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UFF - UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

PPGAU - PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA E


URBANISMO

FRANCISCA DO R. ALEXANDRE DE AZEVEDO


Orientadora: Profª. Drª. Fernanda Sánchez

QUANDO O PAPO É RETO


RAP, CONFRONTOS NARRATIVOS NA CIDADE DE SÃO PAULO

NITERÓI, RJ
2018
FRANCISCA DO R. ALEXANDRE DE AZEVEDO

QUANDO O PAPO É RETO


RAP, CONFRONTOS NARRATIVOS NA CIDADE DE SÃO PAULO

Dissertação apresentada ao Programa de


Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo da Escola de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial para
obtenção do Grau de Mestre.
Área de Concentração: Arquitetura e
Urbanismo.

Orientadora:
Profª. Drª. Fernanda Sánchez

NITERÓI, RJ
2018
AGRADECIMENTOS

À minha mãe, Maria Augusta, por toda sabedoria, doçura e apoio


incondicional. Minha amiga e companheira de caminhada, obrigada por me ouvir,
conversar, rir comigo e me acalmar. Por ser presente em todos os momentos da
minha vida. Amo você.
À minha irmã, Izabel, pela força e amizade. Pelo companheirismo igualmente
incondicional e por sempre estar comigo. À Marianna e à Inês, minhas primas-
irmãs, fontes de alegria, diversão, amizade e apoio. Agradeço às três, por trazerem
as cores da amizade e do amor de irmãs para minha vida. Estaremos sempre
unidas.
À minha querida orientadora, Fernanda Sánchez, mulher forte e doce.
Exemplo de profissional e de ser humano, a quem muito admiro e aprendo todos os
dias. Obrigada pelos ensinamentos, dedicação, carinho, amizade, paciência e
companheirismo.
À professora Sonia Ferraz, por ser um grande exemplo. Com quem muito
aprendi e por quem nutro enorme carinho e admiração. Por ter contribuído de forma
tão marcante em minha formação. Pelas aulas inesquecíveis e boas discussões no
nosso grupo de estudos, muito obrigada!
À professora Ana Lucia Enne, que fez parte da banca de qualificação e quem
contribuiu muito para o desenvolvimento do trabalho.
À Larissa, minha grande amiga e companheira de profissão. Às conversas e
conselhos frutíferos, a presença e apoio constantes na minha vida desde a
graduação e, claro, a diversão sempre garantida. Por ter dividido viradas de noite de
muito trabalho e ainda hoje entender e ser totalmente solidária a isso. Te amo,
amiga.
À Paulinha e Bruninha companheiras de luta. Amizade que ultrapassou a
graduação e se fortalece a cada dia. Ao Joaquim, por trazer risos e a alegria das
suas peripécias. À Julia e Mirella, amigas queridas e especiais, também desde a
graduação, com quem muito troquei durante toda essa jornada.
À Priscila e ao Richard, amigos queridos que encontrei no mestrado e
permanecerão em minha vida.
A todos os colegas que fiz durante os dois anos do mestrado, em especial ao
Miguel, Fabiana, Paula, Luiz e Henrique que trouxeram mais leveza e alegria a todo
processo.
Ao laboratório GPDU pelas ricas trocas de conhecimento e pelos amigos que
fiz. Pela minha formação como pesquisadora e pessoal agradeço à Bruninha,
Paulinha, Amanda, Grasi, Rosane, Marcus, Talitha, Felipe, Fred, Poli, Júnior, Murilo,
Bruna, Paula, Flávio, Yasmin e Fernanda.
Ao laboratório Arquiviol, à Lelê, Ana, Aline, Paulinha, Clara, Evelyn, Nicolle,
Julia e Iza pelas ricas tardes de terça. Continua sendo uma experiência incrível
estudar com vocês. Obrigada pela troca. Viva a Vida Activa!
À UFF, instituição a quem devo minha formação acadêmica. À CAPES, que
concedeu a bolsa de estudos e possibilitou minha formação no mestrado. Ao ensino
público de qualidade e àqueles que lutam todos os dias pela educação e para
continuar sendo um importante pilar em nosso país.
Aos professores Juarez Duayer e Glauco Bienenstein pela importante
participação que tiveram em minha formação.
Aos Professores e funcionários do PPGAU-UFF, em especial à Ângela, que
sempre com muita alegria e carinho nos recebe na secretaria e torna a visita um
momento leve e especial do dia.
À minha família e meus amigos da infância, da vida e da arquitetura. Vocês
são mais que especiais para mim.
Ao meu avô Mario que sempre estará comigo, nas minhas doces lembranças
e na força do amor e do cuidado que sempre dedicou a mim.
À Luz que guia meus passos, fortalece meu ânimo e me inspira no amor.
O processo de tomada de consciência - já o
vimos - não é homogêneo, nem segundo os
lugares, nem segundo as classes sociais ou
situações profissionais, nem quanto aos
indivíduos. A velocidade com que cada
pessoa se aproxima da verdade contida na
história é diferente, tanto quanto a
profundidade e coerência dessa apropriação.
A descoberta individual é, já, um
considerável passo à frente, ainda que
possa parecer ao seu portador um caminho
penoso, à medida das resistências
circundantes a esse novo modo de pensar.
O passo seguinte, isto é, a possibilidade de
enxergar as situações e as causas atuantes
como conjuntos e de localizá-los como um
todo, mostrando sua interdependência. A
partir daí, a discussão silenciosa consigo
mesmo e o debate mais ou menos público
com os demais ganham uma nova clareza e
densidade, permitindo enxergar as relações
de causa e efeito como uma corrente
contínua, em que cada situação se inclui
numa rede dinâmica, estruturada, à escala
do mundo e à escala dos lugares. (SANTOS,
2008, p. 168,169 )

―O que importa são os incontáveis pequenos


atos de pessoas desconhecidas, que fundam
as bases para os eventos significativos que
se tornam história.
Foram elas que agiram no passado. São
elas que terão que agir no futuro.‖ (O Fim do
Sonho Americano: A Concentração de
Riqueza e Poder, 2016)
RESUMO

Busca-se refletir sobre os sentidos das narrativas e linguagens do rap a fim de


reconhecer as ideologias, atores sociais que coexistem na cidade e as formas de
contraposição à exclusão social dos espaços periféricos. Assim como, perceber de
que maneira disputas relacionadas aos processos de intervenção no espaço urbano,
como as políticas de controle sócio territorial, trabalham para manutenção da
imobilidade física e social do sujeito periférico na cidade de São Paulo. E como o
rap, para além de um estilo musical, portador de uma vertente comunicacional, se
coloca como sistema orientador, narrativo e insurgente. Para o desenvolvimento da
reflexão, foram realizadas pesquisas discográficas, análise das letras, entrevistas,
depoimentos, documentários, observação em shows e eventos sobre o universo do
rap.

Palavras-chave: Rap; narrativa; cultura; território; disputas.


ABSTRACT

It seeks to reflect on the senses of the narratives and languages of rap in order to
recognize the ideologies, social actors that coexist in the city and the forms of
opposition to the social exclusion of the peripheral spaces. As well as to understand
how disputes related to intervention processes in urban space, such as socio-
territorial control policies, work to maintain the physical and social immobility of the
peripheral subject in the city of São Paulo. And as rap, in addition to a musical style,
bearer of a communicational strand, is placed as a guiding system, narrative and
insurgent. For the development of the reflection, we performed discographic
research, analysis of the lyrics, interviews, testimonials, documentaries, observation
in shows and events about the universe of rap.

Keywords: Rap; narrative; culture; territory; disputes.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Porcentagem da População Por Raça/Cor. Disponível em


http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-
2017.pdf. Acesso: 20/11/17 33
Figura 2: Empregos Formais em São Paulo. Disponível em
http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-
2017.pdf. Acesso: 20/11/17 33
Figura 3: Homicídio Juvenil em São Paulo. Disponível em
http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-
2017.pdf. Acesso: 20/11/17 34
Figura 4: Porcentual da População Urbana que Reside em Favelas. Disponível em
http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-
2017.pdf. Acesso: 20/11/17 35
Figura 5: Esquema Cotidiano, Rap e Produção Social do Espaço. 47
Figura 6: Documentário TV Gazeta: A História do Rap Nacional – Episódio 04.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hu40HEcQ2FQ. Acessado:
02/02/18 59
Figura 7: Matéria Folha Online. Disponível em:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u1598.shtml. Acessado:
02/02/2018 60
Figura 8: Notícia Jornal O Dia. Disponível em:
https://odia.ig.com.br/_conteudo/mundoeciencia/2017-09-26/estudo-aponta-o-
rap-como-possivel-genero-favorito-de-psicopatas.html. Acesso: 26/09/17 63
Figura 9: Cenas do clipe Boa Esperança. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=AauVal4ODbE. Acesso: 23/05/2017 69
Figura 10: Campo de concentração, Auschwitz, inaugurado em 1940. 72
Figura 11: Matéria disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-
outras-midias/shopping-vitoria-corpos-negros-no-lugar-errado/. Acesso: 02/02/17
73
Figura 12: Matéria G1: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-
vitima-de-intolerancia-religiosa-diz-que-vai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html.
Acesso: 03/02/18 75
Figura 13: Matéria Jornal Gerais. Disponível em:
(https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/05/14/interna_gerais,294085/de
sacato-leva-o-rapper-emicida-a-prisao-em-bh.shtml. Acesso: 02/07/17 79
Figura 14: Clipe Emicida. Disponível
em:(https://www.youtube.com/watch?v=QdvYAjQYdIs. Acesso 01/03/18 80
Figura 15: Charge Emicida. Disponível em:
https://eusr.wordpress.com/2012/05/14/rapper-emicida-preso-em-bh/. Acesso:
04/08/17 80
SUMÁRIO

Apresentação….............................................................................................12

1. Introdução......................................................................................................14
1.1 Breves Notas Sobre Método............................................................................16

2. Sobre o Rap....................................................................................................18

2.1 Algumas Notas Sobre a Origem do Rap.........................................................20

2.2 Difusão do Rap na Cidade de São Paulo........................................................26

2.3 Rap, Cultura e Territorialidade.........................................................................39

3. Rap – A Voz Da Periferia Pede Passagem...................................................44

3.1 Rap, Espaço e Cotidianidade .........................................................................45

3.2 Rap no Contexto das Disputas Narrativas e Políticas.....................................51

3.3 Os Espaços de Enunciação do Rap................................................................64

3.4 Rap: Ação Insurgente e Ativismo Urbano........................................................77

4. Considerações finais.....................................................................................81

Referências....................................................................................................84

Anexos............................................................................................................90
12

APRESENTAÇÃO

Um ano e meio após terminar a graduação, sentia vontade de voltar à


Academia para estudar o mundo que me cerca, para buscar crescimento pessoal,
intelectual e acadêmico. Essa vontade, sempre latente, foi despertada após ouvir
uma música que há tempos estava na playlist do computador, mas que, de repente,
se tornou um grito de desabafo que ecoava profundamente em minhas indagações e
minha vontade de ver o mundo por outros ângulos.
A letra contundente passou durante um bom tempo despercebida pela batida
forte da música ou por uma cabeça dona de um ouvido que, ainda ―tapado‖, não
estava atento para escutá-la em sua totalidade.
Mas, numa tarde exaustiva de trabalho me encontrava no escritório, onde
permaneci por cinco anos, e ali finalmente percebi toda sua potência. Naquele dia a
música me suspendeu das práticas da rotina atribulada, capturada por projetos,
detalhamentos, caixa de e-mail cheia, ligações, prazos curtos, contas a pagar e
clientes, quando, o tempo parou, senti um golpe que me atingiu os sentidos, de uma
maneira difícil de explicar, e fez repensar diversos aspectos da vida cotidiana. Um
clique. Seguido de uma série de questionamentos.
A música, como obra de arte, tem esse poder. Ela atinge e descristaliza a
brutalidade aonde nos fechamos frente às práticas do cotidiano e nos faz alcançar
um estado de suspenção no qual nos damos conta de nossa humanidade.
A música sempre presente em minha casa, na minha infância e nos meus
interesses pegou-me, dessa vez, de surpresa. E por meio dela resolvi começar essa
viagem tão particular e alcançar meus objetivos de saber mais sobre a sociedade e
o espaço.
No começo pensei em trabalhar com Música Popular Brasileira, mas a
pesquisa foi me guiando para o estilo de música que lá atrás, naquela tarde
atarefada, tanto me mobilizou: o rap. Assim assumi com todo o apoio da minha
orientadora, professores e colegas com quem tanto aprendi durante esses dois
anos, por meio de leituras, debates e discussões, que iria trabalhar com o rap.
13

Mergulhando de cabeça em assuntos que envolvem o estilo musical, tão


comprometido e engajado, e que também envolvem minhas experiências como ser
social considero ter sido um prazer fazer este trabalho.
Hoje carrego um conhecimento um pouco maior do que quando entrei para o
mestrado. E os ouvidos mais apurados para o véu de que rapper Emicida cantou e
que tanto me sensibilizou:

Irmãos da comunidade, sonhadores iguais, sei do que estou falando/ Há um


véu entre as classes/ Entre as casas, entre os bancos/ há um véu, uma
cortina, um espanto/ tanto que para atravessar só rasgando/ atravessando a
parede/ a invisível parede/ apareçam no Palácio, na tela, nas janelas das
celebridades/ mas minha palavra não sou só eu, minha palavra é a cidade/
Mundão redondo/ capão redondo/ coração redondo, na ciranda da
solidariedade/ a rua é nóiz cumpadi/ quem vê só um lado do mundo, só
sabe um lado da verdade/ inventando o que somos/ minha mão no jogo eu
ponho/ Vivo do que componho, sou milionário do sonho.
(EMICIDA, 2013)
14

1. Introdução

As políticas urbanas neoliberais, adotadas há cerca de duas décadas no


Brasil, vêm sendo formuladas no âmbito de uma economia que afirma visões de
mundo, noções e imagens, as quais acompanham as ações de reestruturação
urbana. Mediante manipulação de imagens do real em suas dimensões simbólica,
política e territorial, por diversas vezes, situações urbanas ou acontecimentos
sobressaem ou são distorcidos, ocultando importantes processos, ações sociais e
espaciais que transformam as cidades (SÁNCHEZ, 2011). Tais processos são
construídos por meio de discursos operacionalizados por uma mídia hegemônica,
em seus diversos veículos e suportes.
Esses veículos e suportes são poderosas ferramentas para afirmação de
ideologias, como aponta Milton Santos: ―Como as atividades hegemônicas são, hoje,
todas elas, fundadas nessa técnica, o discurso aparece como algo capital na
produção da existência de todos. Essa imprescindibilidade de um discurso que
antecede a tudo - a começar pela própria técnica, a produção, o consumo e o poder
- abre a porta à ideologia.‖ (2008, p. 50)
O rap, enquanto produção artístico-musical com específica inscrição territorial
de classe foi escolhido, no presente trabalho, como suporte para desvendar disputas
e tensões territoriais bem como político-simbólicas, permitindo compreender, de um
modo complexo, a realidade da cidade e os efeitos das transformações urbanas nos
citadinos, moradores e trabalhadores de favelas e periferias da metrópole, numa
perspectiva vista de ―baixo para cima‖.
Desvendar os sentidos dessas narrativas e linguagens pode ser uma chave
interpretativa para reconhecer as diferentes ideologias e atores sociais que figuram e
coexistem na cidade, assim como perceber de que maneira eles vivenciam,
disputam e representam as mudanças relacionadas aos processos de intervenção
no espaço urbano, bem como as políticas de controle sócio territorial, que
acompanham os objetivos e estratégias das instituições de poder e de dominação.
Por detrás da ―cidade concebida‖, representada nos planos, nos ideários
urbanísticos e materializada nas grandes intervenções, encontra-se a ―cidade
vivida‖, produto do desenvolvimento desigual, latente nos dramas da vida cotidiana,
15

nas lutas urbanas, na resistência e também na festa e na simultaneidade, essência


da experiência urbana. Como aponta Lefebvre (2008, p. 109): ―a cidade constrói,
destaca, liberta a essência das relações sociais: a existência recíproca e a
manifestação das diferenças que vêm dos conflitos ou que levam aos conflitos‖.
Reconhecendo como um dos traços fundamentais do fenômeno urbano a
―centralidade‖ (LEFEBVRE, 1999), propõe-se aqui pensar, com o referido autor, o
direito à cidade como próximo ao direito à centralidade, direito a não ser posto à
margem da vida urbana. Quando esse direito é ameaçado, irrompem manifestações
culturais e políticas que evidenciam tensões e conflitos na luta pelo espaço. Nestes
casos, ―a separação e a segregação rompem a relação [...] a segregação complica e
destrói a complexidade‖ (LEFEBVRE, 1999, p. 124).
Como mencionado acima, o presente estudo propõe identificar disputas
simbólicas em torno às formas de representar a cidade, aquelas que orientam
leituras acerca da cidade. Busca-se o reconhecimento dessa forma específica de ler
a cidade pelas narrativas e inscrição territorial do rap. Procura-se uma aproximação
ao processo de produção do espaço urbano pela lente da cultura, escolhendo para
análise a cidade de São Paulo, considerada como berço deste estilo musical no
país, e ainda, que assenta a produção mais exponencial nos dias de hoje.
Procura-se confrontar a imagem da cidade de São Paulo como ―capital
multicultural e das oportunidades‖. Nesse sentido o trabalho buscará desafiar, por
meio das narrativas e linguagens do rap, uma aparente coesão e integração social
em torno a imagens fortes, imagens-síntese (SÁNCHEZ, 2010) produzidas por
promotores urbanos e coalizões políticas que apresentam projetos de cidades ditos
consensuais e competitivos e ainda sob um aparato de grupos de mídia que
trabalham no sentido de criar consensos e integrar simbolicamente a cidade sob o
manto das representações da tolerância e das possibilidades urbanas abertas a
todos.
Mas por quê a escolha do rap? Qual o lugar que ocupa como gênero para ser
tomado aqui como objeto de estudos e compreender formas de ler a cidade que
desafiem as retóricas da grande mídia e as narrativas oficiais? E, ao mesmo tempo,
como expressões culturais e políticas, revelam as contradições e as lutas sociais, a
16

resistência no cotidiano, a partir da condição territorial popular dos sujeitos nas


periferias e favelas?
Nos últimos anos o rap vem ganhando espaço na cena cultural brasileira.
Contudo, não é de agora que o gênero vem sendo produzido no país. O Rap, desde
sua origem, é o gênero musical da resistência e da luta social. Repente da vida real,
dele faz emergir uma cidade escamoteada pelo discurso dominante, revela a
posição do dominado e do lugar que ele ocupa na sociedade e na cidade – ―Favela
ainda é senzala Jão‖ - o rapper Emicida, em sua música acende a questão.
Os estudos sobre o rap e o movimento hip hop ganhou, nas duas últimas
décadas, maior atenção. Esses trabalhos e as preocupações acadêmicas com o rap
se intensificaram principalmente na virada do milênio nas áreas das ciências sociais,
história, psicologia, estudos culturais, comunicação, direito, entre outras.
Dessa forma, o presente trabalho procura contribuir na área dos estudos
urbanos reconhecendo qual cidade tem emergência pela lente que busca desvendar
narrativas e linguagens do rap, em contraponto à cidade que tem emergência e
afirmação pela classe dominante, pelo Estado e pelas coalizões de poder que
conformam as políticas urbanas. Busca-se uma leitura dos sentidos das narrativas e
linguagens musicais confrontadas ao discurso dominante acerca da cidade e a
relação entre cultura e sua inscrição territorial, de onde ela emerge e é reafirmada.
Opera-se, assim, um deslocamento de visões tradicionais sobre a cidade e busca-se
contribuir para a compreensão desse gênero musical que vem despertando atenção
na consciência coletiva.

1.1 Breves notas sobre método

Para a construção dos caminhos desta dissertação, foram utilizados


diferentes procedimentos metodológicos:
- Pesquisa, leitura e sistematização da bibliografia acerca dos temas
envolvidos na pesquisa: ―cultura, narrativas e território‖ e em temas de apoio
relacionados à contemporaneidade.
- Pesquisa discográfica, análise das letras, entrevistas, depoimentos,
documentários, observação em shows e eventos sobre o universo do rap;
17

- Reconhecimento da produção acadêmica existente sobre o tema;


- Pesquisa e coleta de informações e notícias veiculadas em jornais,
sites, redes sociais, que abordassem ou tangenciassem os assuntos estudados na
dissertação;
As reflexões sobre outras formas de leitura da cidade, que não a forma
produzida por coalizões hegemônicas, utilizando-se das letras de rap para entender
e aproximar-se dos processos complexos e contraditórios de produção e reinvenção
dos espaços urbanos, tornou-se também um exercício metodológico, que buscou
operar um deslocamento de visões tradicionais, desnaturalizando-as, ao se
aproximar da perspectiva e experiência do “outro” na cidade.
Para embasamento dessas reflexões propõe-se um diálogo com os seguintes
autores: Henri Lefebvre, Agnes Heller, Milton Santos, Pierre Bourdieu, Gramsci, Loïc
Wacquant, Rogério Haesbaert, Faranak Miraftab, Noam Chowsky, dentre outros.
A teoria de Henri Lefebvre é utilizada para compreensão da produção social
do espaço. Sua teoria dialética, desenvolvida com base em Hegel, Marx e
Nietzsche, busca entender o espaço a partir da tríade: espaço vivido, percebido e
concebido. No rap pulsam as dimensões do vivido e do percebido, já que a energia
propulsora para a criação da música vem do cotidiano desses atores sociais que se
encontram escanteados nas periferias das cidades.
Agnes Heller embasa a discussão sobre a vida cotidiana, parte inerente à
existência de todo e qualquer indivíduo. A cotidianidade consiste no espaço (social)
de suprimento das necessidades essenciais do indivíduo e, portanto, as atividades
cotidianas são basicamente determinadas por motivações de caráter particular. Por
sua vez, as atividades não-cotidianas são determinadas por motivações genéricas,
isto é, que aludem à universalidade do gênero humano e o elevam do seu estado de
ensimesmamento.
Rogério Haesbaert e Milton Santos embasam a discussão a partir dos
conceitos mobilizados de cultura, territorialidades e a relação entre cultura e sua
inscrição territorial, de onde ela emerge e a partir de onde é reafirmada.
Pierre Bourdieu e Gramsci contribuem com a discussão acerca do poder
simbólico, dos processos de diferenciação social, da crítica social do julgamento,
dos princípios de hierarquia e domínio social, bem como acerca da importância do
18

intelectual orgânico ao analisar a correspondência entre as práticas culturais e as


classes sociais.
Loïc Wacquant traz a discussão acerca da exclusão estrutural urbana e como
as estruturas políticas e do Estado atuam cumprindo um papel decisivo na
manutenção da pobreza, costurando cor, classe e localização espacial. Embasa a
discussão sobre os diferentes mecanismos causais e modalidades sociais que
condenam e marginalizam os pobres na cidade, desencadeando uma reflexão para
além das sociedades do "primeiro mundo".
Noam Chomsky traz fundamentos para o debate sobre mídia e mercado
hegemônico privado da informação, sobre as disputas de sentidos, domínio de
representação, política bem como as estratégias de manipulação na criação de
consensos e sentidos dos espaços, por meio das empresas de informação privadas.
Faranak Miraftab é referência na discussão sobre as práticas culturais e
políticas alternativas, os sujeitos insurgentes e os ―espaços inventados‖ por esses
grupos e atores sociais.
Como recorte de pesquisa e procedimento de método, cabe aqui esclarecer
que existem diversas correntes ou subdivisões dentro do rap brasileiro, mas o
presente trabalho busca analisar em especial o ―rap engajado‖, aquele que não
compactua ou convive de modo amistoso com a ordem instituída, a do capital. O
rap engajado recheia suas letras sobre a violência policial, o crime, o cotidiano de
inúmeras dificuldades e, de forma recorrente, a revolta para com a classe dominante
e o Estado. Nas letras de rap, a ―periferia‖ aparece como um espectro que abarca
todas as condições descritas acima. Dessa forma, a periferia representa um
conjunto de condições maior, superando a mera referência geográfica.

2. Sobre o Rap

Há pelo menos trinta anos o Rap vem ecoando, nos locais de moradias
periféricas, o cotidiano violento vivenciado nesses lugares. O Rap é música urbana e
tem a cidade como centro das suas observações, percepções, representações e,
portanto, construção de suas narrativas. Da cidade nascem as contradições que
19

inspiram os artistas na criação das letras e rimas, sempre muito ligadas às críticas
sociais, à polícia e à ácida interpelação das políticas do Estado e da classe
dominante. Sua expressão artística ultrapassa aparências e se atira sobre a
essência da cidade.
No primeiro capítulo é apresentado um breve panorama sobre a origem do
rap e sua difusão no Brasil, mostrando como o gênero ganhou espaço nas periferias
estadunidenses e, posteriormente, nas periferias dos estados brasileiros e a sua
consolidação mais efetiva na cidade de São Paulo.
Desde sua origem, nos bairros mais pobres de Nova York até sua
disseminação nas periferias dos estados brasileiros, o Rap é expressão artística
produzida pela população negra, pobre e periférica e consumida por essa mesma
população. Por isso, o Rap, de forma geral, tem uma inscrição social, territorial e
racial bem ―clara‖ (ou ―negra‖, entendendo que o emprego da palavra seja positivo
para essa e outras definições). E por esse aspecto, tão peculiar, até muito pouco
tempo foi marginalizado e retaliado pelas classes dominantes, meios de
comunicação de grande circulação e pelo Estado. Excluídos do sistema fonográfico
dominante, gravadoras não financiavam os artistas e tampouco estes se
apresentavam em espaços para além da periferia e com audiência mais central.
Marginalizados, artistas e suas músicas, não tinham qualquer espaço na cena
cultural de grande circulação. Os rappers não eram reconhecidos para além da
periferia e durante anos fortaleceram sua musculatura criativa e empoderadora
dentro das próprias comunidades onde eram nascidos e criados, estabelecendo uma
ruptura junto ao mercado hegemônico quando se afirmavam por meio de uma
produção alternativa1.

1
―Como prática cultural, a música é expressão de forças localizadas na estrutura social. Porém, ao
afirmarmos a filiação de um determinado gênero musical a um segmento social específico, não
estamos negando que o mesmo seja consumido como produto por outras parcelas da sociedade ou
que seja apropriado, produzido e redefinido em outros termos. A história do blues,do jazz, do samba
indica que esses gêneros foram relidos e reinterpretados por outros segmentos.‖ (SILVA, 1988, p. 19)
20

2.1 Algumas notas sobre a origem do rap

Para uma primeira aproximação à sua gênese, é necessário esclarecer que o


rap compõe um dos cinco pilares de um movimento maior chamado hip hop. Hip hop
é um movimento cultural que surgiu no final dos anos sessenta, nas comunidades
afro-americanas e latinas da cidade de Nova Iorque, mais especificamente no Bronx2
-
bairro que a partir da década de 1950, após sofrer sucessivos incêndios e
abandono de seus habitantes e das políticas públicas, tornou-se decadente e
passou a abrigar negros e latinos (afro-americanos e imigrantes afro-caribenhos,
porto-riquenhos etc.), os quais foram capazes de arrendar apartamentos ou comprar
casas em cooperativas outrora inacessíveis, em novos complexos de habitação
social subsidiada e em edifícios de apartamentos e casas deixadas livres por
brancos. (NAISON, 2010, p. 223)
Já no seu início, o DJ Afrika Bambaataa3, visto como o criador oficial do
movimento, estabeleceu os quatro pilares essenciais da cultura hip hop: o DJ (disc-
jockey), o MC ou rapper (responsável por cantar o rap), o Break (dança) e o Graffiti
(expressão plástica). Acrescidos de um quinto pilar, o conhecimento, esses são
seguidos até hoje pelos participantes do movimento. Neste trabalho, irei me deter no
rap e, inevitavelmente, no conhecimento ligado ao movimento e expresso nas letras
de música.

