245. 3 3 . Torres Fo, “O Sim bólico em Schelling”, op. cit., p. 131.
3 0 . Cecília M eireles, “Como Escrevi o Romanceiro da Inconfidência", 1989, p. 23. 3 4 . João Adolfo Hansen, op. cit., principalmente pp. 12-17.
1(18 PEN SA M E N T O E "L IR IS M O l’I'R O ” NA POESIA DE ( El II IA M EIR ELES DA T RANSFIGURAÇÃO À REINVENÇÃO 1119

Em “Reinvenção”, a alegoria platônica pôde ser intuída no plano das O que, novamente, remete a Platão - na poesia como meio de conhe­
imagens sensíveis - isto é, nos artefatos da imaginação, “órgão que ocupa cimento, idéia retomada por Schelling - e ainda a toda uma genealogia de
‘o meio’ entre a intuição e o conceito”15. As palavras “sol”, “lua”, “noite”, poetas chamados platônicos ou neoplatônicos, poetas da tradição órfica,
“algemas” e “trevas” revestem-se, no poema, de um sentido oculto, cifra­ que inclui de Petrarca a Milton e Camões, de Frei Luis de León a San Juan
do, de um “significado ausente”, que, conforme procuro expor, permitiram de La Cruz, de Keats e Shelley a Rimbaud e Juan Ramón Jiménez, de
uma interpretação alegórica das imagens como paráfrase ou diálogo com a Mallarmé e Fernando Pessoa a Antonio Machado, e no Brasil possivelmen­
Alegoria da Caverna platônica. No poema em análise, portanto, a reverbe­ te Augusto dos Anjos, Cruz e Sousa, algum Mário de Andrade, um certo
ração dúplice do dualismo platônico, anteriormente referido, volta a incidir Drummond. Poetas que também fizeram da lírica um meio de investigação
no procedimento alegorizante de uma alegoria. do inefável1''. Todos eles, entre os mais prezados pela escritora. Linhagem
Essa linguagem alegorizante de substrato platônico na poesia lírica de na qual penso que a lírica de Cecília Meireles deverá ser inserida - e que
Cecília Meireles - que em um de seus mais conhecidos poemas, “Motivo”, talvez elucide algumas das aproximações especialmente com o também
refere o ideal socrático da alma “nem alegre nem triste” - foi anteriormen­ órfico Fernando Pessoa, as quais a escritora recusou, mas temeu, a ponto
te abordada, de outro modo, em breves ensaios por alguns críticos. Um de afirmar que, por precaução, deixara de 1er a poesia do autor de Mensa­
deles foi Paulo Rónai, que viu platonismo no poema “Mar Absoluto”, do gem desde a organização daquela antologia Poetas Novos de Portugal4".
livro homônimo: “O poema que deu seu título ao volume oferece indica­ Com efeito, é possível rastrear múltiplas “reminiscências” da dialética
ções preciosas para uma viagem através do mundo da poesia. O mar tangí­ e da ética platônicas, de maneira discreta ou mais ostensiva, como é o caso
vel e verdadeiro está para o seu M ar Absoluto como os objetivos da reali­ de “Reinvenção”, ao longo da obra ceciliana. A esta altura, já é possível
dade para as Idéias de Platão”16. Em resenha de M etal Rosicler, José cogitar que o anseio de passagem do sensível ao inteligível e o ideal platô­
Guilherme Merquior também se referiu ao “platonismo” de alguns poe­ nico da união da alma com o Ser ou a divindade tiveram início na obra
mas17. Mas foi o francês André Camlong, em estudo concernente ao livro imatura, principalmente com Poema dos Poemas, anteriormente comenta­
Viagem, quem mais se deteve nas vibrações da dialética de Platão na poesia do, que refletiría não apenas as ressonâncias neoplatonizantes da poesia
de Cecília Meireles. Camlong localiza diálogo com a Alegoria da Caverna mística espanhola e preceitos do budismo como também diretamente a
desde os poemas “Noite”, “Discurso" e "Excursão” daquele livro - e chega dialética metafísica do “sublime filósofo”, conforme chamou Kant ao au­
a dar uma sucinta interpretação do hermético “Medida da Significação”, tor dos Diálogos. Afinal, a dissolução do amante no amado - vale lembrar
em que a poeta, para além das palavras e das metáforas, acusaria a desco­ os versos de San Juan de la Cruz “Oh noche que juntaste / Amado com
berta do caminho do Ser (ou de Deus) “no fundo de si mesma” . Entende amada / amada en el Amado transformada” e o soneto camoniano “Trans­
ainda o ensaísta francês que Cecília Meireles almeja da linguagem a “reve­ forma-se o Amador na Coisa Amada”, tidos como glosa de Petrarca - apa-
lação ao espírito de uma realidade supra-sensível”18.

3 5 . Kant, cf. Torres Fo. “O Sim bólico em Schelling”, op. cit., p. 133. 3 9 . Cf. Otto Maria Carpeaux. História da Literatura Ocidental, op. cit., vários volumes. Para
3 6 . Paulo Rónai. “Mar Absoluto", 1947. Vale assinalar que já o poema seguinte nesse livro, Paul Tannery. Platão só se tornou conhecido na renascença e o platonismo foi quase ex-
“Noturno", em que o sujeito poético navega por “um mar abstrato”, dá continuidade a clusivamente literário nos séculos XVII e XVIII. “Foi a partir do movimento idealista
tais indicações. Já a pesquisadora americana Darlene Sadlier observa que o poema “Mar provocado por Kant que o estudo direto dos escritos do mestre retomou uma real impor­
Absoluto" dialoga, com o "fonte importante”, com “Le Cimitière Marin", de Paul Valéry, tância filosófica", uma ve/, que o neoplatonismo havia encoberto o platonismo. Apud
que “também compartilha da idéia sim bolista derivada da filosofia platônica de um Platão. Diálogos, s.d., p. 51. O estudo Luís de Camões (Antonio José Saraiva, 1972). em
mundo absoluto - mas o qual, na poesia de Cecflia, está longe do ideal”. “ABC de Ce­ que o autor aborda o platonismo do poeta lusitano, também foi de valia para este capítulo.
cília Meireles”, 2001. Sobre platonismo em Drummond, ver José Cavalcante de Souza, “A Reminiscência em
3 7 . José Guilherme Merquior, op. cit. Platão", 1971. sobretudo pp. 59-60.
3 8 . André Camlong. "Réflexion sur la Métaphysique de Cecília Meireles”. 1980, pp. 21-43, 4 0 . 1944. (Já me detive no episódio da interrupção das leituras de Pessoa, com transcrição
principalmente pp. 27 e 24. de carta, em meu estudo biográfico Cecília em Portugal, 2001. p. 73).
110 PEN SA M E N T O E “LIR ISM O PU R O ” NA PO ESIA DE C EC ÍL IA M EIR ELES DA TRANSFIGURAÇÃO À REINVENÇÃO 111

rece no diálogo Banquete: “o amor tende a recompor a antiga natureza, outro vocábulo encontrado recorrentemente, muitas vezes com reminis-
procurando de dois fazer um só, e assim restaurar a antiga perfeição”41. cência platônica, na lírica da autora de Mar Absoluto41'.
Na obra madura de Cecília Meireles, desde os primeiros versos do O procedimento recorrente de colocar “entre parênteses a realidade”, con­
primeiro poema de Viagem (“Epigrama n. 1”), que antecede o mencionado forme disse Carpeaux de Mallarmé citando Husserl47, ou de descarnar a apa­
“Motivo”, pode-se localizar a linguagem alegórica de fundo platônico: a rência de seres, cenas e objetos com o intuito de atingir sua essência, de buscar
canção da poeta “pousa” sobre os “espetáculos infatigáveis” - símile em ­ a realidade ideal sob as camadas do transitório e do efêmero, também refletirá
pregado por Platão em A República, quando se refere à menor realidade a dialética platônica, a qual, segundo expôs o poeta-filósofo grego, consiste
dos “espetáculos da vida” - “imitações imperfeitas” daqueles existentes no num movimento do espírito que, partindo da sensação, permite chegar à con­
mundo inteligível4243; a mesma canção “é flor do espírito, desinteressada e templação das Idéias (ou da verdade). Segundo Platão, é próprio do saber
efêmera”, e ainda alude à teoria platônica da participação - que pode se dialético - “cúpula das ciências” - “apreender a essência de cada coisa”48.
referir à beleza, à bondade, à justiça ou outras virtudes - , mencionada no
As aparências dispersaram-se de mim,
Banquete e reiterada no Fédon: “[...] se existe alguma coisa bela, além do
como pássaros:
belo em si, não pode ser belo a não ser porque participa do próprio belo.
[...] o Belo é que torna belas todas aquelas coisas que o são”, diz Sócrates41.
diz a poeta em “Medida da Significação”, como que voltando o olhar para
E o “Epigrama n .l” de Viagem:
o que apenas pode ser intuído.
Por ela, os homens te conhecerão;
por ela, os tempos versáteis saberão Entre incontáveis poemas em que se pode flagrar esse procedimento,
que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente, conviría lembrar o metafísico "Eco”, de Vaga Música, magistralmente ana­
quando por ele andou teu coração. lisado por Mário de Andrade, conforme abordei anteriormente; e ainda o
extraordinário e estranho "O Enorme Vestíbulo”, do livro Retrato Natural,
Recorrentemente imantada pelo que possui beleza no plano físico ou em que, detendo-se no pórtico de uma festa, o sujeito poético passa a des­
espiritual - segundo Platão, a beleza terrena deve consistir num degrau fiar suas interrogações sobre o destino humano e a fruir “a sombra” do
para que a alma se eleve ao conhecimento da beleza inteligível44- , Cecília evento, até os versos magistrais:
também presta vassalagem ao que é belo, sejam obras de arte, seres huma­
nos ou flores, plantas, insetos e animais, como se vê, entre tantos outros Nas teias de sonho que teço
poemas, na “Elegia a uma Pequena Borboleta”: “para servir-te mel e aroma / - quem fico sendo, em meu limite,
por toda a eternidade escrava!” Segundo Platão no Fedro, a alma se dispõe sem ver meu fim nem meu começo?

a escravizar-se diante do que possui beleza45. Mas é sobretudo no Banquete


que o filósofo discorre longamente sobre o amor ao belo - e se detém na Em muitos poemas, a palavra “sombra”, obsessiva na poesia lírica de
elevação do espírito até a beleza “suprema e perfeita”, “Absoluta” - este Cecília Meireles, emerge com conotação platônica, como em “Os Dias Fe­
lizes” {Mar Absoluto):

Caminhávamos devagar,
41. Platão, Banquete, em Diálogos, 191, p. 141. Ver também Eduardo Lourenço, “Camões”, ao longo desses dias felizes.
Poesia e Metafísica, 1983, p. 17, em que o autor esclarece que esse verso camoniano é
pura tradução de Petrarca.
42. Idem, A República, op. cit., 476d, 529e. 4 6 . Idem, Banquete, op. cit., 211, p. 168.
43. Idem, Fédon, 1999, p. 168. 4 7 . Otto Maria Carpeaux, op. cit., vol. VI, p. 2599.
44. Idem, Banquete, op. cit., 211, p. 168. 4 8 . Platão, A República, op. cit., 534c. Colocação encontrada em outros diálogos, como
45. Idem, Fedro, op. cit., 252, p. 225. Fedro.
112 PEN SA M E N T O E "L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C EC ÍLIA M EIR ELES I)A T R AN SFIC l RAÇÀO À REINVENÇÃO IEI

pensando que a Inteligência doce escravidão da minha vida?”, interroga no vigésimo poema do livro.
era uma som bra da Beleza. Ou, antes:

Ou ainda: “Eu nas sombras. Eu pelas sombras / com as minhas pergun­ [...] minha alma, tão desconhecida,
tas" (Monólogo, Vaga Música). “Mais do que as sombras éramos irreais”, diz vai ficando sem mim, livre em delícia,
outro verso platônico em "Nós e as Sombras”, elegíaco poema sobre o desti­ como um vento que os ares não fabricam. ( 7*’ poema)
no do próprio vulto numa remota noite de frio ao pé do fogo (Mar Absolu­
to). Ou no primeiro “Cenário” do Romanceiro da Inconfidência: Imagem que ressoará a doutrina dos versos órficos segundo a qual a
alma, composta de ar, se introduz nos mortais quando respiram, trazida
Tudo é sombra de sombras, com certeza... pelos ventos51. Ou, ainda, mais além: “Alta é a alucinação da provada Bele­
za” (9- poema). Centelhas que, no entanto, ainda se esvaem: “Sobre um
O mundo, vaga e inábil aparência. passo de luz outro passo de sombra”, diz a poeta, ainda vacilante nessa
que se perde nas lápides escritas,
passagem, em um dos extraordinários versos da obra. Convém aqui lem­
sem qualquer consistência ou conseqüência.
brar, a propósito, ajusta observação de Alfredo Bosi: “o poeta de Solombra
parte de um certo distanciamento do real imediato e norteia os processos
Para sua obra de despedida dos “espetáculos infatigáveis” do reino da
imagéticos para a sombra, o indefinido, quando não para o sentimento da
sombra, mais do que todas pórtico alegórico ao “mundo das Idéias”, a
poeta foi buscar nos primórdios da língua um vocábulo originário do latim ausência e do nada”52.
Vários outros temas e motivos do platonismo, alguns deles herdados
sub ilia umbra49, Solombra - que chega a evocar ao mesmo tempo sol e
da tradição escatológica e da visão mística órfico-pitagóricas, retomadas
sombra, porém significante apenas desta última. A epígrafe, da própria
pelo poeta-filósofo53, também são recorrentes na poesia lírica ceciliana.
lavra da poeta, já parece ecoar Platão em A República:
Numa síntese não exaustiva, aqui menciono o da memória como reminis-
Levantei os olhos para ver quem falara. Mas cência (como no poema “Memória”, em que me deterei no próximo capítu­
apenas ouvi as vozes combaterem. E vi que lo); o da harmonia e da música celeste (no órfico “A Doce Canção”, Vaga
era no Céu e na Terra. E disseram-me: Solombra! Música)', o da dialética de uno e múltiplo (“Auto-Retrato” e “Compromis­
so”, M ar Absoluto), de que trata sobretudo o diálogo Parmênides; o do
Em A República, depois de aludir a Homero na Odisséia, diz Sócrates: “E exílio ontológico (“Noturno”, M ar Absoluto): os da execração da tirania e
assim teremos uma cidade para nós e para vós, que é uma realidade e não um da purificação das almas (vários poemas do Romanceiro da Inconfidência,
sonho, como atualmente sucede na maioria delas, onde combatem por sombras como a “Fala aos Inconfidentes Mortos” ); o da insuficiência da linguagem
uns com os outros e disputam o poder, como se ele fosse um grande bem”50. (“Amém”, Vaga Música; “Os Dias Felizes”, Mar Absoluto), abordado por
O diálogo com a Alegoria da Caverna e a Teoria das Idéias é retoma­ Platão no Crátilo; o da imortalidade da alma e da origem divina da dor,
do em Solombra: “Da vida à Vida, suspensas fugas”. Mas nessas paragens tratados, entre outros, nos diálogos Fédon e República (segundo poema
metafísicas já descarnadas do sensível - onde a inespacialidade é tão enfá­ “Serenata”, Viagem: “Há uma doce luz no silêncio / e a dor é de origem
tica como em “Reinvenção” - é como se o sujeito poético lograsse em
centelhas de instantes sair do “cativeiro” e atravessar o umbral: “Esta era a

5 1 . Cf. W. K. C. Guthrie, The Greeks and their Gods, 1950, p. 324.


5 2 . Alfredo Bosi, História Concisa da Literatura Brasileira , 1970, p. 512.
5 3 . Cf. Guthrie, op. cit. As inscrições nas placas douradas do orfismo registravam fragmen­
4 9 . Cf. esclarece João Adolfo Hansen, em “Solombra ou a Sombra que Cai sobre o Eu”. tos de um sistema escatológico muito semelhante aos descritos nos mitos de Platão, que
2001. retomou dos pitagóricos a crença de que a natureza essencial de todas as coisas repousa
5 0 . Platão, A República, op. cit., 520c-d, p. 326. não em sua matéria, mas em sua “forma” - particularmente pp. 318-353.
111 PEN SAM ENTO K “LIR ISM O PU R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES DA TRANSEK1URAÇÀ0 À REINVENÇÀO 115

divina”). Já o poema “Cavalgada”, de M ar Absoluto, abrigará ressonâncias A Alegoria da Caverna e a teoria das Idéias também ressurgem em
do mito da parelha alada, constante do diálogo Fedro. inúmeros outros poemas, como “Futuro” ou “Anjo da Guarda" (Mar Absolu­
Algumas das obsessões lexicais e conceituais dessa lírica também pare­ to), que inclui versos como: “Não serás cativo / de quem não te quer ver no
cem refletir símiles e conceitos que, malgrado as discrepâncias das traduções, cativeiro / de enigmas em que voluntária vivo”; ou "Rimance” (Vaga Músi­
são encontrados nos Diálogos - e algumas dessas palavras Platão teria herda­ ca) - em que também alude à questão da imortalidade e da transmigração da
do de Homero, Hesíodo e outros poetas, além da referida tradição órfica e alma, exposta, conforme a tradição órfico-pitagórica, no Fédon, motivo que
pitagórica. A alusão à “geometria” e a seus instrumentos, como compasso e também aparece, entre tantos outros, em “O Ressuscitante” ( Vaga Música).
esquadro, emerge em vários poemas (“Despedida”, Viagem; “Canção Excên­
trica”, Vaga Música; “Contemplação”, Mar Absoluto) - segundo Platão, o Eu era o guardado
“método dos geômetras” permite investigar as Idéias como causas intempo- de sinistras covas!
rais para os objetos sensíveis54. Outra recorrência é a conotação talvez platô­ E hoje visto nuvens
cândidas e novas!
nica da palavra “noções”, que chega a figurar como título de outro poema de
Viagem com claras ressonâncias do poeta-filósofo - um exemplo: nos diálo­
Como está no Fédon ou no mito de Er, que trata da necessidade de se
gos Sofista e Teeteto, Platão discorre sobre as “noções abstratas e gerais” que
proceder no bem durante a existência - da vida órfica, em suma - , narrado
a alma discerne nos objetos sensíveis55. A dialética obsessiva entre o terreno
no fecho de A República, a alma imortal pode, na poesia ceciliana, renas­
e o divino aparece em poemas como “Som”, do mesmo livro, que refere a
cer em seres irracionais:
“alma divina" que o filósofo grego conceitua em diálogos como Fédorv, “Sau­
dade” (Mar Absoluto) refere as “coisas divinas / que morrem sem se acabar”. Que vai ser a alma dela, agora?
A palavra “contemplação”, de que Cecília Meireles se serve também recor­ Ou beija-flor ou borboleta...
rentemente ao longo de sua poesia lírica e de sua prosa, também guardará (“Enterro de Isolina" / Mar Absoluto)
com freqüência conotação platônica - e o poema “Contemplação”, de Mar
Absoluto, é um dos que revelam essas reminiscências56. Ainda na crônica Em Cecília Meireles, a linguagem alegorizante de substrato platônico
“Nem Sempre”, em que comenta palavras de Rilke, diz Cecília Meireles: é desprovida de chave explícita. Isto é, possivelmente apenas os já inicia­
“Contemplar - embora sem indiferença, pois o poeta é um ser de participa­ dos na dialética e no idealismo místico-metafísico de Platão - ou na sua
ção unânime”57. repercussão sobre poetas renascentistas, barrocos e modernos - lograrão
O modo como a palavra “asa” aparece em poemas como “Terra”, de rastreá-la59. A escritora diferencia-se assim de inúmeros outros poetas de
Viagem - “Fui mudando minha angústia / numa força heróica de asa.” - ou alguma inspiração platônica ou neoplatônica, entre os quais Camões. Mil­
na “Elegia” dedicada à avó - “E ficaste com um pouco de asa” - poderá ton, Baudelaire ou Fernando Pessoa, que soletram o nome do poeta-filóso-
ainda ser interpretado como uma alusão ao mito da parelha alada, encon­ fo em seus versos. Não me recordo de um único poema em que a poeta
trado no Fedro: “A força da asa consiste em conduzir o que é pesado para as carioca faça referência direta ao nome de Platão, e em sua obra em prosa -
alturas onde habita a raça dos deuses”58. na qual menciona, comenta ou traduz poetas, escritores e também pensado­
res de múltiplas tradições - pude encontrar referências raríssimas. Porém,
as alusões implícitas são inúmeras"1- como na tese O Espírito Vitorioso, de
5 4 . Paul Tannery, “Vida e Obra”, em Platão, Diálogos, op. cit., p. 19. 1929, cujo título já se mostra indicativo:
5 5 . Idem, pp. 38 e 42.
5 6 . Essa é considerada outra palavra-chave do platonismo. Por exem plo, em A República,
Sócrates afirma que o estudo das ciências eleva “a parte mais nobre da alma à contem­ 5 9 . Procurei, neste estudo, recorrer principalmente a Carpeaux em sua História da Litera­
plação da visão do mais excelente dos seres”. Op. cit., Livro VII, 532c, p. 348. tura Ocidental na tentativa de rastrear o platonismo em outros poetas.
5 7 . Em Crônicas de Viagem-2, 1999, p. 118. 60. Um exemplo é a crônica “A Extensão de Nossa Liberdade”, de 1931, quando a escritora
5 8 . Platão, Fedro, op. cit., 246-247. p. 219. contava 29 anos, em que afirma: “Nós somos criaturas do mundo, o mundo é o nosso ambien-
116 FEN SA M E N T O K "L IR IS M O F I RO" NA FO RM A DE C EC ÍL IA M EIRELES DA TRAN SKlO tRAÇÃO A REINVENÇÃO 117

Eu repetiría com Aristóteles que a arte é imitação, se acaso pudesse com isso significar aspecto controvertido dessa poética: o da natureza da enigmática alteridade
que o homem começa por imitar a natureza, ou o mundo objetivo, que continua imitando a si a que refere grande parte dos poemas. Quem, afinal, é o “tu” (por vezes,
mesmo, na análise de sua individualidade, e que termina pela tentativa de imitação do sobre­
“vós” ) a quem se dirige o eu lírico, e permanece nebuloso em grande nú­
natural. na ânsia da divinização, na vitória final do espírito sobre a contemplação de todas as
aparências61. mero de poemas? - indagou com argúcia a professora açoriana Margarida
Maia Gouveia em sua tese de doutorado65. Trata-se de um ser de carne e
Aí explicitou o nome de Aristóteles, porém omitiu - omissão que se osso ou de uma entidade sobrenatural - a divindade, a verdade ou o Ser -,
pode considerar eloqüente - o de Platão, que possivelmente, impregnado como ocorre em "Reinvenção” ? Muitas outras composições, como "Alu­
da tradição órfico-pitagórica, terá inspirado a segunda parte da elocução. na”, “ Irrealidade” e o livro Solombra - no qual João Adolfo Hansen, em
Mesmo a biografia da escritora evidencia que muitas de suas convicções ensaio recente, interpretou o "tu" como sendo a própria poesia, em alguns
éticas e qualidades pessoais - coragem, temperança, paciência, modéstia, versos66 - são também terrenos férteis para o exercício dessa indagação.
concórdia com os próximos, “alta serenidade”, busca incessante de conheci­ Poderá tratar-se ainda da própria “alma” (palavra exilada por alguns m o­
mento e de aperfeiçoamento - , muitas das quais contribuíram para desenhar dernistas, porém prezada, entre outros, por Mário de Andrade) ou, como
a arquitetura formal de sua obra, foram como que desenvolvidas segundo um entendeu André Camlong, o "eu profundo” em diálogo com a persona
projeto platônico62. Talvez seja útil ainda investigar-se, um dia, de que modo social67. Neste caso, haveria uma inversão da fórmula de Rimbaud (“Je est
e até que ponto as leituras de Platão contribuíram para despertar e moldar o un autre”) para “o outro sou eu”.
diuturno interesse da poeta pelos assuntos de educação, pelo dedicado empe­ Octavio Paz refletiu sobre a enigmática alteridade (otredad) da lírica:
nho em reinventar a vida nacional, via ativismo político-jomalístico, median­
te seu engajamento incondicional nas reformas do ensino público no período Eu é tu. E também é nós, vós, isto e aquilo. Os pronomes de nossas linguagens são
que antecedeu e sucedeu à Revolução de 1930 - afinal, a reforma da educa­ modulações, inflexões de outro pronome secreto, inefável, que os sustenta a todos, origem
da linguagem, fim e limite do poema. Os idiomas são metáforas desse pronome original
ção pública foi um “dos traços essenciais da política de Platão”65- , e também
que sou eu e os outros, minha voz e a outra voz, todos os homens e cada um68.
pelos estudos concernentes à leitura das crianças64.

Quanto à primeira hipótese acima mencionada, é necessário lembrar


que o reduzido número de poemas de amor encontrados na obra ceciliana é
S O N D A G E N S M E T A F ÍS IC A S
quase sempre de natureza elegíaca, o que por vezes revelará ecos do inaces­
sível amor cortês da poesia trovadoresca, em outras alguma sorte de trouble,
O poema “Reinvenção”, que remete diretamente à metafísica platôni­
conforme Hegel característico do poeta lírico, com a alteridade; ou ainda a
ca, parece ainda constituir um terreno adequado para se examinar outro
incomunicabi 1idade moderna69.

te. [...] Somos todos prisioneiros - uns mais, outros menos, mas todos prisioneiros. Temos
Não me encontro com ninguém
as mãos acorrentadas, temos os braços atados [...]. E de todas essas prisões decorre o cativei­ (tenho fases, como a lua...)
ro do nosso pensamento”. Parece evidente a alusão à Alegoria da Caverna, porém não há No dia de alguém ser meu
menção ao nome de Platão ou Sócrates. Em Cecília Meireles, Crônicas de Educação-1,
2001, p. 7. (Nas anotações estenográficas feitas por uma aluna do curso Técnica e Crítica
Literária, ministrado em 1937 pela escritora na Universidade do Distrito Federal, cia refere
alguns diálogos platônicos. Os originais encontram-se arquivados na Casa de Ruy Barbosa.) 6 3 . Margarida Maia Gouveia. Cecília Meireles - Unia Poética do Eterno Instante, 2002.
61. Cecília Meireles. O Espírito Vitorioso, 1929, p. 29. 6 6 . "Solombra ou a Sombra que Cai Sobre o Eu”, op. cit.
62. Ver Victor Goldschmidt. A Religião de Platão. 1963. 6 7 . André Camlong. op. cit.. pp. 21-43. sobretudo p. 31.
63. Cf. Paul Tannery, op. cit., p. 23. 6 8 . ”La Inspiración”, El Arco y Ia Lira. 1986. p. 181.
64. Cecília Meireles. Crônicas de Educação. 2001; e Problemas da Literatura Infantil. 6 9 . Ver. entre outros, "A última cantiga". "Inverno”, "Vinho", “Desventura”, “Pausa",
1990. Ver também: Valéria Lamego, A Farpa na Lira. Cecília Meireles na Revolução “Epigrama n. 8", em Viagem. Também "Canções do Mundo Acabado”, “Gaita de Lata",
de 30. 1996. "Elegia" e "Fantasma", em Vaga Música.
lis l’I'. N SA M ENTO E “L IR IS M O P U R O ' NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES DA T R A N S E IU RAÇAO A REINVENÇAO

não é dia de eu ser sua... Ainda que muitos dos versos cecilianos aludam, implícita ou explici­
E, quando chega esse dia, tamente, a Deus, parece justo considerar que a divindade nessa poética
o outro desapareceu...”
aproxima-se muito mais da dos gregos (ou, ainda, dos hindus) do que da­
(“Lua Adversa” / Vaga Música)
quela dos cristãos. Jamais toma a forma da Santíssima Trindade. Trata-se
de um Deus próximo do “Deus dos filósofos” - e principalmente do Ser ou
O tempo, que tudo destrói, seca também “o desejo / e suas velhas
Deus platônico, que, atingido por versos dubitativos de Homero, provocou
batalhas”, conforme diz a “Canção do Amor-Perfeito” (Retrato Natural), e
a ira socrática contra os poetas. É o que também entende André Camlong
o amor encontrado e tangível é sempre “insuficiente” para quem sempre
em seu ensaio: o Deus ceciliano é abstrato, sem rosto, “parente próximo do
quer “mais do que vem nos milagres”, segundo o admirável poema “Expli­
Deus dos poetas no sentido em que se oculta atrás dos símbolos e das metá­
cação” (Vaga Música). Para quem tem um “coração de incertezas”,
foras”. Será também por momentos, segundo o estudioso francês, o Deus
feito para não ser feliz; dos místicos. “É um Deus em estado puro, Espírito centrado sobre si mes­
querendo sempre mais que a vida mo e centro de concentração do espírito em si”70. Uma frase da própria
- sem termo, limite, medida, poeta acrescenta outra vertente a esse deísmo:
como poucas vezes se quis.
(“Fadiga", Viagem) [...] o budismo mostrará que tudo que não é o Deus supremo é ilusório, é transitório,
é precário, e. portanto, aquele que quer essa união com o ser supremo precisa desprezar
O desencontro e a “insuficiência” dos diálogos humanos talvez aju­ todo esse transitório para que a união se realize71.
dem a explicar a recorrência da imagem do “deserto” na poesia ceciliana.
Contudo, insisto, há muitos outros poemas em que dificilmente se pode Isto é, as filosofias e místicas orientais convergiríam com o platonismo
distinguir a identidade ontológica do referente. Nos quais, em suma, se nessa lírica, sem eliminar a dicção dubitativa, presente em tantos poemas.
localiza grande ambiguidade entre a experiência vivida e a experiência Considero que o “indeterminado Deus” ceciliano - como aparece no poe­
conceituai ou metafísica. É o caso de "Despedida”, penúltimo texto do ma “Em Voz Baixa”, de Vaga Música - é, em síntese, o inatingível, porém
livro Viagem, que retoma o motivo da dolorosa separação dos amantes ao sempre ansiado, Absoluto, com claras reminiscências platônicas, órfico-
romper da alvorada, constante das velhas “albas" da poesia trovadoresca pitagóricas, além de védicas e budistas, as quais também comungam da
medieval. “Despedida” poderia ser considerado um dos melhores poemas doutrina da transmigração das almas.
de amor (ou, como quase sempre, de desencontro amoroso) dessa lírica, As informações são escassas, porém parece lícito supor que a origem
embora, segundo a interpretação de Camlong, possa referir o mergulho do do platonismo de Cecília Meireles estará na escola metafísica do período
espírito no “instante metafísico”, o total “despojamento do eu social e a clássico e barroco que tanto herdou de Petrarca - embora praticamente não
liberação concomitante do eu profundo". O que, por estimulante que seja se encontre o tema do amor platônico na poeta brasileira. Em espanhóis do
essa hipótese, a meu ver subtrai parte da força mágica do poema: “século de ouro”, como Quevedo e o humanista Frei Luis de León - a
quem ela se refere com admiração na crônica “Figuras da Paisagem”, e de
Vais ficando longe de mim quem talvez tenha herdado aquelas insólitas imagens do “coração de aço” e
como o sono, nas alvoradas; do “coração de pedra” encontradas na “Canção Excêntrica” e em “Gaita de
mas há estrelas sobressaltadas
Lata” (Vaga Música), ou no 14u poema de Metal Rosicler72; ainda em John
resplandecendo além do fim.

Bebo essas luzes com tristeza, 7 0 . André Camlong, op. cit., pp. 42-43.
pois sinto bem que elas são 7 1. “Curso de Técnica e Crítica Literária”, estenografado sem revisão da escritora, aula de
o último vinho e o último pão 29 nov. 1937.
7 2 . Nessa crônica, escreve Cecília Meireles sobre Luís de Leon: "1...] é o agostiniano que
de uma definitiva mesa. [...]
traduziu o Cântico dos Cânticos, o que facilitou à Inquisição metê-lo na cadeia. [...] foi
120 PEN SA M E N T O E "L IR IS M O PU RO" NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES DA TRANSFIGURAÇÃO À R U M E M ÁO 121

Donne e Ben Jonson e também Camões, de quem particularmente admira­ Nessa linhagem heraclitiana. o poeta "irmão das coisas fugidias" de
va as redondilhas platônicas “Sôbolos rios que vão / Por Babilônia me “ Motivo”, que sagra o “instante” como razão de seu canto, viria afinal a
achei”, em que o poeta lusíada aproveita a teoria da reminiscência e dialoga vislumbrar, em Solombra, o "eterno instante” . No diálogo Parmênides,
com a teoria das Idéias73. Autores que também cultivaram temas órfico- registra Platão que o “vocábulo Instante parece significar algo assim como
platônicos como o da alma exilada na terra e o da vida terrena como prisão o ponto de m udança em direções opostas. [...] Essa coisa de natureza
escura, recorrentes na lírica da escritora74. Como nesses e outros poetas inapreensível, o Instante, se encontra situada entre o movimento e o repou­
renascentistas e barrocos, parte considerável do pessimismo ou do ceticis­ so, sem estar em nenhum tempo”77. Platão procurou
mo - já identificados por Darcy Damasceno75 - que perpassa toda a lírica
de Cecília Meireles deve advir de Platão, além de autores como Sêneca, | ...] conciliar a concepção de Heráclito, que considerava o mundo como um devir,
que também repercutiu em escritores do “século de ouro”. com a filosofia eleata, que afirma que o ser é imutável. A teoria das idéias [sic] tem por
Como eles, a poeta brasileira foi reconhecidamente uma humanista, objeto conciliar [...] o fluxo dos fenômenos (devir) com a permanência que os eleatas da­
vam ao ser. Mas enquanto no século precedente os filósofos haviam procurado esta con­
no sentido de cultivar o conhecimento das culturas clássicas76. Em outro
ciliação no domínio do sensível, Platão foi o primeiro que ensinou a humanidade a transpor
estudo, valerá investigar as ressonâncias também de pré-socráticos como esta questão para a esfera da transcendência [...]
Heráclito de Éfeso, considerado um dos precursores do hegelianismo, cuja
dialética opôs aquilo que se mantém e aquilo que passa, para quem a natu­ demarcou Paul Tannery78.
reza está submetida a um perpétuo fluxo - tópicas capitais na poética Conforme já foi mais de uma vez mencionado, ao aproveitamento das
ceciliana, presentes em incontáveis poemas como “Motivo”, “Retrato”, culturas grega e latina Cecília Meireles acrescentou o das tradições de paí­
“Valsa” e “Passeio”, apenas em Viagem: “Quem me leva adormecida / so­ ses asiáticos - e uma outra frase sua, cuja parte (por mim) grifada mostra-
bre o perfume das plantas, / quando, no fundo dos rios, / a água é nova a se bastante iluminadora de sua própria poética, parece fundir as possíveis
cada instante?”, indaga neste último; ou que em “Domingo na Praça”, de convergências entre Heráclito, Platão (com sua herança órfico-pitagórica)
Mar Absoluto, constata: e as filosofias místicas orientais:

As águas não eram estas, Buda dizia que tudo que se vê é precário; há que desprezar tudo isso e procurar
há um ano, há um mês, há um dia... dentro do que passa o que lui de eterno em todas as coisas efêmeras. |.„] Dos livros
Nem as crianças, nem as flores, sagrados da índia, como os Vedas, escritos oito séculos a.C.. decorrem noções que se vão
nem o rosto dos amores... encontrar nos gregos Platão e Pitágoras™.

Foi, talvez, por via dessa vertente oriental, e aí diversamente de bom


número de poetas chamados neoplatônicos, que seu platonismo não entron-
um grande poeta. [...] E muito principalmente, deixando de lado os poemas religiosos cou no cristianismo, como já foi dito, ou numa religiosidade determinada.
[...], tradução dos clássicos, latinos e gregos, e pequenas obras de circunstância [...] é o
Ou seja, em sua lírica o mundo inteligível de Platão não se traduziu no céu
autor daquela coisa muito linda glosada sobre esta 'letra": “Vuestros cavellos, senora, de
oro son. / Y de acero el cora/.ón". Crônicas de Viagem-3, ap. cit., pp. 85-86. cristão, como ocorreu com os poetas neoplatônicos. Antes, seu misticismo
73. Ver também Cecília M eireles, O Espírito Vitorioso, op. cit., p. 35. A interpretação do sincrético derivou no que talvez se possa denominar um “livre pensamento”,
poema está em A. José Saraiva, op. cit., principalmente p. 133. que terá absorvido outras filosofias, como as de Hegel, Schelling, Bergson,
74. Cf. Otto Maria Carpeaux, História da Literatura Ocidental, op. cit., vol. 1-A, principal­
mente pp. 549-555 e 633-639.
75. Darcy Damasceno, O Mundo Contemplado, 1967, p. 43, entre outras.
76. Cf. reconheceu, entre outros, o crítico português Vitorino Nem ésio: “Um Livro de C e­ 7 7. Platão, Parmênides, 156d-e. 1974. p. 68.
cília M eireles”, 1949. Tudo indica que a escritora tenha lido todos ou grande parte dos 7 8 . Idem. Diálogos, op. cit.. p. 32. Na mesma obra. ver nota 36 de João Cruz Costa, na p. 135.
Diálogos, aos quais alude en passant naquela já mencionada “Carta dei Brasil”, 7 9. Cf. versão estenografada do curso “Técnica e Crítica Literária”, aulas de 23 jul. e 29
publicada em 1947 pela revista argentina Realidad. n ov. 1937.
122 PEN SA M E N T O E “LIR ISM O PU RO" NA PO ESIA DE C EC IE IA M EIR ELES DA TR AN SEIG l RAÇAO A REINVENÇÃO I2.'l

Schopenhauer e, conforme já foi mencionado, Nietzsche*11. Uma frase sua a filosofia idealista ocidental é um platonismo. “M etafísica, idealismo,
sobre Antero de Quental talvez possa ser transposta para si própria: platonismo significam essencialmente a mesma coisa”82. Também por isso,
reitero, o platonismo consiste em referência de alta relevância para a abor­
As lembranças de Hegel sobre o real e o aparente, os arque'tipos de Platão e a desin­ dagem do grande número de poemas metafísicos cecilianos, como é o caso
tegração indiana de todas as contingências para a absorção do Efêmero no Eterno vão sen­ de “Reinvenção”.
do vividas por este homem singular, que no mais profundo momento de niilismo esteve
sempre construindo alguma coisa8081.

