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NATAL – RN
2023
ANTONIO TEOFILO PINHEIRO NETO
BANCA EXAMINADORA
__________________________________
Prof. Dr. Daniel Rodrigo Meirinho De Souza
Universidade Federal do Rio Grande Do Norte
__________________________________
Prof. Dr. Breno Da Silva Carvalho
Universidade Federal do Rio Grande Do Norte
__________________________________
Profa. Ma. Emanuele de Freitas Bazilio
Universidade Federal do Rio Grande Do Norte
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes -
CCHLA
Não teria conseguido nada do que tenho hoje se não fosse pela minha Vó
Palmira que desde cedo acreditou em mim e sempre me apoiou nas minhas
decisões, me ensinando e indicando sempre correr pelo caminho certo. Por todas
as vezes que ouvi ela falar “Vou investir em você, porque a coisa mais valiosa que
posso deixar é o estudo.”
Aos meus pais Andrea e Antônio, e à minha tia Adeusa que sempre
seguraram na minha mão e que quando eu precisei estiveram ali para me dar
todo suporte. Agradeço aos meus familiares que acreditaram que eu seria
realmente feliz fazendo algo que eu sempre quis, e que me ajudaram e apoiaram
em cada decisão que tive desde que escolhi cursar Publicidade.
Ao meu orientador Daniel Meirinho, a quem desde a primeira aula vejo
como uma figura de referência. Agradeço o cuidado e a disponibilidade para me
orientar neste trabalho.
Ao corpo docente e todos os servidores da UFRN, especialmente do
DECOM, a quem agradeço cada “boa noite” e cada sorriso depois de uma piada
sem graça que eu soltei pelos corredores e em sala de aula.
À Vibe, Irineu e Gabriel por tudo que vivemos dentro e fora da
universidade, por todas as palavras de carinho, puxões de orelha, e trabalhos em
grupo. À Emilly, a quem me deu suporte e força que eu precisava na reta final.
Sem dúvidas nenhuma, se eu conseguir concluir esse curso a culpa é deles.
Aos meus amigos, por sempre botar muita fé em mim, no meu trabalho e
na minha arte.
À Residência Universitária, precisamente nas pessoas de Pedro, Ysmael e
Giovani que precisaram conviver comigo durante alguns anos, dividindo e
construindo um lugar de afeto, amadurecimento e aceitação. Vivências e trocas
que me tornaram um adulto um pouco mais responsável, ou nem tanto, vieram de
momentos protagonizados na casa 26 da Residência Biomédica da UFRN e eu
sou extremamente grato por isso.
Fernanda e Well que dividem e dividiram comigo o que podemos chamar
de lar nesses últimos anos, sou grato por cada momento que vivemos juntos e sei
que é de extrema importância a força e a energia positiva que emanamos uns
com os outros dentro da nossa casinha.
Leonino que sou, vou aproveitar para agradecer a mim e aos diversos
meios de ser que eu criei para poder sobreviver, viver e ter forças, a todas as
músicas que ouvi e escrevi, a todos os banhos de mar que me renovaram e
bloquearam pensamentos ruins, e a todas as energias boas que andam comigo e
que fizeram eu me sentir suficiente e completo mesmo sozinho.
RESUMO
Black affection is impacted by hypersexualization. If you are black and gay, this
impact is even greater. It is a waste for a "beautiful" black person to be gay. Rico
Dalasam intertwines the struggle against black disaffection and the mainstream
norms of rap through queer rap. He is considered the pioneer of this style in Brazil.
In order to understand how Dalasam uses his lyrics as vehicles to explore
emotions and question social dynamics related to racial and sexual identities,
discourse analysis was applied as the methodology in the songs Não Posso
Esperar (2015), Honestamente (2016), Não vem brincar de amor (2017), Reflex
(2020), Não é comigo (2021), Última vez (2021) and Tarde D+ (2022).. It was
concluded that white love, even among racialized individuals, has been adopted
as a model to be followed. Despite its flaws, it has become deeply rooted in the
fertile ground of our society's structural racism. Thus, this research contributes to
the expansion of academic knowledge about the relationships between affection
and race, sexuality and identity, highlighting the power of art, communication, and
music as tools for expression, resistance, and social transformation.
1 INTRODUÇÃO 13
2 MOVIMENTOS SOCIAIS COMO RESISTÊNCIA CULTURAL 19
3 RITMO & POESIA 25
3.1 Cultura Hip Hop 25
3.2 Rap na cultura negra 27
3.3 Queer Rap 29
3.4 Queer Rap no Brasil 32
3.5 Performatividade queer 34
4 AFETO 36
4.1 Afetividade negra: O afeto e a falta 38
4.2 Imagem de controle e hiperssexualização do homem negro 42
5 METODOLOGIA 45
5.1 Método 45
5.2 Rico Dalasam 49
6 ANÁLISES 51
6.1 A bicha preta tem pressa 51
6.2 Honestamente, não vem brincar de amor 53
6.3 O amor escolhe, prefere, exclui e cancela 54
6.4 A melhor versão de nós nunca foi na agonia 56
6.5 Declaro o enterro de um ex-amor que assustava-me 62
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 66
8 REFERÊNCIAS 70
Anexo I: Letra da faixa Não posso esperar (2015) 81
Anexo II: Letra da faixa Honestamente (2016) 84
Anexo III: Letra da faixa Reflex (feat. Jup do Bairro) (2020) 87
Anexo VI: Letra da faixa Não é comigo (2021) 89
Anexo V: Letra da faixa Última vez (2021) 90
Anexo VI: Letra da faixa Tarde D+ (2022) 93
13
1 INTRODUÇÃO
Esperar (2015), Honestamente (2016), Não vem brincar de amor (2017), Reflex
(2020), Não é comigo (2021), Última vez (2021) e Tarde D+ (2022) nos ajudará a
entender, em uma espécie de caminhada pela carreira de Dala, como o artista
aborda a hiperssexualização e a representação social do corpo do homem negro
em sua produção e discutir as contribuições da obra para a compreensão e
desconstrução da hiperssexualização e da representação social do corpo preto e
marginal.
A expressão artística de Rico Dalasam é emblemática para diversas
comunidades, especialmente para mim, que nesse ponto me identifico com as
vivências e desafios enfrentados por ele. Rico é um artista brasileiro conhecido
por fazer música sobre empoderamento, resistência, igualdade e superação de
forma autoral e autêntica, carregando a discussão sobre a vivência do afeto sob
sua perspectiva em com letras que imprimem à sua identidade como homem
negro, gay e periférico. Destacando a relevância de adentrar no campo da
interseccionalidade proposta por Crenshaw (1991) para acrescentar à discussão
sobre corpos pretos as marcas de uma vivência social com recortes de gênero e
sexualidade. Sendo assim, o trabalho aborda questões como o racismo estrutural,
a homofobia, a masculinidade negra e as desigualdades sociais.