Os cinco elementos completam-se e influenciam-se, mas podem manifestar-


se de forma independente, a partir de interações as mais diversas. É
possível, por exemplo, que antes de um show de rap aconteçam
apresentações de gangues (equipes) de break, e grafiteiros exercitem suas
habilidades nas paredes do local, sem que seja necessário, porém, que
todos os elementos aconteçam ao mesmo tempo. Apesar de independentes
uns dos outros, os rappers, DJs, grafiteiros e bboys (dançarinos de break)
se sentem irmanados, e alguns deles podem desempenhar mais de uma
função. (ZENI, 2004, p. 230)

2
O Bronx é um bairro da cidade (região norte) de Nova Iorque que conta, nos dias atuais (2010), com
uma população de aproximadamente 1,5 milhões de pessoas e é uma das localidades mais
populosas dos Estados Unidos. Da população do Bronx, cerca de 50% dos seus habitantes são
latinos, 33% são negros e 14% são brancos. Os restantes são formados por asiáticos e de outras
etnias.
3
Nome artístico do estadunidense Kevin Donovan.
21

Desde que apareceu nas áreas empobrecidas de Nova York, o hip-hop tem
se caracterizado pela luta. Essas áreas enfrentavam diversos problemas sociais,
como pobreza, violência, racismo, tráfico de drogas, infraestrutura e educação
inadequadas.

Talvez por isso, os jovens dessas localidades encontravam na rua o único


espaço de lazer. Frequentemente, esses mesmos jovens compunham
gangues, as quais se confrontavam de maneira violenta na luta pelo
domínio territorial. Na realidade, as gangues funcionavam como um sistema
opressor dentro das próprias comunidades pobres, isto é, quem fazia parte
de alguma gangue ou quem estava de fora, precisava respeitar e, no limite,
seguir os territórios e as regras impostas pelos mesmos que compunham as
gangues, as quais se confrontavam de maneira violenta na luta pelo
domínio territorial. (SILVA, 2012, p. 29)

Em seu Livro The Hip Hop Wars, a pesquisadora estadunidense Tricia Rose
associa o aparecimento dessas gangues com a reestruturação socioeconômica do
sistema capitalista e o aumento do desemprego estrutural na segunda metade do
século XX:

As condições da sociedade pós-industrial tiveram um impacto profundo


sobre as comunidades negras e hispânicas. A redução dos fundos federais
e da oferta de habitação a preços acessíveis deslocou a mão-de-obra da
produção industrial para serviços corporativos e de informação, além de ter
desgastado os modelos locais de comunicação. Isso significou que a nova
população imigrante e os habitantes mais pobres das cidades pagaram um
preço altíssimo pela ―desindustrialização‖ e pela reestruturação da
economia. Essas comunidades ficaram entregues aos ―donos das favelas‖,
aos desenvolvimentistas, aos refúgios dos traficantes, aos centros de
reabilitação de viciados, aos crimes violentos, às hipotecas e aos serviços
municipais e de transporte inadequados. (ROSE, 2008, p. 199)

Segundo Tricia Rose (1997), as características socioeconômicas das cidades


que mudaram de ex-polos industriais para pós-industriais, afetou mais diretamente
os grupos de jovens. Essa mudança implicou diretamente na obsolescência de
várias atividades profissionais e na paisagem urbana. Para os jovens, a redução do
emprego foi um problema difícil, porque eles não podiam ficar ociosos e inertes.
Loïc Wacquant em seu livro ―Os Condenados da Cidade‖ eleva a discussão
sobre a situação do gueto afro-norte-americano quando o classificou como
institucional dentro das novas configurações de destituição urbana da
desindustrialização. Esclarece que depois dos anos 1960, ao seguir com uma
reorganização do regime racial, da economia e da constituição política, os Estados
Unidos mais integrou do que separou os papéis do mercado de trabalho, da raça e
22

do Estado. A consequência dessa reorientação surgiu no regime pós-fordista com a


desarticulação do Estado do Bem-Estar social, ou seja, pôs à prova uma
marginalidade avançada, quando a relação com os segmentos da classe
trabalhadora e das categorias etnorracias os colocou dominados e habitando as
regiões mais inferiores do espaço físico e social. (WACQUANT, 2005, p. 8)
A questão exposta por Rose e Wacquant foi enfrentada pelos jovens
periferizados no plano da arte e da reapropriação das ruas e espaços públicos, que
também se encontravam em situação de abandono e precariedade. O termo que,
então, seria dado para o movimento - hip hop - está associado a uma resposta
àquela situação: a tradução de hip significa o movimento de ―saltar‖ e hop o
movimento dos quadris. A ideia era de que ―se ficassem parados estariam perdidos‖,
ou seja, seriam engolidos pelas transformações sociais, econômicas e políticas. As
novas gerações de excluídos, ao buscar saídas artísticas, criaram um movimento
que, a partir das ruas, teve impacto em diferentes planos.
Muitos desses bairros eram habitados por imigrantes do Caribe, vindos
principalmente da Jamaica, nação de língua inglesa. Eles introduziram as grandes
festas populares em grandes galpões, com a prática de ter um MC, que subia no
palco junto ao DJ e animava o público, gritando e encorajando com palavras
rimadas, até que foi se formando o rap.
A origem do Rap, acrônimo para rhyme and poetry (rima e poesia), um dos
elementos que compõem o movimento Hip Hop, e no qual vou me ater neste
trabalho, vem da Jamaica, mais ou menos na década de 1960 quando surgiram os
sistemas de som que eram colocados nas ruas dos guetos jamaicanos para animar
bailes. Na capital Kingston era comum a realização de festas de rua com
equipamentos sonoros ou carros de som potentes chamados de Sound System.
Essas festas serviam de fundo para o discurso dos "toasters", mestres de cerimônia
que comentavam, nas suas intervenções, assuntos como a violência das favelas de
Kingston e a situação política da Ilha, sem deixar de falar de temas mais polêmicos,
como sexo e drogas. No início da década de 1970 muitos jovens jamaicanos
migraram para os Estados Unidos, devido a uma crise econômica e social que se
abateu sobre a ilha. Os Sound Systems foram levados para o bairro, em especial,
23

pelo DJ jamaicano Kool Herc4, que introduziu em Nova Iorque o toast – modo de
cantar caracterizado por frases longas e rimas – e a tradição dos sistemas de som
foram se aprimorando em técnica e tecnologia, se espalhando e popularizando entre
as classes mais pobres do Bronx. Nos Estados Unidos, a base do reggae, estilo
musical comum na Jamaica, foi substituída por uma batida tirada do funk e extraída
da utilização de dois discos idênticos dos quais era aproveitada apenas a parte
instrumental da música. Essas seriam as bases fundantes para o aparecimento do
MC/rapper e o seu estilo musical: o rap.5

Enquanto acontecia a febre nas pistas das discotecas, nas ruas do Bronx, o
gueto negro/caribenho localizado na parte norte da cidade de Nova York,
fora da ilha de Manhattan, já estava sendo arquitetada a próxima reação da
―autenticidade‖ black. No final dos anos 60, um disk-jockey chamado Kool
Herc trouxe da Jamaica para o Bronx a técnica dos famosos sound systems
de Kingston. (VIANNA, 1988., p. 20-21)

E neste cenário de disputas territoriais, que os precursores do hip hop, como


os DJs Kool Herc, Afrika Bambaataa, Grandmaster Flash e outros começam a
organizar as Block Parties6, onde os membros das tradicionais gangues
encontraram, nessa nova forma de manifestação cultural, uma maneira de canalizar
a violência, no plano da arte, em que viviam submersos, e passam a frequentar as
festas para dançar break e cantar palavras de ordem que expressavam o
descontentamento com aquela situação socioeconômica.

As festas em praça pública ou em edifícios abandonados reuniam em torno


de 500 pessoas. Em setembro de 76, num local chamado The Audubon,
Grandmaster Flash organizou um baile para 3 mil pessoas. Essa foi a festa
que reuniu o maior número de dançarinos antes que o hip hop se tornasse
conhecido fora de Nova York. (VIANNA, 1988., p. 21)

4
Nome artístico de Clive Campbell. Clive migrou da Jamaica para o Estados Unidos aos 12 anos de
idade.
5
Para alguns estudiosos, o surgimento do estilo musical rap estaria associado à matriz africana,
quando os gritos , canções de trabalho e hinos religiosos (spiritual) eram expressos entre os negros.
Por conseguinte, na década de sessenta, James Brown, principal represente do soul, cantava ―Say it
loud: Im black and proud!‖ (―Diga alto: sou negro e orgulhoso!‖), frase de Steve Biko, líder sul-
africano. Comumente, tudo que os negros estadunidenses passavam era expresso em suas canções.
E como esses estavam cada vez mais conscientes socialmente, devido a toda a luta política, cada
vez mais cantavam ideias de mudança de atitude, valorização da cultura negra, revolta contra os
opressores, ou seja, o questionamento do status quo (PIMENTEL, 1997)
6
Em tradução livre, Block Party significa Festa do Bloco. Na realidade, festa em que membros de um
bairro reúnem-se para observar um acontecimento de alguma importância ou simplesmente por
prazer mútuo. Normalmente, os agitadores culturais fechavam todo um quarteirão da cidade para o
tráfego de veículos e, nesse ambiente, transformavam as ruas em verdadeiras discotecas. Ver:
PIMENTEL, 1997
24

O documentário Hip Hop Evolution (2016) mostra a trajetória do hip hop


americano e como principalmente Afrika Bambaataa trouxe consciência social ao
movimento. Enquanto Kool Herc e Grandmaster Flash criavam inovações e
trabalhavam no aperfeiçoamento das técnicas e tecnologias de mixagem, fazendo
nascer uma nova e autêntica estética sonora, Bambaataa quem se destaca não só
pela parte artística, mas pela liderança que passa por sua fala e pela postura,
formando o movimento, propriamente dito.
Bambaataa, um sujeito de alto poder simbólico e circulatório, conseguiu reunir
diferentes gangues de diferentes territórios, em torno de um mesmo projeto, o Zulu
Nation, num momento de muita violência entre grupos rivais. O Zulu Nation trouxe o
conhecimento ao movimento, isto é, conhecimento crítico do mundo, da cultura afro,
dos valores da sociedade para formar uma identidade e uma consciência étnica e de
cidadania nas pessoas, especialmente naquele contingente populacional negro e
pobre. Da formação do projeto Zulu Nation consolida-se o movimento hip hop. A
conformação do Zulu Nation tem grande proximidade com as ―posses” criadas na
década 90 nas periferias de São Paulo.
Desde o início o movimento mostrou-se politizado. Propunha-se enfrentar os
problemas dos jovens moradores dos bairros pobres, que sofriam com um cotidiano
violento. Os atores mais engajados ao movimento começaram a organizar ―batalhas‖
não violentas entre as gangues de diferentes territórios, com objetivo pacificador. As
batalhas consistiam em competições artísticas de dança, raps ―freestyle”7 e grafite.
Era uma forma de extravasar a pressão que sofriam e de unir o bairro: ―queria criar
guerreiros na comunidade em vez de destruidores‖ (Baambata, ao documentário)8.
Relaciona-se também o engajamento dos jovens ao hip hop e surgimento de
novos rappers ao momento histórico e político nos Estados Unidos. Organizações
como Black Panthers, Nation of Islan e Young Lords Party exerceram forte influência
entre os jovens negros, apontando para a necessidade de uma organização e
consciência social, da dedicação aos estudos e do conhecimento das leis jurídicas.

7
O Freestyle, nome em inglês que significa estilo livre, é um gênero musical nascido nos Estados
Unidos nos anos 1980. Se assemelha ao ―repente‖ nordestino. Exige destreza e rapidez para
formação das rimas. A fala cantada é feita por dois rappers de forma alternada de modo a
estabelecer um desafio rimado entre as partes.
8
Hip Hop Evolution é uma série documental dividida em quatro partes que procura explorar os
primeiros 20 anos da cultura hip hop. Criação: Darby Wheeler, Scot McFadyen, Sam Dunn.
25

―Para os negros dos EUA, os anos sessenta não eram de rock‗n‗roll: nos guetos, o
que se ouvia era o soul, naquele tempo importantíssimo para a consciência do povo
preto. ‖ (PIMENTEL, 1997, p. 4)
O DJ Kool Herc, desenvolveu o break-beat (quebrar a batida), que consiste
em uma batida em cima de composições já existentes, essa prática possibilitou que
os b.boys dançassem e os MC‗s cantassem.

Herc não se limitava a tocar os discos, mas usava o aparelho de mixagem


para construir novas músicas. Alguns jovens admiradores de Kool Herc
desenvolveram as técnicas do mestre. Grandmaster Flash, talvez o mais
talentoso dos discípulos do DJ jamaicano, criou o ―scratch‖, ou seja, a
utilização da agulha dos toca-discos, arranhando o vinil em sentido anti-
horário, como instrumento musical. Além disso, Flash entregava um
microfone para que os dançarinos pudessem improvisar discursos
acompanhando o ritmo da música, uma espécie de repente-eletrônico que
ficou conhecido como rap. Os ―repentistas‖ são chamados de rappers ou
MC, isto é, masters of cerimony. (VIANNA, 1988., p. 21)

Da combinação das rimas faladas dos "toasters" jamaicanos, com as técnicas


de mídia, discos, toca-discos, amplificadores e aparelhos de mixagem,
desenvolvidas pelos Djs e as mensagens engajadas do movimento hip hop, nasceu
o rap.
Nesse contexto, influenciados pela luta do movimento negro em busca da
igualdade pelos direitos civis, surge, herdeiro do soul e do funk (já apropriado por
classes mais abastadas e cooptado pelo mercado) um estilo musical que tem como
principal figura o MC/rapper. ―O rap é filho do funk, neto do soul, bisneto do spiritual
e do blues... Irmão do rock. Primo do reggae, do samba, do maracatu, da embolada‖
(PIMENTEL, 1997, p. 21)

Portanto, o MC/rapper e o seu estilo musical, o rap, são herdeiros de uma


tradição da cultura de luta e resistência que se propagou para o mundo a
partir da diáspora africana e imigração latina. Do final do século XVIII ao
alvorecer do século XX, a música dos afrodescendentes e latinos tem sido
utilizada como um importante elemento aglutinador da cultura negro-mestiça
nas Américas. Ela difundiu hábitos, preservou tradições e consolidou
costumes. Dos works songs aos spirituals, do blues ao jazz, do soul ao funk,
do samba ao rap, em maior ou menor escala, cada um desses estilos
musicais constituiu uma base de resistência às hostilidades que os negros,
latinos e pobres sofreram longe de suas terras natais. (SOUSA, 2009)

A partir do Bronx, experiências diferenciadas que tinham em comum a


reapropriação do espaço urbano por meio da arte somaram-se no sentido da
construção de um movimento cultural integrado, o hip hop.
26

O rap (dentro do movimento hip hop) promoveu a integração e transformou-se


em um sistema orientador das atitudes juvenis, pois possibilitou a reelaboração da
identidade de forma positiva em meio à desagregação das antigas instituições de
apoio e conflitos postos pelas transformações urbanas. Enquanto expressão das
ruas, o rap se apoiou na rede de vizinhança, grupos de amigos e nas festas de rua.
Encontrava-se imerso na experiência local e ao mesmo tempo global, pois exportou
para periferias do mundo todo muitas de suas práticas.

2.2 Difusão do rap na cidade de São Paulo

Gêneros como rap, funk, soul, rock and roll não eram mais apenas
expressões de "outros", mas faziam parte da realidade local, quando independente
do idioma e da área geográfica, a música foi instrumentalizada como meio de
aproximar as experiências dos jovens de várias partes do mundo.
No final dos anos 70 o movimento hip hop já havia se consolidado no EUA.
Os primeiros discos de rap já tinham alcançado parcelas expressivas em todo o
mundo para além dos limites do gueto nova iorquino. Por meio da indústria
fonográfica, o movimento chegou ao Brasil através dos meios de comunicação de
massa, das importadoras de discos e das casas noturnas da periferia. (Vianna,
1988)
O som associado à imagem dos videoclipes possibilitou uma nova forma de
comunicação entre os jovens localizados em diferentes metrópoles mundiais. Mas
este processo não se refere apenas à dimensão simbólica. As práticas culturais
juvenis também orientam comportamentos, hábitos e atitudes face à realidade local.
O rap, originalmente produzido no Bronx, ao transformar-se em linguagem
internacionalizada, possibilita aos jovens de outros contextos questionar as formas
de opressão que os atingem (SILVA, 1988). Embora sejam expressões indicativas
de processos culturais globais, localizados nas metrópoles de diferentes países
industrializados, as manifestações juvenis adquirem contornos particulares. Por isso,
o rap interessa no seu caráter mais específico, isto é, a forma como os jovens
negros e pobres nos bairros periféricos apropriam-se dessa prática musical e
27

promovem criticamente a leitura da realidade vivida na cidade. O rap revela-se com


uma entrada poético-musical em um universo marcado pela experiência difícil da
distinção de classe e da exclusão social.
No Brasil, o rap teve sua produção assentada no tempo em que acentuadas
transformações entraram em curso e culminaram na consolidação das ideias e
práticas neoliberais, reestruturando as esferas sociais, econômica, política e cultural
como um todo.

―Menores carentes se tornam delinquentes


E ninguém nada faz pelo futuro dessa gente
A saída é essa vida bandida que levam
Roubando, matando, morrendo
Entre si se acabando
Enquanto homens de poder fingem não ver
Não querem saber
Faz o que bem entender
E assim... aumenta a violência
Não somos nós os culpados dessa consequência?‖.
(Trecho da canção Tempos Difíceis, composta por EDI ROCK e KL JAY,
interpretada pelo grupo de rap paulistano RACIONAIS MC‘S e lançada em
seu álbum Holocausto Urbano (1990).

No trecho da canção ―Tempos Difíceis‖ o compositor Edi Rock chama atenção


para os problemas sociais que os ―manos‖ estavam enfrentando: ―se algo não
fizermos, estaremos acabados‖. Trata-se de uma manifestação social e cultural que
representa uma realidade, produz um discurso contestador, tem consciência do
social e do comunitário e que convive com tensões que ocorrem: ―Enquanto os
poderosos fingem não ver, a saída é essa vida bandida que levam/roubando,
matando, morrendo/entre si se acabando‖.
A cidade de São Paulo é considerada o berço do hip hop no Brasil, isto é, na
qual o movimento surgiu com força nos anos oitenta, dos tradicionais encontros na
Rua 24 de Maio e no Metrô São Bento, de onde saíram muitos artistas reconhecidos
como Thaíde, DJ Hum, Racionais MC's, Rappin‗Hood, etc. O número expressivo de
grupos de rap, a produção de discos, as gravadoras independentes, as posses, e as
rádios comunitárias, fizeram do rap de São Paulo uma referência nacional.
Acerca dessa particularidade, a psicanalista Maria Rita Kehl (1999) afirma
que, possivelmente, a difusão do hip hop em São Paulo possa estar associada à
opressão e desigualdade existentes na capital paulista: ―disto que nasceu na
periferia de algumas cidades americanas como rhythm and poetry e se espalhou
28

pelo Brasil, partindo de São Paulo, é claro: a mais opressiva das cidades
brasileiras.‖ (p.95).
Dentre os elementos do movimento hip-hop, o rap se consolidou como o mais
expressivo em São Paulo. Nas comunidades periféricas, o rap não era usado
apenas como um estilo e gênero musical, mas também como uma "autoconsciência"
do processo social em curso. Em um momento de rápidas mudanças refletidas na
divisão das instituições familiares, violência urbana, desemprego e crise do sistema
público de ensino, o rap se manifesta como forma de entretenimento e,
politicamente, se manifestou como sistema de orientação ao processo social por
meio do qual os jovens se orientavam.
Desde seu ―nascimento‖ na cidade de São Paulo o movimento hip-hop
atravessou diferentes momentos. Esses momentos possuem uma íntima relação
com os fenômenos e processos de segregação urbana desencadeados no final da
década de 1980 (SILVA, 2011).
Em meados da década de 1980, mais precisamente na hora do almoço, as
ruas do centro da cidade começavam a ser ocupadas pelos breakers. Eles vinham
de diferentes lugares da periferia de São Paulo. A maioria das pessoas usava o
tempo de descanso para dar vazão à expressão artística. Os sons que apareciam na
música daquele período expressavam a centralidade da vida pública na metrópole.
Entre outros recursos, os artistas costumavam usar latas de lixo para fazer sons, que
são facilmente eram descartados e desmobilizados quando a polícia chega.
No começo o conteúdo dos raps registra, especialmente, experiências
cotidianas familiares ao centro da cidade e seus personagens aparecem como
principal foco dos músicos. Tratava-se de um universo peculiar aos jovens que
trabalhavam como office-boys ou que pertenciam a uma gangue de break (SILVA,
2011). A letra Centro da Cidade é exemplar:

Centenas de pessoas procurando um emprego


Se elas não acharem continua o pesadelo
Hare Krishna pregando o seu ponto de vista
Crente sua bíblia falando de uma vida
Shows eu vejo em plena praça pública
Tem também no centro a Praça da República
Punk, dark, roqueiro e função
Centro da cidade é um grande coração
Vejo tudo isso e fico sem dizer
29

Mas aqui estou de volta para agradecer


Centro da cidade a você eu devo muito
Vejo tudo isso e fico sem dizer,
Mas aqui estou de volta para agradecer
Faz parte da minha vida não esqueço um só segundo
Jack é meu nome e você vai lembrar
São Paulo não te troco por qualquer lugar

Nas décadas seguintes ocorreu o deslocamento do hip-hop e da produção do


rap em direção aos bairros periféricos. Uma nova modalidade de segregação
urbana, marcada pelo recolhimento das elites em enclaves fortificados e a
transformação dos bairros periféricos em ―zonas de guerra‖, controladas pela
ostensiva violência policial. Os rappers assumem nesse instante a posição de
cronistas de uma realidade urbana violenta, segregada e silenciada.
As novas produções culturais acontecem vinculadas às posses9, instituições
localizadas nas periferias. Trata-se neste caso de uma organização autônoma
orientada para o desenvolvimento dos elementos característicos do movimento hip-
hop e intervenção política no plano mais imediato. Integrados por rappers, breakers
e grafiteiros, estes coletivos se tornaram fundamentais para o aprendizado artístico.
Os jovens registram suas concepções, explicitam a forma como apreendem,
experimentam e reagem à segregação urbana.
O deslocamento do hip-hop e do rap em direção à periferia, as narrativas
sobre esta mesma realidade, a elaboração de novas práticas culturais, como as
posses, relacionam-se diretamente com as novas condições de vida enfrentadas
pelos jovens periféricos, de maioria negra, na cidade.

A identidade no hip-hop está profundamente enraizada no específico e na


experiência local, no apego a um grupo local ou família alternativa. As crews
são uma espécie de família forjada a partir de um vínculo intercultural que, a
exemplo da formação das gangues, promovem isolamento e apoio em um
ambiente complexo e funcionam como base para os novos movimentos
sociais. (ROSE, 1994, p. 34)

As transformações mais gerais que atingiram a vida urbana sempre foram


tematizadas pelos rappers em outros contextos, inclusive o movimento hip hop
estruturou-se inicialmente como uma alternativa no plano da cultura às novas

9
Antes de se aventurarem nos eventos públicos, os jovens apresentavam suas músicas no circuito intimista das
posses, ou seja, as veiculavam entre os “manos”. Exatamente por valorizar a filiação dos indivíduos ao grupo,
os pesquisadores do movimento hip-hop concluíram que as posses ou crews constituíram-se como respostas
aos processos sociais desagregadores, postos em prática pelas novas condições da vida urbana.
30

realidades colocadas pela metrópole nova-iorquina. Em São Paulo não foi diferente,
desde o disco Hip Hop Cultura de Rua (Eldorado, 1988) a vida na cidade foi
incorporada como um dos principais temas das músicas. Tratava-se inicialmente de
narrar experiências que estavam se desenvolvendo no centro urbano. A partir dos
anos 90, as coletâneas e os álbuns solos voltaram-se de forma direta para o
cotidiano dos bairros periféricos. Problemas relacionados à violência policial, às
drogas, ao preconceito racial passaram a ser tematizados e referenciados na
experiência direta dos rappers.
Apesar das infuências norte-americanas, o hip hop e o rap adquiriram
contornos locais face às transformações urbanas. A segregação socioespacial, o
desemprego, a violência policial, o preconceito e as diferentes formas de exclusão
que atingem os jovens paulistanos nesta década relacionam-se com aspectos
socioeconômicos mais amplos de reestruturação da metrópole paulistana. Neste
momento, o rap registra o apartheid social que acontecia na cidade. Através de
categorias próprias, as músicas têm se fixado em questões relativas à segregação
socioespacial. Registram inclusive as implicações territoriais da desigualdade social:
do processo de fortificação urbana que separa a elite em condomínios fechados e as
classes populares nas periferias carentes de infraestrutura. A exemplo:

Olha só aquele clube que da hora


Olha aquela quadra
Olha aquele campo, olha
Olha quanta gente
Tem sorveteria cinema piscina quente
Olha quanto boy
Olha quanta mina
Afoga esta vaca dentro da piscina
Tem corrida de kart dá prá vê
É igualzinha ao que eu vi ontem na TV
Olha só aquele clube que da hora
Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora
Nem se lembra do dinheiro que tem que levar
Do seu pai bem louco gritando dentro do bar
Nem se lembra de ontem
De hoje e o futuro?
Ele apenas sonha através do muro
(Trecho da mpusica: Fim de Semana no Parque, Racionais MC´s, 1993,
grifos nossos).