Deve-se, por fim, enfatizar que a poesia lírica ceciliana, tanto quanto
pela busca, sempre inviabilizada, do absoluto e do transcendente, é toda ela
marcada por momentos de forte dúvida metafísica, como nestes versos:
“Ah! mundo vegetal, / nós humanos choramos / só da incerteza da ressur­
reição” (“Epigrama n. 3”, Viagem). Da mesma forma que a busca da
transcendência e a inscrição da palavra Deus, tais momentos também per­
correm toda essa lírica - e devem estar na raiz de sua vasta poesia metafí­
sica, no sentido atribuído por Hegel, em sua aproximação de arte, filosofia
e religião, transcrita na epígrafe deste capítulo - e ainda por Bachelard em
“Instante Poético e Instante Metafísico”, igualmente citado anteriormente.

Perguntas seculares se levantam do meu coração:


última planta dos desertos, voz do Enigma...

diz o poema “Sobriedade" (Mar Absoluto), também emblemático de uma


escrita poética obcecada pelos enigmas da condição e do destino humanos,
que tece infindavelmente perguntas, mas transita num deserto de respostas.
O estudo do poema "Reinvenção” leva-me, assim, a considerar que a
dialética idealista platônica poderá ser uma das mais importantes entradas
no esforço interpretativo da poética metafísica de Cecília Meireles, de seu
“pensamento”, mas por certo, conforme já assinalado, não a única, e a ela
deverão ser acrescentadas, para além das aproximações estéticas e literárias,
outras filosofias idealistas ocidentais e tradições místico-filosóficas orien­
tais, que convergem com a doutrina órfica da transmigração das almas -
em particular a escatologia védica e budista e sua doutrina do carma. No
que diz respeito às primeiras, convém lembrar Heidegger, para quem toda

8 0 . É possível encontrar ressonâncias de textos de Nietzsche - que afinal retomou os pré-


socráticos e os primeiros poetas - em algumas imagens cecilianas, com o as dos “dourados
remos” ("Ritmo’yV'aga Música) e da “ascensão das montanhas” ("Despedida”, Viagem). 8 2 . Cf. Maria Helena da Rocha Pereira, “Introdução”, em Platão, A República, op. cit-, p.
8 1 . Cecília Meireles. Conferência inédita sobre Antero de Quentul. lauda 45.
4

INCO NSCIENTE, M ITO, MEMÓRIA

Somos na realidade uns primitivos. E como todos os primitivos


realistas e estilizadores. A realização sincera da matéria afetiva e do
subconsciente é nosso realismo. Pela imaginação deformadora e sintética somos
estilizadores. O problema é juntar num todo equilibrado essas tendências.
Mário de Andrade*

Um dado paratextual do poema “Memória”, do livro Vaga Música


( 1942), sugere a possibilidade de se estabelecer uma hipótese sobre a gêne­
se de sua escritura. Trata-se da dedicatória ao ensaísta português José Osório
de Oliveira, amigo de Cecília Meireles e de outros escritores brasileiros,
como Mário de Andrade. Autor da História Breve da Literatura Brasileira
( 1939), bem avaliada por Mário e em quem este reconhecia o papel de
notável divulgador da literatura brasileira moderna na terra lusíada1, Osório
foi um dos intelectuais que recepcionaram a poeta durante sua estada em
Portugal, em 1934, ocasião em que ela e seu marido também se deslocaram
à aldeia de Moledo da Penojóia, no Norte daquele país, em visita à família
ancestral dele, ali radicada2. Parece plausível supor que o crítico português
tenha perguntado à escritora algo como “e sua família, Cecília?”, assim
motivando o poema que será, mais adiante, objeto de estudo neste capítulo.
O fato de “M emória” ter sido originalmente publicado na revista lusíada
Presença, em 1938, juntamente com outros poemas posteriormente reuni-

* Mário de Andrade, apêndice a “A Escrava que Não é Isaura”, Obra Imatura, 1960, p. 294.
1. Idem, “Literatura N acional”, O Empalhador de Passarinho, 1972, pp. 165-168.
2. Informações resultantes das pesquisas reunidas no estudo biográfico Cecília em Portu­
gal, de minha autoria, 2001.
l’EN SAM ENTO K “I.IR ISM O P l'R O * NA l’O KSIA DE C EC ÍL IA M EIR ELES INCONSCIENTE, MITO, M EM Ó R IA 127

dos em Vaga Música (“Eco”, “A Amiga Deixada”, “A Mulher e o seu M e­ Uma pressa. Levantaram-na nos braços, como tirando-a de dentro do chão.
nino”), tende a reforçar essa hipótese3. |...] - ‘Beije a m am ãe!’ E beijou um rosto duro e frio. [...]” A cena do
velório ressurge ao longo dessa prosa memorialística.
Os irmâozinhos mortos também são evocados nas memórias, como na
R E P R E S E N T A Ç Ã O DAS A U SÊN C IA S cena em que, folheando com a avó o álbum de retratos da família, ouvia
desta: “Para quê? Para quê? [...] Ah! Morte malvada...” As palavras da avó
O movimento de expandir a imaginação e escavar a memória com ao chegar de uma visita ao cemitério ressoam ao longo da narrativa: “Que
vistas à evocação da família ancestral ausente é recorrente na obra poética dor no coração, ver tudo aquilo em ossinhos... em ossinhos... No meio da
e em prosa da escritora. A figura do pai é aludida na crônica “Mesa do terra, ainda apareceram os botões dos punhos. Eram de ouro, e o coveiro
Passado”, e os três irmãos, mortos na primeira infância, os quais ela igual­ veio com aquilo nas mãos... Ah!”.
mente sequer chegou a conhecer, são evocados em “Conversa com as Crian­ A repercussão dessas precoces ausências na gênese da vida afetiva e
ças Mortas”, crônica datada de 1947: “E eis que me dizem: ‘Este é o jazi­ da visão de mundo da escritora seria, posteriormente, por ela mesma abor­
go’. E vejo por uma fresta negras formigas passearem distraídas sobre os dada numa entrevista: “Essas e outras mortes ocorridas na família acarreta­
ressequidos ossos. No entanto, éreis meus irmãos, e podíamos ter sido qua­ ram muitos contratempos materiais, mas, ao mesmo tempo, me deram,
tro crianças de mãos dadas brincando sob as laranjeiras. E fui só eu”4. desde pequenina, uma tal intimidade com a Morte que docemente aprendi
Nas memórias de infância Olhinhos de Gato, escritas no final da dé­ essas relações entre o Efêmero e o Eterno [...]” - pólos de uma dialética
cada de 1930 - livro de surpreendente realismo e de grande relevância para axial em sua lírica, conforme diversos críticos têm apontado, e fonte da
a compreensão da formação da ética, do imaginário, da “mitologia” e do “noção ou sentimento da transitoriedade de tudo" que a escritora conside­
universo simbólico cecilianos - , a escritora recorda a indisfarçada surpresa rava “fundamento” de sua personalidade6. Pólos que podem emergir sob o
de pessoas que visitavam a casa de sua avó com o fato de ela mesma haver avatar do uno e do múltiplo dos pré-socráticos e platônicos; e fonte, ainda,
sobrevivido às doenças que dizimaram sua família. “Só ela escapou”, ouvia da “barroca” serenidade perante a morte, conforme é possível 1er em inú­
recorrentemente. Foi, segundo diria, uma “criança arrancada à morte”5. meros versos, como:
A evocação dos pais e dos irmãos desconhecidos, ausentes, e o dolo­
rido e indagador manuseio de seus objetos e pertences atravessam toda essa E encolherei meu corpo nalguma cama dura e fria.
narrativa, em terceira pessoa. A mãe, que perdeu por volta dos três anos, (Os grilos da infância estarão cantando dentro da erva...)
E eu pensarei: ‘Que bom! nem é preciso respirar!...’
uma das primeiras professoras formadas no Brasil, em cujos livros viria a
(“Conveniência", Viagem)
estudar, e que bordava tão bem, e sobre quem ouvia: “ ‘Tinha umas mãos de
prata!” ’, seria evocada desde a obra poética de juventude, no poema “Do­
Serenidade, contudo, sempre acompanhada da dúvida e da indagação:
lorosa”, a que se aludiu no capítulo inicial deste estudo, ressurgindo em
poemas póstumos como “Canto”. A cena de sua morte, que aparece no
|...|
poema “Orfandade” (Viagem), reemerge desde o início das memórias de A morte tem seus países:
infância: “Muita gente. Um cheiro diverso... Um ar diverso sobre as coisas. e a sua cartografia
nem por símbolo me dizes.
Como foste ou como vieste?
3. Poemas que mereceram de José Régio a seguinte avaliação: “[...] há nos versos de C e­ e como soam teus passos
cília Meireles uma graça poética e um dom de universalidade que qualquer dos seus na jurisdição celeste?
maiores compatriotas lhe pode invejar Presença, 1938, p. 2. ("Tristeza Gloriosa”, Poemas III )
4. Crônicas em Geral-I, 1998, pp. 219 e 208.
5. Carta de Cecília Meireles ao escritor português Alberto de Serpa, set. 1938. Arquivo Muni­
cipal do Porto. Em Olhinhos de Gato, 1983, ver sobretudo pp. 9, 15, 62, 71 e 135. 6. Entrevista transcrita em Cecília Meireles. Poesia Compléta. 4. ed., 1994, p. 80.
128 PENSAMENTO F. "LIRISM O PI RO" NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES INCONSCIENTE. MITO, MEMÓRIA 1211

Família, morte, ausência e memória teriam, assim, se enredado do modo singular, plena de recordações e de imagens que alimentariam toda a sua
mais inextricável na formação da personalidade e da poética de Cecília lírica. “Minha infância de menina sozinha deu-me duas coisas que parecem
Meireles, imprimindo a ambas o sentido de distância e de exílio e o senti­ negativas, e foram sempre positivas para mim: silêncio e solidão. Essa foi
mento de desengano que marcam tantas de suas crônicas e poemas, como o sempre a área da minha vida. Área mágica [...] [na qual) apareceram um
anteriormente enfocado. Na lírica ceciliana, o mundo dos afetos surge quase dia os meus próprios livros, que não são mais do que o desenrolar natural
sempre de modo inatingível ou elegíaco, como na série de poemas em que de uma vida encantada com todas as coisas [...]”. As solidões da infância
alude ao primeiro marido, Fernando Correia Dias, que se suicidou em 1935: costumam deixar marcas e sonhos indeléveis, que depois costumam se
“Inverno”, “Fadiga”, Viagem; “Elegia”, “Monólogo”, “Fantasma”, Vaga transformar na “felicidade” dos poetas, observou Bachelard10*.
Música; “Vigília”, “Canção Póstuma”, Retrato Natural. A “Elegia” à avó abre com uma lágrima:
A “Elegia” que encerra o livro Mar Absoluto (1945), dedicada à avó
materna, Jacinta Garcia Benevides, traz uma epígrafe de Rilke bastante signi­ Minha primeira lágrima caiu dentro dos teus olhos.
Tive medo de a enxugar: para não saberes que havia caído.
ficativa do valor outorgado pela escritora à ancestral idade7. Essa avó, que em
("Elegia”, Mar Absoluto)
parte viria a preencher o vácuo deixado pelo prematuro desaparecimento dos
pais e dos irmãos, personagem central das memórias de infância e que apare­
Mas não se trata de uma lágrima romântica, que leve ao queixume ou
ce em bom número de poemas89,criaria, ao emigrar com o marido da Ilha de
à tristeza viscosa. Antes, abre caminho a uma dialética imagética e reflexi­
São Miguel por volta de 1870, uma espécie de recanto açoriano em sua
va, eivada de fragmentos cósmicos e da paisagem de verão carioca, de onde
pequena chácara no Rio de Janeiro, onde a poeta cresceu junto à natureza,
a poeta colhe a m atéria concreta para o exacerbado jogo metafórico e
num ambiente matriarcal, ouvindo os “rimances” e a fala em segunda pessoa
sinestésico que amarra o longo poema em versos livres; e a um passeio
característicos da Ilha de São Miguel, numa vida ritmada como acontece ser
entre presente, pretérito, condicional e futuro, entrem eado de lúcidas
a dos que tiveram, como seus avós, uma relação atávica com a terra1'.
constatações acerca da incomunicabilidade com a amada morta e a inutili­
A infância ao mesmo tempo melancólica, solitária e mágica, trans­
dade do canto para quem jaz “encostada à terra fresca” e já ingressou no
corrida naquele “vergei colorido”, reemerge em múltiplos versos. Como os
“tempo unânime” , no território da "linguagem inviolável”.
de “Desenho” (Mar Absoluto), em que transfigura o motivo horaciano da
Em estudo recente, Miguel Sanches Neto ponderou acertadamente o
vida tranqüila e feliz, cujo tecido imagético vai se amarrando com conec-
peso da precoce orfandade na formação da “mitopoética” de Cecília Meireles,
tivos, como que ressoando o antigo bordar de sua mãe, a qual deixara uma
cuja infância, malgrado a dedicação e o afeto vitais da avó, foi vivida sob o
pequena tapeçaria inacabada num bastidor, e representando a amorosa
“signo da perda” e da “distância”". E como se o vácuo criado pela ausência
tessitura das roupas da futura poeta pelas mãos da cantante avó - poema
da família nuclear e ancestral fosse, afinal, o que lhe viria a gerar depois a
emblemático da lírica memorial ceciliana, e que acaba por desenrolar, à
pulsão de escrever, polarizando-lhe a energia psíquica, e a lhe ditar a obriga­
maneira de uma tapeçaria, o quadro quase paradisíaco daquela infância
ção atávica de realizar e de fazer por várias vidas ceifadas, além da sua - o
que também ajudaria a explicar a vastidão da obra que deixou, em verso e
prosa, e a multiplicidade de suas áreas de interesse intelectual e de atuação.
7. “[...] le sang de nos ancêtres qui forme avec le nôtre cette chose sans équivalence que
d'ailleurs ne se répétera pas [...]” ( Lettres à un jeune poète). Transportam meus ombros secular compromisso. [...]
8. "Desenho" e "Elegia". Mur Absoluto: os póstumos "Papéis" e "Cata. Cata. que é Viagem Vigílias do olhar não me pertencem;
da índia...”, em Poemas II. Nas memórias de infância a avó aparece na pele da persona­
gem "Boquinha de Doce".
9. Depois de ter visitado os Açores, já aos cinquenta anos. C ecília M eireles registrou: “A
paisagem é com o se fosse a do meu quintal, na infância”. Carta a Cortes-Rodrigues. 6
nov. 1952. Sobre a avó. diria Cecília que "falava com o Camões". Ver a entrevista da 10. Gaston Bachelard. “Les Rêveries vers l'Enfance", La Poétique de la Rêverie. 1971, p. 84.
escritora transcrita em sua Poesia Completa, 4. ed., op. cit., principalmente pp. 81-82. 1 1. “Cecília Meireles e o Tempo Inteiriço”, Poesia Completa. 5. ed.. 2001. p. XXII.
130 PEN SA M EN T O E “L IR IS M O P IR O ” NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES INCONSCIENTE, MITO, M EM Ó R IA 131

trabalho dos meus braços R E SSO N Â N C IA S D E U M A PA LA V R A


é sobrenatural obrigação.
Em “Memória”, porém, outro poema em que Cecília Meireles escava
Perguntam pelo mundo
as “ausências” e incursiona orficamente pelo mundo dos mortos, o tom não
olhos de antepassados;
querem, em mim, suas mãos é elegíaco. Tampouco se trata de lírica memorial, no sentido de representa­
o inconseguido. ção de experiências havidas, mesmo que perdidas. O que faz lembrar a
Ritmos de construção “evocação inventada ”, que toma lugar à “evocação contada ” de uma rea­
enrijeceram minhajuventude, lidade ou experiência, conforme a distinção formulada por M ário de
e atrasam-me na morte.
Andrade13.
Vive! - clamam os que se foram,
ou cedo ou irrealizados.
Vive por nós! - murmuram suplicantes. Memória

Vivo por homens e mulheres Minha família anda longe,


de outras idades, de outros lugares, com outras falas. [...], com trajos de circunstância:
uns converteram-se em flores,
outros em pedra, água, líquen;
diz o emblem ático poema Compromisso, do livro M ar Absoluto, que alguns, de tanta distância,
explicita a idéia de viver por outras vidas - “Talvez experimente ainda a nem têm vestígios que indiquem
vida em mim”, diz o poema póstumo “A Morta”, sobre a mãe - e alude aos uma certa orientação.
esforços tenazes de estudo e de trabalho empreendidos desde a adolescên­
Minha família anda longe,
cia. O que recobre a singular dialética de acercar-se dos antepassados com
- na Terra, na Lua, em Marte -
o intuito de deles extrair e ao mesmo tempo “emprestar” força vital.
uns dançando pelos ares,
outros perdidos no chão.
Porque não há mais ninguém,
não, não haverá mais ninguém, Tão longe, a minha família!
tão decidido a amar e a obedecer a seus mortos. Tão dividida em pedaços!
Um pedaço em cada parte...
assim reitera o compromisso atávico em “Mar Absoluto”, do livro homônimo. Pelas esquinas do tempo,
Os “dias” acumulam “ausência” na vida da poeta, como diz um verso brincam meus irmãos antigos;
uns anjos, outros palhaços...
do poema “Perspectiva”, em Viagem. “ [...] escavaremos o silêncio com a
Seus vultos de labareda
nossa / memória”, propõe o póstumo “Pregão do Infortúnio” . Tal escava­ rompem-se como retratos
ção instaura outro tempo, o do instante poético: “Na minha fluida memória / feitos em papel de seda.
meu tempo não sabe de hora” (O Aeronauta-2). E dessas experiências inte­
riores12do vácuo, do silêncio e da ausência a escritora retiraria grande parte Vejo lábios, vejo braços,
- por um momento persigo-os;
da matéria para sua escrita.
de repente, os mais exatos
perdem sua exatidão.
Se falo, nada responde.

12. Empresto a expressão “experiências interiores”, de possível origem junguiana, do ensaio


de Leo Spitzer sobre Pedro Salinas, em Ligüistica e Historia Literaria. 1961, p. 207. 1 3. Em “Luís Aranha ou a Poesia Preparatoriana", Aspectos da Literatura Brasileira, s.d., p. 69.
132 PENSAMKNTO E LIRISMO PURO" NA POESIA l)E CECÍLIA MEIREI.ES ÍNCONSCIKNTE, MITO, MEMÓRIA 133

Depois, tudo vira vento, tos habitariam não apenas nosso planeta, mas também, em gradação dc
e nem o meu pensamento
distância, o satélite e outro astro (Lua, Marte), os ares e o oceano, encon­
pode compreender por onde
passaram nem onde estão. trando-se ao mesmo tempo dispersos pelos planos terrestre, submarino c
cósmico. O eu poético, aqui afastado do eu biográfico e empírico e voltan­
Minha família anda longe. do as costas à evocação “contada”, empreende a missão visionária de reco­
Mas eu sei reconhecê-la: nhecimento dos “vultos”, fragmentos (lábios, braços, cílio etc.), avatares
um cílio dentro do oceano,
(anjos, palhaços, nuvem, lesma) em que se dispersou essa fantástica linha­
um pulso sobre uma estrela,
gem, mas, como se seus integrantes houvessem bebido a água do Lethe -
uma ruga num caminho
caída como pulseira, “ela se faz de esquecida” - , com ela, por mais que a poeta se faça lembrada,
um joelho em cima da espuma, não logra comunicação. Por fim, o eu poético tenta ironicamente crer que
um movimento sozinho as epifanias obtidas pela criação hiperbólica de metáforas constituem ape­
aparecido na poeira... nas imaginação, mas conclui ser tudo memória.
Mas tudo vai sem nenhuma
Logo chamam a atenção a forte visualidade do poema, a ausência de
noção de destino humano,
de humana recordação. qualquer apelo a alguma escatologia canônica c, ainda, a inverossimilhança
da representação sensível da “família”, no sentido oposto à verossimilhan­
Minha família anda longe. ça aristotélica14, procedimento que será abordado na parte seguinte desta
Reflete-se em minha vida, análise, quando se procurará investigar uma questão crítica central aqui, ou
mas não acontece nada:
seja, em que solo de afinidades se radicam as imagens justapostas e míticas -
por mais que eu esteja lembrada,
no sentido de não estarem afetadas “pelos cânones da adaptação plausível à
ela se faz de esquecida:
não há comunicação! experiência comum” 15 - que se acumulam em “Memória” . Afinal, verossí­
Uns são nuvem, outros, lesma... mil seria se tal fam ília fosse localizada pelo eu poético num cemitério16,
Vejo as asas, sinto os passos vinculada a um sentimento de tristeza ou, pelo modo visionário, situada no
de meus anjos e palhaços, céu ou mesmo no inferno cristãos ou mesmo no subterrâneo Hades grego,
numa ambígua trajetória
o que não ocorre no poema. A palavra “morte” nele está ausente, assim
de que sou o espelho e a história.
Murmuro para mim mesma:
como os símbolos e alegorias convencionais de sua representação17. Não se
'É tudo imaginação!’ trata, ainda, como acontece no extraordinário “Caronte" (Mar Absoluto),
de um poema em que o sujeito poético nomeia uma figura mítica, dela
Mas sei que tudo é memória... fazendo seu interlocutor:

O poema, imagético por excelência, abre-se como uma narrativa Caronte, juntos agora remaremos:
(“Minha família anda longe”), reiterando enfaticamente (por seis vezes, eu com a música, tu com os remos.
duas delas com perplexa exclamação) a distância em que se encontra a
Meus pais, meus avós, meus irmãos,
fam ília do sujeito poético, revestida de trajas - a variante de uso mais
já também vieram, pelas tuas mãos.
corrente em Portugal também seria indício de que o poema terá sido escrito
por ocasião daquela mencionada viagem de 1934 - próprios de cerimônias
14. Cf. Aristóteles, 1451a, 1460a. 1461b, em Poética, 1987, pp. 209, 225-226 e 227-228.
rituais ou de ocasiões solenes, conforme o significado dicionarizado de
15. Cf. Northrop Frye, Anatomia tia Crítica, 1973. p. 138.
“circunstância”. Mas fantasticamente tais “vestes” assumem a forma de ve­ 16. Como ocorre em poemas com o “Elegia", de Vaga Música, ou especialmente nos seg­
getais {flores, líquen), minerais (pedra), elemento aquático (água), aéreo mentos 5 e 8 da "Elegia" à avó (Mar Absoluto).
(nuvem) ou animal (lesma), com que os membros do clã ou seus fragmen­ 17. Cf. J. Huizinga. "A Visão da Morte", O Declínio da Idade Média, 1996, pp. 145-157.
134 PEN SA M EN T O E ‘L IR IS M O P IR O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES INCO NSCIENTE, MITO, M EM Ó R IA 135

M as eu sempre fui a mais marinheira: impulso para o mergulho do eu poético na imaginação e na memória, para
trata-me como tua companheira. [...] a escavação de outros estratos, pré-lógicos ou inconscientes, da psique22.
Já as primeiras leituras dão conta de que “Memória” é um poema em
Dize: a voz dos homens fala-nos, ainda?
Não, que antes do meio sua voz é finda. [...] que a disposição anímica do sujeito poético parece conectar-se com algum
estado alterado da consciência, próximo ao onírico, terreno ligado ao in­
Já “Memória” consiste, antes, numa elegia do Ubi sunt? às avessas, de consciente ou “subconsciente”. A própria poeta admitiría escrever em esta­
um poema onde não há perguntas, mas acúmulo de respostas à fórmula dos fronteiriços ao devaneio, em versos como21:
ausente do “Onde estão os que viveram neste mundo antes de nós?”, cujas
origens se entroncariam na Bíblia18. Nem é preciso dormir, para a imaginação desmanchar-se em figuras ambíguas.
(“Êxtase”, Viagem)
O poema é construído com predomínio de substantivos concretos e
verbos de ação e até lúdicos (andar, converter-se, dançar, brincar, passar),
- diluindo muitas vezes, no processo, o contorno de sua identidade real ou
com incidência econômica de adjetivos (uma dúzia para mais de cinqüenta
do eu empírico:
substantivos). A simplicidade de expressão é reiterada pela sintaxe minima­
lista, que apenas alinhava a enumeração de imagens, e faz lembrar o
Nas teias de sonho que teço
“metaforismo contínuo” introduzido na lírica moderna por Rimbaud19. A - quem fico sendo, em meu limite,
ênfase na espacialização, aqui precisa embora fantástica, dos vestígios ou sem ver meu fim nem meu começo?
fragmentos da família - na Terra, na Lua, em Marte; pelas esquinas do (“O Enorme Vestíbulo”, Retrato Natural)
tempo; dentro do oceano; sobre uma estrela etc. - permite identificar uma
primeira tensão, entre a “exatidão” obsessiva dos adjuntos adverbiais de Mircea Eliade assinalou os vínculos da criação poética com certos
lugar, e a virtualidade imaginária da maioria deles, contida nas imagens estados extáticos de povos primitivos - os quais lhes davam acesso ao so­
dotadas de poder sensível. São poucos os versos puramente emotivos - eles brenatural ou a “mundos paralelos” - , chegando a considerar que as ori­
se restringem àqueles precedidos da partícula de intensidade tão, no início gens da poesia lírica são “mais ou menos diretamente tributárias de [...]
da terceira estrofe - , os quais quase destoam do tom cool, despojado, mes­ experiências extáticas de tipo xamânico”24. Por sua vez, Northrop Frye
mo lúdico do poema. admite a criação poética como um processo associativo, amiúde “abaixo do
A considerar a hipótese de que “Memória” surgiu em resposta a uma
pergunta do amigo Osório de Oliveira - que seria, assim, o formulador
involuntário do Ubi sunt? - família, que aparece cinco vezes ao longo do
2 2 . Resta tentar identificar, mais adiante, a que concepção de inconsciente se poderá vincu­
texto, terá sido a palavra evocadora - a “musa inspiradora” é a palavra,
lar o poema em estudo.
sugere Bachelard20 - e desencadeadora de uma rede de associações de ima­ 2 3 . Em carta de 1938 a uma amiga portuguesa, que convirá lembrar aqui, Cecília Meireles
gens e de símbolos21. Ou seja, palavra cheia de ecos, fam ília terá sido o relata algumas experiências místicas ou paranormais nos tempos de estudo intensivo
das tradições m ístico-filosófieas da índia, que por certo se avizinham das visões e sen­
sações sinestésicas captadas nos estratos mais profundos da psique: “À noite, no meio
do sonho, parecia que me despregava do corpo, e andava por singulares caminhos,
O autor detém-se nos motivos, símbolos e “imagens visíveis” da morte, entre os quais com atmosferas coloridas, onde certos vultos deslizavam, atravessavam-me, e eu os
o Ubi sunt?, as caveiras e a dança macabra. inalava, e assim nos comunicavamos. | ...J Vi e ouvi, andei, voei, surpreendí... Luzes,
18. Cf. Davi Arrigucci Jr., “A Festa Interrompida”. Humildade, Paixão e Morte - A Poesia fogos, músicas, ritmos. |...|" Walmyr Ayala (W. A.), "Introdução", Cecília Meireles,
de Manuel Bandeira, 1990, principalmente p. 217. Poesia Completa. 4. ed., op. cit., p. 15.
19. Cf. Augusto Meyer, Le Bateau Ivre - Análise e Interpretação, 1955, p. 75. 2 4 . Mircea Eliade. Mitos, Sonltos e Mistérios. 1989. p. 33. Segundo o autor, o xamã é o
20. Gaston Bachelard, A Poética do Devaneio, 1988, pp. 6-7. “especialista no êxtase por excelência” e “graças a suas capacidades extáticas" pode
2 I. Aqui tomados no sentido conferido por Northrop Frye, de palavras ou imagens “usadas empreender “viagens [...) em todas as regiões cósmicas", tornando-se, além de curador,
com algum tipo de referência especial". Op. cit., pp. 75-77. místico e visionário: p. 56.
INCONSCIENTE. MITO. MEMÓRIA 137
136 PEN SA M E N T O E “L IR IS M O Pl RO" NA POESIA l)E C E C ÍL IA M EIR EL ES

limiar da consciência” , quando emergem “ligações de sentido ambíguo e ses da atenção” ou nos “ritmos interiores” suscetíveis de levar à escuta do
ligações de memória” semeihantes às do sono25. “sub-eu”, de organizar e transmitir a “dinâmica do estado lírico” a que se
E preciso indagar: como o texto em estudo aproxima-se do êxtase ou referiu Mário de Andrade11. Ou, ainda, no estado de recklessness, aludido
do estado onírico? Trata-se de mais um poema ceciliano construído em por Northorp Frye, “o senso de despreocupação ou relaxação que acompa­
setissílabos, o metro embalador por excelência em língua portuguesa, aque­ nha a perfeita disciplina, quando já não podemos distinguir o dançarino"
le em que o poeta praticamente deixa de comandar o ritmo do verso, sendo, de sua dança12. Disciplina que, entretanto, subjaz na construção ágil do
antes, comandado por ele26. “O metro é apenas um elemento de garantia texto, no recorte preciso da escolha sonora e plástica das palavras, no jogo
formalística que permite à gente se isentar de preocupações construtivas”, flutuante e incerto das rimas e demais recorrências sonoras - enfim, no
anotou Mário de Andrade a propósito da própria Cecília Meireles, ao co­ pleno domínio técnico da linguagem poética, o qual, segundo já reconhe­
mentar o livro Viagem, no qual encontrou poemas com rima e metrificação ceu a crítica13, se sobressai na maturidade formal da escritora - capaz então
raras vezes “tão justificáveis”27. de conciliar magia e “precisão matemática”, conforme a fórmula de Novalis
e de Poe1J.
cada recordação acorda suaves ritmos; Se não escrito em estado de "êxtase”, “Memória” será, de todo modo,
um poema emblemático da figuração dos mencionados eclipses de consciên­
diz a poeta em um verso do ultraonírico “Da Bela Adormecida”, do mesmo cia lógica na lírica ceciliana - poesia de “rápida fixação consciente”, disse
Vaga Música, como que aludindo à corrente de transmissão entre memória Mário naquele texto sobre Viagem. O ritmo evocador, afeito à respiração
e ritmo, analisada, entre outros, por Cecil Bowra, em seu estudo sobre vital regular em estado de repouso ou sonho, atua em “Memória” como rito
poesia e canto primitivo28. de passagem do ritmo do mundo ao ritmo do eu, do pensamento discursivo e
Em poemas como “Memória”, é como se o ritmo suave, cancioneiro seqüencial para o estado de consciência relaxada, de “distensão psíquica”,
e embalante da redondilha maior, com o qual tcccu algumas de suas mais enfim, para o instante de “devaneio poético”, propício à criação e à associa­
extraordinárias peças líricas2930*, conectasse mais instantaneamente a poeta ção de imagens, as quais antecedem o pensamento15. Segundo Bachelard, os
com aquela disposição anímica que se distancia do pensamento discursivo e devaneios (rêveries) ensejam um mergulho tão profundo em nós mesmos que
lógico, com um estado próximo ao hipnótico'", fazendo pensar nos "eclip- nos “desembaraçam" de nossa história16- como parece ocorrer com o sujeito
poético nesse poema, que estará, como já observei, apartado do eu empírico,
e substituindo a biografia realista pela associação de imagens simbólicas ou
2 5 . Northrop Frye, op. cit., particularmente pp. 266-277. míticas. E como se o eu poético se conectasse, nesse poema, com um tempo
2 6 . E o que diz Antônio José Saraiva, ao abordar o uso da redondilha em Camões. Luís de
anterior ao “exílio da individuação” nietzschiano.
Camões, 1972. p. 53.
2 7 . Mário de Andrade, “ Viagem", O Empalhaclor de Passarinho, 1972. particularmente p. Também as recorrências sonoras - rimas consoantes e assonantes,
163. Vale lembrar que. para Proust, aos "bons poetas a tirania da rima força a encontra­ assonâncias e aliterações, anáforas e repetições paralelísticas - , os recursos
rem suas maiores belezas”. Cf. Dámaso Alonso, “Claridad y Belleza de las Soledades",
1982, p. 45.
2 8 . Segundo Cecil Bowra, o canto nasce da ação rítmica. Poesia y Canto Primitivo, s.d. . p. 30.
2 9 . "Terra” (Viagem) - poema que. no Empalhador de Passarinho, Mário de Andrade 3 1 . “A Escrava que Nào é Isaura", I960, p. 228.
equipararia ao que “há de milhor em Paul Valéry” (p. 163); “Canção de Alta Noite", 3 2 . Anatomia da Crítica, op. cit., p. 96.
"Canção Excêntrica". "A Doce Canção”. “C onfissão”, Vaga Música; "Por Baixo dos 3 3 . Além de Mário de Andrade, ver, entre outros: Álvaro Lins, “Dois Poetas e Uma Poeti­
Largos Ficus”, Mar Absoluto; “Fui Mirar-me”, “Canção do Amor-Perfeito”, “Pomba sa”, 1947, pp. 92-99; e Manuel Bandeira, Apresentação da Poesia Brasileira , s.d., pp.
em Broadway”. Retrato Natural, segmento 21 de Metal Rosicler ou ainda os épico- 1 6 6 -1 6 8 .
líricos “Romance das Palavras Aéreas" e "Fala Inicial". Romanceiro da Inconfidência - 3 4 . Cf. Hugo Friedrich, Structures de la Poésie Moderne, 1976, particularmente pp. 48 e
obra que utiliza largamente a redondilha maior - , entre tantos outros. 6 1 -6 4 .
3 0 . Segundo Northrop Frye. o ritmo em geral antecede à "seleção de palavras”, processo 3 5 . Gaston Bachelard, A Poética do Espaço, 1990b, p. 4. Segundo Mário de Andrade, a asso­
que “também se reflete nas canções de ninar" e se vincula à “encarnação hipnótica" ciação de imagens deriva da “ordem do subconsciente”. “A Escrava...”, op. cit., p. 245.
(charm). Op. cit., pp. 271-274. 3 6 . Idem, “Les Rêveries vers l'Enfance”, La Poétique de la Rêverie, op. cit., p. 84.
138 PENSAMENTO K “LIRISMO l'HRO* NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES INCONSCIENTE, MIT», MEMORIA LW

musicais da linguagem, parecem funcionar aqui, antes de tudo, como um No empenho de iluminar suas idéias acerca do “lirismo puro” ou “ab­
procedimento mnemônico, como instrumento de marcar compasso para soluto" - que perseguiu da gênese ao fim de sua produção crítico-teórica, e
trazer à tona elementos guardados nos estratos profundos da consciência, o qual viria a localizar, na virada da década de 1930 para a de 1940, na
no imaginário e na memória, como que viabilizando a conexão com o eu poesia lírica de Cecília Meireles41 - , Mário de Andrade foi no Brasil decer­
profundo, onde afinal pode nascer o movimento lírico3738. É como se o jogo to o intelectual que mais refletiu sobre os vínculos entre poesia e incons­
encantatório de sons e ritmo fosse deslizando o eu poético para aquele ciente (ou “subconsciente”, como preferia). Tal conexão, respaldada pela
estado ambíguo referido por Bachelard, em que “a imaginação reanima a técnica - ele entendia - , levaria ao “lirismo puro”, ou seja, àquele “grafado
memória”, em que a memória sonha e o devaneio se recorda™, fazendo com o mínimo de desenvolvimento que sobre ele possa praticar a inteligên­
ainda lembrar a formulação de Baudelaire: “M anipular sabiamente uma cia”42 ou a razão, o qual vinha buscando desde os anos de 1920 na produção
língua é praticar uma espécie de feitiçaria evocadora”39. de nossos poetas modernistas. Antes mesmo dos Manifestos do Surrealismo,
O verso anafórico que abre quatro das seis estrofes do poema (“M i­ de André Breton - onde diria depois ter encontrado a melhor formulação
nha família anda longe” ) funcionará como uma retomada do “moto líri­ da “essência da Poesia” 43- , partindo da poética de Rimbaud e de sua “al­
co” inicial, sujeito aos embates da lucidez do eu consciente, o qual se vai quimia do verbo”, e recorrendo a teorias psicanalíticas de Freud e do psicó­
im iscuindo ao longo das estâncias de tam anho irregular - que se vão logo francês Théodule Ribot, entre outros, Mário esclareceu, ainda em
preenchendo ao sabor dos desiguais fluxos da “im aginação” ou da “me­ 1922, que “embora a atenção, para o poeta modernista, se sujeite curiosa ao
mória” - e introduzindo irrupções de “inteligência” ou de conceitos. Es­ borboletear do subconsciente, [...] a atenção continua a existir”44. Citando
tado consciente simbolizado nas palavras “pensam ento” e “com preender” Surbled, Mário reitera essa concepção:
que irrompem ao fim da terceira estrofe, e do qual o eu poético retoma as
“rédeas” no fecho, quando ironicam ente, num recurso possivelm ente | ...] se o subconsciente deixa-se levar por mil afastamentos, nem por isso o fio que
o liga à inteligência se rompeu. Foi apenas encompridado. O mínimo esforço de atenção é
expressionista e como que partindo em dois definitivam ente o corpo do
suficiente para que o espírito colha as rédeas e obrigue o sub-eu a obedecer ao eu45.
poema, tenta atribuir as epifanias do sensível ao jogo da fantasia - “M ur­
muro para mim mesma: / ‘E tudo im aginação!’” - , mas sobrepondo a
Em “Memória”, a “ordem subconsciente” da disposição anímica en­
esses versos um aparente conceito: "M as sei que tudo é m em ória”. A
contra-se em estado de tensão com o eu consciente. A poeta “encomprida”
irrupção desse verso de juízo suspende a rima em “ão" que vinha arrem a­
o “fio” nas imagens, mas o recolhe no vigilante “esforço de vontade”,
tando cada estrofe, como que denunciando a plena ascensão do sujeito
capaz de gerar conceitos - e ambos, aqui reportando-se respectivamente ao
poético ao estado de vigília. O poem a se encerra, assim, com a referência
“sub-eu” e ao eu consciente, constituem outro par de fundo de um acúmulo
explícita às duas faculdades supremas do fazer poético, “matrizes da in­
de polaridades em condito ao longo do texto, todo ele vazado na enumera­
venção” - imaginação e memória - , sobre as quais ainda me deterei adian­
ção de oposições (eu poético/família; uns/outros; tudo/nada) e em ima­
te, e cujos significados se confundem, segundo Vico. Para o pensador
gens, fragmentos de conceitos e verbos antitéticos: ares/chão; anjos/palha-
italiano, memória significa também