Jefferson Ricardo da Silva, ou somente Rico Dalasam, se destaca no
cenário musical nacional como rapper, cantor e compositor. Sua produção
artística tem sido objeto de análises acadêmicas em diferentes áreas, como a
sociologia, a antropologia, a música e os estudos culturais. Ele se notabiliza por
uma sonoridade que combina elementos do rap, funk, soul e R&B, e por suas
letras que exploram questões de identidade, sexualidade e luta contra a
discriminação racial. A música e a atuação pública de Rico Dalasam têm sido
consideradas ferramentas importantes na promoção da construção de uma
sociedade mais justa e igualitária, que valorize e respeite as diferenças existentes
entre as pessoas, tornando Rico símbolo de luta contra o preconceito e de
promoção da diversidade de gênero e sexualidade, dentro do hip hop e da
sociedade em geral. Em seu álbum intitulado Dolores Dala Guardião do Alívio3
(2021), é possível perceber que o artista aborda de forma expressiva a
3
Disponível para audição em:
https://youtube.com/playlist?list=PLmtmYs6oir5GfL6DyZ-62Fb4rkCTdTCXI
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4
bell hooks é um pseudônimo adotado pela escritora e ativista Gloria Jean Watkins. A autora
optou por escrever seu nome em minúsculas como uma forma de enfatizar a importância das
ideias e conceitos abordados, desvinculando-os de sua identidade pessoal.
17
não só pela minha própria experiência e vivência, mas também pela influência de
artistas como o próprio Rico Dalasam que se tornou importante por carregar essa
mensagem de inclusão, desafiando os estereótipos de gênero e sexualidade,
reivindicando sua negritude e expressando uma mensagem de empoderamento
que impactam outras pessoas como eu, como nós, funcionando como uma rede
de apoio.
Apesar de se tratar sobre a masculinidade negra, essa pesquisa é
influenciada pela forte admiração e referência que tenho em relação a bell hooks,
mulher cis preta, escritora, professora e ativista social que estudou e se tornou
símbolo acadêmico sobre as questões de gênero, classe e raça e defendeu uma
educação contrária a essas opressões; Judith Butler, mulher cis branca, que
questiona gênero e particularmente me sugere novas formas de pensar a cultura,
o (auto)conhecimento, o poder sobre quem posso ser e como a educação pode
transformar; e a artista multimídia, agitadora cultural, cantora e atriz, como ela
mesma se define, Linn da Quebrada5, mulher trans, travesti, com uma obra que
discute e reivindica corpo de uma forma que me faz brilhar os olhos desde 2017,
quando lançou seu primeiro trabalho na música, com a produção musical
Enviadescer (2017). Mulheres com trabalhos fundamentais para ampliar a minha
compreensão sobre a importância da auto-expressão.
Nesta pesquisa, dividida em 7 capítulos, incluindo a introdução e as
considerações finais, te convido a entender como os movimentos sociais
desempenham um papel na resistência cultural, com foco na incorporação do hip
hop nessa resistência. Faremos uma breve análise da emergência da cultura hip
hop e como, a partir dela, surgem outros subgêneros e grupos, como o queer rap,
discutindo também essa perspectiva no Brasil.
Reconhecendo que somos seres movidos por emoções e que a maioria
das músicas que conhecemos tem origem nesse lugar de afeto, dedicaremos um
capítulo ao afeto, destacando que, neste trabalho, a perspectiva de bell hooks
sobre o afeto também será considerada uma metodologia de pesquisa. Todos os
pontos da pesquisa terão um recorte de raça e sexualidade, considerando que
analisaremos a obra de um rapper negro e gay, Rico Dalasam.
5
Neste trabalho, utilizo o nome artístico Linn da Quebrada para me referir à artista brasileira Lina
Pereira. Reconhecida por sua atuação como cantora, atriz, performer e ativista, carrega esse
nome artístico como uma forma de expressão e afirmação de sua identidade.
18
O movimento social é entendido por Gonh (2008, p. 14) como "a expressão
de uma ação coletiva decorrente de uma luta sociopolítica, econômica ou
cultural". Acrescenta que seus elementos intrínsecos são demandas que
configuram sua identidade; adversários e aliados; bases, lideranças e assessorias
formadores de redes de mobilizações, que sustentam culturas próprias às suas
reivindicações. Para Ribeiro (apud DELLAQUA, 2017), a ação coletiva objetiva
mudanças sociais através de embate político, conforme valores e ideologias da
comunidade e de um contexto específico. A luta é por algum ideal ou
questionamento a algo impeditivo aos anseios do movimento.
No contexto da escravidão, a quilombagem se caracteriza como um
precursor movimento social, no Brasil. Para Beatriz Nascimento, o quilombo é um
projeto de nação dos excluídos. Sua resistência faz valer o direito ao território,
dessa forma o pertencimento da terra equivale à existência. Quilombo é
relembrado como desejo de uma utopia. Abdias, por sua vez, aplica o
quilombismo, cujo traz o contexto do quilombo para o presente, incluindo ações
práticas, “ideia-força”, “energia” “um conceito científico emergente do processo
histórico-cultural das massas afro-brasileiras” (NASCIMENTO, 1980, p. 245).
Sugere pesquisa, crítica e reflexão sobre passado e presente da população de
origem africana no Brasil. Também incita justiça social e igualdade (BATISTA,
2019). O negro-escravizado inconformado traduzia esse sentimento no ato da
fuga, constituindo o primeiro estágio de consciência rebelde, expressando um
protesto contra a situação na qual estava submetido. O negro fugido se tornava o
rebelde solitário que escapou do cativeiro. A socialização desse sentimento era o
segundo estágio da consciência. A consequência disso era a organização junto a
outros negros fugidos em uma comunidade que tanto poderia ser precária como
estável. Então, o negro fugido se tornava quilombola, sendo o principal agente do
quilombo. “A quilombagem é um processo social contínuo de protesto que se
desenvolve dentro da estrutura escravista, solapando-a histórica, econômica,
étnica e socialmente. [...] Não é um suceder de quilombos isolados, com uma
história atomizada e particular de cada um, mas um continuum que só termina
com a abolição do sistema escravista colonial.” A vitória do movimento é a
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Um país, o Brasil, usa palavras como lista negra, dia negro, magia negra,
câmbio negro, vala negra, mercado negro, peste negra, buraco negro,
ovelha negra, a fome negra, humor negro, seu passado negro, futuro
negro (…). Pega o dicionário de língua portuguesa, está escrito: negro
quer dizer infeliz, maldito.