Em meados da década de 1990, um novo padrão de segregação


socioespacial tornou-se hegemônico na metrópole de São Paulo. Os autores e
31

atores sociais do rap, do grupo Racionais MC‘s, fazem o registro a partir da sua
perspectiva (de quem se encontra do lado de fora) desse momento em que os
muros dos condomínios das classes média e alta começam a subir como febre nas
áreas nobres, delimitando fronteiras físicas e sociais na cidade. É possível perceber
ainda a falta de perspectiva de quem mora na periferia e os problemas causados
pela apartação social e racial. O processo de erguimento de muros e a fortificação
da cidade resultaram, entre outras consequências, no esvaziamento da vida cultural
no centro urbano e no aprofundamento da vida cotidiana da periferia.
O desenvolvimento do rap apresenta íntimas relações com o surgimento
dessa nova modalidade de segregação urbana, desde sua emergência no centro
urbano, em meados dos anos 80, ainda muito voltado para expressão corporal do
break e sem todo seu potencial crítico e engajado desenvolvido, à sua inscrição na
periferia, em meados dos anos 90.
A explicação que se dá para o rap ter se desenvolvido mais expressivamente
nas periferias de São Paulo do que em qualquer outra periferia do país é dada pelo
pesquisador Rafael Lopes Sousa (2009):

Três fatores contribuíram decisivamente para o desenvolvimento dessa


insubordinação na periferia da cidade de São Paulo. O primeiro está
relacionado com a pouca oportunidade que os jovens, principalmente os
jovens suburbanos, encontraram a partir da década de 1980, para
integrarem-se no mercado de trabalho. O segundo fator está diretamente
associado ao primeiro, ou seja, à medida que são distanciados do mundo
do trabalho e das oportunidades que ele reserva, os jovens reagem e
respondem, por exemplo, com um crescente desinteresse pelos estudos, –
―estudar pra que se não há trabalho‖ (Pedro Chamusca do grupo de Break
Jamaika Show) – e pela instituição escolar. Estabelecem, com esse
posicionamento, uma relação pragmática com os estudos e com outras
instâncias do conhecimento formal. Em outras palavras, a escola perde o
status privilegiado de ser a principal fonte de conhecimento e oportunidades
de emancipação para a vida dos jovens da periferia. Num terceiro plano,
encontra-se o aumento da desconfiança dos pobres na imparcialidade e
infalibilidade da Justiça. (p. 82-3)

A reflexão desenvolvida por Wacquant evidencia que a trajetória de


reestruturação econômica, e os seus impactos na sociedade se diferenciam em
razão das matrizes históricas sob as quais em cada região (ou país) se deram a
formação das classes, do Estado e da hierarquia social. A análise das semelhanças
e diferenças entre os periferizados no Rio de Janeiro e São Paulo é contestada, por
32

exemplo, quando vista apenas como resultado socioterritorial da globalização


econômica:

Uma favela brasileira pode ser muito semelhante a um gueto negro norte-
americano quando comparamos as suas respectivas condições
sociodemográficas, pois ambos são territórios de concentração de camadas
pobres com forte presença de segmentos não-brancos, jovens e velhos, de
alta taxas de desemprego, especialmente entre os jovens, de família
chefiadas por mulheres etc. Quando comparamos, porém, os lugares
ocupados por uma e outro em seus respectivos espaços sociais,
verificamos a existência de fortes diferenças. Em primeiro lugar, o termo
"favela", embora pretenda descrever uma situação socialmente homogênea,
esconde fortes diferenças quanto ao papel dos territórios pobres na
economia e na sociedade das grandes cidades brasileiras. O vocabulário
favela e seus congêneres (vilas, palafitas etc.) nem sempre exprimem
posições sociais semelhantes na hierarquia socioespacial brasileira. As
favelas na cidade de São Paulo, por exemplo, constituem uma posição
hierarquicamente mais inferior do que no caso do Rio de Janeiro. (p.
15, grifos nossos)

Desse fato se pode entender que a exclusão social em São Paulo é mais
declarada, pois a diferenciação entre as classes no espaço também o é. Além da
hierarquia social, outra grande diferença colocada pelo autor é a relação dos
territórios da pobreza com o conjunto metropolitano. Trazendo essa reflexão para os
casos de São Paulo e Rio de Janeiro, as duas cidades de maior PIB do Brasil, os
"favelados" apresentam diferentes graus de isolamento social. Estão inseridos na
divisão social do trabalho, embora em posições marginais, mantendo relações de
troca com o mundo social exterior. No Rio de Janeiro a sua grande maioria trabalha
fora da favela e consome fora delas. Além disso, no caso da cidade do Rio de
Janeiro, as favelas se encontram localizadas muito próximas do tecido
metropolitano.

A conexão da favela com a sociedade, ainda que subalterna, permite ao seu


morador experimentar a alteridade. Por outro lado, se a favela é
majoritariamente preta e parda, nem todos os pretos e pardos pobres estão
nas favelas, o que dá ao ―favelado‖ (em certa medida) a oportunidade de
escapar da estigmatização e circular no espaço social sem portar insígnias
da desqualificação social. (WACQUANT, 2005, p. 15)

Em São Paulo, ao contrário, a população negra e parda está distribuída de


forma mais apartada no território, aumentando a distância e a separação social. A
segregação urbana evidencia vulnerabilidades sociais a que está submetida a
população das regiões periféricas da cidade, como falta de acesso a água,
saneamento básico e menor acesso a saúde, educação, ao emprego formal assim
33

como maior índice de violência. Variáveis que, juntas, criam um ambiente


desfavorável para quem está fora dos grandes centros da cidade10.

Figura 1: Porcentagem da População Por Raça/Cor. Disponível em


http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-2017.pdf. Acesso: 20/11/17

Figura 2: Empregos Formais em São Paulo. Disponível em


http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-2017.pdf. Acesso:
20/11/17

10
http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-2017.pdf
34

Os indicadores sociais expõem desigualdades étnico-raciais uma vez que há


maior presença da população negra e parda nas áreas periféricas, regiões que
apresentam os piores índices e têm menor oferta de empregos formais. Nos
extremos Sul e Leste da cidade, essa população chega a representar mais de 50%
dos moradores. É preciso entender que se os negros e pobres estão nas periferias
não por mero acaso, e sim como resultado da política do Estado e os mecanismos
utilizados por ela e pela classe dominante para manter a imobilidade social e física
dessa parte da população na cidade.
O colapso das instituições públicas resultante das políticas estatais de
abandono urbano e repressão punitiva do proletariado negro/pardo emerge como
manutenção das disparidades e causa (não o efeito) mais importante para
continuação de uma severa segregação e marginalidade entrincheirada na cidade
de São Paulo. Dessa forma, se rompe com a ideia pelos administradores públicos,
com ostensivo apoio da mídia, de ―desorganização‖, ―má gestão das verbas‖ etc. Vê-
se uma concepção institucionalista da favela/periferia como uma concatenação
histórica determinada e espacialmente estabelecida de mecanismos de controle
etnorracial.

Figura 3: Homicídio Juvenil em São Paulo. Disponível em


http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-2017.pdf. Acesso:
20/11/17
35

Figura 4: Porcentual da População Urbana que Reside em Favelas. Disponível em


http://www.nossasaopaulo.org.br/portal/arquivos/mapa-da-desigualdade-2017.pdf. Acesso:
20/11/17

Ao analisar os mapas, dados como violência juvenil, a miséria e a divisão


etnorracial em São Paulo, tornam evidente nexos entre cor, classe e política do
Estado.
O Rap ressalta os efeitos da estigmatização territorial nas estruturas e
estratégias sociais locais, e põe a descoberto os princípios de visão e de divisão
social que moldam a consciência e as práticas do sistema capitalista neoliberal e o
regime de clausura excludente e de exílio socioespacial que lhes são impostos.
Dessa forma, rappers da periferia de São Paulo optaram por uma versão mais
engajada e comprometida com o orgulho preto e crítica, mantendo relativo
distanciamento dos meios de comunicação. Em São Paulo, os rappers cantam e
expõem as chagas sociais da cidade sem fazer nenhum tipo de concessão, pois
sabem que vivem em um estado de guerra permanente que não foi inventado por
eles, mas do qual são as maiores vítimas. Talvez por isso, depois de sua afirmação
na periferia, não se permitam ser otimistas e não se enxerguem felizes e sorridentes,
o que explica o tom quase sempre ameaçador de suas intervenções (SOUSA, 2009,
p. 167-8):

―Pode rir, ri, mas não desacredita não


É só questão de tempo o fim do sofrimento
36

Um brinde pros guerreiros


Zé povinho eu lamento (...)
Eu durmo pronto pra guerra
E eu não era assim
Eu tenho ódio
E sei que é mau pra mim.‖
(―Vida Loka parte II‖, Racionais Mc‗S, do álbum ―Vida Loka‖ de 2001).

No começo, por se tratar de um canto falado, feito de improviso nas rodas de


break, ainda no centro da cidade, o rap era chamado, no Brasil, de ―estorinha‖.
Como não havia muita preocupação com o conteúdo contestatório ou de protesto
nas letras, proliferou um tipo de rap ―inocente‖, descontraído e brincalhão, que mais
tarde viria a ser conhecido como ―rap estorinha‖, designação que traz certa
conotação ao descomprometimento crítico nas letras das músicas e que tratava
mais de aspectos da rotina do centro urbano. (ZENI, 2004, p. 231)
Ou seja, em meados dos anos 80, chegou o ―estorinha‖ – não era
propriamente rap, era um ritmo engraçado, rápido e divertido que de imediato fora
apelidado por tagarela e estorinha. Buscava representar a experiência urbana
observada no centro da cidade. A exemplo da música citada Centro da Cidade.
Os primeiros discos de rap brasileiro começaram a ser gravados no final da
década de oitenta, já no âmbito da periferia. Em sua maioria, eram coletâneas em
que figuravam vários grupos, de estilos diversos. Entre essas coletâneas, destacam-
se Ousadia do rap, O som das ruas, Situação rap, Consciência black e Hip Hop –
Cultura de rua. Nesta última, havia duas músicas de Thaíde e DJ Hum: ―Corpo
fechado‖ e ―Homens da lei‖. ―As duas composições, em que o rapper fala mal da
polícia e chama a atenção para a ―lei do cão‖ em que vivem os habitantes de São
Paulo, são consideradas pioneiras do chamado rap ―consciente‗ e de ―atitude‖.
(ZENI, 2004, p. 231)
O disco Raio X do Brasil (1993) do grupo Racionais MC´s surge como uma
espécie de paradigma do novo momento. Desde então, o termo periferia tem
permanecido central em todo o discurso rapper. Esteticamente, o disco instaurou
uma nova timbragem sonora que acompanhava o novo discurso político. A periferia
traduz-se em um conjunto mais amplo de problemas relacionados à juventude no
espaço urbano. Desse modo, a periferia não aparece apenas como uma referência
geográfica. Pertencer à periferia nesse contexto é ser pobre e socialmente excluído.
37

Assim, a periferia aparece como uma forma de se representar a experiência urbana


vivida.
Ao se voltar para a periferia, os rappers fizeram o registro das transformações
urbanas em curso nos anos 90. Durante este período, a cidade passou por
mudanças estruturais que afetaram substancialmente a vida local.
O termo ―autoconhecimento‖ foi bastante empregado pelos rappers no sentido
de entender os processos que os atingem. Assim, ―autoconhecimento‖ implica em
compreender a realidade e produzir mensagens para as pessoas nela imersas
(Silva, 1998). Na abertura do disco Raio X do Brasil o grupo Racionais MC´s
enfatizou esse aspecto:

Racionais, usando e abusando da nossa liberdade de expressão, um dos


poucos direitos que o jovem negro tem nesse país. Você está entrando no
mundo da informação, autoconhecimento, denúncia e diversão. Este é o
Raio X do Brasil, seja bem-vindo. (Raio X do Brasil, 1993).

Oswaldo Faustino chama a atenção para o ―brado‖ que vem das periferias:
―Dos bairros periféricos norte-americanos às favelas brasileiras, foi ganhando forma
e conteúdo, com o ritmo e as sonoridades que emanam das pick-ups dos DJs e das
letras contundentes dos MCs‖. (FAUSTINO, 2001, p. 10)

É ensurdecedor o brado que emana da goela do inferno – logo ali, em torno


da grande cidade. Vem em ondas concêntricas e vai tomando as zonas
centrais, as circunvizinhanças dos ricos condomínios, as universidades –
um brado que fede, que arde, que sangra, que dói –, carregado de miséria,
de fome, de desemprego, de desabrigo, de violência, de crueldade, de
álcool, de drogas, de estampidos e de carências (de oportunidades, de
educação, de saúde, de respeito, de direitos, de futuro) (...) um brado que
sempre esteve lá, mas a sociedade jamais poupou seus esforços para
torná-lo inaudível, imperceptível, impotente. Brado mudo, num país que tem
o orgulho de se fazer de surdo. (FAUSTINO, 2001, p. 9)

Portanto, a década de 90 pode ser tida como definidora de parâmetros


centrais - como a valorização das letras do rap paulistano, o discurso inteligente e
crítico e a atitude do público em relação à informação passada pelos artistas,
principalmente em apresentações ao vivo. A partir da influência do "rap engajado" e
do "rap consciente", esses parâmetros começaram a se consolidar, e esses grupos
passaram a se dedicar mais ao discurso das letras, inclusive nas performances.
A posição dos rappers entre ser artista ―pop‖ e a condição de ―intelectuais‖ da
comunidade começou a ser definida em meio à trajetória de pertencimento à
38

periferia, à etnicidade, e à necessidade de viabilizarem-se profissionalmente. O


grupo Racionais Mc‘s manteve-se incorporado à localidade: recusaram a mídia,
criticaram o sistema, raramente deram entrevistas e continuaram residindo nos
bairros periféricos. A fidelidade ao local e a explicitação da temática racial tornaram-
se centrais no rap paulistano.
Visto no contexto mais amplo do rap, trata-se de uma postura coerente com a
proposta musical em geral, pois a ênfase na localidade, a crítica à violência policial,
ao racismo, à exclusão social é recorrente entre os rappers em outros contextos.
(ROSE, 1994). Ganhavam autoridade e legitimidade os raps que eram sustentados
na experiência do vivido. Os temas priorizados eram aspectos do cotidiano, no
diálogo com o social e com as vivências (observadas ou experimentadas) afirmando
esse processo de composição à localidade.
As representações são mobilizadas de forma relacional, forjando identidades
por oposição, ―os manos‖ e os ―outros‖, que têm também um forte conteúdo de
classe, com clivagem socioterritorial.
Especialmente no momento em que os Racionais MC‘s ultrapassaram os 50
mil ―manos‖11 aos quais se dirigiam nos primeiros discos, os conflitos em torno da
posição política tornaram-se críticos. Desde então, as músicas gravadas pela banda
de rap tornaram-se um modelo de como os jovens do entorno entendiam a realidade
da cidade.
A aproximação dos rappers com a comunidade de fala em que desejam ser
compreendidos aparece como aspecto essencial. Na desobediência à norma culta
os músicos revelam as intenções de um discurso infrator, não protocolar e autentico.
O falar das ruas na linguagem das ruas, os dramas sociais vividos pelos músicos,
pelas pessoas comuns, se exprimem nas letras das canções (SILVA, 1988).

11
A frase “apoiados por mais de 50 mil manos” citada em Sobrevivendo no inferno, no encarte do disco, refere-
se a essa dimensão política, menos visível. Nos shows, entre uma e outra música, Mano Brown se dirigia aos fãs
e elaborava um discurso improvisado, marcado por críticas ácidas ao sistema. A expressão autoconhecimento
que amiúde empregavam aparecia como síntese do saber nativo valorizado pelos integrantes do movimento
hip-hop. Foi neste contexto que proliferaram também as chamadas rádios comunitárias, comprometidas com a
veiculação da música, mas também de informações consideradas autênticas. Tais saberes produzidos
localmente ainda permanecem, segundo a visão dos jovens, em oposição às informações veiculadas pela
grande mídia, consideradas falsas.
39

A atitude dos rappers com a comunidade que desejavam ser compreendidos


aparece ser um aspecto essencial. Os músicos desobedeceram aos costumes
conservadores e revelaram a intenção de violação, discordância e um discurso
verdadeiro. Falar sobre as ruas na linguagem das ruas e os dramas sociais vividos
por pessoas comuns são as expressões centrais nas letras das músicas. O rap se
inscreve nesse contexto, radicaliza as contradições peculiares ao universo da
música popular, pois os músicos reivindicam, mesmo após o sucesso, o vínculo aos
espaços socialmente excluídos. Os rappers paulistanos enfatizam, por isso mesmo,
as expressões locais características do falar cotidiano dos becos, favelas e vielas
em que pretendem ser ouvidos. As citações aos bairros pobres, nas letras,
compartilham desse mesmo sentimento de pertenção e identidade aos territórios dos
marginalizados.

2.3 Rap, Cultura e Territorialidade

A desterritorialização das culturas faz com que, mesmo estando


espacialmente separados, os jovens de vários lugares do mundo criem
novas identificações. Um dos exemplos dessas novas identificações pode
ser localizado no movimento hip hop como um todo e mais especificamente
no rap. Os meios de comunicação, a indústria fonográfica, a televisão a
cabo e a internet, especialmente, tornaram-se os canais de ―reunificação‖
das identidades culturais que se formam sem que o território da nação seja
sua referência exclusiva. Com isso, outras identidades se sobrepõem de
maneira cada vez mais contundente: a negra, a jovem, a excluída, a
periférica. (GUIMARÃES, 1998, p. 176)

Como vimos, o rap paulistano foi incorporado pelos jovens das periferias,
enquanto expressão das ruas e se apoiou na rede de vizinhança, grupos de amigos
e nas festas de rua. Encontrava-se imerso na experiência local e mesmo sendo
motivado numa escala global, assumiu contornos e características próprias,
reconfiguradas.
Com Rogério Haesbaert podemos pensar que o conceito de
desterritorialização da geografia pode ser mais bem compreendido como ―novas
territorialidades‖, pois ao invés de estas estarem desaparecendo, a geografia e seus
espaços – ou territórios – estão, na verdade emergindo sob novas formas e
40

significados (p.31). No complexo processo das novas territorialidades, a identidade


social e a cultural são afirmadas como questões centrais.
Território e desterritorialização são conceitos bastante disputados nos campos
das ciências sociais, políticas, geográficas e nos estudos urbanos em geral. Por
isso, cabe deixar claro que o presente trabalho entende que os conceitos funcionam
como dimensões encadeadas, em que um dá sentido à existência do outro:

Toda desterritorialização implica, obrigatoriamente, uma reterritorialização,


pois é inerente ao ser humano, aos grupos culturais, a recomposição da
sociedade em bases territoriais – o território faz parte de sua
fundamentação ontológica, poderíamos dizer. Mais do que o
desaparecimento dos territórios, o que estamos presenciando é a
consolidação de novas formas de organização territorial. E uma das
características centrais dessas novas territorialidades é sua imbricação com
processos múltiplos diferenciados, complexos, de identificação social, ou
seja, tão importante quanto os processos econômico-políticos de
desterritorialização é a dinâmica simbólico-cultural que ajuda a moldar as
territorialidades emergentes. (HAESBAERT, 2007, p. 31)

Dessa forma podemos entender que os processos de globalização e dos


avanços tecnológicos alteram a percepção e nossa relação, de forma complexa,
com as dimensões de tempo e espaço, e com isso estão fazendo emergir novas
formas de territorialidades.
Porém, é importante frisar, que todas essas mudanças afetam ricos e pobres
de maneiras bastante distintas. Segundo Haesbaert, a elite pode construir seu
território de cidadania-mundo, identificando-se com o próprio planeta no seu
conjunto e na sua experiência de compressão espaço-temporal, vivendo assim uma
desterritorialização segura, uma vez que seu encolhimento do mundo não lhes é
imposto, pois possuem certos níveis de autonomia, seguros dentro de suas redes e
bolhas globalizadas. Já para os pobres, os ―aglomerados humanos de exclusão‖
(Haesbaert, 1995) podem se voltar para identidades fundamentalistas (nacionais,
étnicas, religiosas) como única forma de manter valores capazes de assegurar-lhes
a sobrevivência como grupo. O pobre precariamente incluído na periferia das
grandes metrópoles vive uma desterritorialização profundamente insegura em que o
mundo se encolhe ao seu redor e ele permanece impotente, subordinado
passivamente à compressão do mundo. Sua mobilidade, quando ocorre, é
compulsória: como refugiado, fugindo de ameaças, como removido, ou como
41

imigrante atraído por promessas sempre na mesma luta em busca de condições


mínimas de sobrevivência. (p. 34,35).
A concepção de território entendida num sentido mais amplo que o de Estado-
Nação e poder, amplia-se para outras escalas num sentido que prioriza a dimensão
cultural na sua definição. O território é visto antes de tudo como um espaço dotado
de identidade, uma identidade territorial (Haesbaert, 1999).
Assim, a dimensão cultural precisa ser vista associada às outras esferas da
sociedade, de modo a identificar territórios pautados, sobretudo, na concepção
identitária – étnica, nacional, religiosa – dos grupos sociais.
Contudo, é muito difícil estabelecer as fronteiras entre a concepção política e
a concepção cultural de território. Mesmo que priorizemos a dimensão cultural, a
cultura não pode ser considerada como ―cultura política‖, sobretudo porque a
produção simbólica que domina nosso tempo é indissociável das relações de poder
às quais está ligada (Haesbart, 2002, p.37). Por exemplo, o poder simbólico
(Bourdieu, 1989), como veremos no capítulo três, é capaz de mobilizar signos que
prescindem do território para isolar territorialmente os pobres na organização das
grandes cidades. Quando combinam proximidade física e distância e separação
sociais (reforçada por símbolos), cada identifica e um sabe exatamente seu lugar no
espaço social.
No atual contexto de internacionalização da cultura, a despeito de os grupos
permanecerem territorializados, os símbolos culturais aparecem, entretanto,
desterritorializados pela ação dos meios. Cunha (1985), ao pesquisar a temática,
concluiu que a ressignificação da cultura surge sempre como uma questão central
para os grupos migrantes. Mas verificou também que apenas o que faz sentido é
atualizado no processo de reelaboração da identidade coletiva na diáspora.

A música pode ser tomada como um campo privilegiado para os atuais


processos de construção de identidade mediados pela internacionalização
da cultura. Especialmente neste momento, a música surge desempenhando
um papel essencial em relação às práticas tradicionais e modernas. Desse
modo, a dramaticidade na qual vivem os jovens da periferia das grandes
metrópoles tem sido atualmente denunciada pelos rappers, pois se
identificam entre si socialmente. Mas há também - e felizmente - a
possibilidade, cada vez mais frequente, de uma revanche da cultura popular
sobre a cultura de massa, quando por exemplo, ela se difunde mediante o
uso dos instrumentos que na origem são próprios da cultura de massas.
Nesse caso, a cultura popular exerce sua qualidade de discurso dos
42

“de baixo”, pondo em relevo o cotidiano dos pobres, das minorias, dos
excluídos, por meio da exaltação da vida de todos os dias. Se aqui os
instrumentos da cultura de massa são reutilizados, o conteúdo não é,
todavia, global, nem a incitação primeira é o chamado mercado ―global‖, já
que sua base se encontra no território e na cultura local e herdada.
(SANTOS, 2008, p. 144, grifos nossos)

Apesar de viver uma desterritorialização insegura, os jovens pobres e


periféricos brasileiros, tiveram acesso ao movimento cultural que estava
acontecendo internacionalmente e se identificaram com os dramas que os rappers
americanos viviam.
Tradicionalmente, as relações entre jovens brasileiros com a música norte-
americana foram pensadas sob a ótica da imposição cultural de massa e
dominação. Mas os rappers não a viam dessa forma, antes tratava-se de uma busca
de conhecimentos, da compreensão de um processo cultural externo a partir do qual
começavam a superar os limites impostos pela apenas aparente democracia racial.
Desde a soul music os símbolos e estéticas de origem afro-americanos vêm sendo
utilizados pela juventude no processo de construção de uma outra visão de si
mesmos, fora dos padrões definidos pela ideologia do branqueamento.
Para Milton Santos a interação entre a cultura de massa e a cultura popular,
pode gerar um processo positivo na forma de ―revanche cultural popular‖, quando os
mais pobres revertem a lógica tradicional de dominação:

Os ―de baixo‖ não dispõem de meios (materiais e outros) para participar


plenamente da cultura moderna de massas. Mas sua cultura, por ser
baseada no território, no trabalho e no cotidiano, ganha força necessária
para deformar, ali mesmo, o impacto da cultura de massas. Gente junta cria
cultura e, paralelamente, cria uma economia territorializada, uma cultura
territorializada, um discurso territorializado, uma política territorializada.
Essa cultura da vizinhança valoriza, ao mesmo tempo, a experiência da
escassez e a experiência da convivência e da solidariedade. É desse
modo que gerada de dentro, essa cultura endógena impõe-se como um
alimento da política dos pobres, que se dá independentemente e acima
dos partidos e das organizações. Tal cultura realiza-se segundo níveis
mais baixos de técnica, de capital e de organização, daí suas formas típicas
de criação. Isto seria, aparentemente, uma fraqueza, mas na realidade é
uma força, já que se realiza, desse modo, uma integração orgânica
com o território dos pobres e o seu conteúdo humano. Daí a
expressividade dos seus símbolos, manifestados na fala, na música e
na riqueza das formas de intercurso e solidariedade entre as pessoas.
E tudo isso evolui de modo inseparável, o que assegura a permanência do
movimento. (SANTOS, 2008, p. 144-5, grifos nossos)
43

No movimento hip hop, a rua foi apropriada como palco, um lugar chave, para
a expressão e produção dessa cultura. Este espaço, muitas vezes expõe a
segregação social e o medo da violência, tornando-se esvaziado pelo refúgio na vida
privada (SENNET, 1988), foi apropriado e ressignificado pelo movimento hip hop.
A partir da ação do movimento, as ruas, praças e os espaços criados pelos
viadutos passaram a ser apropriados de forma positiva e insurgente, já que estavam
subvertendo a lógica de sempre ocuparem espaços de forma insegura, seja por falta
de opção, seja por imposição dos gerenciadores urbanos.
O grafite trouxe a alegria das cores vivas para os espaços escuros e cinzas.
Serviu como lugar de produção e reinvenção da arte plástica. Os breakers se
utilizavam dos espaços para as performances acrobáticas da dança. A rua também
é a inspiração narrada nas letras de rap. Assim, o termo cultura de rua tornou-se
forte entre os adeptos das práticas hip hop no sentido de designar o próprio
movimento.

A cultura de massas produz certamente símbolos. Mas estes, direta ou


indiretamente ao serviço do poder e do mercado, são, cada vez mais fixos.
Ante o movimento social e o objetivo de não parecerem envelhecidos, são
substituídos, mas por uma outra simbologia também fixa: o que vem de
cima está sempre morrendo e pode, por antecipação, já ser visto como
cadáver desde o seu nascimento. É a simbologia ideológica da cultura de
massas. Já os símbolos ―de baixo‖, produtos da cultura popular são
portadores da verdade da existência e reveladores do próprio movimento da
sociedade. (SANTOS, 2008, p. 144-5)

Diante do breve debate apresentado acima, pode-se destacar que há,


efetivamente, uma direta imbricação entre território e cultura. E nesta teia imbricada
de relações o rap é considerado, neste trabalho, como uma importante expressão
cultural por meio da qual compreendemos, mais e melhor, como são construídas as
relações sociais no território, como os rappers narram, cantam e contam sua
existência por meio do espaço, ―pelo espaço‖ (MASSEY, 2008). Desse modo, o rap
paulistano é resultado de um processo de ressignificação da cultura tendo em vista
as condições locais do território.
44

3. Rap – A voz da periferia pede passagem

―A rua é nóiz e nunca vai deixar de ser‖


Emicida, 2011.