[...] a faculdade pela qual nós conformamos as imagens, e que os Gregos chamaram
“fantasia", e nós “imaginativa”: pois o que nós comumente dizemos “imaginar” dizem os
41. “Onde a poetisa se torna extraordinária e admirável é nos poemas que eu diria de poesia
Latinos memorare40.
pura”. Mário de Andrade, "Viagem", op. cit., p. 162. Ver também carta de Mário em
Moacir Werneck de Castro, Mário de Andrade - Exüio no Rio, 1989, particularmente
p. 197.
3 7 . Mário de Andrade, “A Escrava...", op. cit., p. 208. 42. Mário de Andrade, “A Escrava...", op. cit., p. 205.
3 8 . Em La Poétique Je la Rêverie, op. cit., p. 18. 43. Idem, “A Poesia em 1930”, Aspectos da Literatura Brasileira, op. cit., p. 41.
3 9 . Cf. Hugo Friedrich, op. cit.. pp. 63-64. 44. Idem, “A Escrava...”, op. cit., p. 243.
4 0 . Cf. Alfredo Bosi. “Uma Leitura de V ico”. O Ser e o Tempo Ja Poesia, 1990, p. 200. 45. Idem, p. 243.
140 l’KN SAM KNTO K 'L IR IS M O PU RO" NA POKSIA l)K (4C I1.IA M Kl R K IL S INCONNC1KNTK, MITO, MKMORIA III

ços; persigo/perdem, [eu\ falo/nada responde; lembrada/'esquecida; mi- Essa estância abriga a enumeração nominal de partes e atributo antropo-
vemAesma; imaginação/memória; em símbolos do efêmero e do que passa, mórficos (cílio, pulso, ruga, joelho, movimento), acompanhada de adjuntos
tão recorrentes na lírica ceciliana (água, nuvem, tempo, espuma, ares, flo­ adverbiais de lugar díspares e longínquos entre si (dentro do oceano, sobre
res, vultos, labareda, vento, poeira) e do que permanece na duração huma­ uma estrela, num caminho, em cima da espuma, na poeira) e enumerados
na (pedra, astros, estrela). sem conectivos, o que intensifica a idéia de dispersão e de irrealidade no
Nessa organização dual antitética, que abarca os quatro elementos pri­ conjunto representado. Aqui a enumeração, embora precedida dos artigos
mordiais, províncias matrizes do cosmos (ar, água, terra, fogo), e elementos indefinidos, tem função mais “disjuntiva” do que "conjuntiva”, expressando
ou avatares da figura humana, repousa parte considerável da estranheza do separação, ausência de unidade47, representando a já mencionada idéia de
discurso, fundado no elemento de surpresa, que reforça a idéia de caos de que caos de que dão conta as imagens do poema. Todavia, o aparente conceito
dá conta semanticamente o poema. Tal procedimento aproxima dialetica- contido nos três últimos versos dessa estrofe (“Mas tudo vai sem nenhuma /
mente outras diferentes ordens de signos ou símbolos - sublimes, de um noção de destino humano, / de humana recordação”.), cujo fulcro é a palavra
lado, e terrenos ou prosaicos, de outro: anjos, astros, nuvem, estrela, em noção, rearranja sinteticamente a acumulação caótica (procedimento identi­
oposição a chão, esquinas, ruga, pulseira, joelho, poeira, retratos de papel ficado no sintético tudo, que recorre na terceira estrofe e no sintético verso
de seda, lesma; sagrados e profanos, apolíneos e dionisíacos, sublimes e final), atuando como “força unificadora” e fazendo pensar no "resumo"
irreverentes: anjos/palhaços; velozes e lentos: vento, pensamento, asas, ordenador, ou no recolho encontrado em autores renascentistas e barrocos. O
opondo-se a lesma. Tensões que têm sua contrapartida formal na polaridade gosto pelo fragmentário, encontrado em poetas panteístas modernos como
entre a medida apolínea do ritmo e a fatura sonora do poema e, de outro lado, Rilke e Whitman, entre outros, é tido como recurso estilístico comum na arte
a expansão dionisíaca, caótica do imaginário no plano semântico. E que fa­ barroca espanhola (e encontrado particularmente no conceptista Quevedo,
zem pensar no conceptismo barroco e, ainda, na harmonia feita de “tensões considerado por alguns um "precursor" da enumeração caótica moderna), a
contrárias, como de arco c lira” de Heráclito de Éfeso46. qual se compraz cm tensões contrárias entre forças centrífugas e centrípetas48.
Outra tensão entre dois pólos antitéticos consiste na unidade estilhaçada Já Baudelaire considerava que o primeiro ato da imaginação é o da de­
da família - “Tão dividida em pedaços!" - , cujo correspondente formal está composição. Também a “magia verbal” pode fazer o mundo explodir em frag­
no recurso da enumeração, em contraposição ao eu que a procura sobre- mentos49. No Brasil, em 1922, Mário de Andrade, naquele ensaio em que
humanamente reconhecer. Tensão que ressoa no jogo entre uno e múltiplo ao teorizou sobre a poesia do inconsciente e o “lirismo puro”, considerava que o
longo do texto, podendo ser localizada também na redução sintética do plural poeta moderno, “ser multiplicado”, dissocia o todo “pela análise", escolhendo
em singular - “outros ” converteram-se em “pedra, água, líquen”; “Un.v são os “elementos com que erigirá um outro todo”7". O que, afinal, remonta às
nuvem, outros, lesma” . No entanto, a família reflete-se na vida da poeta, de origens da poesia - Homero compôs a Quimera com partes do corpo de dife­
cuja trajetória é espelho, daí sendo possível inferir que também o eu poético, rentes animais. Procedimento que terá por certo repercutido em vanguardas
ainda que investido de faculdade demiúrgica e divinatória que lhe capacita como o cubismo - que na literatura, entre procedimentos formais revolucioná­
rastrear o invisível pelo cosmos, se encontra dilacerado ou dividido. Afinal, rios que levaram ao caligrama, optou também por compor e decompor o real e,
tal família, ainda que dispersa em fragmentos e em avatares pelo cosmos, e ainda, pela supressão do anedótico e do descritivo, subtraindo os nexos lógicos
inacessível à comunicação, o eu lírico consegue “reconhecer”, como está dito e de continuidade temporal, levando ao “simultaneísmo" do passado e do pre-
já na quarta estrofe.

4 7 . Cf. W. Schumann, em Leo Spitzer. "La Enumeración Caótica en Ia Poesia ‘Moderna'".


46. Presente na poesia trovadoresca. nos cancioneiros e em Petrarca, além do barroco, o Linguística e Historia Literaria, 1961. p. 250.
conceptism o pode também conectar extremos e ligar o que parece separado. Ver José 4 8 . Ver Leo Spitzer, op. cit., pp. 247-291. principalmente pp. 273-276.
M. Pozuelo. “Introdução”, em Francisco de Quevedo, Antologia Poética, 1994. sobre­ 4 9 . Cf. Hugo Friedrich, op. cit., particularmente pp. 68-99.
tudo p. XXXIII; e Heráclito. Fragmento 62. Os Pré-Socráticos, 1999. p. 93. 5 0 . Mário de Andrade. “A Escrava...”, op. cit., pp. 237 e 265-266.
142 PEN SAM ENTO E “I.IR1SM 0 P I R O ' NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES INCONSCIENTE, MITO, M EM ORIA ILl

sente, privilegiando o paradoxo e a busca da surpresa; e o creacionismo, seu Dos meus retratos rasgados
me levanto.
aparentado hispano-americano, que voltou as costas à descrição da realidade
E acho-me toda em pedaços,
exterior e, se servindo da imaginação e da palavra, da criação de imagens e assim mesmo vou cantando.
autônomas, objetivou a “poesia pura”, fmto da invenção criadora do poeta"1. (“Tempo Viajado”, Retrato Natural)
Propostas, como a de fragmentação do uno, que ressoam na lírica madura de
Cecília Meireles - como no poema “Memória” - , na qual uma das recorrências, Divisão órfica que reemerge em outros poemas sob o avatar do eu
corretamente observada em avaliação polêmica de Antonio Cândido e José múltiplo e sob a metamorfose do “instante” - o que faz pensar no “lirismo
Aderaldo Castello, consiste em projetar “a desintegração” do eu e buscar o do instante anônimo em que o espírito aparece a si mesmo”, que foi ainda
“próprio reconhecimento”52. Desintegrar orficamente o próprio corpo ou o dos relacionado a Paul Éluard53, surrealista que manteve metro e rima e que em
antepassados, representar simbolicamente a divisão ou a autodissolução do eu seu célebre poema “Une seule pensée” usa a enumeração hiperbólica de
constituem, com efeito, procedimento recorrente nessa lírica. adjuntos adverbiais de lugar. Diz Cecília:

O olhar caiu dos seus olhos, e está no chão, com as outras pedras, Se me contemplo,
(“Orfandade”, Viagem) tantas me vejo,
que não entendo
E o rosto de meus avós estava caído quem sou, no tempo
pelos mares do Oriente, com seus corais e pérolas, do pensamento. [...]
e pelos mares do Norte, duros de gelo. (“Auto-Retrato". Mar Absoluto)
(“Mar Absoluto” , do livro homônimo)
[...] na que estou sendo a cada instante,
Que eu sou gota de mercúrio, outra imagem se despedaça.
dividida, (“Transição", Mar Absoluto)
desmanchada pelo chão...
(“Canção Quase Inquieta”, Vaga Música) "Somos uma difícil unidade”,

E, nesse abismo do meu sonho,


diz ainda no poema póstumo “Biografia”.
[...]
me decomponho e recomponho. Em “Memória”, a fragmentação do uno {família e, por extensão, o eu
(“Personagem”, Viagem) poético que lhe reflete a trajetória) está, como se disse, sujeita à ordem da
forma e à coesão do aparente conceito, que acaba por arrematá-lo. Mas a
Deixaram meu rosto força e a estranheza do poema em estudo repousam, antes, como também já
fora do meu corpo.
se assinalou, nas metáforas justapostas dos avatares e fragmentos sensíveis da
Meu rosto perdido
família e suas localizações espaciais, revestidas de irrealidade e irracionali­
num longe lugar![... ]
(“Rosto Perdido", Vaga Música) dade. O associacionismo “subconsciente” de idéias e de imagens leva ainda à
rapidez, à velocidade, à “simultaneidade” - que consiste na “coexistência de
coisas e fatos” num mesmo instante - , também como conseqüência da “rapi­
dez espiritual que se caracteriza pela síntese”, nos tempos modernos; síntese
5 1. Cf. Demetrio Estébanez Calderón, Diccionario de Términos Literários, /996. Segundo
Apollinaire, considerado fundador do “orfismo pictural”, o “cubismo órfico” é a arte de
representar conjuntos com elementos emprestados não à realidade visual, mas inteiramente 53. Marcel Raymond, De Baudelaire ao Surrealismo, 1997, p. 299. Vale recordar a crônica
criados pelo artista. Apollinaire. Alcools - Choix de Poèmes, 1965, p. 23. ceciliana “L’Honneur des Poètes”, em que a escritora se detém em alguns dos procedi­
5 2 . Presença da Literatura Brasileira, vol. 3, 1967. p. 114. mentos “hipnóticos” de Éluard em “Une seule pensée”. Correio da Manhã, 15 set. 1944.
144 PENSAMENTO 4 "I.IRISMO PL RO” NA l'OESlA DE CKC1L1A MI.iRKl.KS INCONSCIENTE. MITO, MEMÓRIA 145

“suprema” e “abstração do universal”, como processo de organização estru­ nhecido”57 e, já no século XX, seria teorizada pelo surrealismo. Parte con­
tural do poema, conforme Mário de Andrade54. siderável da “excentricidade” da arte do século XX deveu-se à “força de
Chamam também a atenção em “Memória” a agilidade de construção e sua revolta contra a tirania da falácia representativa”58 - isto é, à suprema­
o dinamismo das metáforas. Por meio de um “olhar” hiperbólico, o eu poé­ cia da imaginação desenfreada, tirânica, sobre a representação “realista” do
tico, subvertendo a lei da gravidade, implodindo os limites físicos de espaço mundo ou das experiências. Bachelard iria mais longe ao argumentar que,
e tempo e voltando as costas ao verossímil, passa, no empenho sobre-huma­ mais do que formar imagens da realidade, a imaginação poética é a facul­
no de captar os vestígios ou fragmentos dispersos da fam ília perdida, em dade de “formar imagens que ultrapassam a realidade" - à “imaginação
movimentos bruscos do plano terrestre ao cósmico, aproximados em versos criadora” pertence a “função do irreal” - , consistindo, assim, em faculdade
ou estrofes contíguos - do oceano à estrela, do caminho e da poeira aos ares de “sobre-humanidade”59.
e à espuma, da Terra à Lua e a Marte - , como que “voando” do sublime ao Prenunciando uma das principais vertentes da poesia do século XX,
terrestre e refazendo o percurso em sentido inverso, num sobe, desce e mer­ Baudelaire disse preferir os “monstros” da fantasia à “trivialidade positi­
gulha que dá conta da mobilidade veloz do espírito e da expansão do imagi­ va”, considerando a imaginação como “aparentada ao infinito”. E a alma
nário. Procedimento lírico que faz lembrar ainda o êxtase xamânico a que se lírica, dela se servindo, se tornaria capaz de dar passadas rápidas como
referiu Mircea Eliade55 - e recorrente na lírica da autora, conforme se vê, síntese rumo a ele ou ao desconhecido'10. Infinito e desconhecido que,
entre outros, no poema póstumo “Viagem nas Cores”. acessados pela "imaginação” ou pela “memória”, podem-se localizar no
Ao eleger a imaginação como “rainha das faculdades”, Baudelaire cosmos ou no próprio eu poético, como no texto em análise - um dos
como que resumiu a hipervalorização do imaginário presente na criação poemas cecilianos em que a descida órfica ao “abismo” da interioridade é
poética desde o Romantismo. Na estética romântica, a imaginação emanci­ “condição essencial para o poeta suscitar o seu canto”61.
pou-se da memória - ambas faculdades primordiais do fazer poético, no­ Ver orficamente o invisível, o recôndito ou o impossível consiste, de
meadas no poema em estudo - , principalmente sob a influência das teorias fato, em recorrência na lírica de Cecília Meireles, que nesse empenho tanto
dos alemães Schelling e A. Schlegel, as quais marcaram as formulações lança mão dos olhos corporais como, nos poemas de busca do supra-sensí-
posteriores de poetas do período, como os ingleses Coleridge e Shelley. O vel, dos “olhos do entendimento”. Com olhar capaz de flagrar o microscó­
primeiro dialctizou imaginação e fantasia, conceituando esta como “forma pico e o indevassávcl, a poeta vê o real sensível que a outros apressados
de memória emancipada do tempo e do espaço”, o que levaria à “lei da mortais - “cegos que andamos de iluminação”, conforme diz em “Futuro”,
associação”, teorizada por Hume e outros filósofos, enquanto Shelley, em de M ar Absoluto - passa despercebido. Como os desenhos de um tapete
seu ensaio Defesa da Poesia, conceituou a lírica como “expressão da ima­ chinês (“Tapete” ) que outros transeuntes apenas pisam; a pomba pousada
ginação”, como “visão”5'’. A criação visionária vincula-se a uma tradição sobre um ovo azul que se confunde com o céu e a assembléia de formigas
que radica na Antiguidade e que, retomada na estética romântica, viria a pretas (“As Formigas”); a lágrima de um morto ("Os Mortos” ) - os três
converter-se posteriormente em palavra de ordem em Rimbaud, que a ex­ poemas são de M ar Absoluto; a borboleta agonizante (“Elegia a uma Pe­
pôs em sua denominada “Carta do Vidente” como caminho para o “desco­ quena Borboleta”, Retrato Natural). Também “enxerga” o invisível - como
o fundo do mar, com sua fauna, sua flora e seus náufragos (“Naufrágio
Antigo”, Vaga M úsica; “Dia Submarino” e “O Afogado", Retrato Natural)

54. Em “Luís Aranha e a Poesia Preparatoriana", Aspectos da Literatura Brasileira, op. cit.,
p. 66; e "A Escrava...", op. cit., pp. 251 e 253. Ver também João Luiz Lafetá. 1930: A 57. Arthur Rimbaud. Carta a Paul Demeny. 15 maio 1871. Em Oeuvres, 1998, pp. 314-320.
Crítica e o Modernismo, 1974, pp. 151-224, sobretudo p. 174. 58. Cf. Northrop Frye. op. cit., p. 134.
5 5 . Segundo Eliade. Platão terá retomado imagens e sím bolos xamânicos para explicar o 59. Gaston Bachelard. L'Eau et les Rêves, 1946. p. 16.
“vôo da alma" no Fedro. Op. cit., nota 16. p. 42. 60. Charles Baudelaire. "La Reine des Facultés”, op. cit., pp. 280-281.
5 6 . CL Vítor Aguiar e Silva. Teoria da Literatura, 1974. particularmente pp. 141-202. Ver 6 1. Cf. formulação de Victor Aguiar e Silva, “A Criação Poética”, Teoria da Literatura, op.
Charles Baudelaire. "La Reine des Facultes”, Critique d'Art, 1992. pp. 279-283. cit., sobretudo p. 172.
146 PEN SA M E N T O E “L IR IS M O PL R O ” NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES INCONSCIKNTE, MITO, M EM Ó RIA 147

- e, desde a obra de juventude, recorrentemente “depara-se” com figuras ocorre nos mitos, fábulas e contos originários da "idade infantil da huma­
de outro tempo ou espaço, como espectros e fantasmas (na maturidade, nidade”. Convém aqui lembrar que o “clã é precisamente quem constitui o
entre tantos outros, ver “Da Bela Adormecida”, Vaga Música). princípio totêmico [...] representado pela imaginação em forma de varie­
Para esse procedimento visionário, a poeta lança mão não apenas de um dades sensoriais de vegetais e animais que servem de totem”64. Será, então,
olhar hiperbólico como também da imaginação simbólica, que viabiliza com o pensamento mágico e maravilhoso, oriundo da organização social
presentificar, por meio de signos concretos, as ausências humanas, metafísicas arcaica, totêmica, e com a criação mítica - considerada a mais antiga forma
ou divinas de que se ressente grande parte de sua lírica. Será oportuno lem­ de construção simbólica do ser humano65 - que o sujeito poético está dialo­
brar, a esta altura, o conceito de símbolo de Cari G. Jung - sobretudo o Jung gando implicitamente em “M emória”, onde persegue a identificação do
considerado arguto leitor de poesia - , para quem este consiste na melhor obscuro clã ancestral?
representação possível do ausente, do oculto ou do desconhecido; isto é, do As mudanças de formas nos seres por obra de deuses, mágicos e feiti­
irrepresentável. Bem como a distinção deste autor entre a literatura que é ceiros fazem parte do imaginário m aravilhoso, vinculando-se ao jogo
produto da consciência, ou “psicológica”, radicada na experiência humana, e encantatório da imaginação, que é “deliberado” nos poetas66. Vico terá sido
aquela outra que provém do inconsciente, a qual denomina “visionária”, o primeiro pensador a refletir sobre a “natureza metafórica do mito” e a
marcada, por sua vez, pela estranheza, provindo “de abismos de uma época gênese mitológica dos tropos poéticos. Em oposição ao realismo, que é
arcaica, ou de mundos de sombra e de luz sobre-humanos das esferas “arte do símile implícito”, o mito é “arte da identidade metafórica implíci­
noturnas do caos, literatura que ultrapassa o limite cósmico62. Uma divisão ta”67. Desde os seus primórdios até o Modernismo, a arte tem herdado parte
sugestiva entre artistas aristotélicos e platônicos? Será o caso de refletir. De considerável de seu poder imagético da mitologia politeísta e de sua cons­
todo modo, no segundo caso dessa dicotomia junguiana penso que se pode tituição simbólica, solo sempre vivo na “fantasia artística, no psiquismo
inserir grande parte da lírica de Cecília Meireles, como o poema “Memória”. dos escritores”68.
As transfigurações operadas no poema ceciliano e a já mencionada idéia
de caos que ele evoca6'* - principalmente mediante a dispersão da família e
IM A G EN S: M ITO , M E M Ó R IA seus fragmentos pelo cosmos - também levam a pensar numa possível resso­
nância de clássicos ancestrais, como o longo poema Metamorfoses, de Ovídio,
Passo, agora, a investigar de que repertório a poeta terá garimpado as que relata o caos primitivo e as lendas de transformações de deuses e heróis
imagens simbólicas ou míticas justapostas em “Memória”, tentando esboçar em plantas, minerais e animais, obra que tem servido de fonte dos mitos da
uma interpretação de algumas delas. Imagens que aqui, mais do que em
muitos outros poemas, parecem merecer a conceituação de pequena fabula-
zinha narrada que Vico dá à metáfora63 - e como que demandando, uma a
uma, novo esforço interpretativo. 6 4 . Interpretação de Durkheim em E. M. M ielietinski, A Poética do Mito, 1987, p. 42. A
melhor definição de totem parece ser a de Freud, a propósito dos clãs de tribos austra­
A palavra “converteram-se” - primeiro e raro verbo pretérito no texto
lianas: animal ou. mais raramente, planta ou força natural (chuva, água), que se encon­
- , no terceiro verso, sugere a abertura a uma possibilidade de leitura que tra em relação particular com um grupo. "O totem é. em primeiro lugar, o ancestral do
talvez possa levar ao coração das metáforas do poema, sem o que, creio, grupo” e uma “representação substitutiva do pai". Totem et Tabou, 1932, sobretudo pp.
inviabilizaria a sua interpretação. Esse verbo remete às transfigurações e 11 e 203.
6 5 . E. Cassirer, em E. M. Mielietinski, op. cit„ p. 48.
metamorfoses ontológicas operadas nessas imagens (parentes ou antepassa­ 6 6 . Cf. J. Chamonard. “Introduction”, em Ovídio. Métamorphoses, 1953, vol. 1, pp. VI-
dos transformados em flores, pedra, água, líquen, nuvem, lesma), tal qual VII.
6 7 . Cf. Northrop Frye, op. cit„ p. 138.
6 8 . E. M. M ielietinski, op. cit., p. 116.
6 9 . Para Schelling, a m itologia é “universo em veste mais solene”, é “caos pleno de mara­
6 2 . Cf. C.G. Jung, O Espírito na Arte e na Ciência, 1985, principalmente pp. 58-72. vilhas na divina criação de imagens, caos esse que em si mesmo já é poesia". Cf.
6 3 . Vico, Os Pensadores, 1984, p. 89. Mielietinski. op. cit., p. 17.
148 l'E.NSAMKNTO E 'L IR IS M O P I R O " NA PO ESIA UE C EC ÍL IA M EIR ELES INCONSCIENTE, MITO. MEM ÓRIA 119

Antiguidade a incontáveis poetas e artistas, a começar pelos maiores, como A imagem das "esquinas do tempo”, transfiguração prosaica da eterni­
Dante e Shakespeare. Nessa obra monumental, Ovídio, retomando a mitolo­ dade, aludirá ao sentido mítico de tempo, o qual no pensamento mitopoético
gia primitiva e antiga e obras remanescentes de poetas míticos ou da idade é qualitativo e concreto como o sentido de espaço, e onde se localiza “trans­
“clássica”, como Homero, Hesíodo e Virgílio, relata que depois de sua morte ferência das mesmas representações do aspecto espacial para o aspecto tem­
Ajax foi transformado em flor; a cobra que quis morder a cabeça mutilada de poral”. A água - princípio de tudo, segundo o pré-socrático Tales de Mileto -
Orfeu é transfigurada por Apoio em pedra; os filhos do Sol (Telquines) em que se converteram alguns dos “parentes” do poema simbolizará o caos
também são metamorfoseados em rochedos; as Sereias ganham asas para que tudo precedeu, conforme Hesíodo, que sucede à morte, ou ainda a redu­
irem buscar Prosérpina pela terra; Diana cobre-se com uma nuvem para que ção dos mortos ao inorgânico. Os fugazes “retratos / feitos em papel de seda”
Hipólito saia do inferno; Medeia empreende uma viagem pelos ares. E aqui evocarão os fogos-fátuos fantasmagóricos, fazendo pensar ainda nas imagens
me atenho a apenas alguns poucos casos de metamorfose de deuses e heróis de luz e fogo que rodeiam os anjos na Bíblia72. O maravilhoso não tem
míticos em figuras que aparecem no poema ceciliano. Apenas na mitologia pátria, já se observou, e o poema poderá, assim, ser considerado um eclético
grega será possível recolher mais de cem casos de transfigurações como es­ pequeno mosaico de entidades míticas, fabulares e folclóricas de origens
sas, e Ovídio, aproveitando ainda a mitologia asiática e latina, terá referido múltiplas, com predomínio daquelas de ancestralidade grega, como que res­
perto de duzentos70. soando o sincretismo característico do pensamento mitopoético. Conforme
As alusões ao primitivo clã totêmico e aos mitos pagãos a poeta mescla Hugo Friedrich, a poesia moderna é “rica de versos que ressoam simultanea­
o ícone canônico e bíblico dos anjos, conformes ao céu hebraico, cristão e mente um patrimônio universal, mítico e arcaico”, numa mistura caótica de
islâmico, variante de deuses ou de Cristo, seres espirituais dotados de um referências71 - nesse poema, secretamente implícitas.
corpo etéreo e aéreo que encarnam a transformação do visível em invisível, Todas as imagens de “Memória" brotam de alguns arquétipos míticos -
os quais ainda aparecem metonimicamente pelas asas; e a estes junta os a começar pelo já mencionado da metamorfose - que lhes constituem o
irreverentes e contrastantes “palhaços”, personagens da comédia renascentista solo de afinidades; entendendo-sc aqui “arquétipo”, conforme Jung o faz
e avatares da linhagem mitológica dos deuses pícaros tricksters, cujo mais espeeulativamente, como “os elementos estruturais da psique inconsciente”
remoto ancestral terá sido o olímpico Hermes, da qual são aparentados os formadores de mito; ou como "estruturas das imagens primordiais da fan­
sátiros míticos, além de bobos, bufões e também cantores, menestréis e tro­ tasia inconsciente coletiva" e, ao mesmo tempo, “categorias do pensamento
vadores. Os membros da linhagem de “Memória” também dançam - “uns simbólico” suscetíveis de organizar as representações. Para Jung, tais ima­
dançando pelos ares” - , o que poderá encerrar uma alusão transfigurada às gens estão também presentes na psique do escritor, que conectaria no pro­
danças constantes das pantomimas dos rituais primitivos; e se dispersam por cesso das construções simbólicas não o inconsciente pessoal, mas o “in­
diferentes esferas cósmicas, o que faz lembrar o preceito mítico órfico-platô- consciente coletivo”, sede das imagens arquetípicas, herança dos mais
nico de que cada alma imortal liga-se a um astro, que lhe foi atribuído pelo remotos antepassados do ser humano. Por via do caráter metafórico da
Demiurgo, e para o qual regressa depois de purificada71. simbólica arquetípica, será, portanto, o inconsciente (a alma ou a memó-

7 0 . Cf. Ovídio, Métamorphoses e “Introdução" de J. Chamonard. no m esm o livro; e P. do Tempo". Mito e Pensamento entre os Gregos, 1973. sobretudo p. 94; Platão. Fedro.
Commelin, Mitologia Grega e Romana, 2000. Ainda sobre o arquétipo da metamorfo­ s.d., 248a-c e 249a; J. Chevalier e A. Gheerbrant. Dicionário de Símbolos, 1991.
se - diz Ovídio na obra aqui citada: “[...] Nada morre, acreditai-me. no vasto mundo, 7 2 . Valerá ainda lembrar que a referida lesma, m olusco que vive na água ou em lugares
mas tudo assume aspectos novos e variados. Na verdade, todos os seres têm sua origem úmidos, como o lodo. é incluída entre os totens da nacionalidade australiana dos Aranda:
em outros seres". Já em A Tempestade, de Shakespeare, canta Ariel: "A trinta pés repou­ cf. E. M. M ielietinski. op. cit., sobretudo pp. 46. 53 e 207; e N. Frye. op. cit.. p. 147.
sa teu pai / seus ossos agora são corais; / seus olhos, um par de pérolas" etc. Cf. trad. de Haverá, talvez, ainda uma alusão à figura folclórica brasileira do saci, nos versos “um
Beatriz V. Faria, 2002, pp. 29-30. movimento sozinho / aparecido na poeira”.
7 1 . Cf. N. Frye, op. cit., principalmente pp. 123. 146. 147. 148, 174 e 195; E. M. Mielietinski, 7 3 . Op. cit., sobretudo p. 229. Friedrich cita os casos de Moniale, Eliot, Saint-John Perse,
op. cit., principalmente pp. 76 e 214-224; J.-P. Vemant, "Aspectos Míticos da Memória e entre outros.
150 PEN SA M ENTO E “L IR IS M O 1>1 RO MA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES INCO NSCIENTE, MITO. M EM ÓRIA 151

ria) suprapessoal e “coletivo” o território escavado pela poeta em “Memó­ o poema também estará dialogando com o arquétipo de sparagmós, ou do
ria”74. Ao mergulhar na psique, o poeta pode trazer à tona imagens primor­ despedaçamento do corpo sacrificial, imagem que provém de mitos como
diais mágicas e míticas, ou "sím bolos universais” conforme Northrop os de Orfeu, de Osíris ou de Purusha, este oriundo da m itologia indiana™.
Frye75. Assim, a “distância” recorrentemente reiterada no poema será antes Esse arquétipo está também presente na obra de Sêneca, autor de Sobre a
de ordem temporal, embora espacialmente representada76. Brevidade da Vida, que repercutiu em escritores do período renascentista
O poema recupera assim o arquétipo da metamorfose, tão presente e barroco, bem com o no ogro Polifemo, de origem homérica, convindo
também em contos populares, como os de As Mil e Uma Noites - traduzi­ lembrar que esta figura mitológica consta de uma das obras de Góngora,
dos na década de 1920 pela escritora. Recuperação que em parte ressoará a a Fábula de Polifemo e Galatéia. O próprio Zeus, deus dos deuses, se­
leitura que Ovídio - poeta também do exílio, ao qual Cecília Meireles gundo a m itologia foi castrado pelo filho titã Cronos, e Dioniso foi des­
alude em crônicas e poem as77*- fez das mitologias antigas e de contos pedaçado pelos titãs. Os já mencionados contos das Mil e Uma Noites
populares do tipo etiológico. Arquétipo que, como em Ovídio e, entre ou­ também incluem estórias que tratam da “etiologia da mutilação” - muti­
tros, Shakespeare, ecoa o perpétuo devir das aparências sensíveis, das for­ lação ainda presente nos rituais totêmicos. Segundo Frye, o sparagmós
mas ilusórias e transitórias que revestem as essências imutáveis - os "trajos pode simbolizar a confusão reinante sobre o mundo - ou, no poema em
de circunstância” a que refere o poema - , e no qual subjaz um avatar da estudo, o caos da memória, do inconsciente79. Outro arquétipo presente
concepção cíclica da existência, da tradição órfico-pitagórica e posterior­ em “M emória” é o da procura (quest) de um objeto ou entidade inalcan-
mente platônica da metempsicose ou transmigração das almas. Assim, em çável (família, no poem a), presente no mito de Orfeu e nas lendas do
“M emória” a morte aparece como metamorfose do permanente desde os Santo Graal, e que, na estória romanesca, consiste em busca que pode
tempos primordiais. Ao fragmentar a fam ília - envolver a figura paterna80.