Brasileiro quando valoriza alguma coisa não fala negro, ele fala preto (...).
Ele não come feijão negro, come feijão preto, o carro dele não é carro
negro, o carro dele é carro preto, ele não toma café negro, toma café
preto, a fome é negra, quando ganha na loteria, ganha uma nota preta. Se
branco não é negativo, preto também não é negativo. (PORTAL RAÍZES,
2018).
Na suposição de Fanon, ele questiona “Sou branco, quer dizer que tenho
para mim a beleza e a virtude, que nunca foram negras. Eu sou da cor do dia…”
(FANON, 2008, p .56) conversando com essa ideia lembrei imediatamente dos
versos de Baco Exu do Blues em A Pele que Habito6 (2017), insinuando ser parte
da noite e denuncia sutilmente e contrapõe o desejo do branco de fazer de um
movimento quando “a lua quer ser preta, se pinta no eclipse, eu faço parte da
noite.”
A peculiaridade do racismo brasileiro é ser velado. Acredita-se,
mundialmente, que a miscigenação é fruto da boa convivência entre brancos e
negros. Esse mito esconde a tentativa de extermínio negro. A característica
mascarada do racismo contribui para que a situação real deixe de ser enfrentada,
fazendo com que o próprio povo absorva que o racismo não existe. Almeida
(2019, p.20), coloca que o racismo é "a manifestação normal de uma sociedade, e
não um fenômeno patológico ou que expressa algum tipo de anormalidade”.
A música rap, de origem africana, é o próprio instrumento de trabalho do
hip hop. O fato de cultivarem rap já é investir em sua autoestima, pois o rap é uma
música de origem negra (ANDRADE, 1999). As letras de rap se apresentam em
forma de narrativa, em que seus autores relatam fatos que presenciaram ou
viveram em seu dia-a-dia. Algumas letras são apenas descritivas de tais
situações, outras trazem conselhos ou sugestões visando à solução dos
problemas narrados. Entretanto, todas as letras sempre carregam consigo uma
intenção crítica do social. Mesmo as letras somente descritivas têm sempre o
6
Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=zOvgpIhx4Iw
22
7
Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=JKiueNCiwX4
8
Grupo de rap brasileiro formado por Mano Brown, Ice Blue, Edi Rock e KL Jay. O trabalho dos
Racionais MC's é marcado pela contundência e crítica, o grupo tornou-se uma referência
fundamental na história do rap nacional e da música brasileira. Letras que abordam questões
sociais, raciais e políticas, dando voz às experiências e vivências da população marginalizada.
23
O hip hop é um movimento de contracultura que surgiu nos anos 1970, nas
periferias urbanas dos Estados Unidos, principalmente na cidade de Nova York,
precisamente no Bronx. Ele se desenvolveu a partir da expressão artística dos
jovens afro-americanos e latinos que viviam em bairros pobres e enfrentavam
situações de exclusão social e discriminação racial. Segundo Forman (2002), o
hip hop é um movimento cultural que se baseia em quatro elementos principais: o
rap, a breakdance, o graffiti e o DJing. Cada um desses elementos têm sua
própria história e significado, mas juntos eles formam uma cultura urbana e
engajada, que busca expressar as experiências e as demandas das comunidades
marginalizadas. Cultura essa que segue quatro principais vertentes: o rap, o
DJing, breakdance e o graffiti. O rap, por exemplo, é a expressão musical do hip
hop, que se caracteriza pela poesia rimada, acompanhada de uma batida musical.
A breakdance é uma forma de dança de rua que se desenvolveu nos anos 1970,
baseada em movimentos acrobáticos e no improviso. O graffiti é uma forma de
arte urbana que se manifesta em murais, pichações e outras formas de
intervenção visual nas ruas. E o DJing é a arte de mixar e manipular sons, que se
tornou uma das principais formas de expressão musical do hip hop. O hip hop é
uma cultura que busca afirmar a identidade e a resistência das comunidades
marginalizadas, por meio da expressão artística e da afirmação de valores como a
solidariedade, a criatividade e o respeito mútuo. Chang (2005) conta que o hip
hop é um movimento cultural que tem como objetivo "dar voz aos sem voz,
representar os não representados, e lutar contra a opressão e a marginalização".
Esse movimento juvenil e de contracultura do Hip Hop foi onde jovens
negros e latinos encontraram e inventaram formas de resistir e criar. Para Rose
(1997) a cultura hip hop surge como uma fonte de construção de uma identidade
alternativa e de status social para os jovens pretos e pobres.
(...) esses repertórios da cultura popular negra – uma vez que fomos
excluídos da corrente cultural dominante – eram frequentemente os
únicos espaços performáticos que nos restavam e que foram
sobredeterminados de duas formas: parcialmente por suas heranças, e
também determinados criticamente pelas condições diaspóricas nas quais
as conexões foram forjadas. A apropriação, cooptação e rearticulação
seletivas de ideologias, culturas e instituições europeias, junto a um
patrimônio africano (...), conduziram a inovações linguísticas na
estilização retórica do corpo, as formas de ocupar um espaço social
alheio, a expressões potencializadas, a estilos de cabelo, a posturas,
gingados e maneiras de falar, bem como a meios de constituir e sustentar
o companheirismo e a comunidade (HALL, 2003, p. 343).