Reconhecer a dimensão do ―vivido‖ na produção social do espaço


(LEFEBVRE, 2013) não é uma prática valorizada pelo pensamento dominante.
Revela-se em um grande esforço tentar avançar num exercício de método dialético,
necessário para se aproximar da complexa produção simbólica daqueles que lutam,
disputam e tentam se apropriar do espaço urbano por maneiras insurgentes e não
ortodoxas.
Aproximar a produção teórica acerca do urbano à rica experiência do vivido é
o objetivo deste capítulo, que pretende mostrar, por meio da análise teórica e da
produção musical do rap, a luta insurgente pela co-presença na disputa por espaços
na cidade.
A música contribui para uma abordagem singular da vida na cidade, mediante
a dimensão imaterial, expressa na ação. As práticas musicais - sons, versos,
narrativas e personagens - fazem parte da construção do humano e mostram a
cidade a partir dos sujeitos que a constituem. (OLIVEIRA, 2006)
Como recurso operacional e de método acerca da experiência social, a
música torna a análise sensível às circunstâncias de quem a produz, permitindo o
reconhecimento de práticas, identidades e territorialidades que expressam, no
urbano, a possibilidade do diálogo, da explicitação das diferenças e da afirmação do
conflito. Como nas reflexões de Henri Lefebvre sobre o direito à cidade, trata-se da
valorização do cotidiano como lugar de produção e reprodução das relações sociais,
permitindo o reconhecimento de encontros e conflitos provocados pela vida urbana.
Com a música - letras, versos, rimas, sons, narrativas e personagens - o
sujeito relata maneiras de viver e conviver na cidade. Por meio da música é possível
reconhecer a existência do outro na cidade, a partir de novos processos de
organização e mobilização social compreendidos como possibilidades de libertação
do sujeito. As escolhas do sujeito criativo e insurgente, posto que há nele um
engajamento político, permitem reconhecer maneiras de lutar, de rebelar-se, de
45

revelar ou de conviver com o hegemônico e dominante - a cultura do dinheiro,


calcada no individualismo, na competitividade e no consumismo alienante.

3.1 Rap, Espaço e Cotidianidade

Reconhecer a experiência urbana por meio do rap é uma opção para alcançar
os valores e visões de mundo que orientam a ação. No rap, a experiência cotidiana
e a sonoridade das ruas são incorporadas ao texto musical. A música como arte, é
criação, representação e comunicação, e, por isso, pode revelar a cidade como lugar
da simultaneidade e do encontro (LEFEBVRE, 1999)
Em outras palavras, o rap mapeia o ―lado b‖12 da cidade, trazendo à luz
territórios opacos, e pouco luminosos (SANTOS, 1999). Nele a voz emudecida pela
hegemonia dos ouvidos ―educados e eruditos‖, acostumados a certa ordem sonora,
se faz ouvir subindo ao palco e, desse modo, podem ser captadas as relações entre
a música e a produção social do espaço (LEFEBVRE, 2013). Neste trabalho
entende-se o discurso musical do rap como expressão da ordem e das relações
sociais representadas no plano da arte.
A significância da teoria da produção do espaço de Lefebvre reside
especialmente no fato de que ela integra sistematicamente as categorias de cidade
e espaço em uma única e abrangente teoria social, permitindo a compreensão e a
análise dos processos espaciais em diferentes níveis.
Espaço (social) é um produto (social). Para entender esta tese, é necessário,
romper com a concepção generalizada de espaço, imaginado como uma realidade
material independente, que existe ―em si mesma‖. Contra tal visão, Lefebvre,
utilizando-se do conceito de produção do espaço, propõe uma teoria que entende o
espaço como fundamentalmente atado à realidade social - do que se conclui que o
espaço ―em si mesmo‖ jamais pode servir como um ponto de partida epistemológico.
O espaço não existe em ―si mesmo‖. Ele é produzido pela sociedade em movimento.
(SCHMID, 2012)

12
Faço menção aos discos de vinil utilizados pelos DJs na mixagem das músicas. As faixas do álbum são
divididas entre os lados A e B do disco. O “lado A” seria aquele contado pela discurso dominante, já o lado B
seria o cantado nas músicas que narram territórios não reconhecidos por esse discurso.
46

Portanto, a existência de seres humanos significa necessariamente a


existência da vida cotidiana. Não há como desassociar existência e cotidianidade,
assim como não há como viver totalmente imerso/a na não cotidianidade (estado de
suspensão da cotidianidade). (HELLER, 2004)
É na cotidianidade que homens e mulheres exteriorizam paixões, sentidos,
capacidades intelectuais, habilidades manuais, habilidades manipulativas,
sentimentos, ideias, ideologias, suas crenças, gostos e pendores, enfim, em sua
intensidade e ―por inteiro‖. (HELLER, 2004)
Para a teoria materialista de Lefebvre, os seres humanos em sua
corporeidade, sua sensibilidade, criatividade e imaginação, seus pensamentos e
suas ideologias, seres humanos que entram em relações entre si por meio de suas
atividades e práticas, ou seja, na sua cotidianidade. Portanto, se o espaço não existe
em ―si mesmo‖, ele só existe na cotidianidade.
Os temas recorrentes no rap engajado passam ao largo da concepção stricto
sensu da palavra espaço, como por exemplo, a autoconsciência, etnicidade,
violência policial e das diversas formas de exclusão cantadas no rap. Porém, a partir
da teoria da produção social do espaço de Lefebvre é possível entender o espaço
como produto dos conflitos e das relações sociais conflituais.
Para Lefebvre, o espaço tem sido instrumentalizado para vários fins:

Dispersar a classe operária, reparti-la nos lugares prescritos, organizar os


fluxos diversos subordinando-os a regras institucionais; subordinar, por
conseguinte, o espaço ao poder; controlar o espaço e reger,
tecnocraticamente, a sociedade inteira, conservando as relações de
produção capitalistas. (LEFEBVRE, 2008, p. 8)

Nas sociedades em que a riqueza se configura como uma imensa


acumulação de mercadorias (Marx), nos marcos das relações sociais que as
consubstanciam, ―o espaço tornou-se instrumental. Lugar e meio onde se
desenvolvem estratégias, onde elas se enfrentam, o espaço deixou de ser neutro,
geográfica e geometricamente, há muito tempo‖. Portanto, ele nada tem de inocente
e inofensivo. (LEFEBVRE, 2008, p. 8)
Mas, como o espaço (social) é produzido? A chave para a teoria de Lefebvre
é a compreensão de que a produção do espaço pode ser dividida em três
dimensões ou processos dialeticamente interconectados. Por um lado, eles se
47

referem à tríade da ―prática espacial‖, ―representações do espaço‖ e ―espaços de


representação‖. Por outro lado, eles se referem ao espaço ―percebido‖, ―concebido‖
e ―vivido‖. (SCHMID, 2012)

PRODUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO


(percebido, concebido e vivido)
- Lefebvre

Cotidiano:
RAP fonte de COTIDIANO
- Indivíduo Social inspiração - Heller
para o rap

Figura 5: Esquema Cotidiano, Rap e Produção Social do Espaço.

Efetivamente, os rappers elegem o cotidiano como lugar de inspiração para


a produção das letras e músicas: “Você tem que estar baseado no dia a dia, a fonte
tem que ser um bagulho próprio teu”, conforme entrevista a Eduardo, rapper do
grupo Facção Central ao site Rap Nacional13.
No rap engajado a dimensão do vivido e percebido (LEFEBVRE) é tema
quase que absoluto, em permanente conexão. A vida dos rappers marginalizados
nas periferias da sociedade capitalista, com seu cotidiano violento, é narrada e as
feridas de uma vida crua e dura são expostas. Tal característica torna o estilo
musical uma ferramenta bastante interessante de aproximação aos processos de
produção e ocupação do espaço.
Os rappers, ao escolherem o cotidiano como fonte de inspiração e enredo
para suas músicas, promovem um distanciamento/estranhamento, necessário

13
Entrevista concedida pelo grupo ao site/canal Rap Nacional, 02 janeiro de 2004, disponível em
http://www.rapnacional.com.br
48

àqueles para os quais se pretende produzir informação, sobre os aspectos do


cotidiano que passam como procedimentos e relações cristalizadas para sujeitos
sociais os quais, diariamente, são violentados pelo processo de exclusão e
precarização das relações de trabalho, pela vida mercantilizada, pela mecanização e
globalização das relações sociais, pela competitividade e imediaticidade da vida
social, assim como pelo consumismo e individualismo exacerbados. Nesse
processo, as relações sociais acabam por ser produzidas e reproduzidas de formas
alienadas, alienantes e de exploração, geradas substancialmente, pela lógica do
capitalismo neoliberal do ―mais forte‖, do ―mais rápido‖, do ―descartável‖.
A escolha em não reproduzir passivamente e sem questionamentos a vida
cotidiana, que lhes condiciona às práxis alienadas e alienantes de uma realidade
imposta, se revela em um exercício complexo, porém proposital. Nesse sentido, o
cotidiano poderia ser o lugar do aprisionamento, mas, por uma reviravolta no modo
de pensar, pela inventividade da cultura, o cotidiano transforma-se no lugar da
denúncia, da resistência e da luta por liberdade, democracia, respeito aos direitos
humanos, valores que espelham princípios emancipadores.
Com referência em Gramsci, entende-se que os autores e atores do rap
possam ser tomados e pensados aqui como ―novos intelectuais‖ que vêm ocupando
um espaço tradicionalmente ocupado pelo intelectual moderno, isto é, são aqueles
que dão voz aos que não podiam falar, aos que vivem às margens e fronteiras do
capitalismo. Os rappers, sem acesso à educação formal, aqui compreendidos como
―intelectuais orgânicos‖ (GRAMSCI, 1995)14 ao estranhar, questionar e refletir o
cotidiano produzem informações, no plano da arte, que, ao alcançarem seus iguais,
promovem o questionamento de uma ordem opressora:

Por intelectuais, deve-se entender [...] todo o estrato social que exerce
funções organizativas em sentido lato, seja no campo da produção, seja no
da cultura e no político-administrativo [...]. Para analisar a função político-
social dos intelectuais, é preciso investigar e examinar sua atitude
psicológica em relação às classes fundamentais que eles põem em contato

14
Gramsci explicita e aprofunda a inseparável relação dialética entre intelectual e mundo circunstante,
dotando os intelectuais orgânicos aos interesses das classes subalternas de uma função central nos processos e
lutas de formação de uma contra-hegemonia contrária aos interesses do capital e dos seus intelectuais
tradicionais. O que interessa ao sardo marxista na reflexão acerca da questão dos intelectuais é a ampliação da
formação e da ação dos intelectuais orgânicos das classes subalternas na construção de uma sociedade
regulada pelos interesses e necessidades do trabalho, que Marx nomeou de emancipação humana.
49

nos diversos campos: têm uma atitude ―paternalista‖ para com as classes
instrumentais ou se consideram uma expressão orgânica destas classes?
Têm uma atitude ―servil‖ para com as classes dirigentes ou se consideram,
eles próprios, dirigentes, parte integrante das classes dirigentes?
(GRAMSCI, 2000, p. 204)

A ―tomada de consciência‖ do ser social ―do momento que se humaniza a si


mesmo e humaniza a humanidade‖ (HELLER, 2004, p. 121), bem com o conceito de
política que, em seu sentido lato refere-se a toda atividade humana ―dirigida à
transformação, à modificação ou à reforma da sociedade‖. (Heller, 1997).
As reflexões traduzidas em letras de rap, por detrás de uma aparente
―simplicidade‖, revelam sujeitos escanteados pelo sistema capitalista, por eles
mesmos, os quais passaram a enxergar a vida social em suas contradições, ou seja,
inscrita no campo das desigualdades sociais, causadas principalmente pelas
grandes transformações do mundo contemporâneo, da consolidação e do avanço da
sociedade regida pelo capital, do modo de produção capitalista e da luta de classes.
A teoria do cotidiano, de Agnes Heller, sugere que no universo formativo do
ser social, é possível despertar à consciência em-si-mesma, com possibilidades para
uma consciência para-si-mesma, ou seja, propícia a uma vida social não alienada e
não alienante15 – uma vida reflexiva. Contudo, não é possível na realidade social do
mundo capitalista, vivermos fora da cotidianidade alienada e alienante, porém, é
possível não nos tornarmos alienados e alienantes16 diante dos fatos mais
corriqueiros, imediatos e mecanizados da cotidianidade.
É importante frisar que para Heller o cotidiano não é sempre e
necessariamente alienado, pois a alienação não constitui uma característica
ontológica inerente ao ser social na sua dimensão cotidiana, isto é, intrínseca às
objetivações genéricas que estão na sua base e às formas de pensamento e ação
pelas quais o indivíduo se relaciona com o mundo imediatamente à sua volta. O
cotidiano torna-se alienado apenas em uma sociedade cuja forma de organização
limita o pleno desenvolvimento dos indivíduos, quando a cotidianidade, ao invés de

15
Em se tratando de uma sociedade fortemente alienada, como é o caso da sociedade capitalista, essa
tendência ao pragmatismo pode exacerbar-se imensamente não só na vida cotidiana das pessoas como
também em todas as demais esferas das atividades sociais. Isso não ocorre por acaso, sendo uma conseqüência
necessária de uma dinâmica social toda ela voltada para a produção e o consumo de mercadorias.
16
Como Heller enfatiza, a superação da alienação exige a transformação da sociedade capitalista. Contudo,
essa transformação da sociedade tem como parte necessária e importante a luta pelo máximo
desenvolvimento da individualidade humana que for possível ainda no interior da sociedade capitalista.
50

exercer a função de "infraestrutura" da vida individual, sobre a base da qual o


indivíduo pudesse se realizar em níveis cada vez mais elevados, torna-se uma
barreira limitadora e estrutural, um obstáculo ao relacionamento entre o indivíduo e
as esferas de objetivação genérica para-si (ciência, arte, filosofia, moral e política).
Aí sim estamos diante de um cotidiano alienado.
O cotidiano torna-se sinônimo de alienação quando sua dinâmica impede os
homens de se apropriarem da genericidade para-si, quando o indivíduo está preso
no plano das necessidades materiais e estritamente indispensáveis para reproduzir-
se como indivíduo. Sendo que em nossa sociedade de classes isso significa, na
maioria das vezes, estar preso ao que é necessário para sua sobrevivência mínima,
quase que exclusivamente física. O cotidiano torna-se alienado, portanto, quando a
vida dos homens, quando seu ser está preenchido quase que exclusivamente pelas
características, pelo conteúdo e pela dinâmica da cotidianidade; quando a forma de
o homem se relacionar com suas atividades, o sentir, o agir e o pensar não vão além
da estrutura das formas de pensamento, sentimento e ação típicas da vida cotidiana,
as quais tomam conta, assim, da totalidade de sua existência objetiva e subjetiva.
Em outras palavras, alienação está presente quando, por conta de determinadas
condições materiais, sociais e econômicas, a estrutura da vida cotidiana penetra em
todas as esferas da vida dos indivíduos. Nessas circunstâncias os indivíduos
encontram dificuldades mais agudas de distanciar-se, ainda que momentaneamente,
das formas automáticas e espontâneas de agir, pensar e sentir da cotidianidade.
Mais raro ainda é que eles cheguem a questionar a aparente naturalidade desse
modo de ser.
A tomada de consciência permite ao indivíduo social 17 suspender-se ou
elevar-se da condição de alienação à que, muitas vezes, está condicionado/a. Em
outras palavras, permite que as ações na e para a vida cotidiana apresentem-se

17
Segundo Chaui (1999), sujeito é o indivíduo consciente de sua atividade sensível e intelectual, dotado do
poder de análise, síntese e representação, portanto, é o ser social em sua individualidade, que se reconhece
diferente dos objetos que o rodeiam, “cria e descobre significações, ideias, juízos e teorias”, ou seja, o mundo a
sua volta. “É dotado da capacidade de conhecer-se a si mesmo no ato do conhecimento, ou seja, é capaz de
reflexão. É saber de si e saber o mundo, manifestando-se como sujeito percebedor, imaginante, memorioso,
falante e pensante” (CHAUI, 1999, p. 118). Porém, essas capacidades ou potencialidades só se objetivam no
meio social. Assim, o sujeito se apresenta enquanto síntese de múltiplas determinações sociais, portanto, ele
só é sujeito porquê é um ser social (ou sujeito social).
51

impregnadas de valores morais e políticos de liberdade e de responsabilidade,


portanto, de valores universais. Com esse entendimento, o rap engajado,
comprometido com o local e com a dimensão do vivido, é usado como meio e porta
de entrada para a construção do sujeito crítico e engajado.
Segundo Heller (1977, p. 7), o cotidiano é o ―mundo da vida‖ que se produz e
se reproduz dialeticamente, num eterno movimento: ―[...] é o mundo das
objetivações‖. O conceito de cotidiano está relacionado àquilo que é vivido e à vida
social dos indivíduos sociais. Um e outro se relacionam entre si. O cotidiano (ou a
cotidianidade) se distingue da rotina da vida exposta no dia a dia. A rotina do dia a
dia se constitui, segundo Heller (2004) como o/s ato/s que repetimos mimeticamente
sem nos darmos conta do seu significado e de sua importância.
Ao submergir do mar de águas profundas e abissais da rotina, e tornar seu
olhar aguçado para as práticas do cotidiano, o autor e ator social do rap não se
afoga. Ele enche de ar os seus pulmões e se torna um ser ―autoconsciente‖, político
ativo, produtor social do espaço e da sociedade na qual vive. Ou seja, ele consegue
romper padrões predeterminados e constituídos antes mesmo do seu nascimento,
em outras palavras, valores, regras, normas e princípios que já se encontravam
estabelecidos. Com a sua percepção e experiência da vida cotidiana, pode ele
repensá-los e, por sua vez, superá-los.

3.2 Rap no Contexto das Disputas Narrativas e Políticas

Eu sou apenas um rapaz latino americano


Apoiado por mais de cinquenta mil manos
Efeito colateral que o seu sistema fez
Racionais MC‘s, 1998.

Frequentemente desdenhado, o Rap sempre foi considerado o filho bastardo


da arte pela indústria fonográfica privada e mídia empresarial. Sem consagração
simbólica tanto por sua estética sonora, quanto pelo conteúdo das letras e atores
sociais envolvidos. A configuração sonora do rap, como veremos, causa um
incômodo, menos musical do que ideológico. Em artigo para a Folha de São Paulo
52

(2007), a jornalista Bárbara Gancia18 associa o público do Hip Hop e do Rap a


bactérias intitulando o artigo de ―Cultura de bacilos‖:

Em um país em que o presidente da República acha espirituoso falar


em "ponto G" em coletiva de imprensa, distribuir dinheiro público para
ensinar a jovens carentes as técnicas do grafite ou a aspirantes a rapper
como operar pick-ups, pode até parecer coisa natural. Mas eu pergunto: a
que ponto chegamos? Desde quando hip hop, rap e funk são cultura? Se
essas formas de expressão merecem ser divulgadas com o uso de dinheiro
público, por que não incluir na lista o axé, a música sertaneja ou, quem
sabe, até cursos para ensinar a dança da garrafa? O axé, ao menos, é
criação nossa. Ao contrário do hip hop, rap e funk, que nasceram nos
guetos norte-americanos. Na última quarta-feira, em meu comentário diário
na rádio Band News FM, tomei a liberdade de dizer o que pensava sobre
esse lixo musical que, entre outros atributos, é sexista, faz apologia à
violência e dói no ouvido.

Por sua vez, o jornalista Reinaldo Azevedo19 para a Revista Veja (2007)
associa o Rap ao banditismo e a exaltação do ―pobrismo‖:

Ao longo da história, a visão idealizada sobre o pobre — uma das muitas


heresias do cristianismo — foi substituída pela glorificação da
marginalidade, e esta é uma das heresias do marxismo. Marx, Lênin,
Trotsky, Gramsci…Não há um só miserável pensador (e militante pra valer)
da esquerda que de fato tenha feito história (ainda que para o mal) que
endosse ou endossasse as bobagens ditas por Mano Brown, Ferréz ou
aqueles infelizes que fazem a trilha sonora do narcotráfico no Rio. Não há
nessa gente teoria revolucionária. Há exaltação do banditismo, e, no que
concerne à política, quando muito, exalta-se o pobrismo.

Musicalmente os argumentos não eram menos estereotipados em matérias


da mídia mainstream:

Pela primeira vez desde o séc. XI, quando o monge Guido de Arezzo
inventou a escrita musical, é possível fazer música sem instrumentos, sem
nenhum conhecimento prévio do assunto até sem saber cantar. O rap
consiste numa letra falada - às vezes vociferada - sobre uma base rítmica.
O termo rap tanto pode ser a sigla rhythm and poetry - ritmo e poesia,
quanto pancada em inglês (item - Música, Revista Veja, 27/09/1990)

Apoenan Rodrigues20 escreveu para o Jornal do Brasil (1993) sobre a cultura


musical que começava a se consolidar no país:

18
Barbara Gancia (São Paulo, 10 de outubro de 1957) é uma jornalista brasileira. Colunista do jornal Folha de S.
Paulo até 2016, foi uma das apresentadoras do programa Saia Justa, do canal GNT. A comunicadora também
foi colunista da BandNews FM e apresentadora do programa Invasões Bárbaras no canal de TV pago
Bandsports, porém, em abril de 2016 foi demitida.
19
José Reinaldo Azevedo e Silva (Dois Córregos, 19 de agosto de 1961) é um jornalista político brasileiro,
segundo ele próprio declara, inserido no campo da direita liberal e democrática. Atualmente, Reinaldo é
colunista no jornal Folha de S.Paulo e atua como comentarista do telejornal RedeTV! News, da RedeTV!, além
de apresentar o programa Pela Ordem nas plataformas digitais da emissora.
53

RAP já é um tipo meio chato de música na sua repetição incessante. No


caso dos grupos brasileiros que cultivam o gênero então, o assunto ainda
piora quando o que sobra da pobreza musical são letras lamurientas e mal
construídas.

Os trechos citados acima mostram como o Rap é visto de forma negativa pelo
discurso dominante e expõem as tensões que constituem a sociedade evidenciando
também as lutas de representação das diferentes classes sociais.
Convém sublinhar novamente: quem são os autores e atores sociais que
produzem o rap? E a quem sua música se destina? Diferente dos jornalistas e
formadores de opinião citados acima, em sua grande maioria, não têm a pele
branca, não possuem formação escolar completa e não são oriundos da classe
média. É, portanto, compreensível que o tema e a estética sonora do rap reflitam
sobre os morros, favelas, periferias, sobre o cotidiano de violência, descaso e
desrespeito presente nesses territórios sob a perspectiva e lente dos citadinos que
vivenciam essa realidade.
Segundo Guareschi (2001), a estratégia para a criação e reprodução das
relações de exclusão é a legitimação de uma ideologia, na esfera da psicologia
social, por parte de um grupo, para manter hegemônica a assimetria das relações
sociais. Além disso, essas relações de exclusão substituem as antigas relações de
exploração, dominação e subjugação. Quando determinados setores sociais
desqualificam o Rap estão engrossando as fileiras de um discurso ideológico
dominante que pretende subordinar, marginalizar, ou ilegalizar práticas e grupos
sociais que poderiam constituir uma ameaça ao pensamento dominante e à ordem.
Nas palavras de Boaventura de Souza Santos, "há muitas formas de
conhecimento, tantas quantas as práticas sociais que as geram e as sustentam"
(1996, p.328). E logo segue: "Não reconhecer estas formas de conhecimento
(conhecimento alternativo, gerado por práticas sociais alternativas) implica
deslegitimar as práticas sociais que as sustentam e, nesse sentido, promover a
exclusão social‖.

Discursos que visam legitimar posições específicas de determinados


setores, construir sua autoridade e justificar suas condutas, sendo, portanto,
um espaço de luta em que representações diferentes sobre o social
constituem o processo no qual um grupo impõe, ou tenta impor, a sua

20
Colunista Cultural da Revista Isto É e Jornal do Brasil.
54

concepção do mundo social, os valores que são seus, o seu domínio.


(Sodré, 2012, p.17)

O rap, para além de um estilo musical, é portador da mobilização de


representações sociais acerca da vida urbana, produz um discurso contestador que
evidencia uma perspectiva social crítica (CAMARGOS, 2015). Enquanto linguagem
sonora, o rap é utilizado para organizar em outro plano a complexidade da vida em
sociedade.
Contudo, contrariando aqueles que se servem da mídia que reproduz a fala
do dominante e dos que detêm a propriedade privada do mercado da informação, -
como visto nos recortes dos artigos acima – nada está isento de uma dimensão
política. Foucault, Lefebvre e Heller se propuseram a valorizar as manifestações nas
práticas e procedimentos do cotidiano. Trata-se de pensar o poder ―em sua forma
capilar de existir, no ponto em que encontra o nível dos indivíduos, atinge seus
corpos, vem se inserir em seus gestos, suas atitudes, seus discursos, sua
aprendizagem, sua vida cotidiana‖ (FOUCAULT, 1981, p. 131). E que emerge
espontaneamente na localidade e na figura do ―intelectual orgânico‖.
Para Gramsci, o poder das classes dominantes sobre o proletariado pode ser
mantido, sobretudo mediante processos de construção de hegemonia cultural,
exemplificada por meio dos veículos de informação dominantes que desqualificam a
expressão artística das classes mais pobres. Para fazer frente a esse tipo de
controle, o marxista e filósofo destaca a importância que têm os ―intelectuais
orgânicos‖ que surgem espontaneamente de cada grupo social, os que produzem
conhecimento (Boaventura) enraizado naquele grupo social, que pode ser
desvelado.
Em 2009 o rapper Mano Brown concedeu ao MC Paulo Napoli entrevista
sobre como o grupo Racionais MC‘s estava cumprindo um papel pioneiro acerca da
época e o contexto em que o rap começava a ser fruído no país:
Entrevistador: O Racionais ganhou tamanho e as pessoas passaram a
conhecer cada vez mais a figura do Mano Brown, as pessoas passaram a se
espelhar no Mano Brown. E... você acha que um dia você pode, de repente, entrar
para a política? Você acha que tem a ver, de repente, um dia você representar a
comunidade do teu jeito?
55

Mano Brown: Eu já tô na política há vinte anos, irmão. Eu faço política, tudo


que eu faço, de uma forma direta ou indireta, outras vezes agressiva, outras vezes
disfarçada, é política. Certo? Faço política. Faço política do meu jeito. Do meu
escritório, meu escritório é a rua, é a esquina, entendeu? E eu sei o que tá pegando.
Antes dos verdadeiros políticos profissionais descobrir, eu já descobri.
Em relação à atuação política de Brown, a análise de Bourdieu é relevante. O
autor constatou a existência de um monopólio no campo político por parte dos
profissionais da área, o que foi atribuído à "concentração do capital político nas
mãos de um pequeno grupo de pessoas"21, que resultou no distanciamento desses
"instrumentos de manejo", recursos materiais e culturais necessários para a
participação ativa na política. No entanto, as invenções do discurso, da linguagem,
do comportamento e da prática como meios de ―perceber ‖e― expressar‖ a vida social
nestes ―desapossados da política‖ os colocam não muito longe - embora a arena
política seja dominada por profissionais - trazendo a política para o cotidiano.
(CAMARGOS, 2015)

Ao se situar o poder e, por conseguinte, a política no campo das relações


sociais (em seu amplo sentido), emergem daí não relações puramente de
dominação, mas um complexo emaranhado de tensões e de conflitos, em
meio aos quais a dinâmica social é atravessada por ações distintas,
disputas de espaço (sobretudo o espaço público) e de legitimidade em torno
dos discursos produzidos por atores diversos. Nesses embates, os sujeitos
que se expressam pelo rap, de modo ativo e criativo, se inserem no social e
registram suas leituras e vontades políticas (por mais ingênuas e simplistas
que por vezes pareçam ser), que surgem uma ação social direcionada para
transformações, ou seja, questionam a ordem existente. (CAMARGOS,
2015)

O simples fato de existirem e se fazerem presentes na trama social já é, por si


só, um ato político, seja no domínio do Estado, seja no do cotidiano. Essa
perspectiva reforça a linha de pensamento de muitos rappers em relação à sua arte
e seu posicionamento como sujeitos sociais ativos (CAMARGOS, 2015).
Em geral, o rap segue esse caminho, os aspectos sociais contemporâneos e
ao fazer circular opiniões diferentes sobre modo de ser e estar na sociedade. Assim,

