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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE


ESCOLA DE EDUCAÇÃO FÍSICA E DESPORTOS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

LUCIANA MONNERAT DE FARIA

GROOVE PARTY: FESTA, POLÍTICA E


PERFORMATIVIDADE NEGRA NAS DANÇAS URBANAS
CARIOCAS

Rio de Janeiro
2023
LUCIANA MONNERAT DE FARIA

GROOVE PARTY: FESTA, POLÍTICA E


PERFORMATIVIDADE NEGRA NAS DANÇAS URBANAS
CARIOCAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Dança da Universidade Federal do
Rio de Janeiro como requisito parcial para
obtenção do título de Mestra em Dança

Orientador: Prof. Dr. Sérgio Pereira Andrade.

Rio de Janeiro
2023
CIP - Catalogação na Publicação

Monnerat de Faria, Luciana


M748g GROOVE PARTY: FESTA, POLÍTICA E PERFORMATIVIDADE
NEGRA NAS DANÇAS URBANAS CARIOCAS / Luciana
Monnerat de Faria. -- Rio de Janeiro, 2023.
129 f.

Orientadora: Sérgio Pereira Andrade.


Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Escola de Educação Física e
Desportos, Programa de Pós-Graduação em Dança, 2023.

1. negritude. 2. hip hop. 3. danças urbanas. 4.


festa. 5. diáspora africana. I. Andrade, Sérgio
Pereira , orient. II. Título.

Elaborado pelo Sistema de Geração Automática da UFRJ com os dados fornecidos pelo(a)
autor(a), sob a responsabilidade de Miguel Romeu Amorim Neto - CRB-7/6283.
LUCIANA MONNERAT DE FARIA

GROOVE PARTY: FESTA, POLÍTICA E PERFORMATIVIDADE NEGRA


NAS DANÇAS URBANAS CARIOCAS

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Dança da


Universidade Federal do Rio de Janeiro como requisito para obtenção do título de
Mestra em Dança.

Aprovada em 06 de março de 2023.

Banca Examinadora

Sérgio Pereira Andrade – Orientador ______________________________________


Doutor em Filosofia pelo Departamento de Filosofia da Pontifícia da Universidade
Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio.
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Tatiana Maria Damasceno ______________________________________________


Doutora em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro –
UNIRIO.
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Camila Daniel ________________________________________________________


Doutora em Ciências Sociais pela Pontifícia da Universidade Católica do Rio de
Janeiro – PUC-Rio.
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
Ao nosso queridão, Nathan Mafra,
Que nos ensinou a potência do amor na cena cultural preta carioca.
AGRADECIMENTOS