9
A música Pirigoza (2017). Disponível para audição em:
https://www.youtube.com/watch?v=7kZ4Xh0mhik
31
O Queer Rap é uma realidade nos Estados Unidos. Inicialmente, foi criado
para reivindicar um espaço dentro do movimento hip hop norte-americano
e passou a denunciar a violência contra a população LGBT (...)
movimento Queer Rap é caracterizado pelas performances e danças que
misturam os estilos de cantoras populares conhecidas como "divas", tais
como Madonna, Beyoncé, Lady Gaga, entre outras. Com roupas
extravagantes que compõem uma mistura de elementos femininos e
masculinos, coloca no corpo o ser diferente, o impacto do incomum,
aborda a tripla exclusão: a do negro, do pobre e do homossexual. O
aspecto visual, por si só, mostra que o hip hop pode denunciar essas
exclusões e dar visibilidade e voz aos excluídos. (EDDINE, 2018, p 13)
"Negros, gays, rappers: quantos no Brasil? Devem haver vários, tantos tão
bom quanto os foda que rima uma cota, tirando os que tão, né? E ninguém nota",
Rico Dalasam canta em tom de protesto nos versos da autobiográfica canção
“Dalasam”. Jefferson Ricardo da Silva, ou Rico Dasalam é uma importante
representação de gênero dentro do movimento hip hop brasileiro, pois desafia os
padrões tradicionais de masculinidade e heteronormatividade desde sua primeira
aparição, um “homem negro e gay que faz parte de um movimento intitulado de
queer rap, o qual constrói narrativas dissidentes no universo do rap – que por sua
vez já é dissidente enquanto espaço cultural antirracista e antielista.” (BRITO;
CRUZ, 2021, p.4)
Se destacando desde sempre por suas letras que exploram temas como a
sua vivência como um homem negro e gay na sociedade brasileira, além de
questionar os estereótipos de gênero e de sexualidade que são comuns dentro do
rap. Se utilizando de música, do audiovisual - com seus clipes memoráveis - e da
moda como forma de expressão de sua identidade de gênero, misturando
elementos considerados masculinos e femininos. Sua presença e sua arte
contribuem para a quebra de barreiras culturais e sociais, mostrando que as
pessoas podem ser quem são, sem ter que se encaixar em padrões pré-definidos,
além de se manter no meio hip hop, trazendo para a cena musical uma visão mais
ampla e diversa do que significa ser um homem negro e gay. Não há registros
precisos sobre a orientação sexual de outros artistas que atuaram anteriormente
na cena hip hop brasileira, dessa forma, Rico traz com si o pioneirismo e a
coragem em assumir sua homossexualidade no meio hip hop. Com os ânimos
aquecidos e vontade de fazer acontecer, no seu primeiro single, Aceite-c, de
2014, Rico canta “Eu, outro não dá pra ser, sem crise, sem chance, uma dica:
Aceite-se” trazendo para si os holofotes com a intenção de propagar uma
mensagem de (auto)aceitação e diversidade, provando que não chegaria apenas
para ser um artista “gay” no meio, especialmente em um contexto em que a
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10
Coletivo artístico e ativista brasileiro formado por Harlley, Murillo, Guigo, Boombeat e Tchelo,
artistas LGBTQIAP+ que se destacam no cenário da música e da cultura queer.
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Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=dRDRGizXymw
35
4 AFETO
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Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=R4YuUWAAMWo
37
(1844-1900) falou sobre a importância dos afetos como uma força vital e criativa,
enquanto Gilles Deleuze (1925-1995) explorou na obra Espinosa: filosofia prática
a ideia de que os afetos eram forças que produzem efeitos nos corpos e nas
mentes. “Afecção remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do
corpo afetante, ao passo que o afeto remete à transição de um estado a outro,
tendo em conta variação correlativa dos corpos afetantes” (DELEUZE, 2002, p.
56).
Começando com Spinoza, ele foi um filósofo holandês de origem judaica,
cuja obra principal, a "Ética", foi publicada postumamente em 1677. Na filosofia
spinozista, os afetos são entendidos como um tipo de "percepção" que afeta a
potência e a ação do corpo humano. Spinoza argumenta que é possível mudar os
afetos por meio da razão, já que a compreensão racional de um afeto pode levar
a uma modificação do mesmo. Já Nietzsche, que é frequentemente associado ao
conceito de afeto, o utilizava em um sentido mais positivo, como uma força vital
que impulsionava a criação e a realização humana, acreditando que "as paixões
são os melhores meios de emancipação do indivíduo" (NIETZSCHE, 1987, p.
100). Isso significa que, para Nietzsche, os afetos eram uma forma de superar a
submissão à moralidade e à tradição, permitindo a expressão livre e criativa da
vida humana.
O afeto é conteúdo essencial para as ações coletivas, sem afeto não existe
ação nem identificação coletiva, sem afeto também não existe razão. “Os afetos
humanos são muitos e irão circular onde quer que existam seres humanos e
relações humanas.” Provavelmente, fé, alegria, amor e raiva circulam nos
movimentos sociais tanto quanto em qualquer outra atividade coletiva humana:
espaços laborais, sindicatos, igrejas, grêmios, associações, famílias (PORTO,
2022, p. 17). Para O Significados, afeto tem sua origem na palavra latina
affectus, que significa disposição, estar inclinado a. Afeto é a disposição de
alguém por alguma coisa, seja positiva ou negativa. Através do afeto construído,
emoções ou sentimentos são demonstrados. O ódio também é um afeto, tanto
quanto amor.
38
13
Disponível para audição em:
https://www.youtube.com/watch?v=5JNa47qtJmM&pp=ygUJbWV1IGViYW5v
14
Renomada cantora e compositora preta brasileira. Uma das maiores intérpretes da música
popular brasileira, com uma carreira de sucesso que abrange mais de cinco décadas.
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Baco Exu do Blues, nome artístico de Diogo Moncorvo, é um rapper e compositor brasileiro.
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Disponível para audição em:
https://youtube.com/playlist?list=PLEBT36dqW0GIK0AcWRcLxOwZDKOG7sS0g
17
Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=j5nEJmszccM
41
Cabe pensar se esse lugar que procuramos, achamos - e muitas vezes nos
decepcionamos - é ainda amor. Nessa linha, podemos criar paralelos dessa
invenção pensando como bell hooks(2021), que entende que o desamor é
contrário ao amor, e segundo ela, ele cura. Em sua obra "Tudo sobre o amor:
novas perspectivas" aborda o afeto em forma de amor. O amor é ação, apesar de
ser substantivo. É o centro de tudo, ética de vida e prática transformadora. A falta
de definição concreta faz acreditar que tudo é amor. Não nascemos sabendo nos
amar nem amar os outros. Apenas reconhecemos o carinho e atenção desses,
inclusive é o que buscamos. A diferença do amor depositado em cada indivíduo
ou relação é o comprometimento com cada um deles, é a energia depositada
nessa ação. Com relação ao amor próprio, hooks(2021) acredita que se somos
capazes de vermos o que somos e nos aceitarmos, construímos os requisitos
necessários para o amor próprio. Ter autoestima é a base para que consigamos
ter relações amorosas com os outros. No rap, o amor pode ser encontrado nas
palavras de Emicida: “Amor é espiritualidade / Latente, potente, preto, poesia /
Um ombro na noite quieta / Um colo pra começar o dia”.