21
Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico (Rio de Janeiro, Bertrand Brasil/Difel, 1989), p;164
56

―o cotidiano, antes opaco espaço da repetição, passa a ser visto como lugar de luta,
onde se produz a resistência‖22 (CAMARGOS, 2015).
A música não será elaborada independentemente do segmento social de
quem a produz. Os indivíduos fazem música enquanto sujeitos históricos e no
processo de produção musical as condições de produção do discurso determinam o
seu sentido.
O discurso musical opera em negociação com a realidade. Entende-se aqui
que a música, enquanto ferramenta linguística, é também portadora e emissora de
ideologia quando, por meio dela é construído e emitido um discurso.
O rap brasileiro veio na contramão das construções narrativas e imagéticas
veiculadas na mídia dominante e pelo Estado que se esforçaram, em especial nas
duas últimas décadas, em mostrar um cenário de paisagens paradisíacas, de
cidades maravilhosas, turísticas, homogêneas e pacificadas. O rap desmonta no
imaginário social o retrato de um Brasil construído a partir de vários recursos
simbólicos canonizados nas músicas ufanistas, na publicidade e campanhas
publicitárias, no caso de São Paulo, para afirmar a imagem da cidade
empreendedora, dos negócios, do recomeço de vida. Esses forjaram e
escamotearam, deliberadamente, uma cidade repleta de tensões e conflitos vividos
no cotidiano da grande maioria dos brasileiros, fruto de desigualdades sociais e
econômicas acentuadas.
As ações que trabalham no sentido de construir imagens de cidade fortalecem
a lógica da competitividade e tendem a favorecer interesses de classe, das coalizões
que sustentam os projetos de cidade, em detrimento dos interesses coletivos.
Enfraquecem o diálogo entre grupos sociais e interferem no uso da cidade e em sua
apropriação espacial e simbólica. (RIBEIRO, 2006, pág. 45)
O rap nasce dentro do conflito das grandes cidades, permitindo repensar um
cenário de menos tensões e ideários vistos anteriormente na Música Popular
Brasileira, como por exemplo, na Bossa Nova, com as representações da juventude
dourada da Zona Sul carioca. Quando não idealiza a situação plural e fragmentária

22
Eder Sader e Marcia Célia Paoli, “Sobre “classes populares” no pensamento sociológico brasileiro”, cit., pág.
52-53
57

do Brasil e ainda desmente a imagem não violenta e resignada de uma camada da


sociedade marginalizada.
A ideia das relações cordiais entre classes, a história normalmente vista a
partir do referencial branco, tudo isto passou a ser questionado via música. Desde
então, a convicção de que se vive na maior nação composta por afrodescendentes
fora do continente africano e que os mecanismos de exclusão construídos
informalmente reservam aos negros a condição inferior foram se tornando cada mais
claros para os rappers:

O Brasil é o país mais inteligente para discriminar os ―negros‖ e os pobres,


por isso ele é falso, aqui no Brasil se usa uma estratégia que vem
funcionando há mais de 400 anos certo! Que é mentir pra você, que é pra
mostrar para os ―negros‖ e para o mundo que o Brasil não é um país racista,
e que aqui o paraíso da integração, e não é isso, há uma máscara que
esconde tudo isso, e não temos como provar, você só consegue ver isso no
dia-a-dia, nas atitudes das pessoas, na atitude da polícia. Quando você vai
arrumar um emprego, nos papéis que os negros fazem nas novelas, nas
revistas, nas grandes modelos que aparecem. (Mano Brown, Revista Mix:
6,40,1997)

De fato, como disse Mano Brown, existe ―uma máscara que esconde tudo
isto‖, mas os rappers estavam empenhados em retirá-la. Este foi o momento em que
os jovens negros, que integravam o movimento hip hop, redescobriram-se a si
mesmos, e mostraram-se como o ―outro‖, com sua práxis nos processos de
construção de identidade.
Ao explicitarem os diferentes mecanismos casuais, as modalidades sociais e
as formas experimentais assumidas pelo banimento nas metrópoles, os rappers se
empenham em repensar a marginalidade a qual estão submetidos. No trecho
destacado da entrevista, Mano Brown sugere que se deve manter uma clara
distinção entre os conceitos folclóricos (WACQUANT, 2005) usados pelos
administradores públicos, pelas autoridades urbanas, pela mídia dominante e pelo
senso comum para designar zonas de exclusão e os conceitos que se devem
descontruir para fazer cair a ―máscara‖ que sustenta a estrutura social desigual e
racista.
58

Para Noam Chomsky23: ―Aquilo que a mídia produz é moldado para atender
às necessidades das instituições de poder e dominação nas quais ela se embute‖.
Tal conceito corrobora para a compreensão do fato do discurso midiático e
hegemônico tratar o rap de maneira pejorativa.
Chomsky fala sobre o poder de manipulação que a mídia exerce nos Estados
democráticos modernos, os quais procuram fazer que o povo seja impedido de
conduzir seus assuntos e que os canais de informação sejam estreita e rigidamente
controlados: ―Outra concepção de democracia é aquela que considera que o povo
deve ser impedido de conduzir seus assuntos pessoais e os canais de informação
devem ser estreita e rigidamente controlados‖. (CHOMSKY, 2013a, p. 10)
Chomsky destaca a importância da mídia para a criação de um consenso
político e ideológico para manter o controle de um sistema que se diz democrático 24,
(segundo a concepção citada acima). O discurso criado pelos meios de
comunicação, atrelados aos interesses do governo e a agentes privados de alto
poder econômico e político, levam um país a crer nas mesmas ideias, por meio de
estratégias de manipulação operacionalizadas pela mídia (a estratégia da distração,
da gradação, do deferido etc.).
No neoliberalismo, o controle é exercido por alguns grandes grupos
capitalistas aos quais o Estado se submete e seu único objetivo é satisfazer os
interesses dos (poucos) donos do capital. Nesse sentido, Chomsky esclarece qual o
papel ocupado pela mídia na política contemporânea, que de tão importante é
denominada de Quarto Poder. A expressão é utilizada para demonstrar que a Mídia
(meios de comunicação de massa) exerce tanto poder e influência em relação à
sociedade quanto os Três Poderes nomeados em nosso Estado Democrático
(Legislativo, Executivo e Judiciário).
Para Ribeiro (2005, p.14), a concepção moralista e moralizadora que hoje
organiza as formas pelas quais são enunciadas as ameaças representadas pelas
manifestas e crescentes distâncias sociais e culturais entre os deserdados e os
23
Noam Chomsky é linguista, filósofo e ativista político. Noam Chomsky é linguista, filósofo e ativista político.
Ele nasceu nos Estados Unidos em 1928 e é professor no Massachusetts Institute of Technology (MIT), onde
leciona desde 1955.
24
Em seu livro, Mídia: Propaganda Política E Manipulação, Chomsky discute sobre qual forma de democracia é
a que vivemos: a democracia com plena participação política de todos ou a controlada pelo governo, através da
mídia? Seus estudos afirmam que é a segunda.
59

vencedores da sociedade do mercado, ao responsabilizar os pobres e excluídos


pela sua pobreza e exclusão, reintroduz no discurso público a ótica estigmatizadora
que demonizou as camadas populares no século XIX, como a ―classe perigosa‖,
marginal e violenta.

Figura 6: Documentário TV Gazeta: A História do Rap Nacional – Episódio 04. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=hu40HEcQ2FQ. Acessado: 02/02/18

―Policia diz que o conjunto de rap incitou violência‖, a matéria atua na


construção de conceitos moralistas que associam os pobres e seus territórios à
violência das ―classes perigosas‖, e a expressão cultural como um meio para praticar
a violência, criminalizando a plateia e os artistas.
Chomsky afirma, recorrendo a Lippmann, que esta democracia que vivemos
possui o intuito de conter o ―rebanho desorientado‖ (o povo), que sem noção de
como realmente acontecem as manobras que garantem a perpetuação do sistema,
aceitam-nas, passivamente. Trata-se, então, de uma democracia de espectadores.
O rapper engajado, não se comporta como espectador quando produz uma
“contrainformação” crítica e voraz ao sistema que estamos submetidos e que o
marginaliza e por essa razão é visto pela mídia hegemônica como promotor de
violência.
Nesse sentido, cabe a pergunta: Quem tem medo do Mano Brown?
Certamente aqueles que se sentem ameaçados por quem desafia a ordem do
60

rebanho descrito por Chomsky: os ―desordeiros‖ rappers do grupo Racionais Mc‘s,


assim chamados pela matéria veiculada ao site de notícias G1.

Figura 7: Matéria Folha Online. Disponível em:


http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u1598.shtml. Acessado: 02/02/2018

―O juiz Maurício Lemos Porto Alves, do Departamento Técnico de Inquéritos


Policiais e Polícia Judiciária, determinou a apreensão na MTV da fita original do
videoclipe da música "Isto é uma Guerra", da banda de rap Facção Central, vetando
sua exibição‖
O videoclipe censurado em questão, do grupo de rap Fação Central, possui
um enredo violento. Na história contada os integrantes da banda representam
bandidos que rendem, sequestram e executam ―burgueses‖ empresário, ―madame‖,
juiz e gerente de banco. Segundo Eduardo, vocalista da banda a intensão do clipe é
mostrar o que leva um periférico a cometer um crime: "Não quero ser o próximo
defunto, os moradores da periferia não querem ser traficantes, não querem roubar,
mas precisam, sim, de uma chance‖ (Eduardo para Folha de São Paulo). Para os
rappers a intensão era a de chamar atenção para os dramas vividos na Zona Sul de
São Paulo, chocando o espectador ao combinar imagens fortes à letra violenta.

É uma guerra onde só sobrevive quem atira


Quem enquadra a mansão quem trafica
Infelizmente o livro não resolve
61

O Brasil só me respeita com um revólver, aí


O juiz ajoelha, o executivo chora
Sequestrar alguém no caixa eletrônico
A minha quinta série só adianta
Se eu tiver um refém com meu cano na garganta
Por que alguém precisava comer
Isso aqui é uma guerra
(Isso Aqui é Uma Guerra, Facção Central)

A música e o videoclipe tem a produção inspirada na vida social, uma


experiência dramática que emerge da representação da realidade pela voz do
rapper. A violência explicita pode ser vista, ao invés de uma ameaça, como uma
tentativa de chamar atenção para uma questão que normalmente é vista pelo
referencial branco. Justamente aquele que acusou o videoclipe de: ―incitar a prática
de roubo a residências, veículos, agências bancárias e caixas eletrônicos, além de
sequestros, porte ilegal de armas, libertação de presos mediante violência, latrocínio
e homicídio, indicando sucesso nas operações criminosas‖.
A letra do grupo Facção Central está carregada de imagens intimamente
ligadas a aspectos sociais e indicam a existência de experiências conflitantes em
torno da construção de um conhecimento que representa a ideia de cidade
controlada e estável. Ao disputar essas representações, o rapper rompe um
monopólio político dominado pela mídia hegemônica, pelos donos do capital e pelo
Estado. As notícias e histórias que estamos acostumados a receber de um
referencial distante são por eles narradas de perto, de quem vivencia na carne, a
violência da vida cotidiana. Uma lupa na ferida aberta que sangra reconfigura e
aproxima da verdade o olhar para a cidade. Ao falar como sujeitos inseridos no viver
urbano, os rappers se colocam na contramão das posições hegemônicas,
escancarando-as com uma experiência social dramática e ainda desagradável aos
olhos de quem quer ignora-las.
É importante compreender as razões pelas quais as temáticas relacionadas
ao crime e à morte violenta suscitam incômodo no ato da recepção em indivíduos
desacostumados a tal conteúdo, pois ameaçam o conformismo de classe. O
incômodo é provindo justamente da ameaça à estabilidade e manutenção de
mundos diferentes. Os indivíduos, sob o domínio dessa lógica se empenham na
tarefa de adquirir e proteger seus bens e se protegerem. Qualquer ameaça à
segurança e estabilidade desses bens pode ser aterrorizante. Medidas autoritárias
62

como a censura do videoclipe são tomadas por atingirem nevralgicamente a


ideologia que mantém a lógica do conformismo de classe.
No entanto, para aqueles indivíduos oprimidos que participam dessa realidade
brutal cotidiana, os assuntos voltados à barbárie social a que são submetidos,
vinculam-se intimamente a seus dramas subjetivos, históricos e sociais. De modo
geral, o conteúdo ideológico das narrativas de rap pressupõe a comunicação de
experiências concretamente vividas pela comunidade ou pela classe social do
rapper.
Portanto, para Eduardo, vocalista do grupo Facção Central: "A intenção da
música é mostrar o criminoso dando um toque para a sociedade e mostrar que ela
pode ajudar". Mas, como aconteceu, pode ser interpretada erroneamente como
apologia ao crime. Os elementos que constituem o rap: letra, sonoridade e
videoclipe posicionam, por meio da narrativa, o sujeito ―no coração da ação‖,
despertando medo. Porém, o núcleo duro do conteúdo crítico do rap se configurara
apenas como reflexo dos dramas sociais enfrentados.
No rap a aparência não apaga a essência, ou seja, a sonoridade e a letra
causam uma ruptura com mercado fonográfico padrão e causam estranhamento por
não diminuírem a tensão entre cotidiano violento e música.
Na matéria mais recente de 2017, veiculada pelo Jornal O Dia25 e pela Revista
Veja26 diz que estudo em andamento na Universidade de Nova York aponta o rap
como estilo musical favorito dos psicopatas.

25
https://odia.ig.com.br/_conteudo/mundoeciencia/2017-09-26/estudo-aponta-o-rap-como-possivel-genero-
favorito-de-psicopatas.html
26
https://veja.abril.com.br/entretenimento/estudo-indica-que-rap-pode-ser-o-genero-favorito-de-psicopatas/
63

Figura 8: Notícia Jornal O Dia. Disponível em: https://odia.ig.com.br/_conteudo/mundoeciencia/2017-


09-26/estudo-aponta-o-rap-como-possivel-genero-favorito-de-psicopatas.html. Acesso: 26/09/17

Com Chomsky entende-se que aquele que representa não está alheio ao que
é representado. Ou seja, quais as relações que mantêm os discursos e as práticas
sociais que o geram? E ainda, quem são os atores sociais que produzem o estudo e
quem são os que produzem a informação e a fazem circular? Um olhar mais atento
busca entender o sentido de toda essa operação.
A informação produzida pelo meio de comunicação e a pela própria
Universidade de Nova York revelam mecanismos que buscam classificar de maneira
novamente negativa os adeptos ao rap. Sabendo que a produção do rap possui
inscrição territorial e de classe bastante definidas, trabalham num sentido de
64

criminalizar e ainda de controlar a sua produção e o seu consumo. Afinal,


comprovado ser o estilo musical dos psicopatas sua popularidade e sua verdade são
achatadas para determinado público que, alheio a sua complexidade, absorve como
verdade a matéria. Denegrindo a imagem do rap, desmoralizam sua potência
cultural, importância política e contranarrativa.
Buscando criar consenso político e ideológico, a matéria opera de maneira
diferente das outras noticias trabalhadas aqui. Ela recorre a um saber científico, que
de certa maneira transmite seriedade, ao invés de criminalizar um determinado
acontecimento, como o ―quebra-quebra‖ de um show de rap ou um videoclipe que
incita a violência. Esta busca criar uma verdade com peso científico.
A configuração sonora do rap pode causar um incômodo, menos musical do
que ideológico, pois a ele vinculou-se a criminalidade, ainda discutida apenas como
um fenômeno ameaçador à sociedade.
Diante do debate apresentado acima, pode-se entender a importância de ver
o rap como instrumento de luta política que disputa sentidos e espaços na sociedade
e na cidade. Quando se entende que as representações atuam como disputas que
evidenciam a luta de classes e não são, de forma alguma, meras descrições
inocentes e naturais.

3.3 Os Espaços de Enunciação do Rap

Em um universo de cinquenta músicas selecionadas e analisadas no presente


trabalho, foram identificados temas recorrentes e diretamente relacionados ao
universo cotidiano da periferia, quais sejam: apartação social, violência de classes,
violência policial, violência racial e segregação urbana. Ver Anexo I – Quadro de
Eixos Temáticos.
A consolidação da barbárie imposta pela lógica capitalista neoliberal, a
precarização das relações de trabalho e do ensino no país, a mercantilização da
vida social e, principalmente, da educação, minimizaram as possibilidades de ações
políticas conscientes, promovendo um nível bastante generalizado de apatia e
conformismo com a realidade. Contra isso, o rap engajado se manifesta também
65

como um sistema orientador das atitudes, em diversas dimensões, ao colaborar para


a construção do sujeito engajado e consciente para uma vida social crítica.
Temas que questionam o preconceito racial, mas também tratam das
estratégias cotidianas que promovem a exclusão dos afrodescendentes na
sociedade contemporânea são recorrentes. A análise das letras faz ressaltar a
dimensão, especificamente racial, da exclusão urbana nas metrópoles e confirma
que as estruturas e políticas estatais assumem um papel decisivo na união de cor,
classe e posição social no território. Mostram que os seus mecanismos genéricos e
suas formas especificas tornam-se inteligíveis se estiverem firmemente ligados à
matriz histórica de classe, do Estado e do sistema hierárquico característico de cada
sociedade. Por esse viés, procuramos, mediante análise discursiva do rap,
compreender corretamente suas condições sociais e interpretar seu destino coletivo
contextualizado.
Raps que resgatam a história da escravidão sob a lente de quem ainda sofre
diretamente com seus efeitos, operam no sentido de situar e empoderar o sujeito
numa perspectiva histórica. A seguir, estrutura-se uma análise mais destrinchada de
algumas músicas, integralmente ou de trechos. Esse exercício aconteceu durante
toda a elaboração da dissertação, porém se fez necessário que aqui o explicitasse
em exemplos para que o leitor esteja ciente dos critérios de análise utilizados e dos
sentidos do rap que sugerem reflexões e pontes com certas categorias e matrizes
teóricas dos autores trabalhados:

Então, quando o dia escurece, só quem é de lá sabe o que acontece.


Ao que me parece prevalece a ignorância, e nós...
Estamos sós.
Ninguém quer ouvir a nossa voz.
Cheia de razões, os calibres em punho, dificilmente um testemunho vai
aparecer
E pode crer, a verdade se omite, pois quem garante o meu dia seguinte?
Justiceiros são chamados, por eles mesmos, matam, humilham e
dão...Tiros a esmo.
E a polícia não demonstra, sequer vontade, de resolver ou apurar a
verdade.
Pois simplesmente é... conveniente.
Porque ajudariam se nos julgam delinqüentes?
As ocorrências prosseguem sem problema nenhum.
Continua-se o pânico na Zona Sul.
(Pânico na Zona Sul, Mano Brown)
66

Um exemplo revelador da posição assumida pelos rappers enquanto cronistas


do cotidiano é a música Pânico na Zona Sul (Racionais MC‘s, 1990). O texto é uma
narrativa realista sobre as atrocidades praticadas nas chamadas ―zonas de guerra‖.
Os problemas da violência urbana, hoje registrados pelos institutos de pesquisa, e
que apontam os jovens como principais vítimas dos homicídios foram interpretados
em linguagem musical. O título do LP Holocausto Urbano (1992) não poderia ter
sido, portanto, mais expressivo. A música Pânico na Zona Sul apareceu como uma
síntese das atrocidades que insistem em permanecer sob a indiferença, injustiça e o
silêncio provocado pelo medo.
Em a Marcha Fúnebre Prossegue, também é possível identificar eixos
temáticos recorrentes no universo do rap engajado, a apartação social, a injustiça
social e judiciária, a violência policial, a privação de moradia e das urgências
necessárias para se viver com o mínimo de dignidade. A fúria contra o Estado e a
classe dominante é explícita.

Não queria o moleque com a faca na mão


Ajoelhando o tio grisalho, querendo seu cartão momix
queria só rimar choro de alegria
Mas na favela não tem piscina, armário com comida
[...]
Cuzão que não concorda com o holocausto brasileiro
Vive no condomínio, limpa o rabo com dinheiro.
Quer o sangue do ladrão, bebendo seu uísque
Protegido na ilusão das grades da suíte
[...]
No céu não tem Deus, só o helicóptero da polícia
Descarregando a traça no fugitivo da delegacia.
[...]
Não simulo sentimento pra vender Cd,
Não vou falar de paz vendo a vítima morrer,
[...]
Não iludo o casal dirigindo feliz a pampa
Fora da blindagem e o sonho a segurança
Quando o portão automático da goma subir
Prepara a senha do cofre pru ladrão abrir
[...]
Sem pai de família gritando assalto ou sendo feito de escravo
Com 151 por mês de salário
Que não enche nem metade do carrinho no mercado
Não paga luz e água, o aluguel do barraco
Aqui pro cidadão honesto ter um teto
Só pondo o fogão na cabeça, invadindo o prédio
Saindo na mão com pm do choque
Sobrevivendo os tiros na reintegração de posse
Pergunta pro tio, do terreno invadido no escuro
O que é um trator transformando tua goma em entulho?
67

(A Marcha Fúnebre Prossegue, Álbum A Marcha Fúnebre Prossegue,


Facção Central, 2001)

A letra do grupo paulista Facção Central foi construída por meio de uma
narrativa que forma imagens de situações vividas ou observadas diretamente. Os
episódios narrados ganham legitimidade na medida em que são afirmados pela
experiência vivida no cotidiano. Desse modo, a produção artística revela o drama da
realidade do pobre na cidade e, por meio dela, se tem o conhecimento do vivido pela
representação, reelaboração e ponto de vista dos rappers.
Em Fim de Semana no Parque, reflexões e denúncias são elaborados como
algo vivido. Os rappers falam com sujeitos inseridos na sociedade e se colocam na
contramão das posições hegemônicas, via de regra, encarando-as como uma
experiência social exclusivamente negativa:

Milhares de casas amontoadas ruas de terra


Esse é o morro a minha área me espera
Gritaria na feira (vamos chegando!)
Pode crer eu gosto disso mais calor humano
Na periferia a alegria é igual
É quase meio dia a euforia é geral
É lá que moram meus irmãos meus amigos
E a maioria por aqui se parece comigo
A número número 1 em baixa-renda da cidade Comunidade
Zona Sul é dignidade
Tem um corpo no escadão a tiazinha desce o morro
Polícia a morte, polícia socorro
Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo
Pra molecada frequentar nenhum incentivo
O investimento no lazer é muito escasso
O centro comunitário é um fracasso
(Fim de Semana no Parque, Racionais MC´s, 1993).

O rapper Emicida, num exercício dialético, interpreta e transforma em ação


(em forma de música) o cotidiano do negro, pobre e periférico. A letra Boa
Esperança faz menção ao Cabo da Boa Esperança localizado ao sul do continente
africano colonizado, cujo nome foi batizado em 1488 pelo então rei João II de
Portugal, na ocasião da sua ―descoberta‖. Mas, a Boa Esperança – canção – porta
também um devir promissor a essa camada oprimida da sociedade, como numa
revanche social: “aguarde cenas do próximo episódio [..] Espera até ver nosso ódio”.
Primeira parte da música:

Por mais que você corra irmão


Pra sua guerra vão nem se lixar
68

Esse é o xis da questão


Já viu eles chorar pela cor do orixá?
E os camburão o que são?
Negreiros a retraficar
Favela ainda é senzala jão
Bomba relógio prestes a estourar

O tempero do mar foi lágrima de preto
Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto
Só desafeto, vida de inseto, imundo
Indenização? Fama de vagabundo
Nação sem teto, Angola, keto, congo, soweto
A cor de Eto'o, maioria nos gueto
Monstro sequestro, capta três, rapta
Violência se adapta, um dia ela volta pu cêis
Tipo campos de concentração, prantos em vão
Quis vida digna, estigma, indignação
O trabalho liberta, ou não
Com essa frase quase que os nazi, varre os judeu? extinção
Depressão no convés
Há quanto tempo nóiz se fode e tem que rir depois
Pique jack-ass, mistério tipo lago ness, sério és
Tema da faculdade em que não pode por os pés
[...]
(Boa Esperança, Emicida, 2015)

A música busca recuperar um passado ―roubado‖, pasteurizado,


desapropriado, por muito apagado que é a história da escravidão no Brasil e da
dívida social não reconhecida pelos livros do ensino tradicional. Emicida recorre a
símbolos religiosos buscando afirmar a cultura e a identidade afro-brasileiras. Boa
Esperança ainda faz diversas referências à violência racial, policial e de classe.
“Por mais que você corra irmão / Pra sua guerra vão nem se lixar / Esse é o
xis da questão / Já viu eles chorar pela cor do Orixá?”: o refrão faz referência à
causa negra e às lutas pelo seu reconhecimento. Já introduzindo que elas são
tomadas como inferiores, sendo dominadas por outras visões, culturas e religiões.
Emicida termina o primeiro verso fazendo questionamento sobre o Orixá.
Reafirmando a resistência e perseguição religiosa promovida por “eles” contra os
adeptos das religiões de matriz africana. Negando a disposição deles/os outros de
se colocarem no lugar dos negros e oprimidos. A distinção entre “nós e eles”
aparece em toda semântica da letra.
“E os camburão o que são? / Negreiros a retraficar / Favela ainda é senzala
jão”: o verso faz ligação entre as condições sociais do negro enfrentadas na
escravidão com as condições sociais enfrentadas na atualidade. Emicida tece
69

referências entre o tráfico negreiro e o camburão, fazendo alusão à população


carcerária brasileira, que em sua grande maioria é de jovens negros. Também
estabelece ligação sobre o tipo de habitação que era destinada aos escravos,
senzala, e a favela. A favela substituiu o local da senzala. A favela é a senzala dos
dias atuais, onde se situa a reserva de mão de obra mantida pelo atual sistema de
exploração (antes escravocrata). Lugar daqueles negligenciados pelo Estado.
Em outros raps Emicida também faz referência à revolta dos negros
oprimidos: “bomba relógio prestes a estourar”. Como no rap “Ce lá faz ideia” do
álbum Emicídio:

―São regras do mundão/ Perdi as contas de quantos escondem a bolsa se


eu digo: que horas são?/ Inspirando piada nos boy, transpirando medo nas
tia/ Tudo é tão óbvio/ Cê não vê e vai juntando ingrediente da bomba
relógio/ Eu sinto dor, eu sinto ódio‖.

A mensagem é reforçada na estética do clipe oficial, onde os trabalhadores de


uma casa cansados dos abusos explodem toda sua fúria contra os patrões.