Tão dividida em pedaços! Murmuro para mim mesma:


Um pedaço em cada parte... | ... 1 'É tudo im aginação!’
Vejo lábios, vejo braços, [...]
Um cílio dentro do oceano, Mas sei que tudo é memória.
um pulso sobre uma estrela |...|
Fantasia e memória são elencadas por Vico entre as faculdades psí­
quicas próprias da mitopoética da “idade heróica” da humanidade. E o
7 4 . O ensaio de Jung “Relação da Psicologia Analítica com a Obra de Arte Poética" foi exagero da imaginação, o vácuo de lógica, a “fantasia veemente” própri­
elucidativo para esta etapa da análise. "Ao contrário do inconsciente pessoal, que é, de os dos povos arcaicos que a poeta representará no poema em estudo, e é
certo modo, uma camada relativamente superficial situada logo abaixo do limiar da
consciência, o inconsciente coletivo não tem, sob condições normais, capacidade de
com esta representação que se distancia do verossímil ou do realismo das
consciência. [...] A rigor [ele 1 nem existe, pois nada mais é do que uma possibilidade, evocações “contadas” de uma experiência pessoal. O poema, vinculando-se
ou seja, aquela que nos foi legada desde os tempos primitivos na forma de imagens
mnemônicas [...]”. O Espírito na Arte e na Ciência, op. cit„ pp. 58-72, sobretudo pp.
69-70 (E. M. Mielietinski lembra que Jung associa “arquétipos" às “idéias” platônicas
e, ainda, às “idéias a priori" de Kant. Op. cit., pp. 68-69).
7 5 . Northrop Frye, op. cit., p. 105. Para esse estudioso, “arquétipo” em literatura são as imagens 7 8 . Cf. conceitua Frye, op. cit., principalmente pp. 150 e 191. Conviría lembrar que Tiraden-
típicas ou recorrentes, os símbolos de um autor, que unem um poema a outro (p. 101). tes, cuja saga Cecília Meireles reinventa no Romanceiro da Inconfidência, teve o corpo
7 6 . Para Bachelard, a relação entre “uma imagem poética e um arquétipo adormecido no esquartejado.
fundo inconsciente da psique [...] não é propriamente causai” e, com a eclosão da ima­ 7 9 . Outra possibilidade, além do sparagmós, é a da ancestralidade em mitos totêmicos. No
gem. o “passado longínquo” pode ressoar de ecos. A Poética do Espaço, op. cit., p. 1-2. totemismo, de partes do corpo humano - como as axilas, no mito australiano dos Aranda -
77. No poema “Personagem” (Viagem), nos versos “A arte de amar é exatamente / a de ser poeta" podem se originar clãs. Cf. Mielietinski, op. cit., pp. 206-208. Além disso, os rituais
aludirá à obra ovidiana A Arte de Amar - arte também referida por Platão em O Banquete. Ver totêmicos podem prever mutilações.
também a crônica “Exercício Nefelibata”, Crônicas de Viagem-1, 1998, p. 71. 8 0 . Ver Frye, op. cit., p. 191, e também pp. 145-150 e 219.
152 l’KNSAMKNTO E "LIRISM O P IR O " NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES
INCONSCIENTE, MITO. MEMÓRIA 153

ao “superrealismo mítico”81, afasta-se da chã verossimilhança, como que a humana em conflito entre o titânico e o dionisíaco, entre o terreno e o
substituindo pela credibilidade implícita nos mitos e nas fábulas, nas fan­ divino; que é também a da incerta fronteira entre a verdade ou falsidade do
tásticas genealogias dos deuses e heróis. O maravilhoso, afinal, caracteriza mito - , desse patrimônio mítico e arcaico o sujeito poético se faz espelho e
a mentalidade mítica, e, conforme já assinalado, é ele que a poeta estará história, ainda que transfigurados na imagem de um discurso modernamente
representando no poema. despojado, simples e elíptico, cuja linguagem alusiva, carregada de suges­
O moto lírico costuma ser uma recordação, observou Mário de Andrade. tões simbólicas, utiliza o vocabulário trivial de todo dia, como é o caso de
Desde os tempos mais remotos a função primordial do poeta é recordar, lem­ “Memória”, em que a variação sobre o tema das lendas é discreta, sem
brou também Northrop Frye, que enfatizou a quantidade espantosa de coisas erudição livresca ou ostensiva, de difícil decifração. Na ausência da família
que os primeiros poetas, entre os quais Homero e Hesíodo, deviam lembrar ancestral, no vácuo da experiência de seus afetos e conflitos - afinal, Freud
antes da difusão da escrita, a começar por mitos e “genealogias de deuses”, foi buscar nos mitos a origem dos desejos, frustrações e ambivalências brota­
tradições, provérbios, tabus, encantos, que vinham à tona quando o poeta abria dos no interior do clã humano - , as reminiscências de tal patrimônio e tradi­
seu “tesouro de palavras”82. O mesmo aconteceu com os aedos da Antiguidade ções podem constituir à poeta um “substituto” da experiência pessoal84, e a
e os menestréis medievais, que faziam do ritmo e das recorrências sonoras “memória coletiva”, e não a das vivências pessoais, terá sido acionada.
técnicas mnemônicas para recordar o mito e a poesia em sua transmissão oral. Desse modo, a poeta pôde dar corpo poético ao inexistente.
“Viva é sempre a memória / dos poetas[...j”, diz Cecília em Poemas Italianos. Entidade mítica, uma das Titanidas, irmã de Theia (Vidência), a deusa
O poeta “conhece o passado porque tem o poder de estar presente no passado. Memória (Mnemosyne) é considerada mãe das Musas, cujo coro conduz, e
[...] A memória transporta o poeta ao coração dos acontecimentos antigos, em preside à função poética. Ou seja, encarna a figura de genitora e ancestral
seu tempo”, observa Jean-Pierre Vernant8’. suprema do canto e da poesia. O amparo de Mnemosyne ao poeta inspirado -
O esforço para recordar aparece implícita e explicitamente no poema teorizado por Platão, que tinha perspectiva mítica sobre a memória, inte­
ceciliano: grando-a numa “teoria geral do conhecimento” - pode abrir-lhe acesso ao
tempo primordial, cosmogônico, e assegurar-lhe vitalidade até no Hades,
por mais que eu esteja lembrada, 1...]
como ocorreu com Orfeu85. O verso que encerra o poema estará ainda alu­
dindo a esses mitos, diante da possibilidade polissêmica que se abre à sua
A palavra que dá título ao poema, presente no verso que o encerra -
interpretação. Afinal, a plurissignificação tem raízes míticas e arquetípicas.
“Mas sei que tudo é memória.” - , aludirá em parte, assim, a esses procedi­
Em seu estudo sobre a divinização da memória e a “vasta mitologia da remi-
mentos, oriundos da mais remota ancestralidade literária e teorizados por
niscência na Grécia arcaica”, Jean-Pierre Vernant afirma que
Platão, para quem o ser humano lembra o que surgiu em sua imaginação,
bem como ao patrimônio cultural de mitos e de tradições milenares que A História que canta Mnemosyne é um deciframento do invisível, uma geografia do
também o poeta moderno pode transportar em suas “viagens” poéticas pelo sobrenatural. [...] Ao fazer cair a barreira que separa o presente do passado. |a memória]
tempo. Na ambígua trajetória da poesia - que é também a da natureza 8 lança uma ponte entre o mundo dos vivos e o do além ao qual retom a tudo o que deixou a
luz do sol. [...] O privilégio que Mnemosyne confere ao aedo é aquele de um contato com
o outro mundo, a possibilidade de aí entrar e de voltar dele livremente. O passado aparece
como uma dimensão do além*6.
8 I . Referido por Mário de Andrade, “0 Movimento Modernista". Aspectos da Literatura
Brasileira, op. cit., p. 250.
8 2 . Frye, op. cit., p. 62. Jean-Pierre Vernant lembra as "intermináveis enumerações" de
chefes, naus, guerreiros, cavalos etc. utilizadas por Homero, conhecidas com o "Catálo­ 8 4. Referindo-se ao “poeta temático" do período romântico, diz Frye que “tende a pensar
gos". Op. cit., p. 75. Vale ainda lembrar que desde a infância Cecília Meireles revelaria na tradição como um substituto de segunda mão da experiência pessoal”. Op. cit., p. 65.
uma memória considerada prodigiosa e, em Olhinhos de Gato, registra que se recorda­ 8 5. José Cavalcante de Souza, "A Remininiscência em Platão", 1971, p. 58; e Vernant, op. cit.,
ria da vida intra-uterina: p. 59. principalmente pp. 73-74 e 82.
8 3 . Op. cit., p. 74. 8 6 . Vernant. op. cit., p. 78.
154 PENSAMENTO E 'LIRISM O PURO" NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES INCONSCIENTE, MITO, MEMÓRIA 155

Será pela porta de Mnemosyne que o sujeito lírico ceciliano adentra com as quais forma o que Bachelard denomina “produto mais fugaz da cons­
os tempos primordiais e míticos c convoca o invisível, neste c cm muitos ciência”, as imagens poéticas90. Por isso não tem “direção” nem “sossego”,
outros poemas. As antíteses - eixo da composição - estarão refletindo tam­ vive apartado do tempo do relógio (“sem noite e sem dia”), a contrapclo dos
bém o dilaceramento do sujeito poético entre seu presente e a memória. A pastores bem-pensantes, conformistas, dos rebanhos da terra, seguindo “atrás
poesia é o espaço de síntese das forças contraditórias em condito. Conhecer de formas com feitios falsos”, como acontece com a “pastora de nuvens” de
é lembrar-se, também das gerações passadas e arcaicas, ao que também “Destino”, daquele mesmo livro91.
alude “Memória”. A reminiscência platônica (anamnese) “remonta ao ‘não-
esquecimento’ do que é, que está na alma”87. Segundo a tradição órfico- Temos muitas famílias, havidas e sonhadas.
São as nuvens do céu que levamos sobre a alma,
pitagórica e platônica, das águas do Lethe bebem os que deixaram esta
as espumas do mar que vamos pisando.
vida, e que, portanto, se esquecem e se apartam das experiências terrenas,
Nós, porém, continuamos viajantes solitários [...]
entre as quais a da linguagem humana - o que está dito no poema:
diz Cecília Meireles em outro poema, o póstumo “Família”.
por mais que eu esteja lembrada
No texto em estudo, se a ascendência da poeta é, como nos mitos, de
ela se faz de esquecida:
não há comunicação! avatares míticos do cosmos - corpo da natureza, segundo Vico9: - e da
espécie humana em fragmentos, será também a dos “servos do canto”, e ao
Mas os vivos podem empreender o esforço para recordar-se e recupe­ criar imagens ela se investe do poder demiúrgico e mágico de operar meta­
rar o passado pela anamnese. Cantar é também lembrar-se88. Os antigos morfoses com as palavras, de selecioná-las e ordená-las no instante poéti­
gregos designavam o cantor como “servo das M usas”, o que guardará uma co, graças à ação transformadora da “memória” sobre seu espírito. No ins­
relação com o significado etimológico da segunda palavra axial no poema, tante poético, “tudo vira vento” - verbo, ritmo, segundo um significado
fam ília - conjunto de servos, de criados (proveniente do latim famulus). hindu. Tudo, até a ausência e o vácuo, se metamorfoseia em imagem e
canto para o poeta conectado com a memória, com as "musas”, com o
Servo das Musas, o cantor as serve enquanto é ele mesmo suporte dessa hierofania mistério, com o inconsciente.
pela qual os seus cantos contêm as mesmas revelações que os cantos divinos das Musas no
Olimpo. [...] Cantar, pois, corresponde à disposição suscitada pela teofania das Musas e
visa, antes de tudo, a criar formas que dêem testemunho dessa primeira e sublime presença
M IT O P O É T IC A
revelada nos cantares.

O mito é uma das “fontes não contaminadas” da poesia, observou


observou Jaa Torrano a respeito de Hesíodo. Mnemon era também o servi­
Alfredo Bosi. “E uma longa estrada que percorre as voltas da memória, os
dor de deuses e heróis89.
labirintos do Inconsciente” - e, se foi trilhada por poetas de todas as idades
“Um poeta é sempre irmão do vento e da água: / deixa seu ritmo por
estéticas, desde os primeiros aos renascentistas, barrocos e principalmente
onde passa.”, diz Cecília Meireles sobre sua tribo em “Discurso”, do livro
românticos, “reabriu-se, de modo mais radical, durante a segunda revolução
Viagem. Como esses símbolos do efêmero, o poeta, conectado com o ritmo,
lida com a fluidez, a volatilidade, o “móvel rebanho” das palavras “aéreas” -

9 0 . Gaston Bachelard. A Poética do Espaço, op. cit., p. 4.


8 7 . Cf. José Cavalcante de Souza, op. cit.. p. 64. 9 1 . Imagem do pastor e do rebanho, talvez inaugurada com Hesíodo, recorrente na poética
8 8 . Para Homero, “como para todos os aedos, versificar era recordar" . Cf. M. Parry. em da autora. Ver. entre outros, os póstumos “Écloga" e "Meu Pasto é Depois...". Também
Vernant, op. cit.. nota 15. p. 75. é recorrente a imagem das "palavras áereas". com o se vê no Romanceiro da Inconfi­
8 9 . Jaa Torrano. O Sentido de Zeus: O Mito e o Modo Mítico de Ser no Mundo. 1996. pp. dência ou no póstumo “Vôo", dedicado a Darcy Damasceno.
26-27; ver também Vernant. op. cit., nota 4, p. 72. 9 2 . Cf. Alfredo Bosi. “Uma Leitura de Vico", O Ser.... op. cit.. p. 203.
156 HEN SAM K N 1 0 E LIR ISM O PU R O " NA PO ESIA DE C EC ÍL IA M EIR ELES INCONSCIENTE, MITO, MEM ÓRIA 157

industrial com simbolistas, dadaístas, expressionistas, surrealistas”1”. De acor­ Isto é, os personagens mitológicos que percorrem desde o mundo
do com Mielietinski, para quem Hoffmann, valendo-se “do fantástico mito­ homérico - e constituem matéria de parte considerável da lírica ceciliana,
lógico” para criar um clima de mistério e força caótica, terá sido o precursor conforme expus.
da “remitologização" no século XX - verificada pelo estudioso russo em
autores como Kafka, Joyce, T. S. Eliot, Yeats - , o mitologismo tomou lugar Noites e noites, estudei devotamente
ao “realismo tradicional do século XIX”, voltado para a "representação ve­ nossos mitos, e sua geometria.

rossímil da realidade” . Como fenômeno do modernismo, esse novo mitolo­


gismo também refletiu a “tomada de consciência da crise da cultura burguesa diz o poema “Contemplação”, de M ar Absoluto (1945). Com efeito, são
inúmeros os poemas onde é possível rastrear vestígios - por vezes explícitos,
como crise da civilização em seu conjunto, o que levou à frustração no
mas no mais das vezes discretamente implícitos - de mitos, fábulas, contos,
racionalismo positivista”, vinculando-se à “desconfiança face à história”.
deuses, heróis, personagens maravilhosos, alguns dos quais bíblicos, e arqué­
Muitos escritores, ainda desfrutando de sólida formação humanística, acerca­
tipos míticos - como os da metamorfose, da procura ou do sparagmós. Se­
ram-se também das modernas teorias etno-antropológicas, florescentes nas
reias, cavalos alados, quimeras, Rapunzel (“Noturno”, Viagem), “Da Bela
primeiras décadas do século XX1'4. Na literatura moderna brasileira, Mário
Adormecida” ( Vaga Música), Diana (“Diana” e "Obsessão de Diana”, Mar
de Andrade, Jorge de Lima e Guimarães Rosa foram alguns dos autores que
Absoluto; “Diana”, Poemas Italianos), Narciso (Epigrama, Vaga Música),
recuperaram o mito, fonte da imaginação poética.
mito de Babel (“Discurso”, Viagem), Verônica, a deusa "Terra”, Gaia (Via­
Com Cecília Meireles não foi diferente. Desde os livros de adolescên­
gem) - esta, mãe universal de todos os seres, que sucedeu ao Caos - , e,
cia e de juventude, a poeta refere ou alude ao legado mitológico grego,
ainda no mesmo livro, “Horóscopo” e “Metamorfose”. Em Vaga Música
latino e asiático em seus poemas. Tal recorrência também na obra madura
"A Doce Canção” (Orfeu), “O Rei do M ar” (Poséidon), “Mau Sonho”
revelará o acerto de se classificar a sua lírica como uma mitopoética, no
(Nabucodonosor), “Solilóquio do Novo Otelo”, “Oráculo”. Em M ar Abso­
sentido dc que sc serve rccorrentcmente dc imagens, motivos, símbolos e
luto “Caronte”, "Sobriedade” (Ulisses). Em Retrato Natural o espelho par­
arquétipos míticos em seu processo de metaforização na criação poética.
tido à meia-noite (“Fui M irar-me"), "O Andrógino", “Cantata Matinal”
Segundo Northrop Frye, “um poeta mitopoético aceita comumente alguns
(parábola bíblica das virgens loucas); O Aeronauta. Mesmo o Romanceiro
mitos como ‘verdadeiros’ e, de acordo com isso, modela sua estrutura poé­
da Inconfidência, que será abordado no capítulo seguinte, terá sido em
tica”1” . Já no primeiro poema do primeiro livro (Espectros, 1919), volto a
parte fruto de uma leitura mitopoética dos episódios revolucionários em
lembrar, a “alma ávida” da escritora ainda adolescente - que traz o olhar
Minas Gerais97. Na lírica ceciliana, é também recorrente o tom órfico-
“exausto a tanto estudo” - vê a passagem de “fantasmas de outra idade”,
elegíaco diante da “destruição” dos mitos divinos na modernidade burgue­
que no último verso identifica como
sa - “era de extintos paraísos", conforme diz em “Pergunta”, Viagem -,
- Deuses, demônios, monstros, reis e heróis1'6.93456 como se vê em um verso do “Improviso para Norman Fraser”, de Retrato
Natural (atrás analisado), ou em “Partida” (Viagem).
Foi ainda na infância que a escritora iniciou os estudos das mitologias
que subjazem em seu tecido poético, conforme relata em uma crônica:

Quando, em criança, eu estudava mitologia, tinha longas cismas diante do céu: para
9 3 . Alfredo Bosi, “Poesia e Resistência”, O Ser..., op. cit., pp. 149 e s.s. João Adolfo Hansen mim, os deuses haviam sido inventados por sugestões das nuvens. Das nuvens do céu
lembra que os “humanistas florentinos produziam uma Antiguidade com o genealogia,
tinham surgido todos os deuses que não nasceram das espumas do mar, do eco dos cam-
deseompartimentando as referências para remontar a um Primitivo reparlido na diver­
sidade de suas descendências”. Cf. Alegoria, 1986, p. 68.
9 4 . Cf. Mielietinski, op. cit., pp. 2-3.
9 5 . Northrop Frye, op. cit., p. 69. 97. Ver a conferência “Como Escrevi o ‘Romanceiro da Inconfidência’”, Romanceiro...,
9 6 . Soneto “Espectros", em Cecília M eireles, Poesia Completa. 5. ed., 2001, p. 15. 1989, pp. 11-33.
158 PEN SAM ENTO K “LIR ISM O PU RO" NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR EL ES INCONSCIENTE, MITO, M EM ÓRIA 159

pos ou do sopro das brisas. E fiquei horas perdidas esperando recompor nesse etéreo már­ adverte sobre o desafio de salvaguardar-se no Brasil esse “patrimônio”,
more suspenso o carro de Apoio, o movimento de Diana, a passagem de Júpiter. Mas não “verdadeira nutrição espiritual dos povos, com tudo quanto envolve de
foram horas perdidas, pois realmente os avistei, e ainda os avisto, quando quero, e ate' com
mágico, profano e religioso”, onde em alguns casos identifica a marca da
outros atributos, e em jogos tão variados que explicam todas as construções de arte e de
idéia, e revelam a vida na sua escrita efêmera de metamorfoses989*. herança da mitologia antiga. Sua reflexão sobre as construções mitológicas
ainda está presente no ensaio Problemas da Literatura Infantil, fruto de
Nas memórias de infância (Olhinhos de Gato), a escritora recorda a conferências realizadas em 1949, em que se detém nas literaturas oral e
assídua convivência com histórias e mesmo personagens entre míticos e hu­ escrita e alude a múltiplas obras, como as de Homero, Ovídio, Kalidassa,
manos, capazes de metamorfoses, identificados pela sua pajem Pedrina, que Shakespeare, Defoe, Carrol, entre muitos outros autores, além das Mil e
os “conhecia pessoalmente”, como os lobisomens, o saci-pererê e as mulas- Uma Noites e do Ramayana. Problemas... é um livro despretensioso porém
sem-cabeça de nosso folclore. Além deles, Pedrina ainda conhecera “pessoal­ valioso, também como breve amostragem da visão de mundo e das leituras
mente” o Rei, a Rainha, a Fada, a Bruxa, o Gigante, o Anão. E a própria da poeta1"’.
Cecília menina garantiría ter visto um lobisomem, um saci-pererê". Já adul­ Já o interesse por pesquisas etnofolclóricas sobre os Açores, terra de
ta, como revela a crônica de 1944, parcialmente transcrita acima - redigida, seus ancestrais maternos, é recorrente ao longo de toda a sua correspondência
portanto, alguns anos depois do poema “Memória” - , continuava “avistan­ de vinte anos com o escritor micaelense Armando Cortes-Rodrigues - foi em
do” deuses e heróis, deles se servindo para a leitura e a criação da poesia e parte com base no material enviado por esse amigo que a escritora apresentou
decifrando suas “metamorfoses” diante do “caos contemporâneo”. longa conferência por ocasião do segundo centenário da colonização açoria-
As pesquisas de nosso folclore, da literatura e das artes populares, na em Santa Catarina, a qual abre com uma colocação esclarecedora das
desenvolvidas ao longo de décadas pela escritora, também estarão vincula­ razões do apreço por esses estudos: o texto originou-se “da nossa convicção
das a essa sua leitura das transfigurações nacionais e regionais dos mitos e de ser essa disciplina a que mais fáceis resultados apresenta na compreensão
contos maravilhosos antigos, e ao seu vivo interesse pela história das men- e na estima dos povos, pelo conhecimento das raízes comuns da humanida­
talidades desde os tempos primordiais. Convém lembrar que a escritora não de”. Via o mito, em suma, não por viés nacionalista ou regressivo, mas com
só participou da organização do Instituto Nacional do Folclore, ao lado de um olhar pacifista, universalista e humanístico, também como “documento
Renato Almeida, como escreveu uma longa série de crônicas, publicadas na da formação arqueológica do espírito humano” 101.
década de 1940 na imprensa carioca - ainda se aguarda sua edição em livro - Ainda em sua atividade de tradutora, Cecília Meireles dedicou-se a várias
e algumas conferências sobre o tema. A já mencionada Batuque, Samba e obras vinculadas à mitologia, ao folclore e a arquétipos como o da metamorfo­
Macumba, pronunciada em 1934 em Portugal, constitui uma boa amostra­ se, entre as quais contos de Av Mil e Uma Noites, Peer Gynt, de Ibsen, Antigone,
gem das pesquisas, as quais ilustrou com seus próprios desenhos, desenvol­ de Jean Anouilh, D. Juan, de Pushkin, Peléas et Mélisande, de Maeterlinck,
vidas sobre as tradições afro-brasileiras, entre elas a do carnaval - afinal, Orlando, de Virginia Woolf, Yerma e Bodas de Sangue, de Garcia Lorca, além
nessa festa popular e pagã podia-se inclusive flagrar a efêmera “metamor­ de obras de Rabindranath Tagore relacionadas a mitos hindus.
fose" de foliões em monstros, seres fabulosos e animais, o que também Mas é no registro que ficou de um curso sobre “Técnica e Crítica
devia contribuir para a curiosidade da pesquisadora. Publicou ainda, em Literária”, que ministrou em 1937 na Universidade do Distrito Federal102,
1932. um livro com seus estudos acerca das Artes Populares brasileiras,
assunto afim, este a convite de Rodrigo Melo Franco de Andrade, onde
100. Cecília Meireles. Artes Populares, 1968. Ver principalmente pp. 23 e 134; e Problemas
da Literatura Infantil, 1984.
101. Cecília M eireles, Panorama Folclórico dos Açores, Especialmente da Ilha de São
Miguel, s.d. , p. 5. [Ver também Márcio Suzuki, “Mitologia e História da Filosofia”, O
9 8 . “Exercício Nefelibata”, Crônicas de Viagem-1, op. cit., p. 69. Gênio Romântico, 1998, p. 230.]
9 9 . Olliinhox de Galo, op. cit., principalmente pp. 16, 44 e 80; ver também entrevista na 102. Estenografado pela aluna Vera Teixeira sem revisão da professora, registro depositado
Obra Poética, 1958, p. LXXII. na Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro. Uma curiosidade é que ao longo
160 PEN SA M EN T O E "L IR IS M O PI R O ' NA PO ESIA I)E C E C ÍL IA M EIR ELES INCONSCIENTE. MITO, M EM ÓRIA

que se encontra um documento sistematizado, ainda inédito, da reflexão da representação do universo segundo a mentalidade do homem primitivo,
poeta sobre o legado dos mitos, fábulas e lendas na origem das literaturas e [...] que acreditava na sua descendência maravilhosa de um antepassado
seus reflexos nas culturas e na história das mentalidades, bem como na mágico”, define, detendo-se no fenômeno da “fluidez” (que aqui abordei
formação de diferentes religiões. Por constituir um documento que teste­ como metamorfose), ou “passagem de uma forma a outra”. Ou ainda, alu­
munha a erudição e expande as reflexões da escritora nessa área, da qual dindo possivelmente ao Ramayana védico: segundo a mentalidade dos po­
retirou tanta matéria para sua “mitopoética”, penso convir apresentar aqui vos primitivos, “houve um tempo em que não havia tempo, em que todas
uma breve resenha de tais registros, embora com a advertência de que nem as coisas eram possíveis. Os animais falavam e os homens podiam fazer o
todas as aulas terão sido anotadas pela presciente aluna que as estenografou. que quisessem: transformar-se em animais, vegetais. Lévi-Bruhl baseia a
Como que se inserindo na corrente mitocrítica da literatura, que então origem do mito no aparecimento do insólito [...]”, enquanto para Lang “os
aflorava, e se servindo de uma considerável bibliografia disponível em seu mitos nascem da imaginação do homem”, dizem algumas das transcrições.
tem po101, a escritora, conforme esse registro, vai abordando a interpretação Sobre a quebra da lógica, presente nos contos e mitos, distingue entre o
psicanalítica de Freud e Adler (curiosamente não há menção a Jung nem “homem normal culto”, que aceita o que explica a ciência; o poeta, que
tampouco, de outro lado, a Vico), o trabalho de recolha de Perrault e dos “faz a deformação voluntariamente”; e os loucos, que operam essa defor­
irmãos Grimm, a teogonia racional e “realista” de Evênrero, no século IV mação por não disporem de “controle” . E, como todo poeta mitopoético
a.C., e a atribuição pelos neoplatônicos Plotino e Porfírio de “poder de (conforme conceitua Frye), mais de uma vez a escritora chega a insinuar
símbolo” ao mito. Em síntese, a poeta passa em revista diversas teorias e sua aceitação de alguns mitos como verdadeiros e sua posterior transforma­
filosofias do mito até então correntes, como as de Lévy-Bruhl. J. G. Prazer ção em símbolo pelo homem civilizado104.
e Andrew Lang, deixando mais de uma vez transparecer suas ressalvas em Nesse curso, Cecília Meireles revela profundo conhecimento desde os
relação à visão, que considerava redutora, da Igreja na Idade Média. A seu rituais totêmicos - dos quais, entende, se originou a canção - às mitologias
ver, sob a influência de Evêmero, a Igreja rebaixou a mitologia politeísta a grega, egípcia, indiana - particularmente aquelas fixadas nos “livros sagra­
“história fabulosa” dos tempos do paganismo, cujas “sombras” empenhou- dos da índia”, nomeadamente os Vedas, “dos quais decorrem noções que se
se em remover. “Na Idade Média [...] o que se aceitou foi o que a Igreja vão encontrar nos gregos Platão e Pitágoras” - , romana, chinesa, celta,
quis. Mas nos séculos XVII e XVIII a interpretação dos mitos começou a africana, coreana, australiana, timorense, e dos mitos canônicos da Bíblia.
preocupar os espíritos”. Detém-se nas “transformações maravilhosas” que neles se podem localizar,
É possível encontrar, nesses registros, afirmações esparsas de algum e em mitos como os de Osíris, Psyché, Edipo, Hércules, Purusha; no mara­
modo iluminadoras do poema “Memória”, atrás analisado. “O mito é uma vilhoso e nos heróis bíblicos, como Davi - que, como Orfcu, também se
serviu da “música como forma encantatória” - , Isaías, Moisés, Jeremias,
Jó, localizando no Gênesis o "mito etiológico da explicação do apareci­
mento do homem na face da terra” e lendo o “Êxodo” como “um conto
do curso a escritora excursionou com seus alunos a São Paulo, onde o grupo participou
do Congresso de Língua Nacional Cantada, promovido por Mário de Andrade. Há fo­
maravilhoso”. Na abordagem das religiões, distingue entre os hebreus. cuja
tografia em Marco Antônio de Moraes (org.), Correspondência Mário de Andrade & preocupação era “consolidar a sociedade e dar-lhe um Deus” que servisse
Manuel Bandeira, 2000, p. 638. de "união entre os homens”, e os hindus, “povo preocupado mais com a
103. L'Âme Primitive e Les Fonctions Mentales de la Société Inférieure, de Lévy-Bruhl; O
Homem e a Técnica e Decadência do Ocidente, de Spengler; L'Energie Spirituelle, de
Bergson; Le Langage et la Pensée, de H. Delacroix; Mythes des Héros et la Mentalité
Primitive, de H. Brocher; The Sanskrit Drama, de A .B. Keith; La Réthorique Sanscrite, 104. “Tudo aquilo que som os deve ser, afinal, uma decorrência daquilo que o selvagem
de P. Regnaud; Kalidassa et l'Art Poétique de l'Inde, de Harichand; La Civilisation foi”, terá dito na primeira aula registrada (28 jun. 1937). “O que nos parece mais acei­
Chinoise, de M. Granet; Les Classiques Chinois, de Legge; Doctrine de Confucius, de tável, hoje, visto os etnólogos não terem encontrado tão altas razões filosóficas entre os
M. G. Pauthier; L'Esprit du Peuple Chinois, de H.H. Ming; Contes Magiques du P'on povos, é que esses mitos sejam narrativas de fatos verídicos que, mais tarde, serviram
Soung-Lin, de Louis Laloy; L'Expression des Voeux dans l'Art Populaire, de Chavannes — com o sím bolo” (21 jul. 1937). Ou ainda: “Todo mito é uma representação de coisas
são alguns dos textos constantes dessa bibliografia. acontecidas que, depois, vão sendo transformadas por meio de imagens” (26 jul. 1937).
162 PKN SAM KN TO K ‘ L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIRELES INCONSCIENTE, MITO, M EM ÓRIA 163

filosofia do que com a religião” . Segundo ela, a base da religião hindu, múltiplas vezes teorizado por Mário de Andrade, que, em acordo “com
conforme se vê nos Upanishads, é a “distinção entre o eu e o não eu”, é a ponderável parcela da vanguarda européia” 10506, o vinha buscando e locali­
“fusão de todas as explicações do universo”, o que consistiría, antes de zando aqui e ali na poesia modernista brasileira desde os seus estudos de
tudo, numa “filosofia”. Também distingue entre o herói dos mitos gregos e juventude. “Lirismo puro” que Mário também localizaria nas “associações
romanos, que assume a forma de “homem forte, que tudo vence com seu alucinatórias” de Jean Cocteau, em Max Jacob, na “impressão simultânea”
poder pessoal”, e o herói oriental, como o dos mitos da índia, capaz de de Philippe Soupault, na “simultaneidade” de Biaise Cendrars107. “Lirismo
tudo sacrificar e norteado pela coragem de renunciar, como, exemplifica, puro”, teorizava Mário, é aquele em que a “ordem subconsciente” substitui
Buda, ou, na China, Lao-Tsé. a “ordem intelectual”; aquele que pode suscitar um jogo de imagens “nas­
Recorrentemente, Cecília Meireles vincula os mitos da Antiguidade cido duma inspiração única inicial” ; aquele que permite ao poeta que “se
ao folclore brasileiro - em canções de nosso folclore se encontram “vestí­ deixa levar pelo eu profundo [...] grafar certos instantes de vacuidade em
gios de temas de mitos” - , ainda localizando em certas fórmulas de cura do que há como que um eclipse quase total da reação intelectual” "*. Procedi­
Atharva Veda (o “mais popular” dos livros védicos) similaridade com algu­ mentos que, conforme já longamente assinalado, encontrei em “Memória”.
mas práticas populares brasileiras. E se detém mais de uma vez no caráter Conforme se vê pelos dois ensaios, breves, mas extraordinariamente
“extratemporal” da mentalidade primitiva e do maravilhoso. penetrantes, que escreveu sobre a primeira fase da poesia madura de Cecília
Penso que ao menos três conclusões preliminares podem ser extraídas Meireles, o crítico paulista nela localizou esse tipo de lirismo. “Onde a poe­
da leitura das transcrições desse curso: a obsessão da escritora com as ori­ tisa se torna extraordinária e admirável é nos poemas que eu diria de poesia
gens; sua aceitação do maravilhoso e da magia, que “até hoje nos governa” ; pura”, registrou. E logo adiante: “Ninguém entre nós pra captar [como no
e, conforme já referido, a reiteração de sua leitura do mito como lingua­ poema “Música”, de Viagem] momentos de sensibilidade, quase livres, de
gem universal, comum a todos os povos, o que converge com suas conhe­ rápida fixação consciente, em que o assunto como que parece sem assun­
cidas idéias intcrnacionalistas e pacifistas. O que pode ser sintetizado em to” 10''. Ora, não constitui a dificuldade de localizar um tema ou assunto uma
trecho de uma fala sua, realizada em outro contexto, anos depois do térmi­ das principais características da poesia moderna, conforme, entre tantos ou­
no da Segunda Guerra Mundial: “Os homens [podem encontrar] no folclo­ tros, observou Hugo Lriedrich?"0
re a solução para muitos de seus problemas, pela compreensão das suas Mas foi na já mencionada carta a Moacir Werneck de Castro, escrita no
origens, da sua identidade, daquilo que neles é transitório e também daqui­ mesmo ano em que pronunciou sua conferência “O Movimento Modernista”
lo que neles é permanente” "15. (1942), que Mário de Andrade aproximou lapidarmente a poética ceciliana
do lirismo que de há muito vinha buscando na poesia brasileira: “ [...] o
último livro dela, fora de tempo [ressalvava], [...] é a melhor coisa de liris­
M ITO , IN C O N SC IEN T E, “L IR IS M O P U R O ” mo puro que nunca se escreveu neste país” " 1. Lirismo que Menotti dei

Como o ritmo e as recorrências sonoras no plano formal, conforme


abordado anteriormente, o mito terá sido um dos caminhos de conexão da 106. Cf. João Luiz Lafetá, op. cil., p. 161.
lírica ceciliana com o eu profundo, o plano onírico ou místico, o incons­ 107. "A Escrava que Não é Isaura”, op. cit., pp. 245, 272 e 283.
108. Idem, pp. 242-247 e 255. Tal "eclipse" terá relação com o orfismo, com o arte concebi­
ciente - viveiro de imagens, como antes procurei expor. Um dos caminhos,
da “sob o espírito da música” - cf. Dante Tringali. "O Orfismo”, em Carvalho (org.),
em suma, que terão levado essa poética a acercar-se do “lirismo puro”, Orfeu, Orfismo e Viagens a Mundos Paralelos, 1990, pp. 15-23.
109. Mário de Andrade. “Viagem", O Empalhador de Passarinho, op. cit., pp. 162-163
(grifo meul.
110. Structures de la Poésie Moderne, op. cit., principalmente p. 61.
111. Moacir Werneck de Castro. Mário de Andrade - Exílio no Rio, op. cit., p. 197. Na
105. Cecília Meireles, Conferência de 1950 à 3a Semana de Folclore, Batuque, Samba e Ma­ mesma carta. Mário espinafrou a conferência de Cecília que acabara de ouvir, “Mundo
cumba, 1983, p. 98. de Estudantes”, embora voltando, com sua lendária honestidade, a reformular sua ava-
1(>4 PENSAMENTO E "LIRISMO 1’1'RO" NA POESIA l)E CECÍLIA MEIRELES INCONSCIENTE, MITO. MEMÓRIA 165

Picchia, em resenha do mesmo livro, leria como “surrealismo” " 2 - o qual, simples e estranha ao mesmo tempo, profundamente vivida. E silencio­
em suma, confinaria com o conceito de “lirismo puro" de M ário"3. Tratava- sa” da poeta117. Afinal, conforme delimitou João Luiz Lafetá, para o crí­
se de Vaga Música, que acabara de aparecer, e no qual estão incluídos dois tico paulista o conceito de lirismo ganharia “um estatuto estrutural ao ser
poemas que procurei analisar neste livro: “Reinvenção” e “Memória”. com plem entado pelo conceito de técnica” - capaz esta de transfigurar
No ensaio sobre Viagem, chama a atenção o fato de Mário de Andrade, esteticam ente a “inspiração” e transform á-la em poesia. E a “equação
o primeiro crítico a identificar o “ecletismo” e a economia verbal na lírica lirismo + arte = poesia”, herdada de Paul Dermée, acompanharia Mário
ceciliana, haver preferido os poemas em verso medido àqueles em verso “pelo resto da vida” 118.
livre ou polimétricos, amplamente majoritários naquele livro. Se, em “A
Poesia em 1930", ele identificara a metrificação em Manuel Bandeira como "ten­ *
dência pra se generalizar ainda mais” e em Carlos Drummond de Andrade - em
quem localizou “compromisso claro entre o verso livre e a metrificação” - Penso que “Memória” é um poema em que a linguagem de Cecília
como vontade de "se aniquiliar, de se esconder” 114, em Cecília leu o metro, Meireles já havia logrado se distanciar das vibrações epidérmicas do sim­
assim como o recurso à rima, como procedimento de “liberdade”: “Me pare­ bolismo, pela sua concretude, pela ordem direta, texto apenas semantica-
ce que o seu princípio estético [...] é o mesmo que leva o povo a metrificar e mente alusivo. Trata-se também de uma composição distante do “ogro” da
rimar. [...] Para a poetisa, como para o povo, o metro não é uma prisão, mas sentimentalidade romântica, construída sobre o encadeamento de imagens
liberdade”115. O que soava condizente com aquilo que explicitara com clare­ fantásticas brotadas de uma “inspiração” (ou conexão) inicial, à qual serviu
za solar, naquele mesmo texto: “É preciso atingir o lirismo absoluto, em que orficamente com sons e ritmos capazes de acolher e estimular a intuição -
todas as leis técnicas e intelectuais só apareçam pelas próprias leis da liberta­ despertada talvez por uma palavra, possivelmente fam ília - , e não voltada
ção, e nunca como normas preestabelecidas” 116. para a expressão de alguma dor ou sentimento, ainda que biograficamente
Mas “lirismo puro”, “ liberdade” no recurso ao novo e à tradição, pudesse ser realisticamente o caso. O acúmulo de imagens, herança orien­
“ecletism o”, versos “sem palavra a m ais” e metro e rimas “justificáveis” tal, barroca e simbolista, também distancia o poema de um estrito recorte
por certo não teriam bastado a Mário para aquelas avaliações tão favorá­ classicizante. Nele, a magia, advinda da combinação de justaposição de
veis se não fossem combinados com a "grande técnica [...] nascida sem imagens e do jogo encantatório de som e sentido, coexiste com a fatura de
predeterminação”, técnica “eclética e energicam ente adequada”, dentro concisão e limpeza, também despida de referências eruditas ao mundo mi­
da qual se move “a alma [...] grave e modesta, bastante desencantada. tológico, o que assegura modernidade, mesmo contemporaneidade, ao po­
ema - que pode ser lido. com proveito, mesmo sem o desdobramento de
sua genealogia mítica. Seu estudo deixará ainda transparecer talvez alguma
liação na carta seguinte, chegando até a encontrar algumas virtudes naquela conferên­ aproximação com as antíteses e o fragmentário barrocos - afinal, também
cia. Penso que o maior defeito desta consiste na sua excessiva ambigüidade.
advindos do mundo dos mitos - e com o conceito platônico do poeta inspi­
112. “O surrealismo - um surrealismo explicável pelo que contém de lirismo - predomina na
poética desta singular artista. | ...] Vaga Música talvez seja a mais alta voz poética deste rado miticamente pela memória, “mãe das musas”. Por fim, penso que essa
instante brasileiro. Nossos surrealistas precisam 1er esse livro. Ele ensina”, continuava composição junta “num todo equilibrado” a “matéria do subconsciente”,
Ménotti dei Picchia. Em Cecília Meireles, Poesia Completa, 4. ed., 1994, pp. 59-60.
transfigurada pela “imaginação deformadora e sintética”, a que se referiu
113. O “lirismo puro”, ou pelo menos o desvairismo apresentado no “Prefácio Interessantís­
sim o”, teria afinidades com a “escrita automática” dos surrealistas, observou Alfredo M ário de Andrade naquele apêndice à “Escrava que Não é Isaura", em
Bosi em História Concisa da Literatura Brasileira, 1970, p. 391.
1 14. Aspectos da Literatura Brasileira, op. cit., pp. 32-33.
115. "Viagem ”, O Empalhador de Passarinho, op. cit., p. 163.
1 16. “A Poesia em 1930”, Aspectos da Literatura Brasileira , op. cit., p. 41. Ainda na “Escra­ 117. Na breve correspondência que trocou com Cecília Meireles, de 1935 até sua morte, Mário
va que Não é Isaura”, Mário lembrava que também Valéry, Cocteau, Bialik, Eliot e Ma­ de Andrade desdobraria essa percepção: “Você que tem trabalhado com profundeza a sua
nuel Bandeira, entre outros, empregavam “ora o verso medido, ora a rima, ora ambos”. arte, vivido sinceramente a sua vida [...]”. Cecília Meireles, Cecília e Mário, 1996, p. 308.
Op. cit., p. 231. 118. 1930: A Crítica e o Modernismo, op. cit., pp. 156 e 176.
166 PENSAMENTO E ‘LIRISMO PURO" NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES
5

passagem transcrita na epígrafe deste capítulo. Também por isso, suspeito


que o poema poderia ser aproximado pelo escritor paulista como caso exem­
plar de “lirismo puro” - poesia do inconsciente, do eu profundo - , o qual,
ao longo de toda a sua vida de crítico, sempre perseguiu na poesia moder­
nista brasileira.
SENTIM ENTO DO TEMPO

O passado traz consigo um índice misterioso,


que o impele à redenção. Pois não somos
tocados p o r um sopro do ar que fo i respirado
antes ? Não existem, nas vozes que escutamos,
ecos de vozes que emudeceram? [...] Se assim é,
existe um encontro secreto, marcado entre as
gerações precedentes e a nossa. [...] Esse apelo
não pode ser rejeitado impunemente.
Walter Benjamin '

O CAN TO ENCA LA CRA DO

Depois dos quatro primeiros livros de maturidade, publicados ao longo


de uma década (1939-1949) - de três deles selecionei os poemas analisados
neste volume - , igualmente marcados pela sondagem metafísica e pela poe­
sia do inconsciente capaz de grafar o “lirismo puro”, Cecília Meireles parecia
defrontar-se, em meados da década de 1940, com um momento de reinflexão
em sua lírica. A última coletânea desse quarteto, Retrato Natural ( 1949), que
já indicia uma maior abertura ao sensível do que as três primeiras, terá esgo­
tado a gaveta da introspectiva produção poética da década de 1930, distribuí­
da, ao lado de poemas mais recentes, ao longo desses livros. O impulso
cancioneiro, melancólico e inconformista, consolidado desde Viagem, onde
o mar já emergia como um dos principais símbolos1, parecia vivenciar uma*

* “Sobre o Conceito de História”. Magia e Técnica, Arte e Política, 1986, p. 223.