O afeto positivo entre os negros é uma revolução numa sociedade que os
mata e coloca uns contra os outros. A ajuda mútua possibilita um espaço de
escuta e troca, através de conversas e compartilhamento de anseios e
conquistas. "Demonstrar afeto é tão importante, você está aqui e está vivo, então
construa novas histórias. Precisamos criar novas narrativas, e você faz parte
desse processo, então abra as portas e as janelas" (PRADO, 2021). Para Rafael,
42
pai da Sanko Familly18, "a partir do momento em que a gente se ama, se respeita
e se afeta, não tem mais como o sistema nos atravessar porque somos potência".
Nesse sentido, o afeto é revolucionário porque permite cura.
Para bell hooks, os negros possuem uma carga extra de desamor, tanto no
aspecto individual como no coletivo. O processo de escravização contribuiu para
que desenvolvessem o embotamento afetivo ou afeto embotado. Cuja definição é
a dificuldade de expressar emoções e sentimentos.
Uma prostituta nos disse que, há algum tempo, só a ideia de dormir com
um negro a levava ao orgasmo. Ela os procurava sem exigir dinheiro.
Mas, acrescentou, “dormir com eles não tinha nada de mais do que com
os brancos. Eu chegava ao orgasmo antes do ato. Eu ficava pensando
(imaginando) tudo o que eles poderiam fazer: e era isso que era
formidável. (FANON, 2008, p. 139).
18
Projeto Sanko Family, é um projeto do Rafael Santos e sua esposa, onde compartilham a
respeito de formação pessoal e familiar, e educação anti racista. Disponível em:
https://www.instagram.com/sankofamilly/
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5 METODOLOGIA
5.1 Método
Este estudo teve como base uma análise cuidadosa da produção musical
de Rico Dalasam, utilizando as letras de suas músicas como material empírico,
desenvolvido a partir de elementos exploratórios, descritivos e interpretativos
típicos de pesquisas qualitativas (MINAYO, 1999). O objetivo principal foi ampliar
a compreensão das experiências vividas por homens negros e homossexuais,
explorando as nuances das suas vivências afetivas e temáticas como
hipersexualização do corpo preto, relações interraciais e a vivência afetiva do
corpo preterido pela sociedade. Além disso, buscamos compreender como
Dalasam utiliza suas letras como veículos para explorar suas emoções e
questionar as dinâmicas sociais relacionadas às identidades raciais e sexuais.
Essa pesquisa se justifica pela necessidade de abordar as complexidades
das relações afetivas, da construção da identidade e das interações entre raça,
sexualidade e vulnerabilidade social e na discussão de como o rap consegue ser
um meio de revolução. A análise das músicas do rapper Rico Dalasam
proporcionou uma compreensão mais ampla acerca de cada reclamação ou
denúncia em forma de versos que Dalasam coloca. É colocando os problemas
enfrentados por homens negros e homossexuais - como eu, e como o próprio
Rico - em seus relacionamentos afetivos que me permiti pensar uma análise
crítica mergulhada na forma que essas questões são representadas e
amplificadas na obra do artista.
A pergunta de pesquisa subjacente guiou nosso estudo: como as músicas
de Rico Dalasam abordam as experiências afetivas de homens negros e
homossexuais, e de que maneira refletem e amplificam as questões relacionadas
à raça, sexualidade e vulnerabilidade social? Para responder a essa pergunta,
utilizamos a metodologia da análise de discurso como ferramenta analítica,
buscando desvelar os mecanismos discursivos presentes nas letras das músicas
selecionadas. De acordo com Foucault (1996), o discurso é um conjunto crítico
que deve ser analisado com o propósito de praticar a inversão. Essa inversão
consiste em identificar, nos discursos, as formas de exclusão, limitação e
apropriação; investigar como essas formas se desenvolveram em resposta a
necessidades específicas, como se modificaram e se deslocaram ao longo do
46
"O rap era um irmão. Era, às vezes, a única pessoa que eu queria ouvir, a
única pessoa com quem eu queria falar. Eu ouvia e traduzia para minha
realidade e isso fazia muito sentido. Não fui roqueiro porque achava que
rock era coisa de branco. O rap era um outro som que me dava uma
força." (DALASAM apud APARTES, 2017).
Quando apareceu, lançando seu primeiro som, Rico era “visto” de longe,
com seu visual composto por saias tipo kilt, cabelão escovado, jaquetas
extravagantes, chapéus, bolsas e bonés coloridos, além de meias descoladas,
indicam um jovem ligado em consumo, formado em audiovisual, que não deseja
atrair olhares apenas pela aparência (O TEMPO, 2015). Através do seu primeiro
trabalho, o EP Modo Diverso23 (2015), Dalasam, se estabeleceu como um dos
artistas mais proeminentes do movimento queer brasileiro. Cantando sem medo
sobre temas como identidade, sexualidade, representatividade e diversidade,
mesclando não só vivências nas letras, mas também elementos musicais do rap,
hip-hop e música eletrônica em suas composições, criou um som único e
autêntico.
23
Disponível para audição em:
https://youtube.com/playlist?list=PLmtmYs6oir5GtawSMeipjJN5ArZtbg6TS
49
24
O termo faz referência ao caso do ataque homofônico na Avenida Paulista em novembro de
2010. No incidente um dos agressores chegou a quebrar uma lâmpada fluorescente na cabeça de
uma das vítimas.
50
"O discurso gay no rap poderia ter acontecido há dez anos. Talvez demore
muito mais, mas tô na batalha para que ser gay e ser rapper seja algo comum.
"(DALASAM, apud O TEMPO, 2015). Seu primeiro álbum foi batizado Orgunga25
(2016), que na sua língua própria, significa “orgulho que vem depois da
vergonha”.
25
Disponível para audição em:
https://youtube.com/playlist?list=PLmtmYs6oir5EHALaJbJ40oKdngvpIqwYx
26
Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=Q5pinmXcAGM
27
Dalaboy é um termo carinhoso para se referir a Rico Dalasam. O próprio Dalasam adotou essa
forma de identificação em algumas ocasiões.
51
6 ANÁLISES
28
Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=tOPBgcfG9m0
52
carreira do rapper nos anos seguintes, abordando temas como amor e liberdade.
Para Cândido (2022), diante de um sistema que incentiva conflito entre pessoas
pretas, o debate sobre o afeto é necessário. Pois, todo amor preto, seja entre
casal ou amigos, é resistência. Voltarei em hooks (2021), para lembrar que o
amor cura.