Figura 9: Cenas do clipe Boa Esperança. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=AauVal4ODbE. Acesso: 23/05/2017

Nas cenas do videoclipe destacadas acima, vê-se a estratégia criada pela


equipe de criação quando choca o espectador com cenas de revolta e agressão
operadas pelos empregados da mansão. Vê-se uma mudança de comportamento e
atitude psicológica dos protagonistas do clipe. Uma ruptura com a ordem social, aqui
subvertida. Antes, os empregados estão submissos, ―encolhidos‖, humilhados,
sofrendo inúmeros constrangimentos por parte dos patrões. Um determinado abuso
de poder marca o começo da revolta dos empregados que se rebelam e tomam a
―casa grande‖ se utilizando de armas. O fluxo da violência quando munda de
70

direção, choca. Antes a agressão patrão-trabalhador é passada como prática


natural, depois, com a reviravolta comportamental dos empregados que decidem
não aceitar mais a agressão ―socialmente aceita‖ vinda dos patrões, tomam a casa e
rendem seus patrões. A atitude de revolta vira notícia do telejornal ao final da
história contada no videoclipe.
Devido à grande aproximação com a realidade social, o roteiro do vídeo,
assim como a narrativa da letra podem ser interpretados erroneamente, como
apologia a violência, suscitando interpretações distorcidas. Como debatido no
subitem 3.2, essas distorções são operadas em grande parte pela mídia. Como no
caso do clipe do grupo Facção Central que teve sua exibição censurada.
A revolta presente no conteúdo da letra, também aparece na estética sonora,
com batidas fortes, soa ao fundo um coro de vozes entoando uma melodia
ameaçadora. No videoclipe, a estética também reforça a atmosfera de revolta. A
fotografia é escura e nublada, os patrões vestem um figurino branco, enquanto os
empregados vestem preto. Evidenciando o conflito entre os dois lados. Um jogo de
luz e sombra por vezes ilumina e sombreia as faces dos atores. Como numa dança
de colocar e retirar máscaras.
A respeito da produção identitária com uma clivagem de classe, cabe o
diálogo com Gramsci. Nos cadernos escritos durante o cárcere, Gramsci desenvolve
uma reflexão sobre a necessidade da formação de uma consciência crítica e de uma
nova concepção de mundo dos grupos subalternos. Desse modo, letra, sonoridade e
videoclipe trabalham num sentido de promover a reflexão sobre as condições dos
subalternos quando inverte o fluxo da violência: patrão-trabalhadores.
Nos versos de Emicida “O tempero do mar foi lágrima de preto / Papo reto,
como esqueletos, de outro dialeto / Só desafeto, vida de inseto, imundo /
Indenização? Fama de vagabundo / Nação sem teto, Angola, keto, congo, soweto /
A cor de Eto'o, maioria nos gueto” ele opera um deslocamento de visões.
Normalmente recebido pelo referencial branco e do colonizador. Como no poema
―Mar Português‖ de Fernando Pessoa que se inicia com os versos:

―Ó mar salgado, quanto do teu sal


São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!‖
71

A mesma travessia no Oceano Atlântico, duas perspectivas diferentes. De um


lado, a história pela lente do colonizador que se aventurou, por livre e espontânea
vontade, numa viagem desconhecida, deixando para trás lágrimas de saudade. Do
outro, a lente daquele que foi arrancado e em condições degradantes cumpriu uma
travessia compulsória, deixando lágrimas de dor. Emicida expõe aqui o momento
histórico pela lente dos traficados, de quem compulsoriamente e em condições
mortificadoras fez a travessia do Oceano Atlântico para chegar em solo americano
como “esqueletos”, encontrando outro ―dialeto”, vivendo uma “vida de inseto”.
Já no verso: “Indenização? Fama de vagabundo‖, Emicida faz referência às
atuais (e ameaçadas) políticas sociais do país (como, por exemplo, a de cotas
destinadas aos negros e índios) e que carregam a opinião de que são “medidas que
favorecem vagabundos”. Ou seja, de que não deveriam existir quando são
duramente criticadas por parte da população.
No verso seguinte: “Nação sem teto”, faz referência aos escravos africanos
arrancados de seus lugares de origem, de seus territórios. No verso seguinte
Emicida faz referência ao craque Samuel Eto'o Fils do futebol camaronês.
Estabelecendo conexões entre tempos, territorialidades e condições sociais, Emicida
expõe por meio da música dados estatísticos que provam as perversidades do
sistema. Segundo o Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades,
CEERT: ―Levantamento da Secretaria Municipal de Promoção e Igualdade Racial
mostra que a população negra está concentrada na periferia de São Paulo. Os
bairros do extremo das Zonas Sul e Leste de São Paulo lideram o ranking dos
distritos com o maior número de afrodescendentes‖. O verso também pode ser visto
pelo viés do empoderamento quando cita Eto‘o. Considerado herói nacional, Eto‘o
possui os mesmos descentes e cor da pele da maioria dos periferizados de São
Paulo.
72

Figura 10: Campo de concentração, Auschwitz, inaugurado em 1940.

“Tipo campos de concentração, prantos em vão / Quis vida digna, estigma,


indignação / O trabalho liberta, ou não / Com essa frase quase que os nazi27, varre
os judeu? Extinção”. O verso faz referência à frase ―Arbeit Macht Frei‖ – em
português “o trabalho liberta”, a placa exposta no portão do primeiro campo de
concentração, Auschwitz, inaugurado em 1940 e o mais famoso e cruel posto de
extermínio de todos os construídos naquela época. A ilusão implantada pelos chefes
dos campos de concentração que se os prisioneiros - não somente judeus, mas
todas as minorias - trabalhassem incessantemente sem reclamar, ganhariam sua
liberdade.
Nos versos : “Depressão no convés / Há quanto tempo nóiz se fode e tem que
rir depois / Pique jack-ass, mistério tipo lago ness, sério és / Tema da faculdade em
que não pode por os pés”. Nesse sentido, a referência ao Jackass é feita, pois,
assim como no programa da TV norte americana, a dor é a piada do telespectador,
nesse caso a dor dos negros também foi relacionada como ―piada de mau gosto‖.
Além disso, a referência ao Lago Ness se deve ao fato de que, assim como o
mistério do Monstro do Lago Ness não foi resolvido, o racismo se mantém como um
tabu no nosso país. Segundo fonte do IBGE a população negra nas universidades é
menos da metade da população branca. O dado estatístico mostra que há uma
dificuldade severa imposta aos negros para conseguirem acesso ao ensino superior.

27
Nazistas
73

Segunda parte da música:


Nessa equação, chata, policia mata? Plow!
Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão
Desacato invenção, maldosa intenção
Cabulosa inversão, jornal distorção
Meu sangue na mão dos radical cristão
Transcendental questão, não choca opinião
Silêncio e cara no chão, conhece?
Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece
Vence o Datena, com luto e audiência
Cura baixa escolaridade com auto de resistência
Pois na era cyber, ceis vai ler
Os livro que roubou nosso passado igual alzheimer, e vai ver
Nóiz quer ser dono do circo
Cansamos da vida de palhaço
Aguarde cenas do próximo episódio
Cês diz que nosso pau é grande
Espera até ver nosso ódio
(Boa Esperança, Emicida, 2015)

Todos os anos milhares de jovens negros são mortos pela violência policial,
sendo as periferias as mais afetadas: “Médico salva? Não! Por quê? Cor de ladrão”.
Portanto, “Nessa equação, chata” os jovens negros são os subtraídos.
Em “Desacato invenção, maldosa intenção / Cabulosa inversão, jornal
distorção” os versos fazem referência ao abuso policial e de autoridade contra os
negros. E ainda às distorções operadas pela grande mídia quando associa
diretamente a imagem do negro à violência:

Figura 11: Matéria disponível em: http://outraspalavras.net/outrasmidias/destaque-outras-


midias/shopping-vitoria-corpos-negros-no-lugar-errado/. Acesso: 02/02/17
74

Fila indiana, mãos na cabeça, corpos sem roupa. Dezenas de brasileiros


humilhados por ousarem comparecer a um território de gente branca. Em Vitória, a
Polícia Militar invadiu um píer onde estava sendo realizado um baile funk, alegando
que estaria havendo briga entre grupos. Umas dezenas de jovens fugiram,
amedrontados, e se refugiaram num shopping próximo. Entretanto, os
frequentadores do shopping ao entrarem em pânico, vendo seu ―fetiche de
segurança‖ ameaçado por ―indesejáveis, vestidos como num baile funk‖, de tez
escura e fragilizando o limite das vitrines que separam os consumidores de seus
desejos, chamaram a PM, acusando os jovens de quererem fazer um arrastão.
Segundo Queiróz Ribeiro (2005, p14, apud WACQUANT) o recalcado pânico
social das ―classes perigosas‖ retorna ao imaginário coletivo na sua versão social-
politica, e participa da condenação do subproletariado urbano. Condenando-o à
desqualificação, à invisibilidade e à inutilidade sociais, transforma-o de fração pobre
do salariat em segmento marginal da sociedade. Condenando-o à exclusão da
divisão social do trabalho e a viver em uma economia da pobreza, não raro
alimentando-o com as práticas do capitalismo predatório das drogas e do roubo.
Condenando-o à privação da capacidade de construir identidades, permite-lhe
desencadear ações coletivas emancipatórias. Condenando-o ao cárcere de um
ambiente cultural que incentiva e valoriza a prática da violência como o único
recurso simbólico produz, especialmente para os jovens, a ilusão do reconhecimento
social. O pobre, negro, circulando em um território que não o é de origem é tido,
automaticamente, como criminoso. Os versos da música ―Beco sem saída‖ ilustram,
através do olhar do rapper, a reflexão acima:

A burguesia, conhecida como classe nobre


tem nojo e odeia a todos nós, negros pobres
Por outro lado, adoram nossa pobreza
pois é dela que é feita sua maldita riqueza
(Beco sem Saída, albúm Holocausto Urbano, 1990, Racionais MC‘s)

Nos versos: “Meu sangue na mão dos radical cristão / Transcendental


questão, não choca opinião / Silêncio e cara no chão conhece? / Perseguição se
esquece? Tanta agressão enlouquece”, segundo fonte, no Brasil, nos últimos nove
anos calcula-se que pelo menos vinte e dois sacerdotes das religiões de matriz
75

africana foram assassinados. Em 2015, tornou-se conhecido o caso da menina


vítima da intolerância religiosa no Rio de Janeiro.

Figura 12: Matéria G1: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/06/menina-vitima-de-


intolerancia-religiosa-diz-que-vai-ser-dificil-esquecer-pedrada.html. Acesso: 03/02/18

No verso: “Vence o Datena, com luto e audiência” Emicida faz referência a


programas de cunho sensacionalista, como o do apresentador Datena, que mostram
casos de perseguição policial e contribuem para construção da a imagem do pobre e
negro como o fora da lei. Ganham audiência por defender a opinião de que ―bandido
bom, é bandido morto‖.
Em outro extremo se encontra o Estado que mantém a população periférica
sem acesso à educação, agravando o quadro de violência. No verso: “Cura baixa
escolaridade com auto de resistência” Emicida faz referência a situações onde o
policial alega que houve reação da vítima e agiu em legítima defesa. Fazendo
crescer a estatística de negros mortos nas periferias. Sendo essa a medida para
―curar‖ a baixa escolaridade.
“Pois na era cyber, ceis vai ler / Os livro que roubou nosso passado igual
Alzheimer”. Aqui a crítica é sobre como a cultura e a história dos negros é
esquecida, como a perda de memória provocada pela síndrome de Alzheimer. A
crítica se resume em dizer que a conscientização sobre a maioria pobre em nosso
país ser de negros por conta dos desdobramentos de um passado escravocrata é
incipiente, e não por acaso. Um sujeito que detém o saber de sua história social
pode se emancipar, por exemplo, de lógicas falhas como a da meritocracia.
76

Nessa outra canção, a experiência de classe surge como uma experiência


velada, a qual é enfrentada por meio do referente territorial: ―para atravessar‖, ―a
parede‖, ―o Palácio‖, o ―capão redondo‖, a ―rua‖. Ver só um lado, para o rapper, é
não saber atravessar mundos sociais. Para fazê-lo, ―só rasgando‖, passagem que
denota a violência percebida no cotidiano, assim como a reação diante de sua
contundência.

Há um véu entre as classes/ Entre as casas, entre os bancos/ há um véu,


uma cortina, um espanto/ tanto que para atravessar só rasgando/
atravessando a parede/ a invisível parede/ apareçam no Palácio, na tela,
nas janelas das celebridades/ mas minha palavra não sou só eu, minha
palavra é a cidade/ Mundão redondo/ capão redondo/ coração redondo, na
ciranda da solidariedade/ a rua é nóiz cumpadi/ quem vê só um lado do
mundo, só sabe um lado da verdade/ inventando o que somos/
minha mão no jogo eu ponho.
(Nóiz, Emicida)

Desvelar a dura existência cotidiana significa, para o rapper, re-existir, resistir.


Atravessar os véus pode levar, então, à transparência das relações, à consciência
em relação às mesmas. Para Marx:

O reflexo do mundo religioso real só pode desaparecer quando as relações


cotidianas da vida prática se apresentam diariamente para os próprios
homens como relações transparentes e racionais que eles estabelecem
entre si e a natureza. A figura do processo social da vida, isto é, do
processo material de produção, só se livra de seu místico véu de névoa
quando, como produto de homens livremente socializados, encontra-se sob
seu controle consciente e planejado. Para isso requer-se uma base material
da sociedade ou uma série de condições materiais de existência que, por
sua vez, são elas próprias natural-espontâneo de uma longa e excruciante
história de desenvolvimento.‖ (MARX, 2013, p. 154)

Os rappers estariam desse modo, na linha de pensamento marxista, se


libertando de seu ―místico véu de névoa‖ e estimulando as pessoas a escreverem a
sua história.

Cada um de nós tem o seu próprio livro


O conteúdo é todo seu seja bem vindo
Chega de separação humilhação
[..]
O escritor maravilhoso é você
Quanto melhor a sua história melhor irá sobreviver
(O Livro da Vida, Sistema Negro, 2003)
77

E a derrubar ―paredes e muros‖ invisíveis aos olhos, mas bastante concretas


aos sentidos:

Se conseguiram derrubar uma muralha real, de pedra


você pode conseguir derrubar esta
Leia, ouça, escute, ache certo ou errado
mas meu amigo, não fique parado
(Beco sem Saída, albúm Holocausto Urbano, 1990,
Racionais MC‘s)

A prática musical integra uma experiência mais ampla que envolve a forma
como os artistas experimentam, interpretam e atuam no mundo. Portanto, o fazer
musical no rap não se reduz ao experimento artístico estrito. Os atos de composição
e execução musical mobilizam experiências sociais concretas. A apresentação de
uma música tem como finalidade instaurar redes de sociabilidades, reforçar
solidariedades, compartilhar significados relativos à experiência social e luta. É essa
dimensão ativa do rap.

3.4 Rap: Ação Insurgente e Ativismo Urbano

As práticas alternativas e os espaços inventados por grupos perturbam os


saberes dominantes. Há o perigo de que esse deslocamento de visões leve
a pensar diferente e a um conhecimento que fuja, que escape, à hegemonia
28
do saber acadêmico ou institucional. (MIRAFTAB)

A narrativa insurgente, uma vez que se manifesta e se impõe a despeito das


formas de poder estabelecidas, quando não em franca oposição a estas, afirma
tanto a ―periferia‖ território – como os subúrbios e, notadamente, as favelas quanto a
―periferia‖ do discurso – aquele produzido por jovens moradores desses locais –
como lugares de produção simbólica muito importantes. A partir daí, é possível dizer
que o espaço da periferia oferece outro ingrediente para a cultura.
Para Faranak Miraftab, movimentos insurgentes não se restringem aos
espaços de participação cidadã sancionados pelas autoridades (o que para Miraftab
são os ―invited spaces‖); eles inventam novos espaços ou se reapropriam de antigos
espaços onde podem invocar os seus direitos de cidadania para promover seus

28
Faranak Miraftab é PhD pela University of California, Berkeley, EUA; Docente do Departamento de
Planejamento Urbano e Regional na University of Illinois em Urbana-Champaign, EUA.
78

interesses contra-hegemônicos. A fluidez caracteriza as práticas de cidadania


insurgente: através do entrelaçamento entre inclusão e resistência elas se movem
pelos espaços de cidadania em que são convidadas e naqueles onde são
inventadas‖. (MIRAFTAB, 2009, p. 5)
Miraftab diz que a ação insurgente avança ao abrir para não apenas formas
selecionadas de ação dos cidadãos e de suas organizações sancionadas pelos
grupos dominantes, as quais designa de ―espaços de ação convidados‖; mas
também as insurreições e insurgências que o Estado e as corporações
sistematicamente buscam colocar no ostracismo e criminalizar – que designa de
―espaços de ação inventados‖.
Nesse sentido, o discurso voco-sonoro que caracteriza o rap promoveu
rupturas em diversos campos. No campo da música popular, fez com que as
sonoridades da rua, as vozes contendo inflexões próprias e gírias, peculiares aos
jovens situados nos subúrbios e periferias urbanas, tornaram-se audíveis na cidade
de São Paulo. Quanto ao mercado fonográfico, também promoveu ruptura quando o
sistema FM de rádio ao lado da mídia hegemônica, praticamente ignoraram o rap
quando não o detrataram, a difusão da proposta musical foi garantida por um
sistema paralelo, integrado por pequenas gravadoras, rádios comunitárias, shows
em casas noturnas e eventos ao ar livre. Inventando novos espaços o rap insurgente
foi se firmando como importante pilar para cultura e ainda, como ferramenta de luta
por novos e antigos espaços sociais da cidade.
Práticas insurgentes perfazem uma ruptura ontológica não por almejarem
uma fatia maior da torta, mas por desejarem um outro tipo de torta – uma torta
ontologicamente distinta. As práticas insurgentes não buscam por inclusão através
de uma melhor representação (seja de especialistas ou de políticos); mas buscam a
inclusão autodeterminada, na qual os direitos das pessoas são reais e praticados.
(MIRAFTAB, 2016, p. 368)
O caso do ativismo do rapper Emicida é exemplar para demonstrar a atitude
insurgente do rap e como a música pode ser um espaço inventado para chamar
atenção para determinada causa. A Letra ―Dedo na Ferida‖ critica a polícia pela
desocupação violenta de Pinheirinho, em São José dos Campos, São Paulo, em 22
79

de janeiro de 2012, cinco mil moradores foram retirados durante a reintegração de


posse, que contou com a participação de 2 mil PMs.

―Porque a justiça deles, só vai em cima de quem usa chinelo / E é vítima,


agressão de farda é legítima. / Barracos no chão, enquanto chove. / Meus
heróis também morreram de overdose, / De violência, sob coturnos de
quem dita decência. / Homens de farda são maus, era do caos, / Frios como
halls, engatilha e plau! / Carniceiros ganham prêmios, / Na terra onde bebês
respiram gás lacrimogênio‖
(Dedo na Ferida, Emicida, 2013)

Em uma apresentação gratuita, parte do festival Palco Hip Hop, na região do


Barreiro em Belo Horizonte, o rapper Emicida também usou a música para criticar a
ação da PM mineira na desocupação, de um terreno invadido por 350 sem-teto na
Vila Santa Rita. O rapper foi encaminhado para a 36ª Delegacia Seccional do
Barreiro após o término do show. Segundo a assessoria de imprensa da polícia,
houve a preocupação de que a atitude de Emicida levasse o público a praticar atos
de vandalismo.
A prisão foi noticiada no Jornal local: ―Desacato leva o rapper Emicida à
prisão em BH. Artista paulista é detido em show do festival Palco Hip Hop no
Barreiro, onde cantou uma música com críticas à polícia‖:

Figura 13: Matéria Jornal Gerais. Disponível em:


(https://www.em.com.br/app/noticia/gerais/2012/05/14/interna_gerais,294085/desacato-leva-o-rapper-
emicida-a-prisao-em-bh.shtml. Acesso: 02/07/17

Cenas do videoclipe da música ―Dedo na Ferida‖ mostram cenas da remoção


dos moradores de Pinheirinho:
80

Figura 14: Clipe Emicida. Disponível em:(https://www.youtube.com/watch?v=QdvYAjQYdIs. Acesso


01/03/18

A notícia da prisão no Blog Eus-R veio acompanhada da charge abaixo: ―13


de maio de 2012. Um negro é preso em BH por cantar uma música.‖

Figura 15: Charge Emicida. Disponível em: https://eusr.wordpress.com/2012/05/14/rapper-emicida-


preso-em-bh/. Acesso: 04/08/17

Faranak corrobora para o debate colocado no subitem 3.2 quando diz que as
instituições de poder, tais como a mídia dominante e o Estado, configuram os
espaços inventados tentando os criminalizar como espaços ―apropriados‖ para as
vozes e participação dos cidadãos fora de controle.
Quando o indivíduo consciente dotado de poder de análise e representação,
desafia o confinamento e a conformação das ações dos cidadãos às normas do
Estado democrático liberal e do aparato de mercado, por meio da expressão artística
81

do rap, promove uma ação insurgente como cidadão percebedor e imaginante,


usando práticas criativas para induzir uma ruptura e criar algo novo. Como fez o
rapper Emicida ao afirmar e representar ao seu modo o território de Pinheirinhos e
seus moradores.

4. Considerações finais

Quase sempre minorias criativas e dedicadas tornam o mundo melhor.


(Martin Luther King)

O rap, mais que um gênero musical, exprime a experiência urbana dos


periféricos na cidade de São Paulo. Constitui-se como um símbolo de resistência
cultural e ativismo urbano, como este trabalho buscou discutir.
Resultado de uma fusão entre gênero musical, sistema orientador e ativismo,
o rap é portador de ideologias e narrativas que possibilitam a aproximação à
realidade periférica e ainda localizá-lo como movimento social, que processa e
critica a realidade.
A posição dominante classifica cor, raças, territórios e valores na sociedade,
e impõem modos de ser, agir, normas, códigos de comportamento, códigos
estéticos etc. O etiquetamento, a classificação apressada, entre tantas outras a
cultural, surge como meio de excluir. Ou seja, como um dos diversos mecanismos
de dominação por exclusão. Nesse sentido, se tomarmos o referencial dominante, o
rap, trilhou um caminho de desprestígio, sendo muitas vezes considerado subcultura
por ter classe e território definidos. A configuração sonora do rap causa, portanto,
um incômodo muito mais ideológico do que musical.
As desigualdades sociais e, particularmente, raciais, a promoção de valores
meritocráticos em uma sociedade que não oferece as mesmas oportunidades para
todos, o consumismo exacerbado, o acúmulo do capital em detrimento da
distribuição de renda, o sistema judiciário, todos esses planos são definidos e
estabelecidos por um sistema que pune e condena a pobreza, recorrendo ao
território para sua materialização. Sob o domínio dessa lógica, percebemos a nítida
82

clivagem social que estabelece perfis para exclusão, nos quais indivíduos pobres e
negros são alvos, e hoje, automaticamente vistos como suspeitos.
No decorrer do presente trabalho, observamos que os mecanismos que
imobilizam o sujeito relacionando-o a uma classe social e território são a causa, não
o efeito, das políticas estatais. As políticas trabalham num sentido de garantir a
manutenção das desigualdades. Para a continuação da segregação urbana como
uma determinação histórica, prevê mecanismos de controle e dominação, como por
exemplo, a negativação da expressão cultural periférica.
A determinação histórica fica evidenciada quando a figura do pobre e a figura
do negro se confundem, normalmente, perfazendo uma só. Quanto à criminalização,
esta ocorre como mecanismo de domínio e controle para manutenção do sistema.

No Brasil, o Código Penal de 1890 (promulgado dois anos após a


publicação da Lei Áurea) ressalta o aspecto racista da sociedade
republicana da época: as disposições do Título XIII, ―Dos vadios e
capoeiras‖, criminalizavam a vadiagem (basicamente não exercer ofício,
profissão ou não possuir meios de subsistência e domicílio certo) e a prática
da capoeira (inclusive prevendo como agravante a prática em grupo e
qualificando a prática de capoeira pelo mestre); já as disposições do Título
III criminalizavam o curandeirismo, o espiritismo, a magia e até mesmo o
uso de talismãs. Nem seria preciso dizer que tais condutas estavam
diretamente relacionadas aos negros: seja em relação à própria cultura
africana e afrodescendente, seja pela situação do negro naquele momento
histórico. (FRADE, 2015)

É evidente que o racismo, legalizado até 1940 (quando promulgado um novo


Código Penal) e legitimado até hoje vem se mantendo aliado à situação de pobreza
e exclusão territorial. O processo histórico ainda desencadeou a construção dos
estereótipos de delinquentes, pela classe dominante majoritariamente branca.
A segregação urbana, agravada em São Paulo a partir da década de 1980,
com o erguimento dos muros e a construção de enclaves fortificados, investimentos
em sistemas de segurança eletrônicos, reclusão em condomínios fechados,
passaram a integrar um conjunto de ações que utilizam como justificativa o aumento
da violência nas áreas centrais. O novo padrão refletiu a orientação defensiva das
elites em relação aos espaços públicos e também a sistemas de disciplina e
83

discriminação social, pois a imagem do suspeito é feita de estereótipos e,


consequentemente, a triagem discrimina os pobres e negros.
Dessa forma o rap, cantado e composto geralmente por sujeitos negros
moradores de periferias é, equivocadamente, classificado como proveniente de uma
subcultura ou mesmo da delinquência. Contudo, esse sentimento de exclusão e
violência de classe é justamente a inspiração que alimenta os rappers, suas críticas
e protestos em um ativismo urbano.

O rap foi compreendido no trabalho como ativismo urbano e ação insurgente.


Por meio dele, o rapper pode se colocar e informar a sociedade sobre situações
diversas, sob seu ponto de vista, de uma forma criativa e crítica. Como foi possível
perceber ao longo desta pesquisa, a construção do espaço social acontece no
cotidiano, por atores que vivenciam, representam e concebem o espaço. Dessa
forma, os rappers, ao escolherem o cotidiano como fonte de inspiração e enredo
para suas músicas, disputam esses espaços em suas dimensões simbólica,
material, territorial e política.
84

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REVISTA FÓRUM. Entrevista com Mano Brown, nº 1, setembro de 2001.
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REVISTA TEORIA E DEBATE. Entrevista com Mano Brown, nº 46, nov./dez. 2000 a
jan. 2001.
REVISTA TRIP. Entrevista com Mano Brown, setembro de 1999.
89

Músicas

A Marcha Fúnebre Prossegue, Álbum A Marcha Fúnebre Prossegue, Facção


Central, 2001
Beco sem Saída, Álbum Holocausto Urbano, Racionais MC‘s, 1990
Boa Esperança, Emicida, 2015
Capítulo 4 Versículo 3, , Álbum Raio X do Brasil, Racionais Mc´s, 1993
Cê Lá Faz Idéia, Álbum Emicídio, Emicida 2010
Centro da Cidade, Álbum Hip Hop Cultura de Rua, Mc Jack, 1988
Dedo na Ferida, Album Criolo & Emicida Ao Vivo, Emicida, 2013
Fim de Semana no Parque, Racionais MC´s, 1993
Isso Aqui é Uma Guerra, Facção Central, Álbum Versos Sangrentos, 2000
Nóiz, Albúm O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui, Emicida, 2013
O Livro da Vida, Sistema Negro, 2003
Pânico na Zona Sul, Álbum Holocausto Urbano, Racionais MC´s, 1990
Tempos Difíceis, composta por Edi Rock e Kl Jay, Racionais Mc‘s e lançada em seu
álbum Holocausto Urbano, 1990.
Vida Loka parte II, Álbum Nada Como um Dia Após o Outro, Racionais MC‗S. 2002
90

ANEXO I – QUADRO DE MÚSICAS / EIXOS TEMÁTICOS

Coti- Violência Violência Luta de Autocon Exclusão Exílio


MÚSICAS diano Policial Racial Classes sciência Social Espacial
"Pânico na Zona
Sul"

Holocausto Urbano
"Beco Sem

Racionais Mc’s
Saída"

Albúm:

1990
"Hey Boy"
"Racistas
Otários"
"Tempos
Difíceis"
"Voz Ativa‖ 1992
Fim de Semana

Racionais Mc’s
No Parque

Raio X do
Albúm:

Brasil
Mano na Porta

1993
do Bar
Homem na
Estrada
Capítulo 4

Sobrevivendo no Inferno
Versículo 3
Diário de um

Racionais Mc’s
Detento

Albúm:

(1997)
Periferia É
Periferia
Qual Mentira Vou
Acreditar
Fórmula Mágica
da Paz
Negro Drama Nada Como um Dia Após o
Vida Loka
(Parte II)
Racionais Mc’s

Outro (2002)

Na Fé Firmão
Albúm:

A Vida É Desafio

Crime Vai e Vem

Jesus Chorou
Cada vez mais DMN
preto (1993)
DMN
H. Aço
(1998)
Saída de DMN
Emergência (2001)
91

DMN
Essa é a cena
(2003)
A Blazer

O Trem
Uma Multidão

(2003)
RZO
Rumo à Solidão
Paz Interior
Rap é isso aí

Real Periferia
Rap é
Compromisso

Compromisso
Álbum: Rap é
Respeito É Pra

Sabotage

(2000)
Quem Tem
Canão Foi Tão
Bom
Na Zona Sul
A Marcha Facção
Fúnebre Central
Prossegue
Versos
Sangrentos
Isso Aqui é Uma
Guerra
Cê Lá Faz Idéia Emicida

Boa Esperança Emicida

Nóiz Emicida

Dedo na Ferida Emicida

Sistema
O Livro da Vida Negro
(2003)
Convoque seu Buda

Duas de Cinco
Criolo. Album:

( 2014)

Sucrilhos
Convoque seu
Buda
Cartão de Visita
Versos Inquérito
Vegetarianos 2014
Corpo e Alma
92

Escala de cinza gradua (de menor a maior) a presença de determinado eixo temático por
música.