1. Walter Benjamin detém-se na “inclinação do melancólico para longas viagens - daí o mar
no horizonte da Melencolia, de Dürer”. Origem do Drama Barroco Alemão, 1984, p.
171. Contudo, o mar também é considerado um símbolo do inconsciente. Quanto ao
inconformismo, foi referido com acerto por Cassiano Ricardo em sua defesa da premiação
de Viagem, em Revista da Academia de Letras, 1939, p. 194.
168 PENSAMENTO F. “LIRISMO PURO’ NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES SENTIMENTO DO TEMPO lli'1

crise, e o espaço simbólico, desreificado2 e irreal instaurado para a conexão ilusório, entre efêmero e eterno e da ação do tempo sobre seres, coisas e
com o “eu profundo” passava a ser amiúdc problematizado e a sofrer assal­ sentimentos; da insuficiência humana e da precariedade e desencantamento
tos, pontuais mas agudos, do tempo presente. Tempo de transformações do mundo; do desejo sempre acompanhado da amarga constatação sobre a
históricas acarretadas pela Segunda Guerra Mundial e a posterior cisão do impossibilidade ou os perigos do sonho nos tempos modernos - a qual
mundo na Guerra Fria, além da vertiginosa ascensão do império ianque suscitaria um dos raros momentos de autoviolência, na última estrofe da
sobre o Ocidente; e, no cenário brasileiro, pela ditadura do Estado Novo, primeira “Canção” de Viagem:
sucedida pela redemocratizaçâo ditada de fora do país dependente, e por
novo surto de tentativas de modernização conservadora e de “progresso” . Depois tudo estará perfeito:
A "pastora de nuvens" em conflito antitético com os “pastores da praia lisa, águas ordenadas,
terra” do primeiro livro de maturidade já metamorfoseara-se na “pastora meus olhos secos como pedras
e as minhas duas mãos quebradas.
descrida” de Retrato Natural, em que já não é reconhecida por seu antigo
duplo, o eco da infância (“Pastora Descrida”). "As palavras estão muito
- após haver estoicamente maquinado o naufrágio do próprio sonho. Também
ditas / e o mundo muito pensado”, diz ainda em “ Interlúdio”, de Vaga
o canto, outro motivo recorrente, parecia encalacrado. O cogito ceciliano do
Música, livro onde já questionava o alcance do canto: “Por água brava ou
canto, logo existo, herança de Orfeu que se depreende em múltiplos poemas,
serena/deixamos nosso cantar, / vendo a voz como é pequena / sobre o
como o “Motivo”, de Viagem, aparentado do “cantar é ser" rilkeano3, era como
comprimento do ar” (“O Rei do Mar"). Na palavra, a qual em “Marcha”
que forçado a abrir frestas à barbárie e às dissonâncias do tempo presente, das
{Viagem) era tudo para a poeta (“meu vestido, minha música, / meu sonho
quais a escritora mostrava lúcida percepção nas crônicas do período:
e meu alimento” ), detecta fraturas:
Os tristes anos de guerra que passamos (e terão eles passado?) geraram, entre outros
Foi a palavra quebrada
males, o da desconfiança - que separa os homens. Negros tempos, em que o inimigo pode
por muito encontro guerreiro [...]//
estar em toda parte; não se olha: espreita-se; não se fala: sussurra-se. (...] Estamos numa
Cantar não adianta nada.
era em que as notícias correm com velocidade quase absoluta, e na verdade todos estive­
("Viola”, Mar Absoluto)
mos presentes, todos fomos testemunhas e participantes do cataclisma. [„.]4,

Momento de inflexão que parecia pôr em xeque não apenas o projeto


escrevia na Folha Carioca em junho de 1945. Em visita à Europa do pós-
de transfiguração mágica da realidade inaceitável, de rebeldia contra a “fa­
guerra, em 1953, no póstumo “Os Dois Lados do Realejo” - um dos poe­
lácia representativa” do contingente, como também os principais temas
mas emblemáticos do dilaceramento do eu poético entre o anseio de beleza
dessa lírica. Ao lado da desintegração do sujeito, da busca da própria iden­
e de absoluto e o testemunho inconformado da barbárie de seu tempo -,
tidade, menos pessoal do que existencial e ontológica - o que explicará a
flagrava o esplendor de “altar barroco”, de “pátio mágico” do instrumento,
obsessiva recorrência dos símbolos do espelho e do retrato - , e do absoluto;
ao mesmo tempo em que via o drama humano contemporâneo:
da indagação obsessiva sobre o porquê da existência e o destino da viagem
terrena do ser humano; da solidão, do exílio e da marginalidade do poeta Do lado de baixo, a rodar a manivela,
na sociedade capitalista e burguesa - solidão também de um caminho di­ há um homem sem emprego,
verso das vertentes trilhadas por nosso modernismo; da tensão entre real e que alegra a rua,
mas tem os olhos graves.

2. “Andei pelo mundo no meio dos homens: / uns compravam jóias, uns compravam pão. /
Não houve mercado nem mercadoria / que seduzisse minha vaga mão.", diz o poema 3. Rainer Maria Rilke. Os Sonetos a Orfeu - Elegias de Duíno, 2002, p. 19.
“Tentativa”, de Viagem, um dos textos que aludem a esse interstício desreificado. 4. Cecília M eireles. “Se Fosse Possível...", Crônicas em Geral-1, 1998, p. 164.
170 PEN SAM ENTO K 'L IR IS M O PI K O ' NA PO ESIA DE CEI IL IA M EIR ELES SEN TIM EN TO DO TEMPO

Uns olhos que viram rios de sangue se construíam coliseus e catedrais. Descobrimos que o Amor, a Amizade e outras palavras
em redor daquelas casas. abstratas eram abstratas em demasia para tempos tão concretos, e resolvemos atirá-las sem
Rios de guerra, piedade pelas altas janelas de nossas modernas concepções. Mudamos de ritmo, acreditamos
onde boiou a sua gente fuzilada e sem culpa. vigorosamente no poder de nosso sorriso [...] e confiamos nos manuais da arte de fazer
amigos [...], nas bibliotecas de cinco minutos,
Mas seria em um artigo de 1947, que lhe fora encomendado pela revista
argentina Realidad - em que colaboraram, entre outros, Jorge Luis Borges, prosseguia sarcasticamente a escritora7, desconfiando das novas utopias de
Juan Ramón Jimenez e Julio Cortázar -, que Cecília Meireles abordaria com progresso técnico que se armavam no horizonte do pós-guerra e do pós-
vagar e menos alusivamente as marcas da guerra e também aquelas deixadas ditadura getulista, e do qual, como os demais países periféricos, não reco­
no Brasil pela ditadura Vargas. Trata-se de um texto de importância para a lheriamos senão as sobras:
compreensão do sentimento do tempo presente da escritora - “para os leito­
res que conhecem Cecília Meireles por sua poesia será talvez uma surpresa [...] a experiência de fabricar dinheiro encerra segredos, que não pertencem a todos.
Por fim, a máquina comporta suas exigências, e tornar-se escravo da máquina é outra fa­
nela encontrar, também, o domínio da prosa e do pensamento discursivo”,
talidade a vencer. E por detrás da máquina está o patrão, esse odioso ser que possui os
dizia nota editorial da revista5 - e, por isso, penso valer deter-me mais segredos mais sutis dos inumeráveis mecanismos do sistema, o patrão, essa obesa aranha
longamente sobre ele. A escritora começa com críticas amargas à substituição que tece e maneja seus imponderáveis fios*.
da formação cultural humanística, embora a constatando ainda acessível a
uma “reduzida elite” intelectual - na verdade, considerava os valores dessa Deixava implícitos tanto seu repúdio ao avanço da “modernização” ace­
formação compatíveis com as reformas educacionais universalizantes e nada pelo capitalismo tecnocrático quanto seu ceticismo em relação à utopia
democratizantes que ela apoiou desde a primeira hora e que, a seu ver, se de um socialismo materialista ditado por uma cúpula para as massas - em
implementadas, poderíam ter evitado “a metade dos males que hoje nos afli­ que “uma única cabeça pensa por todas” - , defendendo o pluripartidarismo e
gem” - , pela opressiva cultura de massa, e à substituição do reinado daquilo a “liberdade de ser livre, e não a de se escolher a sua escravidão”. (O que, se
que “mais ou menos aprendemos a chamar Espírito” pelo da “Matéria” . soou menos simpático a alguns comunistas da época, não deixa hoje de evi­
denciar clarividência em relação ao desfecho que aos poucos e ainda há pou­
Talvez fôssemos um pouco absurdos, por (andarmos a 1er] sonetos greco-latinos e co assistimos da Revolução Russa.) A ditadura Vargas imputava dois “peca­
nos sentirmos por vezes tão helenos: mas era o deslumbram ento do Humanismo, era o dos capitais”: “o de não haver permitido a exposição e o debate sério das
fervor adolescente ante a obra mestra, era o entusiasmo de haver conhecido em sua própria
idéias partidárias; e o de não haver assegurado a educação do brasileiro”.
língua Virgílio e Homero6.
Detectava ainda o impasse em que se encontravam a poesia e as artes:
A aguda crise ética e cultural, radicalizada no pós-guerra, o “tumultuo­
Se vê como, à inquietude dos “ismos" de 1920, sucede na arte uma vacilação. uma
so caos” que detectava, coincidiam com o avanço do american way o f life,
inconsistência, um estado interrogativo que é uma busca subjetiva e objetiva. Os moldes
da ascensão do poder do dinheiro, do ideal de “juventude perpétua”, da objetivos sempre são mais fáceis de alcançar; as imitações, inclusive as involuntárias, tra­
excessiva preocupação com os esportes e os “intermináveis banhos de mar", duzem o desequilíbrio geral. [...] e a literatura em suas formas extremas tinha que submer­
da decadência dos valores da arte e do espírito: gir na realidade ou evadir-se. Mas, qual era a realidade? [...] E na evasão a poesia, sobre­
tudo - sem coragem lírica e sem razões verdadeiramente éticas - , desliza para um tom
Vimos então que nossa alma era velha; que vínhamos pensando por uma via antiquís- profético que, na verdade, a transfere para o gênero oratório9.
sima; que nossa cabeça segregava idéias e fórmulas de vida com a lentidão do tempo em que

5. Nota ao artigo “Carta dei Brasil”, Realidad, 1947, p. 91. Ver também p. 95 (o artigo foi escrito 7. Idem, p. 93.
originalmente em espanhol). 8. Idem, p. 96.
6. Idem, pp. 91-92. 9. Idem, pp. 99 e 97.
172 l’KYSAMKNTO K 1IRISMO l'I KO’ NA l'OFSIA DF. CKCÎl.IA Ml [RFI.F N SENT1.MFXT0 1)0 TF.MP0 173

As transcrições esboçam parte do impasse histórico e também artístico nós, poetas quase de outrora... Estas criaturas de hoje, com tanta vitamina
com que se deparava a lírica ceciliana, e seus questionamentos sobre o caráter e instrução cinematográfica, inspiram-me profunda melancolia e um imen­
problemático da arte em tempos tão hostis. Haveria uma saída que não fosse so dó” 11. "Instrução cinematográfica” deve ser tomada, antes, como crítica
a “submersão na realidade” - e, atinai, que “realidade”? - , a evasão e a poesia à indústria cultural emergente, contra a qual impreca ainda em crônicas
oratória? Conforme já procurei assinalar, de modo muito característico e como a quase adorniana "Pequena Voz”, parcialmente transcrita adiante.
peculiar, o testemunho do tempo presente ia penetrando também essa lírica: A “hamletiana monologação” 12 ou “metade de um diálogo obscuro”
Mar Absoluto e Retrato Natural incluem poemas de guerra - um dos quais (“Diálogo”, Viagem) em dicção cantabile, já reiterei, nunca seria abando­
abordarei adiante, neste capítulo - , e eventos como o assassínio do líder nada, conforme testemunham livros posteriores, como O Aeronauta (1951),
pacifista hindu, em 1948, suscitariam poemas de resposta imediata, como a Canções ( 1956), Metal Rosicler ( 1960) e Solombra ( 1963). “Partimos para
“Elegia sobre a Morte de Gandhi”, em que com o “Mahatma” - cuja biogra­ longe, entristecidos, / [...] com as mãos feridas e o canto recusado”, diz um
fia escreveu - enxergava os “pássaros famintos, que não podem cantar” num poema póstumo. Ainda em 1961, a lírica reincidente admitiría ter "a casa
tempo em que “todos estão com os seus revólveres fumegantes no fundo dos repleta / de palavras obscuras, / de cantigas herméticas!” 13. Mas a poética
bolsos”, pelas “ruas dos negócios, dos seus crimes”. órfica ia, mais e mais, acusando fissuras.
O lirismo cancioneiro perduraria mesmo depois de Auschwitz1", mas Um dos frutos desse período de reinflexão é o pequeno livro de tema
ia sendo problematizado. Como cantar no “tempo surdo” identificado em único, em sete cantos. Amor em Leonoreta, também de 1951, em que, revisi-
“Contemplação”, de M ar Absoluto, onde ainda indagava: “Quem me dese­ tando as origens trovadorescas da lírica européia, e em particular a galaico-
ja ouvir, nestas paragens / onde todos somos estrangeiros?” Em Retrato poiluguesa, as quais conhecia “melhor que ninguém”14, reinventa o “puro amor”
Natural, os “homens e o mundo são de ruínas” (“O Ramo de Flores do referido por Lope de Vega15, glosando o velho lai galaico “Leonoreta, Fin
Museu”); a voz do canto é “concha vazia”, “sombra de som” (“Apresenta­ Roseta”, inserto no Amadis de Gaula. “Aquilo é uma coisinha meio mística,
ção”), “sem força para dizer nada”, e o eu lírico acusa a alternativa de “uma tratada de um modo meio herético. Quem tiver entendido isso, entendeu mui­
canção que já não fala”, “murcha no silêncio do poeta” (terceira “Can­ to”, diría Cecília sobre esse diálogo explícito com a tradição16.
ção”). A “música” - que foi planetária, das esferas, em tempos remotos ou Mas o grande legado dessa fase de busca latente dc um novo rumo poéti­
divinos - possível 1 1 a poética do silêncio é “vaga”, e a própria sobrevivên­ co foi o Romanceiro da Inconfidência, obra de meio do caminho publicada em
cia da poesia, sua e alheia, presente e passada, é questionada: 1953, em que, então deixando de duvidar do real sensível, preterindo os temas
introspectivos recorrentes e extrapolando a tensão entre o tempo que tudo ani­
Como os poetas que já cantaram, quila e a busca de um "oásis de estabilidade”, fora do tempo linear ou dentro do
eque ninguém mais escuta, tempo mítico, a poeta acolhe como matéria a história - e mergulha de modo
eu sou também a sombra vaga
de alguma interminável música.

adverte a poeta a uma “lagartixa branca”, a quem convida a repousar sobre 1 1. Carta a Cortes-Rodrigues, 13 dez. 1954.
12. Cf. Darcy Damasceno, "Poesia do Sensível e do Imaginário”, 1958, pp. XI-XL1I.
os seus “calmos livros” em “Comunicação” (Retrato Natural). Em uma
13. Poemas "Os V ivos Afastam os Vivos", em Poesia Completa, 4. ed., 1994. p. 1214; "O
carta, seria ainda mais explícita: “A vida está mesmo muitíssimo ruim para 10* Verso Melancólico", p. 1196.
14. Cf. João Adolfo Hansen. “Solombra ou a Sombra que Cai sobre o Eu”, 2001.
15. Cf. Natércia Freire. “Um Fantasma de Poesia", 1959, p. 330.
16. Carta de 28 jan. 1952 a Armando Cortes-Rodrigues. A "coisinha m eio mística” seria
10. Na década de 1940, a escritora colecionava os versos que formariam o livro Canções, considerada "um legítim o antecessor dos poemas experimentalistas, com o os poemas
embora ela mesma os considerasse “líricos demais para o tempo”; e ainda: “Estou com o variações do tema da Leonor de Camões, tecidos [...] na Leonorama, da portuguesa
Romanceiro em meio de um livro de canções demasiado líricas para as poder publicar". Ana Hatherly". Nádia Battella Gotlib, "Cecília, a dos Olhos Verdes", 1998, p. 451. Esse
Carta de 30 jul. 1947 a Armando Cortes-Rodrigues. O livro Canções seria publicado apenas texto de Nádia Gotlib constitui uma das melhores aproximações do recorrente diálogo
em 1956 (Ver da escritora “Gandhi, um Herói Desarmado", s.d.). da poesia ceciliana com o lirismo medieval trovadoresco.
174 PEN SA M E N T O E "L IR IS M O PI K O ’ NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES SEN TIM EN TO DO TEMPO 175

intensivo, ao longo de pelo menos quatro anos, na pesquisa do factual e do Além dos apelos do tempo, ao menos duas circunstâncias devem ser
concreto concernentes ao momento decisivo da formação nacional e da vida consideradas nesse movimento de reinflexão poética. A primeira é a íntima
colonial brasileira configurado pela conjuração mineira17. aproximação da escritora da poesia espanhola, cuja “geração de 27”, a par
Ou seja, nessa que é, ao lado de Invenção de Orfeu, de Jorge de Lima, haver redescoberto Góngora e o barroco, renovara o tronco medieval do
uma das duas obras de maior fôlego de nossa poesia na década de 1950, a romanceiro ibérico. De poetas como Antonio Machado - este da geração
representação do irreal, do simbólico e do ausente - a qual recorrentemente anterior - , a quem a poeta dedicou um poema de M ar Absoluto e atribuía a
gera dúvidas quanto à identidade do referencial - e o obsessivo recalque da “mais bela das elegias feitas para Lorca”, o qual “morreu de desgosto,
modernidade capitalista e burguesa, com seus valores de progresso e exilado”20; Federico Garcia Lorca, de quem traduzira na década de 1940
“tecnicidade” da vida, dão lugar à representação do “pesadelo” épico e Yerma e Bodas de Sangue, sobre quem escreveu crônicas e conferências,
concreto da história, ainda que sob o recorte alegórico do século XVIII. como “O Elemento Oriental em Garcia Lorca” (inédita), e a quem home­
Vale a pena, por sinal, lembrar um filósofo chinês para quem é impossível nageou no Rio, ao lado de Carlos Drummond de Andrade e Manuel Ban­
abordar a história sem se começar pela palavra hélas... deira, nos dez anos de sua morte; Rafael Alberti - marxista que, como
Mas, o que é ainda mais impactante - tratando-se, afinal, de uma Lorca, se aproximara do surrealismo via Góngora - , o qual Cecília consi­
autora que, por demais lírica, ao mesmo tempo cética e mística, nem cató­ derava haver representado “um momento divino da poesia espanhola mo­
lica nem materialista, não encontraria respostas na utopia marxista nem derna”21. Com estes, entre outros poetas, a lírica de expressão hispânica
chegaria a abraçar algum partido político, o que para ela talvez tenha assu­ produziu, na avaliação de Hugo Friedrich, o “tesouro mais precioso da
mido o avatar das lutas pela educação - , aquela dicção obsessiva dá lugar literatura européia na primeira metade do século XX”.
ao empenho em uma rememoração “salvadora” pela palavra de um passado Distanciando-se da “poesia declamatória ou naturalista”, explorando as
esquecido, recalcado, rememoração que recupera e dá voz aos esquecidos e possibilidades “mais sutis da língua” em busca dos “segredos e delicadezas da
vencidos da história18. O procedimento de resgatar o passado pela óptica alma que haviam sido banidos por uma civilização por demais positiva”, inves­
dos excluídos, em registro ao mesmo tempo mimético e crítico, seria reto­ tindo no estilo obscuro, lacônico, alusivo, econômico de correlações lógicas.
mado pela poeta em relação aos índios na inacabada Crônica Trovada, so­ Machado, Lorca, Alberti, Salinas. Diego e outros poetas - lidos intensivamente
bre a fundação da cidade do Rio de Janeiro - fruto de outras alentadas por Cecília - haviam igualmente empreendido uma volta às tradições nacionais
pesquisas - , publicada postumamente (1965), e em relação à mulher, em e à poesia popular com a renovação dos romances anônimos medievais22, três
vários poemas, como o épico cristão Romance de Santa Cecília (1957). séculos antes aproveitados também por autores barrocos como Lope de Vega,
Tal reinflexão não passou despercebida a alguns críticos da época: Góngora, Quevedo e anteriormente pelo português Gil Vicente. Renovação
“Curioso é como se investe nas presumíveis idéias e até na linguagem de empreendida também por hispano-americanos como Ruben Dano e Alfonso
algum hipotético rapsodo de fins do século XVIII, pondo-se ao lado do Reyes - este com seus Romances dei Rio de Enero, lidos e comentados pela
oprimido contra o opressor, do governado contra os governantes, do povo
contra a nobreza”, reconheceu, acerca do Romanceiro da Inconfidência,
Péricles Eugênio da Silva Ram os19. Sadlier a compreensão da revolta ceciliana contra a opressão da mulher em poemas
como “Balada das Dez Bailarinas do Cassino” (Retrato Natural) e “Mulher ao Espelho”
(Mar Absoluto), os quais analisa em Cecília Meireles & João Alphonsus, 1984.
17. O olhar sobre a matéria histórica se revelaria tão contundente e preciso que “um único 2 0 . Carta de 30 dez. 1946 a Armando Cortes-Rodrigues.
deslize” em termos de referencial historiográfico ou de outra ordem não pôde ser en­ 2 I . Cecília Meireles, “Terceiro Instantâneo de Buenos Aires”, Crônicas de Viagem-1. 1998,
contrado no livro. Cf. Ilka B. Laurito, “Romanceiro da Inconfidência - Uma Proposta p. 199 (Sobre Lorca, Cecília se dividia entre a admiração e restrições de ordem técnica,
de Leitura”, 2001. conforme se vê em sua correspondência a Cortes-Rodrigues).
18. Ver Jeanne-Marie Gagnebin, História e Narração em Walter Benjamin, 1999, particular­ 2 2 . Hugo Friedrich, Structures de la poésie moderne. 1976, pp. 195-197. Ver também Otto
m ente pp. 1-6. Maria Carpeaux, “As Revoltas Modernistas” e “Tendências Contemporâneas”, História
19. A quem se atribui o capítulo “O Modernismo na Poesia”, em Afrânio Coutinho (org.), da Literatura Ocidental, 1966 - sobre o “popularismo e surrealismo” de Lorca e Alberti,
A Literatura no Brasil, 1970, p. 118. Deve-se à pesquisadora norte-americana Darlene pp. 3160 e 3247-3255.
176 PENSAMENTO E "LIRISMO l'I RO" NA l’OESIA DE CKCII.IA MEIRELES SENTIMENTO 1)0 TEMPO

escritora brasileira logo de sua publicação, em 19332'. Já explorando esporadi­ Já quanto ao teatro, como muitos outros poetas de seu tempo, especial­
camente o filão da “narrativa rimada” dos romances desde Viagem e Vaga mente estrangeiros - entre os quais Lorca, Eliot c Audcn, cuja produção
Música (por vezes sob a rubrica “rimance” ou “romancinho”), Cecília Meireles tambcm dramática acompanhava do Rio25 - , Cecília Meireles escreveu pe­
encontraria em sua vertente épico-lírica o instrumental de sóbria concisão para ças - por volta de 1946 tinha pelo menos quatro dramas prontos (todos
a construção dessa obra longamente premeditada e “arquitetural” em que con­ inéditos), além de oratórios e de um auto de Natal, O Menino Atrasado,
siste o Romanceiro da Inconfidência. que seria musicado pelo compositor Luís Cosme. Sua correspondência do
A segunda circunstância a ser levada em conta é o envolvimento da período é rica em informações sobre esse trabalho e atividades correlatas26.
escritora com o teatro. Principalm ente pelos anos de 1940 e 1950, a Em 1946, sempre no Rio, a escritora ministrou uma série de conferências
monologação lírica ceciliana compartilhou espaço com a escritura de diá­ sobre teatro de marionetes; em 1947, participou de um grupo de Teatro de
logos teatrais - além de artigos e crônicas para jornais e periódicos, muitos Câmera, criado por Lúcio Cardoso - para o qual escreveu o drama O Jar­
dos quais, conforme venho abordando, trazem críticas veementes ao tempo dim -, entre outros, e ministrou um curso de literatura na Escola Dramáti­
da história presente e à “desordem do século”, principalmente no Ocidente ca; em 1948 presidiu uma Sociedade de Marionetistas, e uma conhecida
capitalista e tecnológico onde a indústria cultural começava a expor suas atriz da época, Dulcina, faria uma leitura dramática de uma de suas peças
garras. Um exemplo é a referida crônica “Pequena Voz”, escrita em 1953 .(O Ás de Ouros) - escrita a partir de um crime noticiado na imprensa. Por
na índia, onde a escritora participou de um congresso pacifista em home­ essa época, também traduziu, além das mencionadas peças de Garcia Lorca -
nagem a Gandhi, da qual transcrevo um excerto: estas na verdade vertidas ainda na década de 1930 - , dramas de Pushkin
(Don Juan), Casona (A Dama da Madrugada), Anouilh (Antigone), Ibsen
A índia de muitas raças, de muitos idiomas e sistemas filosóficos parece-me, de (Peer Gynt). Pouco antes de morrer, já na década de I960, ainda traduziría
repente, mais homogênea que os povos do Ocidente, com suas mútuas intolerâncias e Santa Joana, de Bernard Shaw, a pedido de Maria Fernanda, a filha atriz.
idiossincrasias, seus resíduos de ódio e vingança, suas ambições de domínio, seus interes­
Ainda pelos anos de 1940, o grande objetivo de Cecília nessa área era a
ses políticos - em bases de mesquinho egoísmo, concreto, imediato, quase mecânico,
desumanizado, comercial... Ocorre-me a presença da máquina. Não só essas imensas, má­
escritura de “uma tragédia”, para a qual andava buscando sua matéria, como
quinas que tomam o lugar do homem no trabalho - que não o ajudam, apenas, mas o subs­ revelaria na correspondência da época. “[...] em teatro as minhas raízes estão
tituem, completamente; e as que o deformam e reduzem a um ser de inteligência tão limitada diretamente na Grécia e em alguma coisa de Shakespeare. São os dois mun­
e automática quanto a sua. Lembro-me de Tagore, quando lhe falavam num trem velocíssi­ dos em que me sinto respirar plenamente”, diria em uma carta. “Mundos”,
mo que vencia quilômetros num abrir e fechar de olhos (ai de nós! que não éramos sequer
afinal, dos rituais dionisíacos e do mito, onde teve origem a tragédia antiga,
supersônicos!). E o poeta a perguntar, enfastiado: “ E que se faz depois, do tempo econo­
e do drama barroco (trauerspiel), cuja matéria é a história - com os quais
mizado?” Eis o problema: que se faz? Penso nos aparelhos de televisão que deixei atrás de
mim, além dos oceanos... O tristes rostos deformados, ó palavras tortas, ó programas - dialogaria o Romanceiro da Inconfidência27. Em outra carta, a escritora re-
para divertir? Para instruir? - mais tristes que um dia de luto... E as cifras, por detrás. Penso
nas emissoras de rádio, nos estúdios de c in e m a -e m tudo quanto está convertendo a arte
em negócio. Sempre a cifra por detrás da máquina. |...] Como vai o Ocidente compreender
2 5 . "É o tom de amargo pensamento, e de última tentativa de ordenar o mundo que faz
essa grandeza do despojamento indiano, da sua não-violência, da sua moderação - quando
deste poema [um oratório de Natal de Auden| - para mim - coisa tão grandiosa", escre­
a máquina inventou uma velocidade inumana, e já ninguém mais pode parar para refletir,
via a Cortes-Rodrigues em 10 fev. 1947. Vale ainda lembrar que “quase todos" os po­
para estudar, para penetrar séculos, idiomas, filosofias - se todos querem viver imediata­ etas do século XIX escreveram peças em versos, “das quais a maior é provavelmente
mente, confortavelmente, a serviço do corpo e da hora?2324 The Cenci" de Shelley (um dos românticos ingleses mais admirados por Cecília
Meireles). Cf. T. S. Eliot. “A Música da Poesia”, De Poesia e Poetas. 1991, p. 49.
2 6 . As peças são: A Nau Catarineta (peça folclórica para teatro de marionetes). O Menino
2 3 . Verbete “Romance”, em Demetrio E. Calderón. Diccionario de Términos Literários, Atrasado (auto de Natal, editado postumamente, 1966). O Ás de Ouro, Sombras, O
1996, e James W illis Robb, "Alfonso Reyes y Cecília Meireles: Una Amistad Mexicano- Jardim. Quatuor (dramas inéditos), além do Pequeno Oratório de Santa Clara (1955)
Brasilena”, 1981, p. 125. e o póstumo Oratório de Santa Maria Egipcíaca, 1996.
2 4 . Cecília M eireles, Crônicas de Viagem-2, 1999, pp. 195-196. Por tratar-se de uma das 2 7 . Ver Anatol Rosenfeld. O Teatro Épico, 2000, p. 39; e Walter Benjamim. Origem do
crônicas mais indignadas, estendi-me em sua transcrição. Drama Barroco Alemão, op. cit., p. 86.
178 PEN SA M EN T O E "L IR IS M O PL R O ' NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES SEN TIM EN TO DO TEMPO 179

gistrou a premonição de que a “tragédia” talvez se “resolvesse” em poesia: A própria escritora esclareceu alguns desses procedimentos: “Os ‘ce­
“A Tragédia está suspensa, esperando. [...] Por enquanto, vou construindo nários’ são intervenções para marcar os ambientes respectivos, exatamente
por dentro, calculando as minhas forças. Pode ser que a Tragédia se resolva como numa indicação dramática”11. De fato, em número de quatro, eles
em poesia. Tudo exige uma aprendizagem tão vagarosa!”28. acabam por segmentar o poema como atos de uma peça teatral, que muito
esquematicamente poderíam ser assim sumarizados: o primeiro girando em
torno do alucinante e alucinado ciclo do ouro e seus personagens, como
IN C U R SÃ O N A H IST Ó R IA Chica da Silva e o contratador Fernandes; o segundo, e mais longo,
enfocando os preparativos revolucionários, as intrigas, as delações e a trai­
No ambiente barroco da antiga Vila Rica, tão caro a nossos modernis­ ção e culm inando com as punições dos revoltosos, protagonizado por
tas, e no movimento “revolucionário romântico, que está na Inconfidência”2930*- Tiradentes e os poetas e intelectuais impregnados das idéias do Iluminismo;
protagonizado também por poetas que responderam pelo “momento decisi­ o terceiro revisitando as ruínas deixadas pelo surto aurífero e os persona­
vo” de passagem da literatura brasileira do fim da era arcádica para o roman­ gens remanescentes da sublevação sufocada, como Alvarenga e as mulheres
tismo, e lhe eram caros, especialmente Gonzaga - , Cecília Meireles acabaria indiretamente vitimadas pelas sentenças - Marília, Maria Ifigênia, Bárbara
encontrando a matéria para a “tragédia”, à qual, ainda em 1946, pensava Heliodora; o quarto, sobre o fim de loucura da rainha que assinou as penas,
intitular Os Condenados. Apenas em 1949 a poeta viria a registrar que a instaurando a “tragédia”, com a reflexão final sobre a matéria histórica
escrita já ia tomando a forma da narrativa em metros breves dos romances, revisitada.
sem deixar de servir-se de elementos oriundos da tragédia antiga que se es­ Já a opção pelo romanceiro, patrimônio da poesia popular que proce­
tenderam pela tradição teatral e chegaram ao drama barroco, romântico e de da tradição oral, herdeiro das gestas medievais e cujos mais remotos
moderno, como os coros, os diálogos, os prólogos e intermezzi, os cenários - ancestrais seriam as narrativas homéricas, fundamentou-se na “vantagem
introduzidos mediante recursos visuais ou gráficos sobre a página, como de ser narrativo e lírico; de entremear a possível linguagem da época” -
recuo de estrofes, uso de parêntesis e aspas ou mudança da fonte tipográfica. outro foco da pesquisa ceciliana - “à dos nossos dias”, justificou a escrito­
Recursos que denotam a interpenetração de vozes e de tons - que oscilam da ra12. A maior parte dos romances é composta em redondilha maior, com
intensa comoção à ironia e à sátira - , o que faz do Romanceiro da Inconfi­ predomínio da rima toante, em andamentos que com freqüência acercam-
dência um descontínuo tecido polifônico épico-lírico e também dramático, se ao da prosa. Mas verifica-se grande variedade de ritmos - do decassílabo
neste caso em decorrência dos copiosos elementos dialogísticos, conforme já ao quadrissílabo - e emprego de rimas consoantes ou ausência de rima, por
reconheceu a crítica10. vezes combinados em um mesmo poema. A escritora opera várias inova­
ções formais no romanceiro tradicional em língua portuguesa, as quais
também incluem, além dos recursos gráfico-visuais já mencionados, desde
2 8 . Cf. cartas de 20 mar. 1947 e 29 jan. 1946 a Armando Cortes-Rodrigues. Um ano de­
total liberdade estrófica a imagens de leve coloração surrealista e expedien­
pois, voltaria a comentar o projeto: “Aliás, o teatro para mim nüo dispensa o lado visual,
e eu tenho umas concepções meio extravagantes a respeito do palco: é um ambiente de tes expressionistas, estes como meio de colagem do tecido documental ali
transfigurações, cuja realidade é uma ‘realidade’ sua: não a da vida. E aludiría a onde ele se esgarçava: “Imagino o que dizia” (“Romance XVI” ), “Pode ser
Aristóteles: “A Catharsis do velho teatro grego está produzindo benefícios nas minhas
que assim falasse” (“Romance LV”), afora a “Imaginária Serenata”.
próprias angústias”. Carta de 16 mar. 1947 a Cortes-Rodrigues.
2 9 . Cf. Mário de Andrade, “O Movimento Modernista”, Aspectos da Literatura Brasileira, Uma medida da ditadura Vargas em prol do esquecimento - a suspen­
s.d., p. 250. Convirá lembrar que Castro A lves é autor do drama Gonzaga ou a Revo­ são das comemorações na data do martírio de Tiradentes; afinal, os feria-
lução de Minas e que Tiradentes inspirou textos de múltiplos escritores, que vão de
Bernardo Guimarães e Machado de A ssis a Murilo Mendes e Augusto Boal.
3 0 . Ver Ilka B. Laurito, “Romanceiro da Inconfidência - Uma Proposta de Leitura”, op.
cit. Até hoje se ressente a falta de uma rigorosa edição crítica dessa obra ceciliana, de 3 1 . “Como Escrevi o Romanceiro da Inconfidência", Romanceiro da Inconfidência, 1989,
que o livro Roteiro de Leitura: Romanceiro da Inconfidência, de Norma Goldstein pp. 22-23 (dessa edição retirei os versos que aqui serão transcritos).
(1998), consiste num bom embrião. 3 2. Idem, pp. 22-23.
IHII PKNSAMKNTO K “I.IRISMO 1TKO" NA l'OKSIA DK CKCÍUA MKIRKI.KS SRN T IM K M 0 DO TEMPO INI

dos são os dias da reminiscência, nos lembra Walter Benjamin11- foi o que Memória e esquecimento compõem um dos múltiplos pares da rede
terá impulsionado de vez a poeta para essa empresa de verdadeira anamnese de dualismos e antíteses que atravessa todo o poema - dialética que tam ­
historiográfica, que traz à tona do presente o passado oprimido e a voz de bém reflete a visão de um tempo cindido e de “um universo espiritual
seus protagonistas ou anônimos personagens: além do mártir hoje ilustre (o dominado pelas contradições”, afinal presente em toda a lírica ceciliana15.
“alferes de cavalaria” Tiradentes, portador do sonho contra a opressão co­ Presente e passado, trabalho e fortuna, civilização e barbárie, esfera públi­
lonial e de afirmação da incipiente nacionalidade) e dos inconfidentes pu­ ca e esfera privada, fome do povo e riqueza da terra, luminosidade do ouro
nidos (intelectuais e poetas), os escravos, alguns índios, a mulher desprovi­ e pensamento “turvo” dos que o cobiçam, natureza harmônica e cultura
da de cidadania, como se vê, entre outros, no magnífico “Romance IV”; o decaída, pompa tosca das igrejas e crueldade dos fiéis, “tempos de ouro” e
povo pobre condenado ao silêncio; já a figura do escravo e do negro apare­ tempos “de sangue”, sublimidade dos que sonham e pusilanimidade dos
ce em grande número de poemas - um ensaio recente chega a contabilizar que delatam, esgotamento das entranhas dos sertões mineiros e enriqueci­
31 num total de 96 textos que formam a obra, quinze dos quais em primei­ mento da Coroa no Ultramar. A “Fala Inicial” que abre o Romanceiro traz
ro plano. Até mesmo os mansos cavalos açoitados que serviam como meio já na primeira estrofe a antítese entre a paralisia do eu poético diante do
de transporte de vivos e mortos e como bens de capital no ciclo do ouro - “atroz labirinto” do esquecimento e da história “cega” e o trânsito do carce­
animais que, também como símbolo da natureza violentada, além de todo reiro “sobre angústias” do passado. E os primeiros romances já evidenciam,
um romance (o de número LXXXIV), merecem uma das muitas extraordi­ talvez como forte herança romântica, a empatia do narrador com os venci­
nárias metáforas, algumas algo surrealistas, do Romanceiro: “enquanto o dos e esquecidos da história, a denúncia da escravidão, a crítica à hipocrisia
cavalo bebe, / na água, as nuvens do horizonte” (Romance XVI). religiosa:
Murilo Mendes, que publicou um penetrante texto sobre a “poesia
social de alta categoria” do Romanceiro da Inconfidência logo de seu apa­ [...]
recimento, na revista Vanguarda, reconheceu que Cecília Meireles navegou Pelos córregos detinham
negros, a rodar bateias.
na contracorrente da historiografia da época, que subestimava a Inconfi­
Morre-se de febre e de fome
dência Mineira como “episódio preparador e anunciador da emancipação
sobre a riqueza da terra: [...]
política do país”. Afinal, a historiografia conservadora tinha por norma “Romance II”
privilegiar as instituições vitoriosas. A contrapelo do esquecimento da in­
surreição malograda se insurge a poeta, acolhendo “com fervor a Inconfi­
dência no seu quadro de lendas, tradições, sua atmosfera de almas penadas, Riqueza grande da terra,
quantos por ti morrerão!
de bruxas, de enforcados, de suicidas”14 - extraindo dos episódios novas
(Vede as sombras dos soldados
significações. Salvar o passado da alienação do esquecimento, rememorar, entre pólvora e alcatrão!
chamar à vida o que silenciou, não consiste, afinal, em uma das mais remo­ Valha-nos Santa Ifigênia!
tas atribuições do poeta? 34* - E isto é ser povo cristão!)
(...] “Romance V”