Entendo o verso "Que qualquer copo de afeto e assobio / Já era Dom
Pérignon e piano" como um marco nesse primeiro momento do disco, para além
de ser o meu verso favorito desse som. Quando estabelece uma comparação
entre elementos aparentemente simples, como um copo de afeto e um assobio, e
símbolos de luxo e sofisticação, representados pelo champanhe Dom Pérignon e
um piano, sugere uma inversão de valores, elevando a conexão afetiva a um
patamar de grande importância e valor. Eu não conhecia o Dom Pérignon a
primeira vez que ouvi a música, corri para procurar e me deparei com preços que
giravam em torno de R$2.000, a garrafa de 750ml. Então era o Rico Dalasam um
símbolo de ostentação?
O historiador e estudioso do campo de comunicação e música, MicaeI
Herschmann, acredita que “os segmentos populares associados a esse tipo de
manifestação cultural, embora frequentemente excluídos e estigmatizados, estão
também em sintonia com a lógica do capitalismo transnacional” (HERSCHMANN,
1997, p. 66). Apesar de colocar na letra - referenciar a marca e transparecer
saber do seu valor - Rico parece entender que o "copo de afeto" pode ser tão
satisfatório e enriquecedor quanto desfrutar desta bebida requintada.
Rico ainda chama atenção quando traz o termo “grilhões”29 no contexto de
barreiras sociais, preconceitos e medos que impedem as pessoas de amar
livremente. Nos versos "Vale mais amar, seja como for / Tortura é viver em falsos
grilhões / O medo é maior rival do amor / O mundo é melhor vivido a dois", Rico
Dalasam exalta o amor como um movimento essencial e poderoso,
independentemente das circunstâncias. Nesse verso, destaco o “medo”, que pode
ter ou não ligação com um sentimento de inferioridade, e coloco um contraponto
referenciando Fanon, que diz que "o amor autêntico permanecerá impossível
enquanto não eliminarmos este sentimento de inferioridade" (FANON, 2008, p.54).
29
Grilhões são correntes ou algemas que são usadas para prender os pulsos ou tornozelos de
uma pessoa. Esses dispositivos têm um simbolismo histórico e são frequentemente associados à
escravidão e à opressão.
53
Rico ainda usa o termo grilhões de forma metafórica para representar todos os
preconceitos, que restringem a expressão e vivência do amor autêntico. Ele
defende que o mundo é melhor vivido a dois, ressaltando a importância das
relações amorosas como uma fonte de conexão, apoio e enriquecimento mútuo.
Uma demanda passional pela possibilidade do amor se entrelaça, assim, ao
enfrentamento violento do colonialismo e racismo, mas como diria Fanon, as
pessoas “precisam de amor, afeição e poesia para viver” (FANON, 2015, p. 280).
30
Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=ZeKav7Nf2Aw
31
Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=1mOVK-MEZsg
32
Disponível para audição em:
https://youtube.com/playlist?list=PLmtmYs6oir5G_pAKK_c-Vg9a1--bNEfvk
54
33
Rico Dalasam, passou por um período de "hiato criativo" nos anos seguintes ao sucesso de
"Todo Dia" (2017), devido a uma disputa judicial pelos direitos da música. No entanto, esse
incidente específico não está diretamente relacionado à análise em questão.
34
Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=tzzTt0bvULQ
35
Cantora, compositora e performer brasileira que se destaca na cena musical contemporânea.
Importante voz no ativismo queer no Brasil.
55
36
Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=ekPzUn25HpY
57
“Vejo isso pelas trajetórias de outros homens pretos que conheci e que
acabaram presos ou em situação de drogadição por conta disso. Além do
mais, nossos corpos são extremamente sexualizados; somos
desumanizados. Então somos vistos obrigatoriamente como máquinas de
58
fazer sexo e precisamos performar isso. E tem que ser o sexo hétero.
Algumas mulheres, quando descobrem que um homem negro é gay, logo
reagem dizendo que um negão assim ser gay é um desperdício.” (BRITO,
2020, online).
37
Disponível para audição em: https://www.youtube.com/watch?v=O8G7brKoo5c
59
leva pro teu universo / Toda vez é na minha cama / Dá um jeito de ser o inverso",
descreve uma assimetria de poder e controle na dinâmica do relacionamento, o
que – nesse disco - é uma questão recorrente discutida e denunciada por Rico.
Esse amor negligenciado é discutido por bell hooks. “Abuso e negligência anulam
o amor. Cuidado e apoio, o oposto do abuso e da humilhação, são as bases do
amor” (hooks, 2021, p.64)
Nessa faixa, a pessoa mencionada é constantemente convidada a
participar da vida e dos espaços da outra pessoa, enquanto suas próprias
experiências e espaços são negligenciados. Essa dinâmica reforça a falta de
equilíbrio e de compartilhamento de poder na relação, colocando a pessoa
mencionada em uma posição de submissão e desvalorização. Essa abordagem
reforça a necessidade de reflexão e questionamento sobre as dinâmicas de poder
e controle presentes nos relacionamentos, especialmente no contexto de
desigualdades sociais e culturais.
No verso "Me conta tudo mas me esconde", Rico Dalasam expressa uma
ambiguidade na comunicação e na partilha de informações dentro de um
relacionamento. A frase sugere que, apesar de haver uma aparente disposição
para compartilhar detalhes e experiências, existe uma ocultação de algo
relevante, nesse caso – o próprio relacionamento, por parte da outra pessoa.
Estar solteiro, atualmente, pode significar não aceitar amores pela metade para
continuar sendo inteiro sozinho. É sobre entender ser digno de receber todo amor
que merece e afeto que necessita. A libertação ocorre quando o indivíduo não se
contenta com a margem, uma vez que merece o oceano inteiro (MUNDO
NEGRO, 2021).
Nos versos "Só chama pra ser seu PF / Diz que eu sou BFF / Quando 'cê
chega em casa de moto Eu penso: "tomara que me leve" / Me passa feito um
TikTok / Fudendo com meu tico е teco" Rico Dalasam aborda questões
relacionadas ao amor, afeto, resistência e relações casuais, considerando o
contexto de sua identidade como uma pessoa homossexual e negra. Ao explorar
uma possível relação interracial entre dois homens, a música oferece espaço para
discutir como os homens lidam com o amor e a resistência ao afeto,
particularmente dentro do recorte de gênero, já que historicamente, o estereótipo
da masculinidade tem sido associado à ideia de frieza emocional e resistência ao
60
Além disso, abre espaço para questionarmos como o desejo sexual pode
moldar as escolhas e ações dos homens, e como essas dinâmicas afetam a
construção de relacionamentos duradouros e satisfatórios. A expressão "Quer
meter, não quer manter" utilizada na música, confirma e reitera a dinâmica do
sexo sem compromisso, e ainda critica à cultura do sexo casual e à falta de
compromisso emocional nas relações modernas, onde o prazer físico pode se
sobrepor à busca por intimidade e comprometimento emocional. Retomo a
discussão sobre superficialmente de Cavalcanti (2017), destacada no tópico 6.3
deste trabalho.