ANEXO II – MÚSICAS CITADAS NO TEXTO

A Marcha Fúnebre Prossegue, Álbum A Marcha Fúnebre Prossegue, Facção Central,


2001
Não queria o moleque com a faca na mão
Ajoelhando o tio grisalho, querendo seu cartão
Queria só rimar choro de alegria
Mas na favela não tem piscina, armário com comida
Só gambé gritando deita, pru mano de escopeta
Que na fita do pagamento fuzilou o dono da empresa.

Cuzão que não concorda com o holocausto brasileiro


Vive no condomínio, limpa o rabo com dinheiro.

Quer o sangue do ladrão, bebendo seu uísque


Protegido na ilusão das grades da suíte
Sua paz está no luto decretado pelo tráfico, comércio fechado, tipo feriado
Tá na bala perdida do fuzil varando sua porta
Explodindo teu mundo rosa, te pondo na cadeira de rodas
Na gravação do circuito interno do Bradesco.
Rouba a banco, querendo enterro, ladrão trocando pra não ser preso
No céu não tem Deus, só o helicóptero da polícia
Descarregando a traca no fugitivo da delegacia.

Aqui o corujão só passa bang-bang


No fim do arco-íris o dono do jato vomita sangue.
Leva vigia, colete e blindagem, pra ir pro restaurante,
Senão é viúva chorando e Omega zero no desmanche.

Não vou rimar felicidades no meu rap,


Se aqui filha da puta a marcha fúnebre prossegue.

[Refrão]
A paz tá morta, desfigurada no Iml, (pra,pra,puuum)
A marcha fúnebre prossegue.

Tá rindo! Quer dançar, quer se divertir...


Meu relato é sanguinário, playboy não vai curtir
Sou homem pra falar que o moleque do pipa
Esquecido um dia troca tiro com a polícia

Não simulo sentimento pra vender Cd,


Não vou falar de paz vendo a vítima morrer,
Vendo no Dp, mano cumprindo pena
Matando o seguro pra ter transferência

Vendo a criança no norte comendo caquitos, gambé desovando mais um corpo no mato
93

Não iludo o casal dirigindo feliz a pampa


Fora da blindagem e o sonho a segurança
Quando o portão automático da goma subir
Prepara a senha do cofre pru ladrão abrir
Que Deus deixe ele encontra madame e sua esmeralda
Senão ele arranca seu coração na faca

A polícia vai chegar só pra fazer perícia


Quando alguém se incomoda com o cheiro de carniça

No balcão, uma com limão pra esquecer o desemprego


E bater na mulher, quando chegar a noite bêbado
Deis da 4 da manhã nem vaga pra lavar privada
O mano perde a calma, mata a família e se mata
Caixão lacrado não estimula verso alegre
Se aqui filha da puta, a marcha fúnebre prossegue.

[Refrão]

Queria que a vida fosse igual na novela


Jet esqui na praia, esqui na, neve européia
Sem pai de família gritando assalto ou sendo feito de escravo
Com 151 por mês de salário

Que não enche nem metade do carrinho no mercado


Não paga luz e água, o aluguel do barraco

Aqui pro cidadão honesto ter um teto


Só pondo o fogão na cabeça, invadindo o prédio
Saindo na mão com pm do choque
Sobrevivendo os tiros na reintegração de posse
Pergunta pro tio, do terreno invadido no escuro
O que é um trator transformando tua goma em entulho?

Arrombado que me critica, me mostra o povo sorrindo


De carro, casa própria, churrasco no domingo

Será que é miragem um mendigo que come osso


Gambé porco que pela tua cor, deforma seu rosto

Do menino com a 380 que rouba o carro


E na fuga deixando a burguesa mutilada, sem metade da nuca
Quem vê violência só na tela da Tv
Só vai ouvir Facção e conseguir entender
Quando estiver amarrado, dentro do porta mala
Rezando pro ladrão, não enfiar bala/

Quando trombar a dor,


Vai enxergar o verdadeiro rap
O filha da puta vai sentir que a marcha fúnebre prossegue.

[Refrão]
94

Beco sem Saída, Álbum Holocausto Urbano, Racionais MC‘s, 1990


Às vezes eu paro e reparo, fico a pensar
qual seria meu destino senão cantar
um rejeitado, perdido no mundo, é um bom exemplo
irei fundo no assunto, fique atento
A sarjeta é um lar não muito confortável
O cheiro é ruim, insuportável
O viaduto é o reduto nas noites de frio
onde muitos dormem, e outros morrem, ouviu ?
São chamados de indigentes pela sociedade
A maioria negros, já não é segredo, nem novidade
Vivem como ratos jogados,
homens, mulheres, crianças,
Vítimas de uma ingrata herança
A esperança é a primeira que morre
E sobrevive a cada dia a certeza da eterna miséria
O que se espera de um país decadente
onde o sistema é duro, cruel, intransigente

Beco sem saída !

Mas muitos não progridem na verdade porque assim não querem


Ficam inertes, não se movem, não se mexem
Sabe por que se sujeitaram a essa situação ?
não pergunte pra mim, tire você a conclusão
Talvez a base disso tudo esteja em vocês mesmos
E a conseqüência é o descrédito de nós negros
Por culpa de você, que não se valoriza
Eu digo a verdade, você me ironiza
A conclusão da sociedade é a mesma
que, com frieza, não analisa, generaliza
e só critica, o quadro não se altera e você
ainda espera que o dia de amanhã será bem melhor
Você é manipulado, se finge de cego
Agir desse modo, acha que é o mais certo
Fica perdida a pergunta, de quem é a culpa
do poder, da mídia, minha ou sua ?
As ruas refletem a face oculta
de um poema falso, que sobrevive às nossas custas
A burguesia, conhecida como classe nobre
tem nojo e odeia a todos nós, negros pobres
Por outro lado, adoram nossa pobreza
pois é dela que é feita sua maldita riqueza

Beco sem saída !

"-É, meu mano KL Jay. O poder mente, ilude, e domina


a maioria da população, carente da educação e cultura.
E é dessa forma que eles querem que se proceda. Não é verdade?
"-É, pode crê !"
95

Nascem, crescem, morrem, passam desapercebidos


E a saída é esta vida bandida que levam roubando,
matando, morrendo, entre si se acabando
Ei mano, dê-nos ouvidos!
Os poderosos ignoram os direitos iguais
Desprezam e dizem que vivam comos mendigos a mais
Não sou um mártir que um dia irá te salvar
No momento certo, você pode se condenar
Não jogamos a culpa em quem não tem culpa
Só falamos a verdade e a nossa parte você sabe de cór
Atravesse essa muralha imaginária
em sua cabeça, sem ter medo de falhas
Se conseguiram derrubar uma muralha real, de pedra
você pode conseguir derrubar esta
Leia, ouça, escute, ache certo ou errado
mas meu amigo, não fique parado
Isso tudo vai ser apenas um grito solitário
Em um porão fechado, tome cuidado,
não esqueça o grande ditado :
Cada um por si !
Siga concordando com tudo que eu digo (normal)
Pois pra você parece mais um artigo (jornal)
Esse é o meu ponto de vista, não sou um moralista
deixe de ser egoísta, meu camarada, persista,
É só uma questão: será que você é capaz de lutar?
É difícil, mas não custa nada tentar

"-Ei cara, o sentido disto tudo está em você mesmo.


Pare, pense, e acorde, antes que seja tarde demais
O dia de amanhã te espera, morô?
Edy Rock, KL Jay, Racionais!"

Beco sem saída ! (podicrê, né não ?)


Beco sem saída ! (aí mano)
Beco sem saída ! (certo !)
Beco sem saída !
Beco sem saída !
Beco sem saída !
Beco...beco...beco sem saída, beco sem saída, beco sem saída!

Boa Esperança, Emicida, 2015


Por mais que você corra irmão
Pra sua guerra vão nem se lixar
Esse é o xis da questão
Já viu eles chorar pela cor do orixá?
E os camburão o que são?
Negreiros a retraficar
Favela ainda é senzala jão
Bomba relógio prestes a estourar
(x2)
96


O tempero do mar foi lágrima de preto
Papo reto, como esqueletos, de outro dialeto
Só desafeto, vida de inseto, imundo
Indenização? Fama de vagabundo
Nação sem teto, Angola, keto, congo, soweto
A cor de Eto'o, maioria nos gueto
Monstro sequestro, capta três, rapta
Violência se adapta, um dia ela volta pu cêis
Tipo campos de concentração, prantos em vão
Quis vida digna, estigma, indignação
O trabalho liberta, ou não
Com essa frase quase que os nazi, varre os judeu? extinção
Depressão no convés
Há quanto tempo nóiz se fode e tem que rir depois
Pique jack-ass, mistério tipo lago ness, sério és
Tema da faculdade em que não pode por os pés
Vocês sabem, eu sei
Que até bin laden é made in usa
Tempo doido onde a K K K, veste obey (é quente memo)
Pode olhar num falei?

Nessa equação, chata, policia mata? Plow!
Médico salva? Não! Por que? Cor de ladrão
Desacato invenção, maldosa intenção
Cabulosa inversão, jornal distorção
Meu sangue na mão dos radical cristão
Transcendental questão, não choca opinião
Silêncio e cara no chão, conhece?
Perseguição se esquece? Tanta agressão enlouquece
Vence o Datena, com luto e audiência
Cura baixa escolaridade com auto de resistência
Pois na era cyber, ceis vai ler
Os livro que roubou nosso passado igual alzheimer, e vai ver
Que eu faço igual burkina faso
Nóiz quer ser dono do circo
Cansamos da vida de palhaço
É tipo moisés e os hebreus, pés no breu
Onde o inimigo é quem decide quando ofendeu
(cê é loco meu)
No veneno igual água e sódio
Vai vendo sem custódio
Aguarde cenas do próximo episódio
Cês diz que nosso pau é grande
Espera até ver nosso ódio

Por mais que você corra irmão


Pra sua guerra vão nem se lixar
Esse é o xis da questão
Já viu eles chorar pela cor do orixá?
E os camburão o que são?
97

Negreiros a retraficar
Favela ainda é senzala jão
Bomba relógio prestes a estourar

Capítulo 4 Versículo 3, , Álbum Raio X do Brasil, Racionais Mc´s, 1993


(Introdução)
60 por cento dos jovens de periferia sem antecedentes criminais
Já sofreram violência policial
A cada quatro pessoas mortas pela policia, três são negras
Nas universidades brasileiras
Apenas 2 por cento dos alunos são negros
A cada quatro horas, um jovem negro morre violentamente
Em São Paulo
Aqui quem fala é Primo Preto, mais um sobrevivente

(Mano Brown)
Minha intenção é ruim... esvazia o lugar
Eu tô em cima, eu tô afim... um dois pra atirar
Eu sou bem pior do que você tá vendo
O preto aqui não tem dó... é 100 por cento veneno
A primeira faz bum, a segunda faz tá
Eu tenho uma missão e não vou parar
Meu estilo é pesado e faz tremer o chão
Minha palavra vale um tiro... eu tenho muita munição
Na queda ou na ascensão, minha atitude vai além
E tem disposição pro mal e pro bem
Talvez eu seja um sádico, um anjo, um mágico
Juiz ou réu, um bandido do céu
Malandro ou otário, quase sanguinário
Franco atirador se for necessário
Revolucionário, insano ou marginal
Antigo e moderno, imortal
Fronteira do céu com o inferno
Astral imprevisível, como um ataque cardíaco no verso
Violentamente pacífico, verídico
Vim pra sabotar seu raciocínio
Vim pra abalar seu sistema nervoso e sanguíneo
Pra mim ainda é pouco Brown cachorro louco
Numero um... dia terrorista da periferia
Uni-duni-tê, eu tenho pra você
Um rap venenoso ou uma rajada de Pt
E a profecia se fez como previsto
1997 depois de Cristo
A fúria negra ressuscita outra vez
Racionais capítulo 4 versículo 3

(Ponte)
Aleluia (x2)
Racionais no ar
98

Filha da puta, pá pá pá

(Ice Blue)
Faz frio em São Paulo... pra mim tá sempre bom
Eu tô na rua de bombeta e moletom
Dim dim dom, rap é o som que emana do Opala marrom
E aí, chama o Guilherme
Chama o Fader, chama o Dinho... e o Di
Marquinho, chama o Éder, vamo aí
Se os outros mano vem pela ordem tudo bem melhor
Quem é quem no bilhar, no dominó

(Mano Brown)
Colou dois mano, um acenou pra mim
De jaco de cetim, de tênis, calça jeans

(Ice Blue)
Ei Brown, sai fora, nem vai, nem cola
Não vale a pena dar idéia nesse tipo aí
Ontem à noite eu vi na beira do asfalto
Tragando a morte, soprando a vida pro alto
Ó os cara só o pó... pele e osso
No fundo do poço, mó flagrante no bolso

(Mano Brown)
Veja bem, ninguém é mais que ninguém
Veja bem, veja bem, e eles são nossos irmãos também

(Ice Blue)
Mar de cocaína e crack, uísque e conhaque
Os mano morre rapidinho sem lugar de destaque

(Mano Brown)
Mas quem sou eu pra falar de quem cheira ou quem fuma?
Nem dá... nunca te dei porra nenhuma
Você fuma o que vem... entope o nariz
Bebe tudo o que vê... faça o diabo feliz
Você vai terminar tipo o outro mano lá
Que era um preto tipo A... ninguém tava numa
Mó estilo de calça Calvin Klein, tênis Puma
Um jeito humilde de ser no trampo e no rolê
Curtia um funk, jogava uma bola
Buscava a preta dele no portão da escola
Exemplo pra nóis... mó moral, mó ibope
Mas começou a colar com os branquinho do shopping
Ai já era... Ih, mano, outra vida, outro pique
Só mina de elite, balada, vários drinques
Puta de butique, toda aquela porra
Sexo sem limite, Sodoma e Gomorra
Hãn, faz uns nove anos
Tem uns quinze dias atrás eu vi o mano
Cê tem que ver... pedindo cigarro pros tiozinho no ponto
99

Dente tudo zuado, bolso sem nenhum conto


O cara cheira mal, as tias sente medo
Muito louco de sei lá o que logo cedo
Agora não oferece mais perigo
Viciado, doente, fudido... inofensivo
Um dia um Pm negro veio embaçar
E disse pra eu me pôr no meu lugar
Eu vejo um mano nessas condições, não dá
Será assim que eu deveria estar?
Irmão, o demônio fode tudo ao seu redor
Pelo rádio, jornal, revista e outdoor
Te oferece dinheiro, conversa com calma
Contamina seu caráter, rouba sua alma
Depois te joga na merda sozinho
Transforma um preto tipo A num neguinho
Minha palavra alivia sua dor
Ilumina minha alma, louvado seja o meu senhor
Que não deixa o mano aqui desandar
E nem senta o dedo em nenhum pilantra
Mas que nenhum filha da puta ignore a minha lei
Racionais capítulo 4 versículo 3

(Ponte)
Aleluia (x2)
Racionais no ar
Filha da puta, pá pá pá

(Edi Rock)
Quatro minutos se passaram e ninguém viu
O monstro que nasceu em algum lugar do Brasil
Talvez o mano que trampa debaixo do carro sujo de óleo
Que enquadra o carro forte na febre com o sangue nos olhos
O mano que entrega envelope o dia inteiro no sol
Ou o que vende chocolate de farol em farol
Talvez o cara que defende o pobre no tribunal
Ou o que procura vida nova na condicional
Alguém no quarto de madeira, lendo à luz de vela
Ouvindo rádio velho, no fundo de uma cela
Ou o da família real de negro como eu sou
Um príncipe guerreiro que defende o gol

(Mano Brown)
E eu não mudo, mas eu não me iludo
Os mano cu de burro têm, eu sei de tudo
Em troca de dinheiro e um cargo bom
Tem mano que rebola e usa até batom
Vários patrícios falam merda pra todo mundo rir
Haha, pra ver branquinho aplaudir
É, na sua área tem fulano até pior
Cada um, cada um... você se sente só
Tem mano que te aponta uma pistola e fala sério
Explode sua cara por um toca-fita velho
100

Click plau plau plau e acabou


Sem dó e sem dor, foda-se sua cor
Limpa o sangue com a camisa e manda se fuder
Você sabe por que, pra onde vai, pra quê
Vai de bar em bar, de esquina em esquina
Pega cinquenta conto, troca por cocaína
E fim o filme acabou pra você
A bala não é de festim, aqui não tem dublê
Para os mano da baixada fluminense à Ceilândia
Eu sei, as ruas não são como a Disneylândia
De Guaianases ao extremo sul de Santo Amaro
Ser um preto tipo A custa caro
É foda... Foda é assistir a propaganda e ver
Não dá pra ter aquilo pra você
Playboy forgado de brinco, um trouxa
Roubado dentro do carro na Avenida Rebouças
Correntinha das moça, as madame de bolsa
Dinheiro... não tive pai não sou herdeiro
Se eu fosse aquele cara que se humilha no sinal
Por menos de um real, minha chance era pouca
Mas se eu fosse aquele muleque de touca
Que engatilha e enfia o cano dentro da sua boca
De quebrada, sem roupa, você e sua mina
Um dois, nem me viu... já sumi na neblina
Mas não... permaneço vivo, prossigo a mística
Vinte e sete anos contrariando a estatística
Seu comercial de Tv não me engana
Eu não preciso de status nem fama
Seu carro e sua grana já não me seduz
E nem a sua puta de olhos azuis
Eu sou apenas um rapaz latino americano
Apoiado por mais de cinquenta mil manos
Efeito colateral que o seu sistema fez
Racionais capítulo 4 versículo 3

Cê Lá Faz Idéia, Álbum Emicídio, Emicida 2010


Tupac já dizia:
Algumas coisas nunca mudam (2x)

São regras do mundão


Perdi as contas de quantos escondem a bolsa se eu digo: que horas são?
Taxista perguntam mais que os policiais a mim, sim
Indescritível como é ruim
Nasci vilão, só veneno
Com o incentivo que me dão, errado tô se eu não virar mesmo
Suor na cara, levando currículo, cara
A pé porque onde eu moro, o buso não para
Pé de barro, meio dia
101

Inspirando piada nos boy, transpirando medo nas tia


Tudo é tão óbvio
Cê não vê e vai juntando ingrediente da bomba relógio
Eu sinto dor, eu sinto ódio
É quente, sem nem saber o nome dessa gente
Católica, de bem, linda
Se já notou, e ó que eu nem falei a minha cor ainda

Refrão:

Cê lá faz ideia do que é ver, vidro subir, alguém correr quando avistar você?
Não, cê não faz ideia, não faz ideia, não faz ideia.
Cê lá faz ideia do que é ver, vidro subir, alguém correr quando avistar você?
Não, cê não faz ideia, não faz ideia, não faz ideia.

Explica pra assistente social


Que pai de gente, igual a gente, não sabe usar a mente, só o pau
Que quem educa nóiz, na escola estadual
Joga na cara toda manhã o quanto ganha mal
Que é incrível,
Quantos da gente sentam no final da sala pra ver se ficam invisível
Calcula o prejuízo
Nossas crianças sonham que quando crescer, vai ter cabelo liso
Sem debater, fato
Que a fama da minha cor fecha mais portas que zelador de orfanato
Cê sabe o quanto é comum, dizer que preto é ladrão
Antes mesmo de a gente saber o que é um
Na boca de quem apoia, desova e se orgulha da honestidade que nunca foi posta a prova
Eu queria te ver lá, tiriça
Pra ver onde você ia enfiar essa merda do teu senso de justiça

Refrão.

Dedo Na Ferida, Emicida, Álbum Criolo & Emicida Ao Vivo, 2013


Scratchs (pimenta nos zóio dos políticos)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (a fúria negra ressuscita outra vez)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (anota meu recado)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (primeiro eu quero que se foda)
Renan samam, emicida, o rap ainda é o dedo na ferida

Vi condomínios rasgarem mananciais


A mando de quem fala de deus e age como satanás.
(uma lei) quem pode menos, chora mais,
Corre do gás, luta, morre, enquanto o sangue escorre
É nosso sangue nobre, que a pele cobre,
Tamo no corre, dias melhores, sem lobby.
Hei, pequenina, não chore.
Tv cancerigena,
Aplaude prédio em cemitério indígena.
102

Auschwitz ou gueto? índio ou preto?


Mesmo jeito, extermínio,
Reportagem de um tempo mau, tipo plínio.
Alphaville foi invasão, incrimine-os
Grito como fuzis, uzis, por brasis
Que vem de baixo, igual machado de assis.
Ainda vivemos como nossos pais elis
Quanto vale uma vida humana, me diz?

Foda-se vocês, foda-se suas leis!


Scratchs (a furia negra ressuscita outra vez)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (anota meu recado)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (primeiro eu quero que se foda)
Renan samam, emicida, o rap ainda é o dedo na ferida...

É só um pensamento, bote no orçamento


Nosso sofrimento, mortes e lamentos,
Forte esquecimento de gente em nosso tempo
Visto como lixo, soterrado nos desabamento
Em favela, disse marighella. elo
Contra porcos em castelo
O povo tem que cobrar com os parabelo
Porque a justiça deles, só vai em cima de quem usa chinelo
E é vítima, agressão de farda é legítima.
Barracos no chão, enquanto chove.
Meus heróis também morreram de overdose,
De violência, sob coturnos de quem dita decência.
Homens de farda são maus, era do caos,
Frios como halls, engatilha e plau!
Carniceiros ganham prêmios,
Na terra onde bebês, respiram gás lacrimogênio.

Foda-se vocês, foda-se suas leis!


Scratchs (a fúria negra ressuscita outra vez)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (anota meu recado otario)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (primeiro eu quero que se foda, depois eu quero que se dane)
Renan samam, emicida, o rap ainda é o dedo na ferida.

Centro da Cidade, Albúm Hip Hop Cultura de Rua, Mc Jack, 1988


Pessoas subindo e descendo essa rua
Pensativas e sem rumo
A procura de aventura
Moços, velhos, pessoas de idade
Vejo tudo isso no Centro da Cidade
Plaquinha de emprego
Plaquinha compra ouro
103

Plaquinha compra prata


Plaquinha de almoço
Pessoas mal vestidas
Formando a ralé
Boy mal informado
Onde é a Praça da Sé?
Onde está a bolinha?
Um jogo de azar
Por incrivel que pareça
Você nunca vai ganhar
Trombadinhas, trombadões
Roubando o que puder
Andando pelo centro
A procura de um mané
Vendedores ambulantes
Vendendo seus produtos
Mendigo maloqueiro
Dormindo como um urso
Chega o meio dia
Começa a correria
Horário de almoço
É hora de alegria

Xis é meu nome


Baiano perdido que não sabe onde está
Veio la do Norte esta aqui para ficar
O Baiana voador a capoeira magistral
O outro come vidro é uma geléia geral
Centenas de pessoas procurando um emprego
Se elas não acharem continua o pesadelo
Hare krishna pregando o seu ponto de vista
Crente com sua biblia
Falando de uma vida
Shows eu vejo em plena praça pública
Tem também no Centro a Praça da Republica
Punk, Dark, Roqueiro e Função
Centro da Cidade é um grande coração
Vejo tudo isso e fico sem dizer
Mas aqui estou de volta para agradecer
Centro da Cidade a você eu devo muito
Faz parte da minha vida
Não te esqueço um segundo
Xis é meu nome você vai se lembrar
São Paulo não te troco por qualquer outro lugar

Dedo na Ferida, Album Criolo & Emicida Ao Vivo, Emicida, 2013


Scratchs (pimenta nos zóio dos políticos)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (a fúria negra ressuscita outra vez)
104

Foda-se vocês, foda-se suas leis!


Scratchs (anota meu recado)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (primeiro eu quero que se foda)
Renan samam, emicida, o rap ainda é o dedo na ferida

Vi condomínios rasgarem mananciais


A mando de quem fala de deus e age como satanás.
(uma lei) quem pode menos, chora mais,
Corre do gás, luta, morre, enquanto o sangue escorre
É nosso sangue nobre, que a pele cobre,
Tamo no corre, dias melhores, sem lobby.
Hei, pequenina, não chore.
Tv cancerigena,
Aplaude prédio em cemitério indígena.
Auschwitz ou gueto? índio ou preto?
Mesmo jeito, extermínio,
Reportagem de um tempo mau, tipo plínio.
Alphaville foi invasão, incrimine-os
Grito como fuzis, uzis, por brasis
Que vem de baixo, igual machado de assis.
Ainda vivemos como nossos pais elis
Quanto vale uma vida humana, me diz?

Foda-se vocês, foda-se suas leis!


Scratchs (a furia negra ressuscita outra vez)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (anota meu recado)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (primeiro eu quero que se foda)
Renan samam, emicida, o rap ainda é o dedo na ferida...

É só um pensamento, bote no orçamento


Nosso sofrimento, mortes e lamentos,
Forte esquecimento de gente em nosso tempo
Visto como lixo, soterrado nos desabamento
Em favela, disse marighella. elo
Contra porcos em castelo
O povo tem que cobrar com os parabelo
Porque a justiça deles, só vai em cima de quem usa chinelo
E é vítima, agressão de farda é legítima.
Barracos no chão, enquanto chove.
Meus heróis também morreram de overdose,
De violência, sob coturnos de quem dita decência.
Homens de farda são maus, era do caos,
Frios como halls, engatilha e plau!
Carniceiros ganham prêmios,
Na terra onde bebês, respiram gás lacrimogênio.

Foda-se vocês, foda-se suas leis!


Scratchs (a fúria negra ressuscita outra vez)
Foda-se vocês, foda-se suas leis!
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Scratchs (anota meu recado otario)


Foda-se vocês, foda-se suas leis!
Scratchs (primeiro eu quero que se foda, depois eu quero que se dane)
Renan samam, emicida, o rap ainda é o dedo na ferida.

Fim de Semana no Parque, Racionais MC´s, 1993


(Mano Brown)
A toda comunidade pobre da Zona Sul!