3 3 . Cf. “Sobre o Conceito de História”, Mania e Técnica, Arte e Política, op. cit., p. 230. [...]
Cecília Meireles escreveu numa carta: “[...] cessaram as com em orações (aliás, durante Já se ouve cantar o negro.
a Ditadura!) e foi o que me chamou a atenção para o fato histórico. Eu pensava que
agora, a Ditadura tendo acabado... E ando nervosa, sabe? Ando com o Tiradentes atrás
de mim. Ele me persegue, pede-me que relembre o seu martírio [...]”. 26 mai. 1947, a
Armando C ortes-Rodrigues.) 35. Ver Walter Benjamim, Origem do Drama Barroco Alemão, op. cit., p. 79. Especifica­
3 4 . Murilo Mendes, “A Poesia Social”, em C ecília M eireles, Poesia Completa, 4. ed., op. mente sobre o dualismo na poética ceciliana, ver. entre outros. Margarida Maia Gouveia.
cit., p. 66. Ver também Francis Utéza, “O Negro no Romanceiro da Inconfidência", “O Discurso do Paradoxo”, Cecília Meireles, Uma Poética do “Eterno Instante", 2002,
2002, pp. 40-55. pp. 1 4 2 - 156.
182 l’KN SAM ENTO K "L IR IS M O P IR O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES SEN TIM EN TO DO TEMPO 183

Que saudade, pela serra!


Os corpos naquelas águas, Mandam sempre os que são grandes:
- as almas por longe terra. e é grandeza de ministros
Em cada dia de escravo, roubar hoje como dantes.
que surda, perdida guerra! Vão-se as minas nos navios...
| ... 1 “Romance VII” Pela terra despojada,
ficam lágrimas e sangue.
[...] [...]
Ai, que chicotes tão duros, "Romance XIX”
e que capelas douradas!
[...] "Romance XVII” UI
(E ninguém percebe
No longo poema, é o eu poético, investido do papel de narrador, que co m oé necessário
que terra tão fértil,
ordena a matéria historiográfica e opera recortes e descontinuidades que
tão bela e tão rica
redesenham ou estilhaçam o tempo linear e as versões correntes dos episó­ por si se governe!) [...]
dios. Toda a narrativa ceciliana traz “a marca do narrador, como a mão do ( A terra tão rica
oleiro na argila do vaso”3'1. Uma dessas “marcas” é a forte crítica ao poder E - ó almas inertes! -
econômico que engendra estratificação social - simbolizado pelo alucinante o povo tão pobre...
e alucinado ciclo do ouro - , à barbárie da escravidão, à espoliação colonial, Ninguém que proteste!

à opressão, à injustiça. A narrativa vai identificando lírica e metonimi- [...]


“Romance XXVII”
camente, pelo detalhe e pelo adereço, a natureza m ulticlasses e multi-
ideológica do movimento conspirador:
Versos como esses fazem pensar no historiador dialético benjaminia-
no, mergulhado no empenho de captar “a configuração em que sua própria
Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
época entrou em contato com uma época anterior”, dela extraindo “uma
brilham fardas e casacas, vida determinada”37. E, afinal, aqui logrando o narrador alegorizar a época
junto com batinas pretas. posterior e a nossa, de neocolonialismo “globalizado”. Os últimos versos
E há finas mãos pensativas, acima transcritos, enfeixados em parêntesis, também ilustram a encarnação
entre galões, sedas, rendas, da voz do “coro”, tido como elemento “universal” no teatro antigo, mas no
e há grossas mãos vigorosas,
qual, segundo Anatol Rosenfeld, pode também se manifestar o próprio
de unhas fortes, duras veias [...]
citam Virgílio e Horácio “autor”, desempenhando “funções [...] contemplativas de comentário e re­
e pensam de mil maneiras. flexão”38.
"Romance XXIV” A mencionada conferência “Como Escrevi o Romanceiro da Inconfi­
dência ” é rica em indicações de como a rigorosa e vasta pesquisa docu­
M ovimento libertário que, no poem a ceciliano, não deixa de soar mental coexistiu, mesmo nesse “poema de mais objetividade”39 e de fideli-
ainda terrivelmente atual e sugerir uma leitura alegórica do Brasil contem ­
porâneo, pelo menos o do século XX - espaço e tempo da poeta - , confor­
me versos sarcástico-patéticos como os que se seguem:36
3 7. Idem, "Sobre o Conceito da História". Magia e Técnica, Arte e Política, op. cit., pp.
2 3 1 -2 3 2 .
3 8. Anatol Rosenfeld. O Teatro Épico, op. cit., p. 40.
3 6 . Ver Walter Benjamim, "O Narrador”, Magia e Técnica, Arte e Política, op. cit.. p. 205. 3 9 . Cecília Meireles, “Como Escrevi o Romanceiro da Inconfidência", op. cit., pp. 13 e 21.
184 PEN SA M ENTO E “L IR IS M O P I R O " NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES SEN TIM EN TO DO TEMPO I8.í

dade às fontes historiográficas40, com outra das “marcas do narrador” (ou a sua porta” (primeiro “Cenário”), mas no epos a “Musa” - ou os “fanstas-
narradora, no caso), especialm ente os então já maduros procedimentos m as”, como disse Cecília naquela conferência - fala por intermédio do
cecilianos visionários, de distensão psíquica e de conexão com o inconsci­ poeta, seu médium. Já no primeiro poema (“Fala Inicial”), o eu poético
ente no manejo das sonoridades sugestivas e dos ritmos breves e regulares, sente “bater os sinos”, vê “o arrepio da morte”, avista “a negra masmorra”,
nessas operações de anamnese. e assim por diante. Procedimento retomado logo a seguir, no primeiro
“Cenário”, conforme procuro assinalar nas palavras que grifei:
Quando, há cerca de quinze anos, cheguei pela primeira vez a Ouro Preto, o Gênio
que a protege descerrou, como num teatro, o véu das recordações que, mais do que a sua [...]
bruma, envolve estas montanhas e estas casas - e todo o presente emudeceu, como platéia tudo me fala e entende do tesouro
humilde, e os antigos atores tomaram suas posições no palco. [...] Na procissão dos vivos arrancado a estas Minas enganosas,
caminhava uma procissão de fantasmas [...] as pedras e as grades da cadeia contaram sua com sangue sobre a espada, a cruz e o louro.
construção - o suor e os castigos incorporados aos seus alicerces; [...] Digo que [o
Romanceiro ] "se foi com pondo" e não "que foi sendo composto", pois. na verdade, uma Tudo me fala e entendo: escuto as rosas
das coisas que pude observar melhor que nunca, ao realizá-lo. foi a maneira por que um e os girassóis destes jardins, que uni dia
tema encontra sozinho ou sozinho impõe seu ritmo, sua sonoridade, seu desenvolvimento, foram terras e areias dolorosas,
sua medida41.
por onde o passo da ambição rugia:
Nesse “encontro marcado entre as gerações precedentes” e a do eu por onde se arrastava, esquartejado,
o mártir sem direito de agonia.
poético, Cecília Meireles, acolhendo os "apelos do passado”, recupera re­
correntemente os “ecos das vozes que emudeceram” a que se refere Benja­ Escuto os alicerces que o passado
min na epígrafe transcrita no início deste capítulo. É como se “acordasse” tingiu de incêndio: a voz dessas ruínas
os mortos e juntasse os estilhaços da história. Segundo a poeta, impôs-se, de muros de ouro em fogo evaporado.
“acima de tudo, o respeito por essas vozes que falavam, que se confessa­
vam, que exigiam, quase, o registro da sua história”42. “O passado não abre Altas capelas contam-me divinas
fábulas. [...]

Tudo me chama [...].

4 0 . Entre as centenas de obras consultadas, incluem -se Autos de Devassa da Inconfidência até ver e ouvir a “forma, do tempo desprendida" do Alferes, nos versos
Mineira; Memórias do Distrito Diamantino, de Joaquim Felício dos Santos; A Inconfi­
dência Mineira, de Joaquim Norberto de Sousa e Silva; A Capitania das Minas Gerais,
finais. Esse “Cenário”, em decassílabos e terza rima - “a melhor terza rima
de Augusto de Lima Júnior; além da literatura do período, com o Marti ia de Dirceu, existente em português”, segundo Mário Faustino43 - , constitui um dos
Cartas Chilenas - cuja autoria a escritora pesquisou prolongadamente, levantando em pontos altos do livro, ao lado do mencionado “Romance IV ou da Donzela
uma série de artigos a hipótese de sua atribuição ao árcade português Cruz e Silva. Ver
Assassinada” e dos romances “XVII ou das Lamentações no Tejuco”,
o levantamento de Lúcia Helena Scaraglia Manna, Pelas Trilhas do Romanceiro da
Inconfidência, 1985. Em uma carta, registraria C ecília Meireles: “[...] esta tragédia me “XXIV ou da Bandeira da Inconfidência”, “XXVII ou do Animoso Alte­
obriga a refazer séculos. Estou toda século 18. com raízes pelo 17. Porque estes incon­ res’’, “LI II ou das Palavras Aéreas”, "LIX ou da Reflexão dos Justos”, a
fidentes eram meio enciclopedistas, meio pedreiros-livres e é preciso estar dentro da
"Fala” final “Aos Inconfidentes Mortos", entre outros - os quais, por sua
Revolução Francesa, da Independência dos EUA, 1er Franklin e Jefferson, Voltaire,
Montesquieu, Diderot; ir aos arcades italianos, estudar Portugal desde João 5". pelo unidade autônoma, permitem leitura independente da seqüência da edição.
menos; ir aos clássicos espanhóis, principalmente Gracián, ir à política peninsular do
tempo. [...] não me move tudo isso se não uma espécie de piedade terrível por essa
gente sacrificada [...]” 4 set. 1947, a Armando Cortes-Rodrigucs.
4 1 . "Como Escrevi o Romanceiro da Inconfidência", op. cit„ pp. 13 e 21.
4 2 . Idem, p. 23. 43. "Cecília Meireles: Canções", 1957.
186 PENSAMENTO E "LIRISMO PURO" NA POESIA I)E CECÍLIA MEIRELES SENTIMENTO DO TEMPO 187

A conferência “Como Escrevi o Romanceiro da Inconfidência”, pródi­ 1...I


ga também em alusões e detalhes sobre os identificados vínculos daquele Que os heróis chegam à glória
só depois de degolados.
fragmento de nossa história com as tragédias “dos tempos antigos da Grécia”,
Antes recebem apenas
contribui para nutrir a interpretação de que a leitura inicial do ciclo do ouro ou compaixão ou desdém.
e da saga de Tiradentes pelo eu poético encontrou, sob a camada da história,
analogias com arquétipos míticos pagãos ou canônicos, como o do herói, diz o “Romance XLIV” , um dos poemas do livro que aludem à história
fonte da epopéia - conforme já reconheceu o valioso trabalho acadêmico de como “natureza cega”: “Há mais prêmios neste mundo / para o Mal que para
Ilka B. Laurito sobre essa obra44456- , além do despedaçamento do herói o Bem”. Como todo herói trágico, Tiradentes também silencia48.
(sparagmós), como Orfeu, este considerado como “protótipo” de Cristo; e
da vítima sacrificial ou do bode expiatório (pharmakós), como Sócrates ou [...1
Cristo; ou do intrigante e traidor (Joaquim Silvério), como Judas ou um Pois quem quiser faça agora
lago. Conforme notou Ilka Laurito, no Romanceiro o Alferes oscila entre o perguntas sobre perguntas,
herói trágico - do qual Prometeu é um dos arquétipos - e o anti-herói do - que já não responde nada.

mito quixotesco, que provoca risos c é tomado por louco, como se vê nos
lê-se no "Romance LXIII ou do Silêncio do Alferes", um dos muitos onde
romances “XXX ou do Riso dos Tropeiros” e “XXXI ou de Mais Tropeiros”.
A poeta terá, ainda, encontrado analogia entre o revolucionário Tiradentes e ainda é possível encontrar paralelismos com o mito de Cristo, neste caso
mediante alusão à ultima ceia.
a figura do cavaleiro andante da literatura cortesã medieval - a palavra “alfe­
res” origina-se do árabe al-fars, cavaleiro - , como o ancestral Prometeu, É, possivelmente, a dialética entre mito e história que faz do Roman­
ceiro da Inconfidência, obra que se origina do debruçar-se sobre a brasilidade
empenhado em “proteger os fracos”; e convicto de que “todos os homens são
na alvorada de sua formação, também uma revisita à condição humana no
iguais”48. Já no primeiro romance integralmente dedicado a ele (número
XXVII, “do Animoso Alferes”), Tiradentes - que “foi trabalhar para todos” - que tem de universal e, ao mesmo tempo, o aproxima do denominado “dra­
ma de destino" dc formatação barroca e, depois, romântica e expressionista.
surge cavalgando seu bacamarte, o que se repete nos romances XXX, XXXI,
Em seu recorte preciso daquele fragmento da história brasileira, o Roman­
XXXIII, e o bem mais precioso que a Coroa viria a lhe seqüestrar consistiría
ceiro representa por viés imanente e mesmo “realista” a vida colonial em seu
em seu “machinho / castanho rosilho” (“Romance LVI ou da Arrematação
dos Bens do Alferes”). espaço e em seu tempo, reconstituindo as origens da antiga Vila Rica, como
que vasculhando dialeticamente aquele momento crucial de nossa formação,
O mito animou o coração da tragédia, nos lembra Nietzsche16, e deve
a ponto de trazer à tona o contingente sensível em suas minúcias - o cotidia­
ter falado alto à poeta a configuração do líder da insurreição mineira tam­
no, a linguagem, as relações sociais e humanas, a própria “vida emocional”
bém como espelho do herói trágico, de nascimento humilde, estóico, justo
da época, com toda a parafernália de instrumentos, objetos e até doenças da
e capaz de coragem e solidão sobre-humanas, com rápida ascensão na cena
sociedade pré-industrial, como se vê no “Romance XXI ou das Idéias”, pura
pública e a queda ulterior, decorrente de traição. A psicologia analítica
acumulação enumerativa de fragmentos que quase prescinde de verbos;
reconhecería o papel do mito do herói não apenas para a afirmação da
personalidade individual como também para a “identidade coletiva”47 em
processo de maturação.
Altares cheios de velas.

4 4 . Tempos de Cecília, 1975. coletivos. Em tempos de crise, esse desejo impregna-se de força virulenta e projeta a
4 5 . Cf. Johan Huizinga. O Declínio da Idade Média, 1996. pp. 64-65. imagem plástica e individual em forma de personificação”. O Mito e o Herói no Moder­
4 6 . Lm Naissance de la Tragédie, sobretudo segmento 23; 1964, pp. 148-153. no Teatro Brasileiro, 1996, p. 36.
4 7 . Cf. Cari G. Jung (org.), O Homem e seus Símbolos, 1992. pp. 73-112. Ao abordar 4 8 . “O herói trágico só tinha uma linguagem que lhe convinha [...): o silêncio.” F. Rosenzweig,
Tiradentes. registra Anatol Rosenfeld: o "herói mítico é a personificação de desejos cf. Walter Benjamim. Origem do Drama Barroco Alemão, op. cit„ pp. 130-132.
188 PENSAMENTO li “I.IRISMO PlIRO" NA POESIA DE CECÍLIA MEIRELES SENTIMENTO 1)0 TEMPO 1811

Cavalhadas. Luminárias. diz uma das entoações corais, elevando o tom no "Romance XVIII ou dos
Sinos. Procissões. Promessas. Velhos do Tejuco” . Na “Fala aos Inconfidentes M ortos”, que encerra o
Anjos e santos nascendo
longo poema, o eu poético já não sonda a memória do tempo do devir, o da
em mãos de gangrena e lepra.
Finas músicas broslando
história, ou a memória coletiva, mas a “memória / da eternidade” e a justi­
as alfaias das capelas. ça cósmica. Na última estrofe desse epílogo, volta a dialogar com Platão e
Todos os sonhos barrocos sua herança órfico-pitagórica, contrapondo os “pusilânimes” e delatores da
deslizando pelas pedras. terceira fala - na qual identifica o “Inferno” à p u s i l a n i m i d a d e , assim, com
Pátios de seixos. Escadas.
caixa alta - aos que foram iniciados na justiça e no bem: "Quais os que
Boticas. Pontes. Conversas.
tombam/em crimes exaustos? / Quais os que sobem / purificados?”50
Gente que chega e que passa.
E as idéias. Também esses versos escatológicos da fala final trazem alguma luz
[...] sobre a própria visão ceciliana trágica da história - e, afinal, sobre o ceti­
cismo da escritora em relação às utopias revolucionárias de seu próprio
Nessa conjunção de mito e história, de tempo histórico (matéria do tempo. Segundo essa óptica, a história é feita de embates entre a queda e a
drama barroco, romântico e depois expressionista) e tempo trágico e mítico “purificação”, para a qual um dos caminhos é o “sonho" e o ideal, como o
(matéria “pré-histórica" da tragédia antiga)4'', a poeta acaba retomando, de liberdade e justiça. Mas, afinal, ela é feita pela condição humana, sujeita
mesmo nessa narrativa épica, alguns de seus principais motivos líricos, e por vezes joguete das paixões que a escravizam. Na época da Inconfidên­
como na reflexão sobre a reificação do ouro como elemento desencadeador cia, focalizada na obra. os que buscam ou obtêm a riqueza são escravizados
das desenfreadas e insaciáveis paixões humanas, que portam analogia com pelo ouro - "Hoje, os brancos também, meu povo, / são tristes cativos!",
as paixões do homem “barroco", tão colado ao mundo: conforme a metáfora platônica do “Romance VIH": os que enriquecem
“sem descer do seu cavalo... / sem m eter os pés no rio...” (“Romance
[...] XIII” ), por sua vez, escravizam os negros para a garimpagem das minas; o
Que a sede de ouro é sem cura, poderoso ricaço contratador Fernandes é subjugado pelo amor à irreverrente
e, por ela subjugados,
e sagaz Chica da Silva - a “dona do dono/do Serro do Frio” ; e a rainha que
os homens matam-se e morrem,
ficam mortos, mas não fartos. decreta as penas, as quais selam o destino dos que se entregaram àquele
“Romance I” sonho revolucionário, “ingênua audácia”, acaba encarcerada no “exílio es­
tranho” da loucura, noutra das poderosas imagens do poema:
E possível ainda identificar o tópico do ubi sunt?, presente já na “Fala
Inicial”, e no “Romance I”, na “Fala à Comarca do Rio das M ortes” - [...]
Ai, que a filha da M arianinha
“Onde estão seus vastos sonhos, / ó cidade abandonada?”; as interrogações
jaz em cárcere verdadeiro,
metafísicas, como no “Romance LVI” - "Neste corredor de trevas / nossos sem grade por onde se aviste
passos onde irão?” ; ou o motivo pessimista e tão ceciliano do poder corro­ esperança, tempo, luzeiro...
sivo do tempo e da efemeridade dos bens terrenos: Prisão perpétua, exílio estranho,
sem juiz, sentença ou carcereiro...
(Que tudo passa... “Romance LXX1V ou da Rainha Prisioneira”
O prazer é um intervalo
na desgraça...)49
50. N o Fédon, diz Sócrates que a "verdadeira virtude é uma purificação de todas as pai­
xões” e aqueles que “estabeleceram as iniciações místicas [...] nos desejam fazer com ­
preender que aquele que for ao Hades sem ser iniciado e purificado será jogado na
4 9 . Idem. pp. 143-144. lama”, enquanto o "purificado e iniciado será recebido entre os deuses”. 1999, p. 131.
190 PEN SA M EN T O E “L IR IS M O P IR O " NA POESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES SENTIM ENTO DO TEMPO

Esse enredamento na “queda” das paixões e da intriga é simbolizado virá, contudo, ressaltar ao menos que, diversamente da épica de Camões, que
pelas imagens recorrentes do laço, do entrelaçamento, da teia e da aranha celebra feitos vitoriosos e expansionistas de um império, o Romanceiro
ao longo do poema (Romances XXIV, XXVIII, XXIX, terceiro Cenário). ceciliano emerge antes como uma antiépica, à medida que narra a insurreição
"Purificam-se” ou "desenredam-se”, ainda que sujeitos ao jogo do destino - derrotada, deflagrada em nome de um povo vencido pelo jugo daquele mes­
duas das palavras recorrentes no longo poema - , os capazes de erguer o mo império - o dos colonizadores da época. Parece, todavia, inegável que se
“sonho humano”; de espalhar sua “lúdica semente” em sua passagem pelo insere entre as obras que, para empregar palavras de Antonio Cândido, fazem
mundo; de não renunciar ao sofrimento em favor da instauração de uma “um pouco da nação” enquanto literatura53. O que foi bem percebido pela
comunidade nova, como o revolucionário Tiradentes, como o pacifista açoriana Margarida Maia Gouveia, em sua admirável tese de doutorado sobre
Gandhi (para se ater a dois líderes sabidamente admirados pela poeta). Em a poesia lírica ceciliana. Ela identifica no Romanceiro “uma espécie de esta­
suma, aqueles que se rebelam contra o processo da história como decadên­ tuto de poema homérico da libertação brasileira”, e acrescenta: “Se a história
cia, barbárie e declínio. da Inconfidência é ainda história de Portugal, os mitos da Inconfidência são
identidade brasileira. [...] [Cecília Meireles] inventou para a cultura brasilei­
[...J ra o romanceiro que ela não tinha e que lhe faltava”54. Foi ainda em Portugal
D o s heróis m artirizados
onde se aventou, pela leitura de João Gaspar Simões, a “primazia” de Cecília
nunca se e sq u ec e a agon ia. (...]
na inserção do “neo-romancismo” na poesia brasileira culta, filão pouco de­
E, à som bra de e x e m p lo s graves,
n ascem g erações opressas. pois explorado por João Cabral de Melo Neto55. Na verdade, outros poetas de
Q u em se m ala em so n h o , esfo rço , nosso período modernista também exploraram o romance, embora episodica-
m istérios, v ig ília s, pressas? mente. Mas talvez sejam as assonâncias desse mencionado “neo-romancismo”
Q uem c o n fia nos a m igos? que aproximam por vezes as dicções tão diferentes de Cecília Meireles e de
Q uem acredita em p rom essas?
João Cabral, como pude perceber em poemas cecilianos como, entre outros,
Q ue tem p os m ed on h os ch egam ,
o póstumo “Corrida Mexicana” e em vários segmentos do Romanceiro da
d ep o is de tão dura prova? Inconfidência.
Q u em vai saber, no futuro, Conforme assinalei no início deste capítulo, Cecília Meireles terá che­
o que se aprova ou reprova? gado ao “romancismo” via suas afinidades líricas com a moderna poesia
D e que alm a é que vai ser feita
espanhola, que acabou desaguando no surrealismo via Góngora e o barroco,
essa hum anidade nova?
além da leitura dos romanceiros ibéricos medievais. Na crítica a essa obra
ceciliana, Murilo Mendes assinalara que o “riquíssimo" filão dos romances
dizem esses versos de alta negatividade, que constituem um avesso do
“tem sido explorado e renovado em nossos dias pelos poetas mais inquietos,
messianismo, do “Romance LIX ou da Reflexão dos Justos”51.
de sensibilidade mais em consonância aos acontecimentos da nossa época,
Como "poema nacional” (e social), o Romanceiro da Inconfidência
que [...] possuem o duplo senso do clássico e do moderno [...] [e] enxertaram
chegou a ser considerado, por mais de um crítico, como Os Lusíadas brasi­
leiro52. Discutir essa avaliação requerería, decerto, todo um outro livro. Con­

5 3. Formação da Literatura Brasileira. 1971, p. 18 (vol. 1).


5 I . Em carta a Cortes-Rodrigues. Cecília Meireles explicitou: "Exceto pelos aviões, pelos 5 4. Op. cit., pp. 211-236, sobretudo pp. 215-216 e 222.
telefones, os automóveis, a penicilina... não vejo nada que justifique os séculos 19 e 20. 5 5 . "Creio que ainda se não observou isso no Brasil, porque às vezes essas coisas vêem-se
Estamos em vertiginosa decadência. Voltaire, por exem plo, era muito mais cristão do melhor de fora”, escreveu o crítico a propósito do Romanceiro da Inconfidência. “[...]
que todos os católicos que conheço". 15 set. 1947. Em verdade. Cecília Meireles é dos primeiros líricos do Brasil a acreditar na importância
5 2 . Entre os que fizeram essa aproximação está A lexei Bucno, “Em tom o do Romanceiro do romance ou rimance como forma de integração da realidade étnica brasileira.” João
da Inconfidência", 2000, p. 231. Gaspar Simões, "Cecília Meireles. Precursora do Moderno Lirismo Brasileiro”, 1964.
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novas e mais vivas imagens ao velho tronco austero, linear”56. Penso que foi eternidade, sondando a condição humana e seus arquétipos, reinventando a
esse o caminho trilhado por Cecília Meireles nesse livro. tradição dos romances e "arrancando-a do conformismo”, o Romanceiro
Gostaria ainda de destacar que o Romanceiro da Inconfidência consiste da Inconfidência terá sido a principal saída - que não fosse a da “evasão”
no principal conjunto poemático orgânico de Cecília Meireles. Desde a ju ­ nem a do “gênero oratório”, conforme almejava - encontrada por Cecília
ventude, com Poema dos Poemas (1923), ela vinha buscando, conforme Meireles diante da crise do canto encalacrado.
anteriormente assinalado, compor um poema longo de assunto único, projeto
que resultou em outras coletâneas, como Amor em Leonoreta, O Aeronauta,
Doze Noturnos da Holanda, Romance de Santa Cecília, Oratório de Santa U M PO E M A E M B L E M Á T IC O
Clara, além de Solombra, o derradeiro canto espectral da morte ceciliano.
Considero o Romanceiro da Inconfidência obra orgânica e “arquitetural” Lamento do Oficial por Seu Cavalo Morto
também pelo esforço de ordenar materiais poéticos de origem diversa e tam­
1 Nós merecemos a moite,
bém de aí conciliar a “pouco conciliável inspiração”57. Murilo Mendes, uma
porque somos humanos
vez mais, bem compreendeu essa organicidade intrínseca, quando assinalou:
e a guerra é feita pelas nossas mãos,
pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra,
(...] o Romanceiro da Inconfidência [...] resulta de uma com binação homogênea 5 por nosso sangue estranho e instável, pelas ordens
entre força poética, domínio da língua, erudição e senso do detalhe histórico valorizado em que trazemos por dentro, e ficam sem explicação.
vista de uma transposição superior, própria ao código da poesia. [...] realizou Cecília
Meireles uma obra de alta importância para as letras brasileiras: colocando-se a cavaleiro Criamos o fogo, a velocidade, a nova alquimia,
do panorama atual da nossa poesia, desdenhando a im pessoalidade do tem a - fenômeno os cálculos do gesto,
que liga boa parte dessa mesma poesia ao parnasianismo - , enfrentou Cecília o assunto embora sabendo que somos irmãos.
preposto, o difícil assunto, num livro que tem cabeça, tronco e pés, e que, posto a andar, 10 Temos até os astros por cúmplices, e que pecados
sustenta sua rigorosa unidade5859. de ciência, pelo mar, pelas nuvens, nos astros!
Que delírio sem Deus, nossa imaginação!
Quanto ao caráter libertário e igualitário, mesmo socialista - por em­
preender uma leitura da história pela óptica dos vencidos - , e à atualidade do E aqui morreste! Oh, tua morte é a minha, que, enganada,
recebes. Não te queixas. Não pensas. Não sabes. Indigno,
poema, convém lembrar que continua inspirando e, sobretudo no período da
15 ver parar, pelo meu, teu inofensivo coração.
ditadura militar (1964-1986), inspirou inúmeras transposições para outras
artes - desde canções de Chico Buarque de Holanda a encenações teatrais, Animal encantado - melhor que nós todos! - que tinhas tu
além de uma admirável série de gravuras e desenhos de Renina Katz - final­ [com este mundo dos homens?
mente, em 2004, reunida ao texto inspirador em admirável edição - e parte Aprendias a vida, plácida e pura, e entrelaçada
em carne e sonho, que os teus olhos decifravam...
dos diálogos do filme Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade ( 1972).
Rei das planícies verdes, com rios trêmulos de relinchos...
Revisitando o tempo “saturado de agoras”51' da história e seu trágico
20 Como vieste morrer por um que mata seus irmãos!
acervo de experiências, confrontando-o com o tempo místico e mítico da
Inserido no livro Mar Absoluto e Outros Poemas, publicado em 1945,
“Lamento do Oficial por Seu Cavalo Morto” foi escrito em pleno transcur­
5 6 . "A Poesia Social”, op. cit., p. 67. Ver também, entre outros, Otto Maria Carpeaux, His­ so da Segunda Guerra Mundial - e originalmente publicado por Antonio
tória da Literatura Ocidental, vol. 7. 1966, sobretudo p. 3160 e pp. 3246-3250.
5 7 . Baseio-me no que Eduardo Lourenço escreveu sobre Os Lusíadas, em Poesia e Meta­
Cândido na revista Clima (1944), que o terá recebido por intermédio de
física, 1983, p. 250. Mário de Andrade. À época, vivia o Brasil sob o Estado Novo getulista e,
5 8 . "A Poesia Social”, op. cit., p. 66. à barbárie internacional desencadeada pelo nazismo, contrapunha-se no país
5 9 . Walter Benjamim, ‘‘Sobre o Conceito de História", op. cit., p. 229.
outra temporada de selvageria explícita - a qual, inclusive, atingiu direta­
1114 PEN SAM ENTO E "L IR IS M O P IR O " NA PO ESIA DE CECII.1A M EIR ELES SEN TIM EN TO DO TEMTO 1(15

mente Cecília Meireles. Com o advento do Estado Novo em 1937, a polícia A poeta revisitaria a guerra de seu tempo em vários poemas - entre os
política da época fechara com truculência a pioneira biblioteca brasileira quais cumpre destacar o extraordinário Pistóia, Cemitério Militar Brasileiro
para crianças que ela e o primeiro marido, o artista plástico e ilustrador (1955), escrito após uma visita ao mausoléu dos pracinhas brasileiros na Itália:
Fernando Correia Dias, haviam fundado, em 1934, no posteriormente de­
molido Pavilhão Mourisco, no bairro de Botafogo, Rio de Janeiro. A escri­ [...]
tora criou e dirigiu a biblioteca e um Centro de Cultura Infantil - dotado de São como um grupo de meninos
num dormitório sossegado,
seções de gravuras, cartografia, selos e moedas, jornais e revistas, música,
com lençóis de nuvens imensas,
cinema e dramaturgia —por missão que lhe foi confiada por Anísio Teixei­
e um longo sono sem suspiros,
ra, então à frente do Departamento de Educação do Distrito Federal, cujo de profundíssimo cansaço.
propósito era complementar a formação educacional das crianças de esco­
las da rede pública, que, de outro modo, não tinham acesso a livros e a Suas armas foram partidas
outros bens culturais. Convirá lembrar que a pacifista Cecília, obviamente ao mesmo tempo que seu corpo.
E, se acaso sua alma existe,
sem deixar de prezar as especificidades de cada formação cultural, as quais
com melancolia recorda
pesquisou ao longo dc dccadas, conforme já mencionado, chegaria a so­ o entusiasm o de cada morto. [...]
nhar, em texto de 1949, com a “organização mundial de uma biblioteca
infantil que aparelhasse a infância de todos os países para uma unificação - e em crônicas, como as que hoje constam do primeiro volume de sua obra
da cultura, nas bases do que se poderia muito marginalmente chamar um em prosa. “A bomba atômica não deve causar tanta admiração nem tanto
‘humanismo infantil’. Na esperança de que, se todas as crianças se enten­ susto. Ela é apenas a representação plástica do que uma parte da humanida­
dessem, talvez os homens não se hostilizassem”60. Sonho, afinal, atropela­ de tem surdamente realizado, nesses invisíveis laboratórios que também
do pela televisão e pela indústria de entretenimento “globalizada”, que em somos”, registra, por exemplo, em “Oh! A Bomba...”, datada de 1945,
lugar de uma comunidade dos arquétipos impuseram o “imaginário” do aludindo às forças destrutivas adormecidas no ser humano sob a camada da
mais forte, fenômeno do qual a escritora chegou a testemunhar apenas os cultura61. Em M ar Absoluto, a apreensão quanto à escalada e às vítimas da
primeiros passos. barbárie está presente não apenas no poema aqui escolhido para análise,
mas também em “Guerra", “Balada do Soldado Batista” e outros lamentos
(“Lamento da Mãe Órfã”, "Lamento da Noiva do Soldado”), que atraves­
sam o livro como um acorde fúnebre, enquanto em Retrato Natural a poeta
6 0 . Ver Cecília Meireles. Problemas da Literatura Infantil, 1984, sobretudo p. 16. Quanto ao evoca a belicosidade humana em poemas como "Pomba em Broadway” e
episódio da invasão da biblioteca do Pavilhão Mourisco. décadas depois uma das filhas da no estranhamente belo “Declaração de Amor em Tempo de Guerra”, o qual
poeta, Maria Mathilde, relataria à revista Manchete (21 jan. 1982): “Foi terrível. Ao ter de
assumir também o papel de chefe de família [depois de haver enviuvado], mamãe fez a
Murilo Marcondes de Moura bem analisou em sua tese de doutorado62.
tradução do livro Tom Sawyer, de Mark Twain. O governo - vejam a idiotice - conside­
rava Mark Twain persona non grata e mamãe [...] foi levada à delegacia. [...] Por outro *
lado, a polícia invadiu [...], vasculhou tudo, quebrou vasos de cerâmica pintados por meu
pai, procurando sempre armas e nomes de subversivos". O depoimento contém algumas
imprecisões, mas o episódio foi retomado na dissertação de mestrado de Jussara Pimenta, Termo que designa uma variedade de formas poéticas relacionadas ao
Cecília Meireles e a Criação da Biblioteca Infantil do Pavilhão Mourisco (1934-1937), sentimento da perda de alguém célebre ou afetivamente ligado ao composi­
2001: “Cecília Meireles foi taxada com os intelectuais da época de comunista. Então, de tor ou poeta, o lamento, canto lamentoso ou kommós, a que se refere
uma penada, Getúlio fechou a biblioteca, interditou e transformou aquilo rapidamente
num posto de coleta de impostos”. Cf. depoimento de Rutli Vilella - que conheceu a bi­
blioteca - a Jussara Pimenta. Esta enfatiza que a desconfiança da polícia do Estado Novo
envolvia todos os educadores renovadores, acusados de ateísmo e de comunismo, entre 6 1 . Crônicas em Geral-I, 1998, pp. 188-189.
os quais Cecília Meireles ocupava posição de destaque. 6 2 . Três Poetas Brasileiros e a Segunda Guerra Mundial, 1998 [policopiada].
KH) PEN SA M EN T O K "L IR IS M O PU RO" NA PO ESIA DE CEC II.IA M EIR ELES SEN TIM EN TO DO TEMPO