No trecho "É indeciso e intenso tudo o que quer de mim / Pô, nem quem
tem um amor na cadeia é assim", Dalasam faz uma comparação entre a
intensidade e indecisão do relacionamento com a referência ao "amor de cadeia".
Essa expressão pode ser interpretada de forma metafórica, representando um
tipo de amor complexo e difícil, que enfrenta obstáculos e restrições externas. Ao
mencionar o "amor de cadeia", faz alusão aos desafios e limitações enfrentados
por pessoas que vivem relacionamentos afetivos com parceiros que estão
encarcerados. Através dessa comparação, Rico sugere que mesmo em
relacionamentos não sujeitos às restrições físicas e sociais presentes em um
relacionamento com alguém na prisão, o amor ainda pode ser “indeciso e
intenso”.
38
Disponível para audição em:
https://youtube.com/playlist?list=OLAK5uy_n8iYoHNk6RHW-Dc5Dlohog7sU3-KKTKq0
62
usaremos Tarde D+39 (2022) como a última música analisada neste trabalho.
Se inicia de forma direta onde se pode interpretar e identificar rastros de
hiperssexualização ao corpo do homem preto, quando canta "Embala os beiço em
outro / Vinte centímetros de amor". Nesse sentido, a referência a "vinte
centímetros de amor" está relacionada à associação estereotipada do tamanho do
órgão masculino negro. Rico faz uso da associação, que está enraizada em
estereótipos raciais e na objetificação sexual do corpo do homem preto, para
trazer à tona a problemática da objetificação do corpo e a simplificação das
relações afetivas e sexuais a aspectos meramente físicos (FANON, 2008).
Na faixa, Rico comemora: "No compasso ágil se alguém me preterir / Hoje
já sei mais o jeito / E com todo respeito / Vou aonde sou aceito / A beleza chegou
pra mim", expressando uma valorização do seu próprio crescimento e consciência
de si mesmo. É o famigerado amor próprio que bell hooks apresenta, aparecendo
aqui. Rico ainda afirma que, se alguém o preterir ou o rejeitar com base em sua
identidade racial, sexual ou de gênero, ele tem a confiança para seguir em frente,
se mostrando mais maduro que em qualquer outra faixa. “A arte e a prática de
amar começa com nossa capacidade de reconhecer e afirmar a nós mesmos”
(hooks, 2014, p. 154).
A faixa desfecho para todas as dores que Dalasam cantou anteriormente
em outros projetos mostra como a consciência criada por ele no decorrer do
processo o permite rejeitar ambientes e relacionamentos que o colocam em uma
posição de marginalização ou preterimento. Essa atitude de autenticidade e busca
por espaços inclusivos reflete uma compreensão profunda de sua própria
identidade e uma rejeição à opressão e à marginalização. Declarando o enterro
de um ex-amor que o assustava, Rico descreve esse relacionamento passado
como um capítulo ridículo que estragou um vinho bom. “Declaro o enterro de um
ex-amor que assustava-me / Um capítulo ridículo, que estragou um vinho bom",
aponta para mais metáforas, dessa vez em paralelo às experiências negativas
que esse amor trouxe, e que de certa forma está deixando de existir. A ideia de
que ser maltratado, ofendido, menosprezado e ao mesmo tempo ser amado por
uma pessoa é normalizada, pois faz parte do amor romântico sofrer. Mulheres
negras tendem a sustentar relacionamentos interraciais regados de abusos, dos
39
Disponível para audição em: https://youtu.be/0XcvWf5GsuI
63
quais o racismo é a base.“Nós negros não podemos cair nessa fantasia de aceitar
o racismo vindo daqueles dizem nos amar” (RIBEIRO, 2019).
Podendo ainda ser interpretado como "ex-amor" não apenas um
relacionamento romântico específico, mas também todas as experiências e
vínculos tóxicos que causaram dor e sofrimento em sua vida. Ele reconhece que
esse capítulo foi ridículo, ou seja, não teve sentido ou valor verdadeiro em sua
vida, e lamenta o fato de ter estragado um "vinho bom", referindo-se a momentos
felizes ou oportunidades positivas que foram afetadas ou arruinadas por essa
situação. Curioso pensar que na primeira música, do primeiro EP de Dalasam,
Não posso esperar de 2015, que analisamos no tópico 6.1 deste trabalho ele cita
uma marca de vinhos que pode ser ligado diretamente a esse “vinho bom” que foi
estragado aqui.
No verso "Nesse flow KY, desliza forte em mim", Rico Dalasam faz uma
referência à marca de lubrificantes íntimos KY, que relacionado ao já citado verso
"Vinte centímetros de amor", é possível explorar uma perspectiva crítica sobre a
objetificação e hipersexualização do corpo masculino, especialmente o corpo do
homem negro. Ao mencionar o "flow KY" e a lubrificação, Rico Dalasam pode
estar utilizando uma linguagem provocativa para ressaltar a sexualidade e o
prazer. Em uma perspectiva crítica, Rico faz o uso de metáforas para questionar a
maneira como a sexualidade é explorada e se há uma ênfase excessiva na
dimensão física e na satisfação sexual em detrimento de outros aspectos do
amor, como a intimidade emocional e a conexão pessoal.