Chegou fim de semana todos querem diversão


Só alegria nós estamos no verão,
mês de Janeiro São Paulo Zona Sul
Todo mundo a vontade calor céu azul
Eu quero aproveitar o sol
Encontrar os camaradadas prum basquetebol
Não pega nada
Estou à 1 hora da minha quebrada
Logo mais, quero ver todos em paz
Um dois três carros na calçada
Feliz e agitada toda "prayboyzada"
As garagens abertas eles lavam os carros
Desperdiçam a água, eles fazem a festa
Vários estilos vagabundas, motocicletas
Coroa rico boca aberta, isca predileta

(Ice Blue)
De verde florescente queimada sorridente

(Mano Brown)
A mesma vaca loura circulando como sempre
Roda a banca dos playboys do Guarujá
Muitos manos se esquecem mas na minha não cresce
sou assim e estou legal, até me leve a mal
malicioso e realista sou eu Mano Brown

Me dê 4 bons motivos pra não ser


Olha meu povo nas favelas e vai perceber
Daqui eu vejo uma caranga do ano
Toda equipada e o tiozinho guiando
Com seus filhos ao lado estão indo ao parque Eufóricos brinquedos eletrônicos
Automaticamente eu imagino A molecada lá da área como é que tá
Provalvelmente correndo pra lá e pra cá
Jogando bola descalços nas ruas de terra
É, brincam do jeito que dá
Gritando palavrão é o jeito deles
Eles não tem video-game às vezes nem televisão
Mas todos eles tem Doum, São Cosme e
São Damião A única proteção.
No último natal papai Noel escondeu um brinquedo
Prateado, brilhava no meio do mato
Um menininho de 10 anos achou o presente,
106

Era de ferro com 12 balas no pente


E fim de ano foi melhor pra muita gente
Eles também gostariam de ter bicicleta
De ver seu pai fazendo cooper tipo atleta
Gostam de ir ao parque e se divertir
ê que alguém os ensinasse a dirigir
Mas ele só querem paz e mesmo assim é um sonho
Fim de semana do Parque Sto. Antônio.

Refrão:

Vamos passear no Parque


Deixa o menino brincar Fim de Semana no parque.
Vamos passear no Parque
Vou rezar pra esse domingo não chover

(Edi Rock)
Olha só aquele clube que da hora.
Olha aquela quadra, olha aquele campo Olha,
Olha quanta gente
Tem sorveteria cinema piscina quente
Olha quanto boy, olha quanta mina
Afoga essa vaca dentro da piscina
Tem corrida de kart dá pra ver
é igualzinho o que eu ví ontem na Tv,
Olha só aquele clube que da hora,
Olha o pretinho vendo tudo do lado de fora
nem se lembra do dinheiro que tem que levar
Pro seu pai bem louco gritando dentro do bar
nem se lembra de ontem de onde o futuro
ele apenas sonha através do muro...

(assovios)

(Mano Brown)
Milhares de casas amontoadas ruas de terra
esse é o morro a minha área me espera
gritaria na feira (vamos chegando !)
Pode crer eu gosto disso mais calor humano
Na periferia a alegria é igual
é quase meio dia a euforia é geral
É lá que moram meus irmãos meus amigos
E a maioria por aqui se parece comigo
E eu também sou bam bam bam e o que manda O pessoal
desde às 10 da manhã está no samba Preste
atenção no repique atenção no acorde (Como é que é Mano Brown ?)
Pode crer pela ordem
A número número 1 em baixa-renda da cidade Comunidade Zona Sul é dignidade
Tem um corpo no escadão a tiazinha desse o morro
Polícia a morte, polícia socorro
Aqui não vejo nenhum clube poliesportivo
Pra molecada frequentar nenhum incentivo
107

O investimento no lazer é muito escasso


O centro comunitário é um fracasso
Mas aí se quiser se destruir está no lugar certo
Tem bebida e cocaína sempre por perto
A cada esquina 100 200 metros
Nem sempre é bom ser esperto
Schimth, Taurus, Rossi, Dreyer ou Campari
Pronúncia agradável
estrago inevitável
Nomes estrangeiros que estão no nosso morro pra
matar e M.E.R.D.A.
Como se fosse ontem ainda me lembro
7 horas sábado 4 de Dezembro
Uma bala uma moto com 2 imbecis
Mataram nosso mano que fazia o morro mais feliz
E indiretamente ainda faz,
mano Rogério esteja em paz
Vigiando lá de cima
A molecada do Parque Regina

Refrão:

Vamos passear no Parque


Deixa o menino brincar
Fim de Semana no parque.
Vamos passear no Parque
Vou rezar pra esse domingo não chover

(Mano Brown)
Tô cansado dessa porra
de toda essa bobagem
Alcolismo,vingança treta malandragem
Mãe angustiada filho problemático
Famílias destruídas
fins de semana trágicos
O sistema quer isso
a molecada tem que aprender
Fim de semana no Parque Ipê

Refrão:

Vamos passear no Parque


Deixa o menino brincar
Fim de Semana no parque.
Vamos passear no Parque
Vou rezar pra esse domingo não chover

"Pode crer Racionais Mc's e Negritude Junior juntos


Vamos investir em nós mesmos mantendo distância das Drogas e do alcool.
Aí rapaziada do Parque Ipê,Jd. São Luiz, Jd. Ingá, Parque Ararí,
Váz de Lima Morro do Piolho e Vale das Virtudes e Pirajussara
108

É isso aí mano Brown


(é isso ai Netinho paz à todos)"

Introdução, Álbum Raio X do Brasil, Racionais MC´s, 1993


Racionais, usando e abusando da nossa liberdade de expressão, um dos poucos direitos
que o jovem negro tem nesse país. Você está entrando no mundo da informação,
autoconhecimento, denúncia e diversão. Este é o Raio X do Brasil, seja bem-vindo

Isso Aqui é Uma Guerra, Facção Central, Álbum Versos Sangrentos, 2000
Dum Dum:
É uma guerra onde só sobrevive quem atira
Quem enquadra a mansão quem trafica
Infelizmente o livro não resolve
O Brasil só me respeita com um revólver, aí
O juiz ajoelha, o executivo chora
Pra não sentir o calibre da pistola
Se eu quero roupa, comida alguém tem que sangrar
Vou enquadrar uma burguesa e atirar pra matar
Vou fumar seus bens e ficar bem louco
Sequestrar alguém no caixa eletrônico
A minha quinta série só adianta
Se eu tiver um refém com meu cano na garganta
Ai não tem gambé pra negociar
Liberta a vítima, vamos conversar
Vai se ferrar, é hora de me vingar
A fome virou ódio e alguém tem que chorar
Não queria cela nem o seu dinheiro
Nem boy torturado no cativeiro
Não queira um futuro com conforto
Esfaqueando alguém pela corrente no pescoço
Mas 357 é o que o Brasil me dá
Sem emprego quando um prego de Audi passar
Aperta o enter cuzão e digita
Esvazia a conta, agiliza, não grita
Não tem Deus nem milagre, esquece o crucifixo
É só uma vadia chorando pelo marido
É o cofre versus a escola sem professor
Se for pra ser mendigo doutor
Eu prefiro uma glock com silenciador
Comer seu lixo não é comigo morô?
Desce do carro senão tá morto
Essa é a lei daqui, a lei do demônio
Isso aqui é uma guerra

Eduardo:
Não chora, vadia, que eu não tenho dó
Dá bolsa na moral não resiste o b.o.
109

Aqui é outro brasileiro transformado em monstro


Semi-analfabeto, armado e perigoso
Querendo sua corrente de ouro
Atacando seu pulso, atacando seu bolso
Pronto pra atirar e pronto pra matar
Vai se foder, descarrega essa pt
Mata o filho do boy como o Brasil quer ver
Esfrega na cara sua panela vazia
Exige seus direitos com o sangue da vadia
É a lei da natureza, quem tem fome mata
Na selva é o animal na rua é empresário inconsequente
Insano doente
O Brasil me estimula a atirar no gerente
Aqui não é novela, não tem amor na tela
A cena é triste é solidão na cela
Nem polícia pega boi, deita escrivão
Abre a cela carcereiro, liberta o ladrão
Tem M10 de alvará pra liberdade
Seu oitão é uma piada, gambé covarde
Cala a boca e aplaude o resgate
He cala a boca e aplaude
Boy quem te protege do oitão na cabeça
Sua polícia no chão do DP sem defesa
Rezando pro ladrão ter pena. Que pena
Seu herói pede socorro nessa cena
Quer seu filho indo pra escola e não voltando morto?
Então meta a mão no cofre e ajude nosso povo
Ou veja sua mulher agonizando até morrer
Por que alguém precisava comer
Isso aqui é uma guerra

Nóiz, Albúm O Glorioso Retorno de Quem Nunca Esteve Aqui, Emicida, 2013
É nóiz por nóiz...
E se não for assim não funciona!
Eu já esquematizei tudo, sozinho, outra vez
Meu bando de neguinho pra ruir o império duceis
No sapatinho, devagar, devagarinho
Ó só, num tira não, aí jão, onde é que tá meu din?
A diferença é que eu vim pra sacar, não saquear
Pra num criar criaca e no fim meus plano miar
Vou ratear, distribuir pros remelento
E botar a cara de Zumbi em cada nota de duzentos
Se é pelo valor, senhor, nóiz tem os nosso
Mas do asfalto prá lá, tio, negócios são negócios
Minha palavra vale na rua, onde não existe contrato
Queijo é a ísca, porque eu vou lidar com vários rato
Me benze e traz arruda de guiné
Que pra tirar essa zica só pela fé
Sou homem desde muleque, honro o que tenho no peito
Minha mãe me deu caráter, meu caráter trouxe o meu respeito
110

É nóiz que corre no caminho do bem


Nóiz que disse é nóiz quando não virava um vintém
Nóiz, e nesse nóiz não existe um porém
Nóiz, e se não for nóiz não vai ser ninguém
Deus ajuda quem cedo madruga pro turno
Imagina o que ele vai fazer por mim quando ganhar que eu nem durmo
Nem percebo se é diurno, noturno
Na campana igual soldado, de metranca, coturno
Ligeiro passando cerol
Independente de platéia, faço o que tem que ser feito, que nem o Sol
Cumpro minha obrigação
A tempestade não se pergunta se molha os homens ou não
Ela cai, quem não guenta da frente sai, tiozão
Esse é o espírito do samurai, friozão
Sem tempo pros bagulho escroto
Me pergunta: Que tipo de sentimento é o medo?
Te respondo: Dos outro!
O meu é o mesmo há várias lua
Deixa os verme falar pelos cotuvelos, eu ainda falo pelas rua
Pelo que eu creio, tipo as Farc
Vim, pra lutar por nóiz, mesmo que for pra morrer só, igual Joana D'Arc
[Scratch: DJ Nyack]
*Não vou fugir... Nem me distrair...
Não vou posso dar as costas se o problema mora aqui...*
Eu sei que as rua tá cheia de filho da puta igual eu
Que não suporta mais a mesmice que se estabeleceu
Rap se tá mereceu, se quem eu citar pereceu
É porque vários do vivo num faz juz, meu
Quem na antiga fazia o que eu faço
Morria de trabalhar, hoje cê se rende pro cansaço
Inibido na preguiça, com uns tiriça
Que quando atiça, só faz mover pela cobiça
Atividade pra dar continuidade nisso
Num é pra concordar, é pra honrar o compromisso
Trago em mim o que fez Zumbi perecer
O que fez Zumbi merecer, o que fez Zumbi aparecer
Pra que nossa disposição
Não se torne daqui a anos motivo de frustração
Firmão? Vou garantir o mínimo
Tô ligado que os cara bota fé, mas nóiz também quer um dízimo!
[Elisa Lucinda]
Ali vem um policial que já me viu na tv, espalha minha
Moral veio se arrependê, de tê me tratado mal, chegou
Pra mim sem aquela cara de mal
"Fala mano"
"Abraça mano"
Irmãos da comunidade, sonhadores iguais, sei do que estou
Falando há um véu entre as classes, entre as casas, entre
Os bancos há um véu, uma cortina, um espanto que pra
Atravessa, só rasgando. Atravessando a parede a invisível
Parede, apareçam no palácio, na tela, nas janela das
Celebridades, más minha palavra num sô só eu, minha palavra
111

É a cidade, mundão redondo, Capão Redondo, coração redondo


Na ciranda da solidariedade, a rua é nóiz cumpadi
Quem vê só um lado do mundo, só sabe uma parte da verdade
Inventando o que somos, minha mão no jogo eu ponho
Vivo do que componho, sou milionário do sonho

O Livro da Vida, Sistema Negro, 2003


Nossos irmãos estão morrendo está valendo então
Enquanto você está cheirando eu vou rimando
Acredita ainda há tempo de mudar
Quatro pretos de atitude questionando se isso não acabar
Muitos ainda não acredita na rima não
Outros ainda não saíram de cima de um muro
Que vocês mesmos construíram
De incertezas inseguranças ajude essa criança
A esperança o livro da vida é infinito
Apenas quem lê-lo por inteiro entenderá o título
Irmãos jamais se cansem de procurar
A rima é nossa chega mais vamos lá
Quem irá nos proteger de nós mesmos
Quando o pior sentimento nos atingir estaremos pegos
O ódio ainda vem sendo a arma
De conquista pros manos mantenham a calma
Ensinem seus filhos eduquem seus filho
Revelem a eles a verdadeira história
Diferente daquelas que nos ensinam nas escolas
Tô ligado tô esperto meus irmãos
Sou preciso nas rimas pra não cair em contradição
O conhecimento ninguém pode nos roubar
Leia o livro da vida que com certeza estará lá
Respeitem se ajudem-se chegaremos lá
Quem está pondo armas em suas mãos
Não interessa não deixe brecha preste atenção
Leia o livro da vida está em suas mãos então
Leia o livro da vida está em suas mãos então

(2x) O livro da vida é bom preste atenção


O livro está o livro está em suas mãos
O livro está em suas mãos

Mas me perguntam quantas paginas ele tem


Aonde vende quanto custa isso eu não sei
Cada um de nós tem o seu próprio livro
O conteúdo é todo seu seja bem vindo
Chega de separação humilhação
Isso não nos levará a nada e aí então
Construa sua própria história com páginas certas
Procure não deixar brecha
O escritor maravilhoso é você
Quanto melhor a sua história melhor irá sobreviver
112

Sem treta sem arma sem nada


Ser um preto digno de mente afiada
Pois o jovem tem tudo nas mãos
Siga em frente sempre em preste atenção
Nós chegamos até aqui o resto será nada
Comparado ao passado que nos assombrava
Zumbi 300 alguns pretos zero
Não sabem como seguir não encontravam seus elos
Marquem em cima sigam a rima
Procure ter em sua enciclopédia o livro da vida

(2x) O livro da vida é bom preste atenção


O livro está o livro está em suas mãos
O livro está em suas mãos

Encontre o seu dentro de você


Ninguém irá te roubar ninguém irá
Ninguem irá você pode crê
As coisas vão mudar só se você não quiser
Não entre no jogo deles no jogo de lucifer
O maior homem do (jesus) mundo morreu de braços abertos
Não cruze o seu cara esteja no jogo certo
Sou real coisa e tal eazy down você leu
Irmãos vão ler e entender o que estamos falando
Ignorância não combina com inteligência
4 pretos de atitudes temos competência
Deus nos deu esse dom pra usarmos com sapiência
Não quero ver os meus manos andando de armaduras
Outros querendo ser tolos profetas de aventura
Da pura estão se enchendo celebro atrofiando
Estão de olho em você seu livro está se rasgando
Demonstre aquilo de bom que está dentro de você
Seja um mano esperto e perto esteja pra ver
As grandes massas se renderam a rima catequizados
Irmãos ensinem suas cartilhas
Viveremos bem melhor acreditando nos manos
Acreditando em nós
Fazendo do livro um hino cantando numa só voz

Pânico na Zona Sul, Álbum Holocausto Urbano, Racionais MC´s, 1990


Aqui é Racionais MC's, Ice Blue, Mano Brown, KLJay e eu Edy Rock."
- E ai Mano Brown, certo ?
- Certo não está né mano, e os inocentes quem os trará de volta ?
- É...a nossa vida continua, e ai quem se importa ?
- A sociedade sempre fecha as portas mesmo...
- E ai Ice Blue...
- PÂNICO...

Então quando o dia escurece


Só quem é de lá sabe o que acontece
Ao que me parece prevalece a ignorância
113

E nós estamos sós


Ninguém quer ouvir a nossa voz
Cheia de razões calibres em punho
Dificilmente um testemunho vai aparecer
E pode crer a verdade se omite
Pois quem garante o meu dia seguinte

Justiceiros são chamados por eles mesmos


Matam humilham e dão tiros a esmo
E a polícia não demonstra sequer vontade
De resolver ou apurar a verdade
Pois simplesmente é conveniente
E por que ajudariam se eles os julgam deliquentes
E as ocorrências prosseguem sem problema nenhum
Continua-se o pânico na Zona Sul.

Pânico na Zona Sul


Pânico...

Eu não sei se eles


Estão ou não autorizados
De decidir que é certo ou errado
Inocente ou culpado retrato falado
Não existe mais justiça ou estou enganado?
Se eu fosse citar o nome de todos que se foram
O meu tempo não daria pra falar MAIS...
Eu vou lembrar que ficou por isso mesmo
E então que segurança se tem em tal situação
Quantos terão que sofrer pra se tomar providência
Ou vão dar mais algum tempo e assistir a sequência
E com certeza ignorar a procedência
O sensacionalismo pra eles é o máximo
Acabar com delinquentes eles acham ótimo
Desde que nenhum parente ou então é lógico
Seus próprios filhos sejam os próximos
E é por isso que
Nós estamos aqui
E ai mano Ice Blue...

Pânico na Zona Sul


Pânico...

Racionais vão contar


A realidade das ruas
Que não media outras vidas
A minha e a sua
Viemos falar
Que pra mudar
Temos que parar de se acomodar
E acatar o que nos prejudica
O medo
Sentimento em comum num lugar
114

Que parece sempre estar esquecido


Desconfiança insegurança mano
Pois já se tem a consciência do perigo
E ai?
Mal te conhecem consideram inimigo
E se você der o azar de apenas ser parecido
Eu te garanto que não vai ser divertido
Se julgam homens da lei
Mas à respeito eu não sei
Muito cuidado eu terei
Scracth KLJay
Eu não serei mais um porque estou esperto
Do que acontece Ice Blue
Pânico na Zona Sul

Pânico na Zona Sul


Pânico...

Ei Brown
Você acha que o problema acabou?
Pelo contrário ele apenas começou
Não perceberam que agora se tornaram iguais
Se inverteram e também são marginais Mas...
Terão que ser perseguidos e esclarecidos
Tudo e todos até o último indivíduo
Porém se nos querermos que as coisas mudem
Ei Brown qual será a nossa atitude?
A mudança estará em nossa consciência
Praticando nossos atos com coêrencia
E a consequência será o fim do próprio medo
Pois quem gosta de nós somos nós mesmos
Te cuide porque ninguém cuidará de você
Não entre nessa a toa
Não de motivo pra morrer
Honestidade nunca será demais
Sua moral não se ganha, se faz
Não somos donos da verdade
Porém não mentimos
Sentimos a necessidade de uma melhoria
A nossa filosofia é sempre transmitir
A realidade em si
Racionais MC's

Pânico na Zona Sul


Pânico...

Certo, certo...Então irmão


Volte a atenção pra você mesmo
E pense como você tem vivido até hoje certo?
Quem gosta de você é você mesmo
Nós somos Racionais MC's
DJ KLJay, Ice Blue, Edy Rocky e eu...Brown.
115

PAZ...
Pânico...

Tempos Difíceis, composta por Edi Rock e Kl Jay, Racionais Mc‘s e lançada em seu álbum
Holocausto Urbano, 1990.
Eu vou dizer porque o mundo é assim.
Poderia ser melhor mas ele é tão ruim.
Tempos difíceis, está difícil viver.
Procuramos um motivo vivo, mas ninguém sabe dizer.
Milhões de pessoas boas morrem de fome.
E o culpado, condenado disto é o próprio homem.
O domínio está em mão de poderosos, mentirosos.
Que não querem saber.
Porcos, nos querem todos mortos.
Pessoas trabalham o mês inteiro.
Se cansam, se esgotam, por pouco dinheiro.
Enquanto tantos outros nada trabalham.
Só atrapalham e ainda falam.
Que as coisas melhoraram.
Ao invés de fazerem algo necessário.
Ao contrário, iludem, enganam otários.
Prometem 100%, prometem mentindo, fingindo, traindo.
E na verdade, de nós estão rindo.

Tempos... Tempos difíceis! (4x)

Tanto dinheiro jogado fora.


Sendo gasto por eles em poucas horas.
Tanto dinheiro desperdiçado.
E não pensam no sofrimento de um menor abandonado.
O mundo está cheio, cheio de miséria.
Isto prova que está próximo o fim de mais uma era.
O homem construiu, criou, armas nucleares.
E o aperto de um botão, o mundo irá pelos ares.
Extra, publicam, publicam extra os jornais
Corrupção e violência aumentam mais e mais.
Com quais, sexo e droga se tornaram algo vulgar.
E com isso, vem a AIDS pra todos liquidar.
A morte, enfim. Vem destruição, causam terrorismo.
E cada vez mais o mundo afunda num abismo.

Tempos... Tempos difíceis! (4x)

Menores carentes se tornam delinquentes.


E ninguém nada faz pelo futuro dessa gente.
A saída é essa vida bandida que levam.
Roubando, matando, morrendo.
Entre si se acabando.
Enquanto homens de poder fingem não ver.
Não querem saber.
116

Faz o que bem entender.


E assim... aumenta a violência.
Não somos nós os culpados dessa consequência?
Destruíram a natureza e o que puseram em seu lugar
jamais terá igual beleza.
Poluíram o ar e o tornaram impuro.
E o futuro eu pergunto, confuso: "como será?"
Agora em quatro segundos irei dizer um ditado:
"Tudo que se faz de errado aqui mesmo será pago"
O meu nome é Edy Rock, um rapper e não um otário.
Se algo não fizermos, estaremos acabados.
KL Jay! Tempos difíceis!
Tempos difíceis!

Vida Loka parte II, Álbum Nada Como um Dia Após o Outro, Racionais MC‗S. 2002
Firmeza total, mais um ano se passando
Graças a Deus a gente tá com saúde aí, morô?
Muita coletividade na quebrada, dinheiro no bolso
Sem miséria, e é nóis
Vamos brindar o dia de hoje
Que o amanhã só pertence a Deus, a vida é loka

Deixa eu fala procê


Tudo, tudo, tudo vai, tudo é fase irmão
Logo mais vamo arrebentar no mundão
De cordão de elite, 18 quilates
Poê no pulso, logo um Breitling
Que tal? Tá bom?
De lupa Bausch & Lomb, bombeta branco e vinho
Champagne para o ar, que é pra abrir nossos caminhos
Pobre é o diabo, eu odeio a ostentação
Pode rir, ri, mais não desacredita não
É só questão de tempo, o fim do sofrimento
Um brinde pros guerreiro, zé povinho eu lamento
Vermes que só faz peso na Terra
Tira o zóio
Tira o zóio, vê se me erra
Eu durmo pronto pra guerra
E eu não era assim, eu tenho ódio
E sei o que é mau pra mim
Fazer o que se é assim
Vida loka cabulosa
O cheiro é de pólvora
E eu prefiro rosas
E eu que, e eu que
Sempre quis um lugar
Gramado e limpo, assim, verde como o mar
Cercas brancas, uma seringueira com balança
Disbicando pipa, cercado de criança
117

How, how Brown


Acorda sangue bom
Aqui é Capão Redondo, tru
Não Pokemón
Zona sul é o invés, é stress concentrado
Um coração ferido, por metro quadrado
Quanto, mais tempo eu vou resistir
Pior que eu já vi meu lado bom na U.T.I
Meu anjo do perdão foi bom
Mas tá fraco
Culpa dos imundo, do espírito opaco
Eu queria ter, pra testar e ver
Um malote, com glória, fama
Embrulhado em pacote
Se é isso que 'cês quer
Vem pegar
Jogar num rio de merda e ver vários pular
Dinheiro é foda
Na mão de favelado, é mó guela
Na crise, vários pedra-noventa esfarela
Eu vou jogar pra ganhar
O meu money, vai e vem
Porém, quem tem, tem
Não cresço o zóio em ninguém
O que tiver que ser
Será meu
Tá escrito nas estrelas
Vai reclamar com Deus
Imagina nóis de Audi
Ou de Citröen
Indo aqui, indo ali
Só pam
De vai e vem
No Capão, no Apurá, vô colar
Na pedreira do São Bento
Na fundão, no pião
Sexta-feira

De teto solar
O luar representa
Ouvindo Cassiano, há
Os gambé não guenta
Mas se não der, nêgo
O que é que tem
O importante é nós aqui
Junto ano que vem
O caminho
Da felicidade ainda existe
É uma trilha estreita
Em meio à selva triste
Quanto cê paga
118

Pra ver sua mãe agora


E nunca mais ver seu pivete ir embora
Dá a casa, dá o carro
Uma Glock, e uma FAL
Sobe cego de joelho
Mil e cem degraus
Crente é mil graus
O que o guerreiro diz
O promotor é só um homem
Deus é o juiz
Enquanto Zé Povinho
Apedrejava a cruz
E o canalha, fardado
Cuspiu em Jesus
Oh, aos 45 do segundo arrependido
Salvo e perdoado
É Dimas o bandido
É loko o bagulho
Arrepia na hora
Oh, Dimas, primeiro vida loka da história
Eu digo: Glória, glória
Sei que Deus tá aqui
E só quem é
Só quem é vai sentir
E meus guerreiro de fé
Quero ouvir, quero ouvir
E meus guerreiro de fé
Quero ouvir, irmão
Programado pra morrer nós é
Certo é certo é crer no que der, firmeza?
Não é questão de luxo
Não é questão de cor
É questão que fartura
Alegra o sofredor
Não é questão de preza, nêgo
A ideia é essa
Miséria traz tristeza e vice-versa
Inconscientemente vem na minha mente inteira
Na loja de tênis o olhar do parceiro feliz
De poder comprar o azul, o vermelho
O balcão, o espelho
O estoque, a modelo, não importa
Dinheiro é puta e abre as portas
Dos castelos de areia que quiser
Preto e dinheiro, são palavras rivais
E então mostra pra esses cu
Como é que faz
O seu enterro foi dramático
Como um blues antigo
Mas de estilo, me perdoe, de bandido
Tempo pra pensar, quer parar
Que cê quer?
119

Viver pouco como um rei ou muito, como um Zé?


Às vezes eu acho que todo preto como eu
Só quer um terreno no mato, só seu
Sem luxo, descalço, nadar num riacho
Sem fome, pegando as frutas no cacho
Aí truta, é o que eu acho
Quero também, mas em São Paulo
Deus é uma nota de R$100
Vida Loka!

Porque o guerreiro de fé nunca gela


Não agrada o injusto, e não amarela
O Rei dos reis, foi traído, e sangrou nessa terra
Mas morrer como um homem é o prêmio da guerra
Mas ó, conforme for, se precisa, afoga no próprio sangue, assim será
Nosso espírito é imortal, sangue do meu sangue
Entre o corte da espada e o perfume da rosa
Sem menção honrosa, sem massagem

A vida é loka, nêgo


E nela eu tô de passagem
A Dimas, o primeiro
Saúde guerreiro!
Dimas, dimas, dimas

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