Aristóteles63, circunscreve-se ao gênero de poesia elegíaca que Schiller in­ *


clui, ao lado da sátira e do idílio, nas categorias de poesia moderna (ou
“sentimental”). Tenciono voltar a Schiller na parte final deste estudo, tam­ A partir da observação inicial do próprio aspecto gráfico do poema
bém para uma tentativa de classificação do poema segundo o sistema teórico sobre a página, é possível perceber que se está diante de uma composição
por ele desenvolvido em Poesia Ingênua e Sentimental. Vale, contudo, lem­ irregular. Tratando-se, porém, de um poema de Cecília, poeta que, embora
brar desde já que, ao abordar as canções de lamento que Ovídio entoava do tenha praticado o verso livre desde muito jovem, dominou como poucos as
exílio, o ensaísta-poeta alemão considerava que o conteúdo do lamento poé­ formas e metros tradicionais na moderna poesia da língua - “Foi o maior
tico “só pode ser, sempre, um objeto interno ideal, jamais um objeto exter­ artista do verso em língua portuguesa e não foi superada por nenhum artista
no”. E acrescentava: “mesmo quando se entristece por uma perda real, tem do verso”, assinalou Manuel Bandeira67 - , tal irregularidade mostrar-se-á
de transformá-la numa perda ideal. O tratamento poético reside propriamen­ deliberada, devendo ser atribuída antes, como se verá, a um “transbordamen-
te nessa conversão do limitado num infinito”64. Por enquanto, valendo-me de to de lirismo”. Afinal, temas mais graves e heróicos costumam demandar
algumas obras de referência, registro que a antiga poesia elegíaca grega é, versos longos, que podem mesmo se aproximar dos versículos bíblicos. Com
hoje, vista como uma evolução do hexâmetro épico em direção ao verso efeito, verifica-se que, nos momentos de indignação, Cecília Meireles em
melódico. Na Antiguidade, a elegia era tida popularmcntc como um lamento geral abandona os ritmos breves e regulares - um de seus meios de acesso ao
e, ainda, uma canção para flauta65. Diferentemente das Lamentações do pro­ inconsciente e ao plano onírico, conforme exposto no quarto capítulo deste
feta Jeremias, do Antigo Testamento da Bíblia, que consiste em um conjunto livro - em favor do verso livre. E o que acontece, entre outros, em “Garga­
de cinco elegias ou cantos fúnebres, o lamento, que o New Grove distingue lhada" (Viagem), “Os Homens Gloriosos” (Mar Absoluto) ou “Elegia sobre
do verbete lament, é considerado, do ponto de vista musical, uma peça vocal a Morte de Gandhi”. Libera o ritmo, ainda, em momentos de alguma disper­
para canto fúnebre comum em óperas e cantatas do período barroco - e o são do eu poético, de afastamento do seu eixo lírico fundamental, como se vê
Lamento d'Ariana, de Claudio Monteverdi, executado pela primeira vez em nos poemas de viagens - especialmente Doze Noturnos da Holanda, O
1608, teria sido um dos modelos mais influentes. Aeronauta e Poemas Escritos na India.
Do ponto de vista literário, o lamento é tido como originário da tra­ No lamento em estudo, a irregularidade do verso avança pelas estrofes.
gédia grega antiga, conforme Aristóteles - na qual, de resto, esteve tam­ As duas primeiras têm o mesmo tamanho (seis versos) - e ambos os segundos
bém presente a música, nos lembra Nietzsche - , tendo sido posteriormente versos são hexassílabos - , mas, embora formem uma seqüência tonal e se­
retomado na poesia latina. Na literatura européia, tomado isoladamente mântica, diferem já na pontuação. Esta é quase inexistente na primeira,
como um momento de clímax emocional de expressão particularmente in­ construída em um só período, a ser entoado com verdadeiro fôlego órfico,
tensa, teria estimulado o desenvolvimento formal e a criação de uma retó­ enquanto aparece mais frequente na segunda estância, de três períodos, que
rica expressiva e de uma imagética afetiva66. alternam, além das vírgulas, pontos finais e dois versos exclamativos. Já a
terceira estrofe, que abriga seis períodos em três versos, é copiosamente in­
terrompida por pontuação, sendo virtualmente entrecortada por vírgulas,
6 3 . Cf. The New Grove Dictionary o f Music and Musicians, 1980: e Aristóteles, Poética, ponto de exclamação e pontos finais recorrentes, voltando a quarta e última
1987, 1452b, p. 211. estrofe a ser pontuada com moderação (quatro períodos). Variações que de­
6 4 . Friedrich Schiller, Poesia Ingênua e Sentimental, 1991, p. 71.
6 5 . Cecil M. Bowra, verbete “Elegiac Poetry Greek", The Classical Oxford Dictionary.
marcam as oscilações emocionais desse lamento.
6 6 . Cf. The New Grove Dictionary, op. cit. Na forma cantada, lament é uma variedade de O poema abre em redondilha maior - com o verso livre, talvez a
formas musicais e poéticas inspiradas por ritos fúnebres, e ainda pode ser ouvido hoje medida preferencial ceciliana - , cai para o hexassílabo, oscilando, em seu
em regiões da Europa, com o partes da Península Ibérica, ilhas do Mediterrâneo e Sul da
percurso de vinte linhas, entre esse metro menor e o maior, aparentemente
Itália, em três modalidades, das quais a mais comum e “talvez mais clássica” é a do
recitativo m elódico - com numerosas repetições de um mesmo m otivo em variações
improvisadas segundo o metro do texto, o qual pode ser mais ou menos versificado,
embora inteiramente irregular na estrofe. 67. Jornal do Commercio, 13 dez. 1964.
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um verdadeiro versículo de 24 sílabas (16a), entremeando-se entre eles um (Deus, a humanidade, ou a si próprio), mas, com forte comoção, ao próprio
decassílabo (3°), três alexandrinos (5a, 12ae 18a) e versos de 14, 15 c 16 animal sacrificado. Faz então a sua elegia, contrapondo a inocência e a man­
sílabas. Também variam as ondas rítmicas em cada verso do lamento. sidão do cavalo à ferocidade e à selvageria dos humanos.
Indica uma releitura que as aliterações das duas primeiras estrofes, E necessário observar desde já que a chave do sentido dessa “pequena
que se vão diluindo pelas demais, em oclusivas bilabiais surdas (porque, fabulazinha” narrada, bem como de toda a reflexão entoada à maneira de uma
pelas, por, pelas, por, pecados, pelo, pelas), funcionam como stcicccitos, prece, encontra-se estrategicamente - e apenas - no título do poema, uma vez
marcando o desenrolar de quase pletóricas seriações e entrecortando a que, em seu corpus, o cavalo não é nomeado diretamente uma única vez, não
polifonia do discurso sonoro. Mais brandas e graves soam as aliterações em há informações sensíveis sobre o cavaleiro, nem tampouco qualquer ação béli­
eme (merecemos, morte, somos, humanos, /nãos, criamos, alquimia...) que ca ali se desenrola.
atravessam todo o poema. Registre-se, ainda, a ocorrência de raras e Neste estágio da leitura do lamento, é possível registrar que se está
esparsas rimas toantes (versos I e 5; 2 e 3; 10 e 11), enquanto a rima diante de um cenário épico, ou, antes, guerreiro, embora o tratamento dado
consoante em ão, a única que percorre quase regularmente todo o texto ao poema seja essencialmente lírico e transportado, salvo em sua parte mais
(versos 3, 6, 9, 12, 15 e 20), eleva o efeito de ênfase e eloqüência da plástica - as imagens que concentram o desenrolar da "vida plácida e pura”
musicalidade em tom menor do lamento. do cavalo morto - , ao território da pura interioridade.
Assim, pode-se agora perceber que a “desordem" formal e rítmica
* que se vinha observando na estruturação do lamento representa ou reflete a
desordem maior da convivência humana, marcada por conflitos de nature­
Mas do que trata o poema? za e dimensão várias, irremediáveis desde tempos imemoriais e mesmo
Alguém, um cavaleiro, que pode ser, em contraste com a guerra real do bíblicos (conforme o mito do assassinato de Abel por Caim no Gênese) -
tempo presente da poeta - de aprofundamento do uso instrumental da ciên­ engendrados “pela nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra”, pelo
cia, tempo inaugural de “átomos por cúmplices”, simbolizado no cogumelo “delírio sem Deus” de “nossa imaginação”.
nuclear de Hiroshima e Nagasaki - , como que um personagem de Amadis de Já é também possível perceber, agora, que a alternância de versos
Gaula ou Cervantes, reflete sobre a barbárie daquilo que faz (a guerra), sobre curtos e longos - como o fortíssimo e enfático “embora sabendo que somos
a vocação armamentista e fratricida dos homens. Como quem entoa uma irmãos”, espécie de adágio do lamento, que sucede a um hexassílabo. e que
cantata ou oração, e independentemente das causas, poderes ou riquezas em é fragmentariamente retomado no último verso - , longe de ser casual, ao
jogo, lamenta a violência institucionalizada pela guerra - afinal, ela não é, atuar como súbita ascensão c queda na escala tonal, gera momentos dc auge
conforme o adágio de um estrategista, tão-somente a continuação da convi­ de intensidade emocional, podendo evocar paralelismos com outras obras
vência política por outros meios?68 - e, de maneira implícita, também a vio­ de arte de densidade excepcional, como, na música, talvez os acordes da
lação de leis divinas ou bíblicas (“Não matarás”, “Amai-vos uns aos outros”, abertura sinfônica do Réquiem K. 626 de Mozart. Já a frenética aceleração
“Amar o próximo como a si mesmo”). da pontuação na terceira estrofe representaria o ralentissement do ritmo
É como se esse guerreiro vivesse a pausa de uma batalha travada longe cardíaco e do galope hesitante e desordenadamente pausado do cavalo ago­
dos olhos do leitor. Súbito, como que atingido pelo sentimento de culpa e o nizante. o qual, ao expirar, desperta o vivo remorso e acende a indignação
remorso desencadeados pela dor da perda concreta de seu animal - “a dor é em seu dono, que apenas a custo recobra o fôlego normal para a fala
de origem divina”, diz Cecília (“Serenata”, Viagem) - , ou pela vergonha de elegíaca, ainda entrecortada pela indignação, na última estrofe. Delibera­
ter este recebido o ferimento mortal que a ele lhe destinavam seus hipotéticos da, a irregularidade intensifica o efeito desarranjador da emoção sobre o
adversários, passa a dirigir seu monólogo não mais a uma entidade genérica andamento do discurso, conforme texto atribuído a Longino69.

69. Roberto de Oliveira Brandão, A Tradição sempre Nova, 1976, pp. 79-96; e Aristóteles,
6 8 . Cari von Clausewitz, Da Guerra, 1976. Horácio, Longino, A Poética Clássica, 1990.
21NI l’ KNSAMKNTO K "LIR ISM O l’ U R O ” NA l’ OK SIA l)K C K C II.IA M EIRELES SENTIM ENTO DO TEMPO

* A inventividade lírica e o efeito de surpresa dessas e das outras ima­


gens do poema fazem lembrar Nietzsche: “ [...] é fora de dúvida que o
E fundamental ainda assinalar a identificação de dois movimentos dis­ poeta apenas é poeta porque se vê rodeado de figuras que vivem e agem
tintos nessa pastoral trágica ceei liana. Como se o poema pudesse destacar-se diante de seus olhos e das quais ele traz à luz a essência mais íntima. |...|
em dois corpos líricos diversos, verifica-se uma nítida mudança de eixo no Para um verdadeiro poeta, a metáfora não é uma figura de retórica, mas
discurso a partir da terceira estrofe, mais precisamente a partir da conjunção uma imagem que se substitui ao conceito”70. O que me parece especialmen­
coordenativa “E”, que a abre, introduzindo um período exclamativo a que se te verdadeiro, no caso de Cecília, conforme procurei demonstrar em outras
segue uma interjeição romântica - “Oh,”. partes deste livro.
O lamento, que vinha transcorrendo à maneira de litania ou oração e A terceira estância apresenta a morte do cavalo, e também o local de
em segunda pessoa do plural (à maneira do “Pai Nosso”) e no presente do queda do cavaleiro. Como se tivesse perdido, com a morte de sua montaria e
indicativo, passa, então, para a segunda pessoa do singular e para o pretéri­ forçado companheiro, a própria identidade, é esse também o palco de penitên­
to perfeito (no restante da estrofe, retoma o presente verbal, enquanto a cia do guerreiro. Ele não foi atingido pelo adversário, mas é fulminado, aqui,
última estância transcorre em pretérito imperfeito), transmudando a fun­ pela própria consciência. Anti-herói moldado pelo humanismo lírico ceciliano,
ção mais emotiva da linguagem, na fase inicial, para a função conativa. essa queda motiva, paradoxalmente, sua ascese no plano da autoconsciência, e
Da hegemonia reflexiva das duas primeiras estrofes, chega-se ao sen­ não apenas como indivíduo, mas como representante de uma espécie - “saben­
sível, com o discurso narrativo na terceira - marcado por nova e súbita do que somos irmãos”.
elevação da tensão poética em seus dois primeiros períodos, os quais prece­ Essa estrofe tem como núcleo o não-nonteado cavalo, transfigurado a
dem a sucessão de nãos e pontos finais novamente em staccato. Mesclam- seguir em “animal encantado” - em oposição aos humanos que se matam,
se, por fim, os registros narrativo e reflexivo na última estrofe. “embora sabendo” que são irmãos, ele não pensa e não sabe, e um dia
A guerra e seus agentes metonímicos (“nossas mãos”, “nossa cabeça”, contentou-se apenas em aprender e decifrar a “vida plácida e pura”. Em
“nosso sangue”) e sua condenação constituem o eixo das duas primeiras oposição também à brutalidade humana, de que tivemos notícia nas pri­
estrofes, que abrigam as seriações cumulativas enfileiradas à maneira de uma meiras estâncias do poema, o cavalo é então enobrecido e elevado ao cume
prece - “porque somos humanos / e a guerra é feita pelas nossas mãos, / pela aristocrático (e imagístico) - “rei das planícies verdes”, verso que abriga o
nossa cabeça... / por nosso sangue... / pelas ordens ou: “criamos o único elemento cromático do lamento - , a que se vem juntar o complemen­
fogo, a velocidade, a nova alquimia, os cálculos do gesto". Já na terceira to sinestésico “com rios trêmulos de relinchos...” . A semi-regularidade
seriação, que representa a escalada armamentista e de seus alvos, encontra- métrica dos versos da terceira estrofe ( 14“, 15“ e 16-) contrapõe-se o quase
se a imagem da transposição da guerra não apenas para os factíveis “mar" e versículo de 24 sílabas, na quarta, recurso de que novamente lança mão o
as “nuvens”, mas também para os “astros” - verificando-se como que um cavaleiro (ou poeta) para tornar sensível sua comoção diante do sacrifício
insight premonitório do ensandecido projeto norte-americano, em discus­ de um ser indefeso - que, afinal, terá servido de escudo ao oficial.
são anos atrás, da “guerra nas estrelas” (e é de se temer que o novo belicista O último e indignado verso - “Como vieste morrer por um que mata
de plantão no Império o retome, conforme já se advertiu). seus irmãos!” - contrasta e ao mesmo tempo religa-se, como no princípio
Assim, nos dois primeiros segmentos, o sentimento da guerra e da do retorno, com o primeiro - “Nós merecemos a morte”. Fortíssimo verso
belicosidade humana também desencadeia a justaposição de imagens, desde a de juízo de toda uma espécie ("porque somos humanos”), essa linha abre
já mencionada seriação metonímica - que inclui a ultra-sugestiva e psicana- um poema de exemplar simplicidade vocabular e sintática, capaz, no en­
lítica “nossa cabeça embrulhada em séculos de sombra”, a qual induz a uma tanto, de comover e estimular a reflexão como, por certo, muito poucos
associação quase instantânea com a teoria freudiana do inconsciente - até as sobre o mesmo tema. Evoca, também, a relação do ser humano em estado
vaga ou claramente religiosas "pecados de ciência" e “delírio sem Deus, nos­
sa imaginação!”.
70. La Naissance de la Tragédie, op. cit., p. 56.
202 PEN SAM ENTO E "L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA DE C EC ÍL IA M EIR ELES SEN TIM EN TO DO TEMPO 203

de cultura com a vida e a natureza e, ainda, a visão ceciliana do mistério da atenção também para esse aspecto de sua lírica, ao deter-se comovidamcnte
morte, não desprovida da leitura do carm a budista - nós a merecemos sobre o poema “Eco”, de Vaga Música, em que a poeta busca “penetrar os
porque somos conflituosos, não-solidários, não-fraternos, e aí está, segun­ arcanos do simples animal” (no caso, um cão), “nos identificando a todos,
do sugere o poema, o germe de todas as guerras - , conforme, de resto, a nessa mesma tristeza de buscar um eco, um sentido, uma identidade maior”,
escritora sugerira em outras peças líricas e também em sua prosa, como na poema em que identificou “esplêndido valor dramático” e classificou como
crônica parcialmente transcrita acima. O animal inocente não a merecia “obra-prima”. Carlos Drummond de Andrade também leu com penetração
porque vivia em “estado de natureza”, em paz consigo mesmo, em sintonia esse procedimento ceciliano da “elegização” : “Cecília caminhou entre for­
com a ordem cósmica. mas selecionadas, que ia interpretando mais do que descrevendo; suas nota­
O cavaleiro (ou poeta) lamenta o estágio de evolução mental e espiri­ ções da natureza são esboços de quadros metafísicos, com objetos servindo
tual em que nos encontramos, mas, a partir da dor e da autoconsciência, é de signos de uma organização espiritual onde se consuma a unidade do ser
como se sugerisse que há uma estrada para a redenção de nossas “sombras” com o universo”73.
seculares. O que converge com o já mencionado pensamento de Friedrich Schiller,
Schiller observou que o que nos leva a amar a natureza não é propria­ segundo o qual o estímulo da natureza é mediado “por uma idéia”. A fauna
mente um sentimento de ordem estética, mas moral. Ele é "mediado por uma lírica da poeta de “Elegia a uma Pequena Borboleta”, que abriga seres mari­
idéia”. Uma “flor singela, uma fonte, uma rocha musgosa, o gorjeio dos nhos e alados, silenciosos e cantantes, bípedes e quadrúpedes, vertebrados e
pássaros, o zumbido das abelhas” - em suma, os objetos sensíveis da nature­ invertebrados, efêmeros e longevos, decerto não ficará a dever à da celebrada
za, que, por sinal, também povoam toda a geografia onírica ceciliana, “são o norte-americana Mariane Moore. Essa fauna, contudo, tem no cavalo um de
que nós fomos são o que devemos vir a ser de novo. Fomos natureza como seus mais recorrentes e principais símbolos. E, como outros bichos e aves, não
eles, diz Schiller, “e nossa cultura deve nos reconduzir à natureza pelo cami­ é raro o cavalo aparecer em plano mais elevado que os seres humanos. (Um
nho da razão e da liberdade. [...] Neles observamos eternamente aquilo que exemplo desse procedimento é o do pássaro que “Morreu de uma flor na boca: /
não temos, aquilo pelo que, no entanto, somos desafiados a lutar e do que ao não do espinho na garganta.” - isto é, por causa bela e sublime contida na mesma
menos podemos esperar nos aproximar num progresso infinito, ainda que flor portadora do prosaico e traiçoeiro espinho; e que, em contraposição ao
jamais o alcancemos”71. utilitarismo materialista humano, "amava a água sem sede,”74.) O cavalo também
Eis por que essa grande metáfora ceciliana da dialética conflito hu­ pode parecer mais apto, inclusive, à compaixão, que escasseia entre os racionais:
mano / harmonia da natureza, em que consiste o “Lamento do Oficial por
Seu Cavalo Morto”, soa pessimista e otimista ao mesmo tempo. A ponto de Cavalos a que o prenderam,
se arriscar a inverter aquele extraordinário verso de Solombra: “Sobre um estremeciam de dó,
por arrastarem seu corpo,
passo de sombra outro passo de lu z'12.
ensanguentado no pó.

*
conforme o romance quinto (ou da "Destruição de Ouro Podre”) do Romanceiro
da Inconfidência, que trata da morte de Felipe dos Santos. Nessa obra em
A “elegização” da natureza e de seus símbolos - e parece evidente que
particular, mais do que figurante do cenário colonial, esse animal, conforme já
o cavalo do lamento emerge como uma representação simbólica da nature­
assinalei, aparece como constante e anônimo personagem, e a ele a poeta dedi­
za - é uma das recorrências da poesia lírica de Cecília Meireles. Conforme
ca todo o “Romance LXXXIV ou dos Cavalos da Inconfidência”:
lembrei anteriormente, Mário de Andrade foi talvez o primeiro a chamar a

7 3 . Mário de Andrade. “C ecília e a Poesia'', O Empalhador de Passarinho, 1972, p. 73;


7 1. Friedrich Schiller, op. cit., pp. 43-44. Carlos Drummond de Andrade. "Cecília; Imagens para Sempre", 1964.
7 2 . O verso original é: “Sobre um passo de luz outro passo de sombra”. 7 4 . Poema “Pássaro", Renato Natural.
an l’EN SAM EN T O K 'L IR IS M O l't'R O " NA l’O K SIA l)t CKCII.IA MEIRE1 h S SEN TIM EN TO DO TEMPO an

Eles eram muitos cavalos de que tempos!


ao longo dessas grandes serras, desse nosso irmão antigo
de crinas abertas ao vento, de sofrimentos.
a galope entre águas e pedras.
U] Vão-se acabar os cavalos!
bradai no mundo.
Eles eram muitos cavalos, Rodas, molas, mecanismos
transportando no seu galope nos levam tudo. |...|
coronéis, magistrados, poetas,
furriéis, alteres, sacerdotes.
Sob a forma alada, na “Elegia sobre a Morte de Gandhi” ou também
[...]
Eles eram muitos cavalos,
em “Cavalgada” (M ar Absoluto), com crinas de ouro no “Cavalo Branco”
[...1 de Canções, ou também defunto no algo surreal “Cavalo Morto” de Retra­
alheios às paixões dos donos, to Natural, ou ainda na prosa do “Cavalo Odete” (Ilusões cio Mundo -
pousando os mesmos olhos mansos crônicas), muitos cavalos passam pela escrita ceciliana, que a esse animal
nas grotas, repletas de escravos,
com frequência dedica tom elegíaco diante do desencantamento do mundo
nas igrejas, cheias de santos.
e do avanço da modernidade burguesa, acertando, assim, quem localiza um
[...]
A cinza de seus cavaleiros “simbolismo hipomorfo” nessa lírica75.
neles aprendeu tempo e ritmo, Esse animal é identificado ao cosmos por alguns estudiosos e seu
e a subir aos picos do mundo... sacrifício simboliza - ou melhor, reproduz - o ato da criação. Símbolo
e a rolar pelos precipícios...
também da impetuosidade e do desejo e, ainda, um significante mítico,
conforme Bachelard, o cavalo é considerado um dos arquétipos fundamen­
No segmento 21 de Metal Rosicler, livro de 1960, a poeta prenuncia
tais dentre os que a humanidade “inscreveu em sua memória”. Segundo
como que a extinção desse ancestral companheiro e servidor do homem, na
Northrop Frye, nos Upcmishads - tão caros a Cecília Meireles - o cavalo
era de vertiginoso progresso técnico:
sacrificial “contém todo o universo”76.
Presente, como a guerra, na literatura de todas as épocas, desde a
Vão-se acabar os cavalos!
bradai no campo. Antiguidade - e Homero e Platão não deixariam mentir - , o cavalo é ima­
Possantes máquinas de aço gem recorrente em escritores, poetas, artistas plásticos, cineastas e drama­
já estão chegando! turgos, e me resumo, aqui, à memória dos cavalos esfaqueados da série “2
Adeus, crinas, adeus, fogo de Maio”, de Goya, sobre o levante espanhol contra os franceses (óleos de
das ferraduras!
1814), da “Guernica” com que Picasso denunciou as atrocidades da guerra
Adeus, galope das noites,
curvas garupas...
civil espanhola, e também da cena da matança dos cavalos rosiana, em
Já não falo de romances Grande Sertão: Veredas11.
nem de batalhas:
falo do campo florido,
das águas claras,
da vida que andava ao lado
da nossa vida,
7 5 . Ver Ruth V illela Cavalieri, Cecília Meireles - O Ser e o Tempo na Imagem Refletida,
dessa misteriosa forma
1984. pp. 32-47. A autora empresta a conotação de "hipomorfo” a Gilbert Durand.
que nos seguia
7 6 . Cf. Jean Chevalier e Alain Gheerbrant. Dicionário de Símbolos, 1991; e Northrop Frye,
de tão longe, de tão longe, Anatomia da Crítica, 1973, pp. 145-149.
7 7 . João Guimarães Rosa, 1968, pp. 257-260.
206 PEN SA M E N T O E “L IR IS M O PU R O ” NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES SENTIM ENTO DO TEMPO 2117

* E aí está, creio, outro ponto de aproximação entre a teoria schilleriana


e a poesia ceciliana: há no lamento um ideal latente, implícito, como que a
“Já por seu conceito, os poetas são os guardiães da natureza”, escreveu ser, ou não ser, atingido num “progresso infinito”, como “meta suprema” - o
Friedrich Schiller. O suposto Longino, por sua vez, observara que a natureza ideal de rearmonização com a natureza, de um “estado ético onde a humani­
constitui a causa primeira e o princípio de toda produção™. Passo, agora, à dade se reencontre consigo mesma”, perfeitamente suscitável na mente do
investigação, à luz do pensamento do poeta e ensaísta alemão, da maneira leitor. Afinal, escreveu Schiller, “a faculdade poética vem em auxílio da
como a poeta de Solombra e Mar Absoluto cumpre a missão schilleriana - razão, a fim de trazer essa Idéia à intuição e realizá-la num caso particular"81.
sentimento mediado por uma idéia, por um pensamento - nesse lamento. Quando o ensaísta alemão assinala, ainda, que a sátira patética obtém
A tentativa de uma leitura schilleriana do poema indica que se está, liberdade poética ao converter-se no sublime, suscita outra associação desse
obviamente, diante de um poeta moderno (sentimental) - que, não poden­ tipo de expressão ao lamento. Sua leitura desperta também a “sublime co­
do ser natureza, a buscará, comovendo seu leitor “pelas idéias”, pela refle­ moção” a que se refere Schiller - e aí se depara com um dado de grande
xão, ainda que traduzidas em imagens. E relevante relembrar que, para o relevância, ao que penso não apenas para o esforço interpretativo do la­
ensaísta, a comoção a que o poeta é transportado e nos transporta funda-se mento, como de parte considerável da obra de Cecília: o da busca do ina­
na reflexão. Afinal, “o contrário da sensibilidade ingênua (antiga) é o en­ tingível sublime, cuja aproximação mencionei em outras partes deste livro.
tendimento reflexionante”, pondera Schiller. Por fim, parece claro que, vivendo o cavalo em estado de idílio
Está-se também diante de um poeta elegíaco - “aquele que busca a bucólico e de harmonia plena com a natureza, é possível também identifi­
natureza enquanto Idéia e numa perfeição em que jamais existiu, ainda que car no lamento expressão poética idílica. “Para o homem um dia desviado
a chore como algo passado e agora, perdido”70. Mas o lamento em estudo, da simplicidade da natureza e entregue à perigosa direção de sua razão, é
embora inquestionavelm ente elegíaco, não seria, segundo o ensaio de pois de infinita importância poder novamente intuir a legislação da nature­
Schiller, apenas elegíaco, conforme se tentará demonstrar. za num exemplar puro [o cavalo] e novamente purificar-se das corrupções
Este lamento ainda é elegíaco - e em seu significado “mais restrito” - da arte nesse espelho fiel”, escreveu Schiller82, numa de suas lições que
quando se constata que, nele, a natureza e o Ideal são objeto de tristeza, seriam absorvidas pelo romantismo, o simbolismo e algumas vanguardas
“exposta aquela como perdida e este, como inatingível”. Mas, se reconhe­ não avessas ao sublime, como o surrealismo e parte do modernismo.
cermos que, no poema, a realidade também aparece como “objeto de aver­ Essa possível aproximação simultânea do “Lamento do Oficial por
são” - nascida do Ideal que se opõe à realidade, e suscitando “vivida indig­ Seu Cavalo Morto” às três categorias schillerianas de poesia moderna (ou
nação com a perversão moral”, então se está, também, diante do pathos “sentimental”) remete ainda ao comentário de Friedrich Schlegel acerca de
próprio da sátira “patética” e “punitiva” conceituada por Schiller. uma outra categoria, a de “poesia transcendental”:
Há, no lamento ceciliano, contradição entre o estado real (guerra) e o
ideal (fraternidade e harmonia com a natureza); e a poeta executa essa Há uma poesia, cujo um e todo é a relação entre o Ideal e o real e que, de acordo com
a linguagem técnica filosófica, deveria chamar-se, portanto, poesia transcendental. Ela
contradição “com afeto e seriedade”, condição schilleriana para a poesia de
começa, como sátira, com a diferença absoluta do Ideal e real; oscila como elegia, no meio,
expressão satírico-patética. “Na sátira, a realidade, como falta, é contra­ e termina como idílio, com a identidade absoluta de ambos"1.
posta ao Ideal como realidade suprema.”78790 No entanto, esclarece o ensaísta,
não é de modo algum necessário que o Ideal seja expresso, se o poeta for *
capaz de suscitá-lo na mente do leitor.