Acredito que a mais inteligente das hipóteses e teorias criadas em torno
das letras de Ricardo, é a possível interpretação dos versos "Só quero mais bolo
de chocolate, sem açúcar e leite" onde pode envolver uma possível leitura sobre
preferências e identificação cultural. Ao mencionar o "bolo de chocolate", Rico
Dalasam pode estar utilizando uma metáfora para expressar seu desejo por
relacionamentos ou conexões afrocentradas, onde o chocolate simboliza a
negritude. A afrocentricidade é uma discussão criticada por bell hooks:
"Ao falar sobre afrocentricidade bell hooks tece uma crítica ao modo como
nacionalistas negros estão tentando enfrentar a crise de
identidade/representação que negros estadunidenses sofrem, segundo a
autora esses grupos apostam numa representação unitária da negritude, a
universalização da experiência branca, o apagamento das formas
africanas de conhecer e construção de uma narrativa utópica e idealizada
64
[...] a base de todo amor em nossa vida é a mesma. Não há amor especial
reservado exclusivamente para parceiros românticos. O amor verdadeiro
é a base de nosso envolvimento com nós mesmos, com a família, com os
amigos, com companheiros, com todos que escolhemos amar. Embora
necessariamente nos comportemos de forma diferente dependendo da
natureza da relação, ou tenhamos diferentes graus de compromisso, os
valores que orientam nosso comportamento, quando baseados numa
ética amorosa, são sempre os mesmos para cada interação. E um dos
65
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
40
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Ti370YTMKsc&t=2420s
67
Ter Tarde D+ (2022), como a minha música favorita de Rico, funciona como a
comemoração do fim desse amor ruim que estragou um vinho bom, como ele
mesmo compara para se referir a esse ciclo de violências. Como comemoração a
um amor próprio que chegou sabendo que podemos nos dar o amor incondicional
que é fundamento para a aceitação e a afirmação sustentadas. Quando nos
damos esse presente precioso, somos capazes de alcançar os outros a partir de
um lugar de satisfação, e não de falta (hooks, 2021, p. 106-107). Dalasam se
mostra um agente de mudanças e transformações ao decidir encerrar
relacionamentos abusivos e expor em uma canção empoderada que comemora o
aprendizado que veio com a dor. E se não tivesse doído tanto?
Dalasam explora suas emoções e expressa reclamações e denúncias,
utilizando a arte do rap como um veículo de revolução. Ao adotar uma abordagem
qualitativa, embasada na análise de discurso, foi possível desvelar os
mecanismos discursivos presentes nas músicas selecionadas, revelando as
formas de violência, exclusão, limitação e apropriação presentes na sociedade
racista que vivemos. Reconheço a importância de Rico, em desafiar estereótipos
de gênero e sexualidade, promovendo uma mensagem de fortalecimento que
impacta outros indivíduos que se identificam com vivências, como eu.
Mbembe (2001) me convence em pensar que além de uma caixa do que é o
“eu” preto enquanto identidade e herança africana, entendendo que “não é mais
suficiente afirmar que apenas um eu africano dotado de uma capacidade narrativa
de síntese (...) pode afirmar a discrepância e a multiplicidade de normas e regras
interligadas características de nossa época. E ainda flertando com a subjetividade
de Foucault (1996) Mbembe sugere “reconceitualizar a própria noção de tempo
em sua relação com a memória e a subjetividade” onde “o tempo em que vivemos
é fundamentalmente fraturado, o próprio projeto de um resgate essencialista ou
sacrificial do eu está, por definição, fadado ao fracasso.”
Sobre relações interraciais, Medrado (2022) diz que “Nesse vai e vem dos
afetos sociais, o amor que circula por aí é o amor branco, o amor permitido e
aclamado; o amor que pressupõe vida. E pessoas brancas “querem nos amar” e
“querem que lhes amemos” da mesma forma. Mas são linguagens diferentes. E
se elas não forem compatíveis, ou compatibilizadas, esse amor nunca será real.
Será indutivo, impositivo e autoritariamente hierarquizante.” Assim como Fanon
68
8 REFERÊNCIAS
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Michel Foucault e as reflexões acerca de uma estética da existência
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ANDRADE, Elaine Nunes de. Rap e educação, rap é educação. Selo Negro,
1999.
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COLLINS, Patricia Hill. Black Sexual Politics: African Americans, Gender, and
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FANON, Frantz; KHALFA, Jean & YOUNG, Robert J. C. (Orgs.). Écrits sur
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RIBEIRO, Milton. “EU DECIDO SE ‘CÊS VÃO LIDAR COM KING OU SE VÃO
LIDAR COM KONG” HOMENS PRETOS, MASCULINIDADES NEGRAS E
IMAGENS DE CONTROLE NA SOCIEDADE BRASILEIRA*. Revista
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RICO Dalasam lança ORGUNGA: orgulho que vem depois da vergonha. RAP
NA RUA, 2016. Disponível em:
https://rapnarua.com.br/rico-dalasam-lanca-orgunga-orgulho-que-vem-depois-da-v
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RICO DALASAM. Não é comigo. Dolores Dala Guardião do Alívio: 2021 (1:34).
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ROSE, Tricia. Black noise: Rap music and black culture in contemporary
America. 1994.
SÁ, Priscila Miranda de; SILVA, Marco Aurélio Alves e; FERREIRA, Saymonn
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79
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SOARES, Victor Hugo Leite de Aquino. MAR ABERTO: Diáspora Negra e(m)
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-Universidade de Brasília.
VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.
81
Senti na barriga:
é um inverno, um embalo
que me levou à força.
E eu me vi fraco.
Tomado de um medo indomado,
atuei, frio, em cenas tão longas...
Cheguei!
Mc pra fã da Britney.
Às vezes, deprê.
Igual na morte da Whitney.
82
Ficar só é ruim
Quem tá sabe o quanto
Me adaptei no rolê de canto
Dancei só reparei os malandro
Parei de sair
Ficar frio
Sentir saudade do nosso canto
Pra cada ida já to voltando
Tenho quase tudo
Mas o que cê quer eu to sem
Não dá, né, pai, não é comigo que você tem que ficar
Não é, você sabe que você não swinga, você não swinga no social da coisa
É, se tiver uma festa de fim de ano da sua empresa, do seu trabalho, que cada
um tem que levar seu companheira, sua companheiro, você vai segurar o reggae
de me levar? Não vai!
Vai querer em algum momento da sua vida, da sua vivência social, você vai dar
uma suavizada na minha presença?
E eu não tô aqui pra isso
Olha aí a beleza do que eu tô construindo
Todo ano eu tenho que cavar léguas e léguas para baixo, porque as águas que
vêm de baixo são as águas que eu consigo alcançar porque as águas que vem de
cima não estão disponíveis para mim
Para eu viver esse tipo de coisa? Para eu ser escondido?
E não adianta falar que ama, você vai peitar isso?
Você vai peitar 500 anos de uma parada, por causa de um amor?
De um suposto amor, você nem tem certeza. Não vai, pai!
Então não é comigo que você tem que ficar!
Você tem que correr com os caras aí que é seu universo, da sua coisa, entendeu?
Não é de agora, legal, bacana, mas pô!
Nessa hora não tem Nicki Minaj, não tem Mickey Minaj, nem Mick Minah, nem
Miney, não tem ninguém, não tem ninguém, papai!
90
Te mostrar
Canções do Ilê