7 8 . Friedrich Schiller, op. cil., pp. 43 e ss.; e A Poética Clássica, op. cit., p. 72. 8 1 . Idem, p. 84.
7 9 . Idem, p. 71. 8 2. Idem, p. 85.
8 0 . Idem, p. 65. 8 3 . Idem, nota 108 (Márcio Suzuki), pp. 129-130.
208 PEN SA M EN T O E “L IR IS M O P U R O ” NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES SEN TIM EN TO DO TEMPO 20!l

Puramente elegíaco, ou ao mesmo tempo elegíaco, satírico-patético e o tempo mítico e arquetípico que já “não é passado nem futuro, senão
idílico, ou ainda “transcendental” - porquanto encerrando ocultamente o presente”87, a que referem também poetas do século XX, como Eliot em
ideal de retomada da harmonia perdida - , o poema cuja leitura agora se seu Quatro Quartetos, de 1943. E também Cecília:
encerra parece constituir uma sólida peça de “resistência simbólica aos dis­
cursos dominantes, [...] à falsa ordem que é, a rigor, barbárie e caos” - a Não há passado
que se referiu Alfredo Bosi84. Adorno também abordou o poder de “resis­ nem há futuro.
Tudo que abarco
tência” do exercício lírico, em uma afirmação que me parece adequada à
se faz presente.
compreensão do lirismo ceciliano: “A idiossincrasia do espírito lírico fren­
te à prepotência das coisas constitui uma forma de reação à coisificação do
diz a poeta em “Irrealidade” (Mar Absoluto), como que aludindo à facul­
mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, a se alastrar desde
dade poética de mover-se nos tempos no instante lírico.
o início da idade moderna e que desde a Revolução Industrial se desenvol­
Reitero, finalmente, que na poesia lírica que é objeto deste estudo
veu como poder dominante de vida”85.
esse procedimento alegorizante vincula-se ainda à busca de uma escrita que
não fosse nem evasiva nem oratória e “de tom profético” - a que a escritora
*
aludiu na mencionada “Carta dei Brasil” - , alternativa trilhada na primeira
metade do século XX por poetas como Rafael Alberti ou Federico Garcia
O poema convida, por fim, a uma reflexão, ainda que breve, sobre a tão Lorca, caminho de modernidade que também Cecília Meireles perseguiu.
decantada “intemporalidade” ceciliana. Para falar da guerra de seu tempo, a E onde não esteve ausente certo horror à “prisão” das ideologias - como
poeta abstraiu (subtraiu?) a experiência concreta contemporânea, retrocedendo
“falsa consciência”, conforme Adorno. Talvez a poeta carioca pudesse fa­
alguns séculos e armando um cenário talvez medieval, sem deixar de nele zer suas as palavras de Carpeaux sobre o assunto; “São as ideologias estéti­
grafar o sentimento de seu tempo, como na imagem alusiva aos “átomos por cas que se opõem à compreensão da poesia. São as ideologias de toda or­
cúmplices”, evocadores das bombas que destruíram Hiroshima e Nagasaki ao dem que se opõem à compreensão do mundo”88.
fim da Segunda Guerra Mundial - massacres que também ela dolorosamente
testemunhou. Esse procedimento alegorizante de recuar no tempo para falar do
presente, de envolver acontecimentos na “roupagem da universalidade”, tão
recorrente na poética ceciliana - e que pude encontrar não apenas no estudo de
“Memória” e desse lamento como também cm poemas do Romanceiro da
Inconfidência - , é característico das “formas artísticas ideais”, segundo Hegel.
“Nesta libertação da contingência do exterior, o artista conquista uma mão
mais livre quanto ao particular e individual” para seu modo de configuração. A
imagem do passado apresenta “vantagem de maior universalidade”86.
Afinal, lembra Octavio Paz, como toda criação humana o poema “é
um produto histórico, filho de um tempo e lugar; mas também é algo que
transcende o histórico e se situa em um tempo anterior a toda a história” -

8 7 . Octavio Paz, “La Consagración dei Instante”, El Arco y la Lira, 1986, p. 187. O tempo
do poeta é, assim, limítrofe ao do filósofo, conceituado por Sêneca: “A lgo distancia-se
84. Cf. "Poesia Resistência”, O Ser e o Tempo da Poesia. 1990, sobretudo p. 146. no passado? Ele recupera-o com a memória. Está no presente? Ele o desfruta. Há de vir
85. Adorno, "Lírica e Sociedade”, em Adorno et a i, Textos Escolhidos, 1980, pp. 193-209, no futuro? Ele o antecipa”. Sobre a Brevidade da Vida, 1993, p. 48.
sobretudo p. 203. 8 8 . Adorno, “Lírica e Sociedade”, op. cit., p. 202; e Otto Maria Carpeaux, “Poesia c Ideo­
86. Hegel, Cursos de Estética, 1999, pp. 189-203, sobretudo pp. 198-199. logia”, Origens e Fins, 1943, p. 34.
CONCLUSÃO TENTATIVA

Qual a singularidade (ou singularidades) da poesia de Cecília Meireles


face ao seu tempo estético, o modernismo? - volto a me perguntar, repetindo
a questão que foi o moto inicial deste estudo. Diante do “problema” e do
enigma colocados por essa poética, fui tentar compreender a admiração qua­
se incondicional de Mário de Andrade, o grande pensador de nosso moder­
nismo, pela poesia lírica talvez mais desgarrada desse movimento, por justa­
mente aquela em que as grandes pedras de toque de nossos modernistas -
aproveitamento do cotidiano sensível, do experimentalismo ostensivo, da
linguagem prosaica e coloquial, do anedótico e do humor, da representação
da experiência do urbano e da técnica; as marcas exteriores de seu tempo, em
suma - estiveram mais ausentes ou rarefeitas. Mais do que nos dois penetran­
tes artigos que escreveu sobre a lírica ceciliana, fui encontrando algumas
respostas na leitura da ensaística geral de Mário. Excetuados os grandes mo­
dernistas - Drummond, Bandeira, Murilo Mendes - , o escritor paulista foi
crítico contundente do ambiente cultural do próprio modernismo, no qual
identificava “comodismo”, descuido com a técnica, com a “beleza” e a “per­
feição formal” - termos empregados em incontáveis artigos e ensaios - , des­
conhecimento das tradições, fragilidade cultural, desconsideração pelas ou­
tras artes, ausência de “lirismo puro” e de “pensamento filosófico”. A “Elegia
CONCLUSÃO TENTATIVA 213
PEN SAM ENTO K ‘L IR IS M O P U R O ' NA PO ESIA DE C E C ÍL IA M EIR ELES

conto o mais simples dos humanos, malgrado ilíadas e eneidas,


de Abril”, texto de maturidade, talvez condense exemplarmente esse seu pen­
bíblias e pantchatantras, e livros de horas e canções de amar
samento1.
e maldizer, ai, sobretudo de maldizer e amar,
Ora, Mário de Andrade ressentia a falta exatamente de quase tudo o assim tangemos ainda as palavras, enquanto sobem engenhos
que ele destacou na lírica de Cecília Meireles, naqueles dois artigos. Ele para os planetas, e os hospitais estão cheios de gemidos,
não cobrou, nessa poesia, a “destruição” que, segundo ele mesmo, caracte­ e em qualquer lugar se moire, em campo alheio ou próprio,
rizou o movimento. Mário possivelmente compreendeu que a poesia essen­ e o rehanho se espalha indeciso, desaparelhado, a perder-se
no horizonte contínuo, para morrer também ao desamparo,
cial da escritora prescindiu de rupturas para fazer aflorar o “lirismo puro”.
ou sentir que outra mão se levanta e talvez o ordena e o conduz...
“Não se com preendería um fenômeno Rimbaud na Inglaterra, nem um
(Ah! se pudésseis ir pelo caminho certo!)
Guillaume Apollinaire23em Portugal, porque esses povos, sendo líricos por E foi tudo uma sucessão de noites e dias, no ar.
natureza, jamais necessitaram de revoltas antilogísticas tão desesperadas (“Écloga”4, Poemas llí)
pra se reintegrar na poesia”, assinalou ao abordar a Poesia em Pânico, de
Murilo M endes’. Este terá sido o caso da escritora carioca: ela não precisou - poema em que, retomando a obsessiva imagem do “rebanho de palavras”,
chegar à ruptura para fazer aflorar o lirismo intrínseco de sua escrita poé­ faz uma espécie de breve inventário de suas “fontes” e alude ao caos con­
tica, o que explicará a “moderação nas soluções formais”, a que se referiu temporâneo, bem como à própria precariedade do fazer poctico.
Darcy Damasceno. E valerá perguntar: afinal, o humor - que Cecília, por “O amor esclarecido ao passado e o estudo da lição histórica dão-nos
vezes com mordacidade, esbanja em crônicas e cartas - não será um estado a serenidade”, disse Mário de Andrade5. O que poderá ser transplantado
por demais consciente para viabilizar o “lirismo puro”? O mesmo valendo para a poesia lírica comumente considerada talvez menos modernista de
para a representação da materialidade crua e imediata e para o emprego da nossa tradição moderna, conforme ainda recentemente entendeu João
linguagem antipoética, prosaica e banal. Ainda: como pretender a lingua­ Adolfo Hansen a propósito de Solombra:
gem coloquial em uma lírica que desde sempre cantou e clamou a auscncia
e a distância? | ... | devemos 1er o último livro de Cecília incluindo-o na grande tradição da lírica moder­
E também relevante que Mário de Andrade tenha encontrado a poesia na, pois, sem estardalhaço, ironia, deseontinuidade ou alardes de tradição do novo, apenas
essencial justam ente nas duas tradições poéticas ocidentais, além da hispâ­ retrabalhando temas tradicionais, seus poemas dissolvem unidades e unificações ideológicas,
como as da pessoa, as da memória e as da comunicação a todo preço da ideologia, evidenciando
nica, mais prezadas por Cecília Meireles, grande admiradora de Donne,
um inconformismo grande sob a emoção recolhida em tranquilidade da sua dicção sempre or­
Shakespeare, Keats, Shelley, Blake, Yeats, além de Auden - este seu con­ denada como controle racional do patético a impedir que a figuração da dor da perda do estar-
temporâneo. Quanto à tradição lírica de Portugal, parccc desnecessário aí seja apenas regressão. [...] E poesia, se é possível falar assim, de uma honestidade radical. [...]
enfatizar o quanto a escritora a pesquisou desde a sua gênese, e desde a os poemas de Solombra têm a transcendência por assim dizer imanente do aqui e agora da
primeira juventude. Em um poema póstumo escrito já perto da morte, ela experiência de dor transfigurada como mundo puro da arte, uma experiência artística, enfim,
que, se já era estranha em 1963, ficou muito mais escarpada, solitária e, quero crer sempre,
mesma sublinha o relevo dessa lírica em suas longas e empenhadas pesqui­
essencial em um tempo do mais total sofrimento sem redenção como ainda é o nosso".
sas, a começar pela medieval trovadoresca (conforme o verso que grifei):
Ao inserir o livro na “grande tradição da lírica moderna”, e não mo­
| . .. |
Que nem os morgados de tamanco e chapéu de palha. dernista, Hansen propõe uma solução â questão que eu por tanto tempo me

1. Aspectos clu Literatura Brasileira, s.d., pp. 185-195. 4. “Pantchatantras” ou “Pãncatantras”, coleção de fábulas da índia antiga que deram ori­
2. Naturalmente, ele se referia ao Apollinaire revolucionário da forma, não ao “poeta da gem à versão árabe do conto indiano Calila e Dimna. Cf. Maria da Graça Tesheiner et
tradição" identificado por Jeanine Moulin, no qual esta encontrou melhor fatura. a i, Pãncatantra, 2004, sobretudo pp. 10-17.
Apollinaire..., 1952, op. cit. 5. “A Escrava que Não é Isaura”, Obra Imatura, 1960, p. 274.
3. O Empalhador de Passarinho, 1972, p. 46. 6. “Solombra. ou a Sombra que Cai sobre o Eu”, 2001.
214 PENSAMES 1 0 K "LIRISMO PI R O ' NA POESIA DK CKCI1.IA MtlREI.ES C0NC1.USA0 TENTATIVA

coloquei acerca da poesia não apenas de Solombra. Esse derradeiro canto Bach10. E tal “conexão”, tão remota, seria reexplorada empenhadamente,
espectral da morte, último livro publicado em vida da autora78e em época já afinal, desde o primeiro Romantismo, cujo espírito André Breton propôs
bem distante do modernismo (1963) - em que retoma o ritmo inaugural do reinventar.
alexandrino, afastado antes em quase toda a obra de maturidade - , traz a Penso não haver dúvida de que Cecília Meireles leu os Manifestos com
austera depuração formal de uma linguagem poética que caminhou lenta­ muita atenção - além de ter recebido o impacto da lírica de autores espanhóis
mente da dicção neo-simbolista da obra imatura para a economia verbal e o da “geração de 27”, que chegou ao “surrealismo” via Góngora, conforme abor­
despojamento modernos que emergem desde Viagem. Limpeza da forma dei anteriormente. A conexão com o inconsciente talvez seja o que mais ajude
que, afora certo acento inegavelmente classicizante, penso ser, em parte, a explicar a admiração do crítico paulista pela poesia ceciliana. E ele ainda a
também tributária do modernismo. encontrou combinada com refinamento técnico-formal - advindo, decerto, do
Nessa viagem de 45 anos em busca da forma “ideal”, penso entretanto empenho “monacal”, para usar uma expressão de Darcy Damasceno, com que
que a poeta foi recolhendo, aqui e ali, também fragmentos de algumas das a escritora estudou as tradições poéticas desde as mais remotas, sem ter deixado
propostas dos modernismos - especialmente da “poesia pura”, do expressio- de se manter atualizada com experiências de seu tempo, conforme, além de sua
nismo e do surrealismo. A este último assim se referiu em sua última con­ própria escrita, indicam seus já referidos artigos, crônicas e conferências sobre
ferência, em 1963: a poesia de Mário, Bandeira, Drummond, Murilo, e também Pessoa, Sá Car­
neiro, Huidobro, Lorca, Alberti, Supervielle, Éluard, Soupault, Aragon, Jacob,
Depois do simbolismo, | ... | talvez a escola poética mais próxima, em sua essência, do Eliot, Auden, entre tantos outros. A título de exemplo, ao voltar de uma via­
sentimento místico do mundo, [que não foi | indiferente à cogitação metafísica [...], uma das gem ao Uruguai e à Argentina, em 1944, Cecília deu uma entrevista em que
mais interessantes tentativas de expressão poética é a do “surrealismo”, se quisermos usar a
mencionava o impacto da “presença de poetas espanhóis exilados” naqueles
palavra mais próxima da escola do poeta francês André Breton [...], que vem valorizar o
inconsciente. Devíamos não intervir intelectualmente: deixar que a comunicação poética se dois países - com alguns dos quais decerto se encontrou -, e a consequente
fizesse espontânea, ainda que incoerente, como uma fonte que se desata da sombra. Freud repercussão do “lirismo puro” (expressão que aí empregou) na atividade literá­
não esteve ausente nessa nova inquietação. Talvez os mundos submersos em nós sejam a ria local".
nossa verdade profunda, e talvez neles nos encontremos explicados e compreendidos". Voltando às aproximações com Mário de Andrade, também é certo que
a escritora dedicou atenção especial à ensaística do autor de Macanaíma,
Angustiava-se, a seguir, com o futuro da poesia depois da passagem inclusive ao Prefácio Interessantíssimo - conforme procurei expor no pri­
dos “ismos” e outras experiências. meiro capítulo - , o qual transcreveu integralmente na antologia que pacien­
Conforme já assinalei anteriormente, em um desabafo epistolar, dirigi­ temente organizou da poesia do amigo, depois de sua morte12. Convirá ainda
do a Moacir Werneck de Castro, Mário de Andrade entendeu que o segundo lembrar que o título talvez “intemporal” de seu segundo livro de maturidade,
livro de maturidade da escritora, Vaga Música, era “a melhor coisa de liris­ Vaga Música, afinal converge com o que Mário dizia da poesia - a qual, em
mo puro que nunca se escreveu neste país”9 - e sabemos da convergência “A Escrava que Não é Isaura”, chamou de “a mais vaga das artes” 13.
entre esse conceito de Mário e a poesia do inconsciente teorizada por Breton. Cecília Meireles foi uma lírica “pura”, conforme o que emergiu de
A conexão com o inconsciente não é monopólio do surrealismo, compreen­ minhas tentativas analíticas neste estudo, porém também produziu poesia
deu o próprio Breton - que viu “surrealismo” em Dante e Shakespeare - “premeditada" e “arquitetural”, como é o caso especialmente do Romanceiro
assim como Mário de Andrade viu “criação subconsciente” em Mozart e

7. Afora a coletânea de poemas para crianças que escreveu para seus netos, Ou Isto ou 10. André Breton, Les Manifestes du Surréalisme, 1946, p. 46: e Mário de Andrade. “A
Aquilo, publicada em 1964, ainda em vida da escritora. Escrava...”, op. cit., p. 257.
8. "Religião e Poesia", conferência inédita pronunciada em 1963 na A ssociação Brasileira 11. "O Momento Cultural do Uruguai e da Argentina na Palavra de Cecília Meireles”, 1944.
de Imprensa. 12. Cecília Meireles, Cecília e Mário, 1996, pp. 61-80.
9. Moacir Werneck de Castro, Mário de Andrade - Exílio no Rio, 1989, p. 197. 13. Op. cit., p. 256.
216 PENSAMENTO K "LIRISMO l'URO” NA POESIA DE CEOll.IA MEIRELES CONCLUSÃO TENTATIVA

cla Inconfidência e da Crônica Trovada, frutos de copiosa pesquisa - obras “aquela que não esquece suas origens e procura construir-se com magia rít­
que trouxeram à tona a memória poética de vozes recalcadas da história14. mica, sonoridades sugestivas, mistério sagrado e, como disse o próprio Valéry,
Mesmo Solombra, já novamente imerso no eu e que “encena os procedimen­ procurando ‘rejeitar a lembrança exata da natureza’” 18.
tos de engendramento da forma poética”, conforme compreendeu João Essa "rejeição” será responsável pela rarefação de signos e símbolos con­
Adolfo Hansen naquele estimulante ensaio, poderá ser considerado como temporâneos nessa lírica, ou por sua “intemporalidade”. O que por vezes me
livro pacientemente arquitetado - “como trabalha o tempo elaborando o levou a perguntar: se, como observa Kandinsky, “toda arte é filha de seu tempo
quartzo”, alude um de seus versos. e, com frequência, mãe de nossos sentimentos”14; se canta, enfim, o seu próprio
Grande número de poemas terá sido fruto de conexão com a memória - tempo, como isto se dá com a poesia lírica de Cecília Meireles, onde justamen­
decerto menos no sentido psicanalítico do que mítico - ou outros estados te, embora rarefeitas as marcas do “tempo presente”, a temporalidade é questão
mais profundos da consciência no “instante” poético, o qual liricamente axial? Uma das respostas que encontrei vem de Adorno:
cantou no célebre “Motivo” . Poesia da inspiração? “A impulsão lírica é
livre, independe de nós, independe da nossa inteligência”, escrevera Mário [...] a [...] universalidade do conteúdo líricoé essencialmente social [...]; sua vinculação
de Andrade em “A Escrava” 15, assim resumindo a teoria do “subconscien­ universal vive da densidade de sua individuação. [...] Mesmo formações líricas em que não
te”, da "inspiração” (ou conexão com outros planos mentais) - do “lirismo se encontravam vestígio da existência convencional e objetiva e nenhuma materialidade crua,
formações as mais altas que nossa lírica conhece devem sua dignidade precisamente ao vigor
puro”, em suma - , a qual esteve presente em algumas vanguardas, confor­
com que nelas o eu desperta a aparência da natureza, subtraindo-se à alienação20.
me já mais de uma vez referi. Desde Baudelaire, os temas não se relacio­
nam se não com o plano da intuição, observou Hugo Friedrich16. Octavio
Especialmente nesse ensaio sobre “lírica e sociedade”. Adorno tam­
Paz também refletiu longamente sobre a questão da conexão do eu lírico
bém me ajudou a decifrar outro paradoxo que encontrei na poesia ceciliana:
com outros planos (ou vozes), além daquele da consciência lógica, no ins­
ao mesmo tempo em que cria recorrentemente efeitos oníricos, fluidos,
tante de criação poética: desde os românticos alemães, “a história da poesia
embalantes, cla também desperta a reflexão, convida à desalienação de nos­
moderna é a do contínuo desgarramento do poeta, dividido entre a moder­
so tempo. Isso ainda evoca a canção drummondiana, que sonhava “acordar
na concepção do mundo e a presença por vezes intolerável da inspiração” 17.
os homens” e “adormecer as crianças”. A própria escritora tocou rapida­
Penso que esse conflito se reflete também na forma antitética de grande
mente nesse assunto em uma entrevista, em que estão latentes a seriedade e
parte da poesia ceciliana, como no por várias vezes mencionado “Destino”,
o fervor com que se entregou ao ofício poético, ao qual se refere: “Acordar
de Viagem, poema emblemático do espírito indomável do poeta moderno.
a criatura humana dessa espécie de sonambulismo em que tantos se deixam
Para acolher “vozes”, embora passando-as pelo crivo de um pensamento ou
arrastar. Mostrar-lhe a vida em profundidade. Sem pretensão filosófica ou
de uma forma, Cecília Meireles costumava deixar-se embalar, como todo
de salvação - mas por uma contemplação poética afetuosa e participante”21.
poeta órfico, em ritmos, sons, na musicalidade das palavras, estado propício
Com efeito, a lírica, se verdadeira - seja ela produzida por um poeta platô­
para a formação de imagens - conforme procurei analisar, especialmente no
nico ou arislotélico, religioso ou ateu, espiritualista ou materialista, filosó­
quarto capítulo - , realizando uma criação de feição não mimética. Afinal,
fico ou mais afeito ao real sensível - , tem plena autonomia em relação a
reitero, o orfismo nada mais é do que a “arte concebida sob o espírito da
música, como criação livre e não imitação”, aproximando-se da “poesia pura” -

18. Cf. Dante Tringali, "O Orfismo”. em Carvalho (org.l, Orfeu, Orfismo e Viagens a Man­
dos Paralelos, 1990, pp. 15-23, sobretudo p. 22; ver ainda Guacira Marcondes Leite,
14. Quanto ao primeiro, justamente por reunir com eficácia pesquisa, denúncia social e “O Mito de Orfeu na Modernidade Poética Francesa”, também em Orfeu.... pp. 67-78,
“lirismo puro”, valerá talvez perguntar se não terá logrado realizar a completude do sobretudo p. 71.
projeto poético de Mário; o que poderia merecer um estudo futuro. 19. Du Spirituel dans l'Art. 1989, p. 51.
15. Op. rir., p. 208. 2 0. "Conferência sobre Lírica e Sociedade”, em Adorno et a i. Textos Escolhidos. 1980, pp.
16. Structures dr la poésie moderne. 1976. p. 74. 202 e 204.
17. “Inspiración", El Arco y Ia Ura. 1986. sobretudo p. 256. 2 1 . Obra Poética, 1958, p. LXXII.
218 PEN SAM ENTO E ‘ L IR IS M O PU R O " NA PO ESIA 1)E C E C ÍL IA M EIR EL ES C O N C L U S Ã O T E N T A T IV A 219

esquemas filosóficos, soteriológicos ou de outra ordem, ensinam-nos múl­ Pessoa, de um Rilke, de um Yeats, como eles filha moderna do simbolismo
tiplos estetas e pensadores da literatura. antigo, [Cecília] é daqueles poetas para quem o lirismo é simultaneamente
Na tentativa de decifrar o que foi chamado por um crítico de “proble­ um cântico e um sortilégio [...] todo o efêmero se fixa em momentânea
ma Cecília”, recorrí, ainda, a algumas considerações de Cari G. Jung, espe­ eternidade, e todo o perene flui na música que o sustenta e cria”23.
cialmente o penetrante leitor de poesia. Elas me ajudaram a refletir que, se Leitura que convergirá com a de Alfredo Bosi, que sugeriu a vinculação
as marcas ostensivas do tempo presente (da escritora) estão quase sempre da poeta a líricos pós-simbolistas de outros países impregnados da lição
ausentes nessa lírica, de outro lado o diálogo com o “espírito” de seu tempo croceana de transfigurar sentimento e pensamento “em imagem"24. E valerá,
está inscrito em quase toda ela. Para Jung, o significado social de uma obra um dia, investigar o quanto essa voz solitária terá repercutido em poetas
de arte está também relacionado com uma “ativação inconsciente do arqué­ nossos da “geração de 45”, e também em alguns de Portugal, conforme já
tipo” e sua formalização na obra acabada. Esta reconheceram alguns críticos de lá.
É necessário voltar à compreensiva avaliação de Otto Maria Carpeaux
[...] trabalha continuamente na educação do espírito da época, pois traz à tona aque­ sobre a autora que, ao que penso, renovou o Lied na língua portuguesa e
las formas das quais a época mais necessita. Partindo da insatisfação do presente, a ânsia
legou um romanceiro de assunto tão estritamente brasileiro à nossa literatura:
do artista recua até encontrar no inconsciente aquela imagem primordial adequada para
compensar de modo mais efetivo a carência e unilateralidade do espírito da época. [...] São
tendências da arte que trazem à tona aquilo de que a respectiva atmosfera espiritual mais [...] aos [...] poetas puros de língua espanhola convém juntar o nome da brasileira
necessitava22. Cecília Meireles. Alguns críticos já quiseram defini-la como “mais portuguesa que brasi­
leira” , pelo único motivo de o Modernismo brasileiro não conhecer tradição de “poésie
pure” ; mas esta também não existe assim em Portugal. [...] Em linguagem clássica portu­
Inquietação metafísica, beleza formal, anseio de “perfeição”, refle­ guesa e com sensibilidade inconfundivelmente brasileira já escreveu Cecília Meireles po­
xão incessante sobre a condição humana e o destino do homem, aspiração esias que pertencem ao patrimônio da melhor poesia universal deste século”25.
ao absoluto e ao sublime, memória do mito e dos arquétipos, insurgcncia
contra o desencantamento do mundo e a miséria simbólica da sociedade da Música e imagem, é o que pude encontrar nos melhores poemas
mercadoria - talvez estas sejam algumas das carências adormecidas no bru­ cecilianos. E, somada à música, a riqueza de imagens - reconhecida nessa
tal século XX que pude encontrar nessa poesia lírica tão comumente classi­ mesma lírica até pela crítica mais áspera - não consiste, afinal, como se
ficada como “intemporal”. Ter captado as “carências” de seu tempo espiri­ ensina desde Aristóteles, no principal indício da grande poesia?
tual e cultural - que ainda é este inefável tempo nosso - , mais a preocupação
*
da forma estabilizada, com que buscou resguardar sua escrita do efêmero,
também ajudará a explicar a permanência da lírica ceciliana, transcorridos
Este livro almeja somar-se aos estudos, já numerosos, que se propuseram
mais de quarenta anos de sua morte.
o desafio de ampliar a compreensão da poesia lírica de Cecília Meireles. Seu
Estas, porém, são apenas algumas reflexões nesta conclusão tentativa.
intuito é, especialmente, o de servir de estímulo a novas descobertas de outros
Gostaria de propor, finalmente, que o lugar singular, solitário e “problemáti­
leitores. Diante da vastidão da obra ceciliana. anexei uma listagem daqueles
co” que a lírica de Cecília Meireles ocupa em nosso modernismo - nomeada­
que destaco como seus melhores poemas, esperando que essa antologia suges­
mente em sua segunda fase - será o da poesia órfica, da poesia “pura”, da
tiva sirva, talvez, como uma cartografia inicial a futuros estudiosos.
poesia de conexão com o inconsciente ou a memória, sem deixar de vincular-
se, de algum modo, com o “pós-simbolismo internacional”, analisado por
Cecil Bowra em poetas como Rilke, Yeats, Valéry, e referido por Jorge de
2 3 . “Em Louvor de Cecília Meireles”, Estudos de Cultura e Literatura Brasileira, 1988, pp.
Sena em ensaio sobre a própria Cecília Meireles: “Irmã de um Fernando 23-25. Essa coletânea de ensaios de Jorge de Sena ainda inclui outros três textos sobre
a autora de Solombra.
2 4. História Concisa da Literatura Brasileira, 1970, p. 513.
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A coleção da obra em prosa é prevista pelo organizador em 23 volumes.


O título deste livro não é, naturalmente, da autora, mas dos organizadores do volume.
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O b ra de m aturidade

Viagem

“E p ig ram a n. 1”
“ M o tiv o ”
“ N o ite ”
“ D isc u rso ”
240 PENSAMENTO E “LIRISMO l’TRO" NA POESIA l)E CECÍLIA MEIRELES ANEXO

“ E x c u rsã o ” “E x p lic a ç ã o ”
" R e tra to ” “ E le g ia "
“E p ig ram a n. 2” " R e in v e n ç ã o ”
“A Ú ltim a C an tig a” “C an ção do D e se rto ”
“C an ção ” (1) (“Pus m eu sonho n u m n a v io ...”)* “L u a A d v ersa”
“C an ção ” (2) (“N u n ca eu tiv era q u e rid o ...” ) “ M o n ó lo g o ”
“A c e ita ç ã o ” “F a n ta s m a ”
“C an ção ” (3) ("N o d eseq u ilíb rio dos m ares...” ) “E c o ”
“In v e rn o ” “ R im a n c e ”
“T erra” “ D esp e d id a" (2)
“G u ita rra ”
“E p ig ram a n. 7”
“Serenata” (“P erm ite que feche os m eus o lh o s...” ) M ar Absoluto e Outros Poemas
“E p ig ram a n. 8”
" D e s tin o ” “C o n te m p la ç ã o ”
“M e ta m o rfo se ” " C o m p ro m is s o ”
“D e s p e d id a ” “ S u g e s tã o ”
"E p ig ram a n. 13” “Irre a lid a d e ”
“D esejo de R e g re sso ”
“D is tâ n c ia ”
Vaga M úsica “M u lh er A d o rm ecid a”
“P o r B aixo dos L argos F icus"
“E p itáfio d a N a v e g a d o ra ” " 2 o M o tiv o da R o sa”
“O R ei do M ar” " B e ira -M a r”
“C anção E x cên tric a ” “R ealização d a V id a ”
“C anção q uase In q u ie ta ” “ C a v a lg a d a ”
“C an ção do C am in h o ” “ C a ro n te ”
"A D oce C an ção ” "L ev eza”
“C anção de A lta N o ite” “D esen h o ”
“C anção S u sp irad a ” “M u lh er ao E sp elh o ”
“C anção M ín im a” " T ra n s e u n te ”
“A lu n a ” “L am ento do O ficial p o r Seu C av alo M o rto ”
“M e m ó ria ” “ N o ite ”
“I n te rlú d io ” “O s D ias F elizes"
“C an ção da T ard e no C am p o ” “Jo rn al, L o n g e”
“C am pos V erd es” “E le g ia ”
“ C o n fis s ã o ”
“N au frág io A n tig o ”
Retrato Natural

A transcrição de alguns dos prim eiros versos deve-se à existência de m ais de um poema “A p re se n ta ç ã o "
com o m esm o título num m esm o livro. “E le g ia a u m a P eq u en a B o rb o leta”
242 PEN SA M KNTO K ~l.IRl.SMO l’U R O ” NA PO ESIA DE CECI1.1A M EIR EL ES ANEXO 243

" V ig ília ” "R o m a n ce X V II ou das L am entações no T eju co ”


"B alad a das D ez B ailarin as do C a ssin o ” “R om ance X IX ou dos M aus P resság io s”
“O E norm e V estíbulo " “R om ance X X I ou das Idéias"
“P á ssa ro ” “R o m an ce X X IV ou d a B an d eira da In co n fid ên cia”
"C anção P ó stu m a” “R om ance X X V II ou do A nim oso A lferes”
“F ui M irar-m e” “R om ance X X X ou do R iso dos T ro p eiro s”
“ C o m u n ic a ç ã o ” “R om ance X X X I ou de M ais T ro p eiro s”
“Im proviso do A m o r-P erfeito ” “R om ance X X X II ou das P ilatas”
"C an ção ” (“N ão te fies do tem po nem d a e tern id ad e...”) “R o m an ce X X X IV ou de Joaquim S ilv ério ”
“P o m b a em B ro ad w ay ” “R o m an ce X X X V III ou do E m b u çad o ”
“C anção do A m or-P erfeito” (“O tem po seca a beleza...” ) “R om ance LUI ou das Palavras A éreas”
“Im proviso para N o rm an F raser” “ R om ance L IX ou d a R eflexão dos Ju sto s”
"O s G atos da T in tu raria” "R o m a n ce L X V II ou d a Á frica do S etecentos”
“B alad a de O uro P reto ” “F ala à C om arca do R io das M o rtes”
“ E n tu s ia s m o ” “R om ance L X X V III ou de U m Tal A lvarenga”
“D e s e n h o ” “R om ance L X X X I ou dos Ilustres A ssassinos”
“D eclaração de A m or em T em po de G uerra” “R o m an ce L X X X IV ou dos C avalos da In co n fid ên cia”
“O C av alo M o rto ” “F a la aos In co n fid en tes M o rto s”

Am or em Leonoreta Pequeno Oratório de Santa Clara

Doze Noturnos da Holanda “ S e re n a ta ”


Um “F u g a ”
T rês “V o lta ”
S ete “V id a ”
“F im ”

O Aeronauta
C a n ções
T o d a a série de onze poem as
“Se não H ouvesse M o n tan h as” (1)
“In e sp erad am en te" (2)
Romanceiro da Inconfidência “C om o os Passivos A fogados” (3)
“L onge, m eus A m ores” (9)
“F ala In ic ia l” “N a P o n ta do M o rro ” (10)
“C en ário " (1) “C o m o num E x ílio ” (12)
“R om ance I ou da R ev elação do O u ro ” “P o r que N om e C ham arem os” (17)
“R om ance IV ou da D o n zela A ssassin ad a” “A ssim M oro em m eu Sonho” (22)
“R om ance V ou da D estruição de O uro P o d re” “D ai-m e A lgum as P alavras” (27)
“R om ance V II ou do N egro nas C atas” “Ó N oite, N egro P iano” (28)
“R om ance X II ou de N ossa Senhora da A juda” “D e L onge te H ei de A m ar” (31)
244 PENSAM EN K ) K "I.IRISMO IT R O ' NA POESIA DE C.KC1UA MEIREEES ANEXO 2Ei

IV “Já não Há M ais Dias N o v o s” “P o em a dos In o cen tes T am o io s”


“T ra p e z is ta ” "R etrato de C u n h am b eb e”
“ N a d ad o r" “C an ta ta da C id ad e do R io de Ja n e iro ”
“ E q u ilib ris ta ”

Poemas Italianos
Romance de Santa Cecília
“D iscu rso ao Ig n o to R o m an o ”
P istó ia, C em itério M ilita r B rasileiro “O Q ue me D isse o M orto de Pom péia”
“ D ia n a ”

Poemas Escritos na índia


Poemas de Viagens
“ M u ltid ã o ”
" P o b re z a ” “ C o rrid a M ex ican a"
“M ah atm a G an d h i” “ Os D ois L ados do R ealejo ”
“C an ção zin h a p ara T a g o re ” “B alad a a P h ilip M u ir"
“Taj M ah al”
“L o ja do A stró lo g o ”
Outros Poemas Póstumos

M etal Rosicler "O s T rês B ois"


“E le g ia sobre a M orte de G an d h i”
1 “N ão P erguntaram p o r M im ” “ P a p é is ”
2 “U ns P asseiam D esca n sa d o s” "R e c ita tiv o P róxim o a um P oeta M o rto "*
5 “E studo a M orte, A g o ra” “E le g ia dos B o êm io s”
14 “O h, Q uanto me P esa" “N ão H á M ais D aqueles D ias E x ten so s”
21 “V ão-se A cabar os C av alo s” "A g o ra ”
30 "N o A lto d a M o n tan h a já quase C h u v o sa ” “T riste za G lo rio sa”
36 “N ão T em os B ens, N ão T em os T erra” “ F a m ília ”
“C ata, C ata, Q ue é V iagem da ín d ia”
“T a p eçaria de G isele”
Solom bra “ É c lo g a ”
“ D izei-m e com P oucas P alav ras”
T oda a série de 28 poem as “C antar de V ero A m or"
"V ôo”
“R u a da E strela"
Crônica Trovada “M o rte no A q u ário ”
"E sb o ço de C an tig a”
“O L u g ar”
“G lo rificação de E stácio de S aa” Este poem a deve ter sido escrito na morte de Jorge de Lim a.

“H istó ria de A n ch ieta ”


20. Morte e Alteridade em Estas Histórias 28. Problemas no Casamento
Edna Tarabori Calobrezi Maria Lúcia Teixeira Garcia

21. Leituras do Desejo 29. A Hélade e o Subúrbio


M arcelo Bulhões M aurício Silva

2 2. Exílio e Literatura 30. Ritos da Paixão em Lavoura Arcaica


Izabela Maria Furtado Kestler André Luis Rodrigues
ENSAIOS DE CULTURA
23. As Promessas da História 31. Caipiras Negros no Vale do Ribeira
César Braga-Pinto Renato da Silva Queiroz

24. Literatura e Jornalismo, 32. Natureza-Morta: Finitude e


Práticas Políticas Negatividade em T.W. Adorno
Carlos A ntonio R ogé Ferreira Júnior M aurício Chiarei lo

2 5. Movimento e Totalidade em Bergson 33. Dom Quixote: A Letra e os Caminhos


Regina Roseti Maria Augusta Costa Vieira (org.)

26. A Metodologia de Max Weber 34. Pensamento e "Lirismo Puro"


Fritz Ringer em Cecília Meireles
Leila V. B. G ouvêa
2 7. Conhecimento na Desgraça
Luiz Felipe Pondé

1. Pelo Prisma Russo 10. A Redescoberta da Cultura


Joseph Frank Sim on Schwartzman

2. O Planeta Cultural 11. A Paixão pelo Real


Gilberto M azzoleni Maria Betânia Am oroso

3. Linguística e Psicanálise 12. De Baudelaire ao Surrealismo


M ichel Arrivé Marcel Raymond

4. Lírica e Lugar-comum 13. Risos entre Pares


Francisco Achcar Vagner Camilo

5. A Imaginação Simbólica 14. O Dito pelo Não-dito


Vera Lucia G. Felicio Maria Augusta da Costa Vieira

6. Trópicos do Discurso 15. Espaços da Memória


Hayden White Joaquim A lves de Aguiar

7. Dialogismo, Polifonia, Intertextualidade 16. Palavra Peregrina


Diana Luz Pessoa de Barros Guilherme Sim ões G om es Júnior
José Luiz Fiorin (orgs.)
17. As Metamorfoses do Mal
8. A Morte na idade Média Yudith Rosenbaum
Herman Braet
18. A Leitora Clarice Lispector
Werncr Vcrbeke (orgs.)
Ricardo Iannace
9. Letras de Minas e Outros Ensaios
19. O Homem Insuficiente
H élio Lopes
Luiz Felipe Pondé
Alfredo Bosi (orgs.)
Há neste livro um generoso leque de pers­
pectivas de interpretação, acionadas a partir do
Título Pensamento e “Lirismo Puro” ângulo de quem sente e pensa a poesia cecilia-
na Poesia de Cecília Meireles
na: da alegorização platônica à presença viva
Autora Leila V. B. Gouvêa
Produção Marilena Vizentin dos mitos, do “canto encalacrado” à incursão
Projeto Gráfico Marina Mayumi Watanabe
histórica, da sondagem dos elementos musicais
Diagramação da Capa Marcela Souza
Editoração Eletrônica RW3 Design e imagéticos ao plano de uma dolorosa meta­
Editoração de Texto Alice Kyoko Miyashiro física. Todas as passagens são reveladoras da
Revisão de Texto Jonathan Busato
Revisão de Provas Thaisa Burani plena familiaridade de Leila com o complexo
Carla Fernanda Fontana universo de Cecília.
D ivulgação Regina Brandão
Edilena Colombo
Leila aplica-se em várias análises, que consti­
Cinzia de Araújo tuem outra manifestação de excelência de seu
Secretaria Editorial Eliane dos Santos
estudo. Para destacar apenas um caso: a leitura
Formato 16 x 23 cm
Tipologia Times 10,5/13 do “Improviso para Norman Fraser” materializa
Papel Cartão Super 6 250 g/m 2 (capa)
em si mesma a operação, a um tempo cortante
O ffset linha d’água 90 g/m ! (miolo)
Número de Páginas 248 e sensível, de um músico que, em “delicado
Tiragem 1000
culto”, se serve de um peixe, “deus exposto num
CTP, Impressão e Acabamento Prol Gráfica e Editora
prato”, como quem o esculpe e compõe música.
A possível homologia entre estados da arte e ges­
tos cotidianos estende-se no modo como Leila
incursiona pelo poema, iluminando-o.
O intuito deste ensaio, na formulação mo­
desta de sua autora, é “o de servir de estímulo a
novas descobertas da poesia lírica ceciliana”. Mas
certamente já se encontram aqui, ao lado desses
estímulos, densos momentos de interpretação
consumada, que a poesia de Cecília Meireles aca­
ba de ganhar de um de seus maiores leitores.
A lcides V illaça

L eila V. B. G ouvêa é doutora em Letras pela FFLCH-

USP e desenvolve pesquisa de pós-doutorado em literatura


no IEB-USP com bolsa da Fapesp. E autora, entre outros,
de Cecília emPortugal (Iluminuras, 2001 ) e organizadora de
Ensaios sobre Cecília Meireles (Humanitas, 2007).
“O intuito deste ensaio [...] é ‘o de servir
de estímulo a novas descobertas da poesia
lírica ceciliana’. Mas certamente já se encon­
tram aqui, ao lado desses estímulos, densos
momentos de interpretação consumada, que
a poesia de Cecília Meireles acaba de ganhar
de um de seus maiores leitores.”
A lcides V illaça

“Creio que o livro de Leila Gouvêa [...]


ajuda-nos a penetrar, com lucidez e alguma
perplexidade, no fascínio do espelho dessas
águas em que uma grande poeta sem nunca
se reconhecer inteiramente se interroga a si
mesma, em meio à fugacidade de tudo, sobre
o sentido de sua recorrente canção.”
D avi A rrigucci J r .

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