À minha mãe carnal, Heloisa, e minha mãe espiritual Ialorixá Soraia, por todo amor, zelo e
suporte em todos os momentos mais intensos. São as pessoas mais importantes na minha vida
e os pilares que sustentam a base do que eu sou hoje.
Ao Ogã Alex, à Tia Cida, às egbomes Bubu e Maria Alice, à minha Mãe Pequena Jaciara, à
Tia Gláucia, à minha Madrinha Rute, ao Tio Cleiton, às minhas tias e tios de Axé, à Ialorixá
Vânia, ao Babalaxé Vinícius e a toda família no nosso Ilê Axé, por me ensinarem que o
aprendizado e o conhecimento estão em todo o lugar, o tempo todo.
Aos meus irmãos e irmãs de santo, que são a alegria da minha vida dentro e fora da religião.
Obrigada pela companhia nos momentos de luto e sorrisos nos momentos de vitória. Eu de
fato não seria quem sou hoje sem vocês.
À minha irmã carnal, de santo e de tudo, Paloma. Você é minha alma gêmea e te agradeço por
existir na minha vida.
À minha Dofona Letícia, pela companhia e parceria atemporais.
À toda minha família carnal, por serem sempre compreensivos com minhas ausências por
falta de tempo ou organização com meus trabalhos.
Aos meus amigos, amigas e amigues da dança, que me ajudaram a me formular enquanto
artista, pesquisadora e professora, além de também terem paciência com uma Luciana que não
pôde mais estar em tantos eventos da cultura hip hop como antes.
À Stella, que de aluna passou a ser uma das amigas mais importantes na minha vida.
À todas as pessoas que passaram pela equipe da Groove Party, Bruno, Willamy, Felipe,
Amanda, Helena, Paloma, Negra, Marie, Matheus, Mariana, Karine, Luisa, Sancho, Jimmy,
Will... nada disso seria possível sem vocês. E um agradecimento especial ao JP Black, meu
padrinho na dança, amigo de profissão e de vida. Você é o nosso mais velho, nosso MC, voz e
alma das rodas de dança das festas.
Às amigas Aline Teixeira e Carolina Câmara Pires, por serem as referências e estímulos que
me faltavam para tomar coragem de buscar um mestrado.
Aos amigos Gian, Renann, Agatha, Paula Zaidan, Salasar, Ton Ton e Flip Couto, com quem
tive as mais importantes conversas sobre dança, que me ajudaram a criar caminhos para a
pesquisa.
Aos amigos da Cia Híbrida que, desde 2014, fazem mais parte do meu cotidiano do que
qualquer outra pessoa.
Ao meu orientador e, daqui para frente, amigo Professor Sérgio Andrade, que me
acompanhou despretensiosamente desde a seleção, se tornou meu orientador no momento em
que mais precisei e me (re)ensinou a pesquisar. Obrigada por me mostrar mais uma vez (e
mais de uma vez) que não se faz nada sozinho nessa vida.
À Professora Tatiana Damasceno pela escuta, compreensão e por aceitar compor a banca de
minha defesa de Mestrado. Hoje entendo como era para ser e com certeza é o nome mais
importante para mim nesta banca.
À Professora Camila Daniel, que conheci virtualmente pela amiga Carol Pires, no meio do
caos pandêmico, e que foi mais uma referência para continuar pensando em dança e
negritude. Obrigada também por aceitar compor a banca de minha defesa de Mestrado.
À Professora Agatha Oliveira, por seu olhar generoso em minha qualificação, que foi tão
importante para chegar a defesa. Obrigada também por aceitar compor a suplência da banca
de minha defesa de Mestrado.
À Professora Ruth Torralba pela generosidade em sala de aula, por ter se tornado uma nova
referência artística e acadêmica, e por aceitar compor a suplência da banca de minha defesa de
Mestrado.
À Universidade Federal do Rio de Janeiro, por todas as vivências desde a graduação e pela
estrutura possível, mesmo em tempos tão difíceis.
Ao Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, em
especial às Professoras Ligia Tourinho e Maria Inês Galvão, que coordenaram o Programa
durante os primeiros anos e lutaram tanto por nós, pela educação pública de qualidade e ainda
conseguirem financiamento mesmo em tempos de um desgoverno sem precedentes.
Obrigada também ao Professor Felipe Ribeiro e novamente a Professora Ruth Torralba, por
darem continuidade no árduo trabalho de coordenar um Programa de Pós-Graduação tão novo
e já tão cheio de potências.
Aos colegas do Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal do Rio de
Janeiro, por todas as trocas, acolhimentos e por trazerem e se tornarem novas referências em
minha jornada, em especial ao amigo Xandy de Carvalho, pelas trocas e parcerias na fase
embrionária desta pesquisa.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e a Pró-Reitoria
de Graduação e Pesquisa (PR 2) da Universidade Federal do Rio de Janeiro pelo
financiamento concedido, sem o qual esta pesquisa não poderia ter sido realizada.
À todas/os/es as/os/es groovers e DJs que foram ao menos uma vez em nossa festa,
participaram da celebração de nossa cultura, de nossos corpos, de nossas subjetividades e
nossas danças. Esse trabalho simplesmente não existira sem vocês.
Resumo

Monnerat, Luciana; Andrade, Sérgio Pereira. Groove Party: festa, política e


performatividade negra no Rio de Janeiro, 2023. Dissertação (Mestrado em Dança) – Escola
de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Culturas afrodiaspóricas espalhadas por territórios fora de África possuem diversos rituais
festivos como forma de se manterem vivas e transmitirem suas memórias no mundo pós-
colonial. Com a cultura hip hop não é diferente. É na festa que a celebração dos elementos
MC, DJ, Breaking e Grafite – linguagens artísticas que compõem a cultura hip hop – não
somente se mantém vivos, como também mantém vivas/os/es seus agentes-praticantes.
Groove Party: festa, política e performatividade negra das danças urbanas cariocas faz um
recorte desse fenômeno, analisando a importância sociocultural dessas danças nas
(inter)subjetividades e nas performatividades negras de agentes-praticantes da cultura hip hop
envolvidos no movimento-festa Groove Party, que no intervalo de 2009 a 2019, foi
organizada ao menos em quatro edições anuais na cidade do Rio de Janeiro. No período de
isolamento social, por conta da pandemia de Covid-19, em 2020 e 2021, a festa se
reorganizou numa série de atividades online entre podcasts, lives de discotecagem e bate-
papo. Em todas as edições e versões da Groove Party, a maior protagonista é a dança, mas não
qualquer dança e sim danças pretas motivadas pelas práticas atravessadas pela cultura hip
hop, que nesta pesquisa são chamadas de danças urbanas. A história tão recente em relação a
outras culturas, mostra que esses agentes-praticantes ainda são pessoas que fazem parte de
populações historicamente oprimidas. Este trabalho, portanto, pensa como essas danças e as
subjetividades de seus praticantes são reelaboradas a partir da Groove Party e como esse
processo político só é possível através de uma prática de coletividade herdada da cultura hip
hop.

Palavras-chave: Negritude, Diáspora africana; Festa; Hip Hop, Danças urbanas;


Subjetividade.
Abstract

Monnerat, Luciana; Andrade, Sérgio Pereira. Groove Party: festa, política e


performatividade negra no Rio de Janeiro, 2023. Dissertação (Mestrado em Dança) – Escola
de Educação Física e Desportos, Universidade Federal do Rio de Janeiro.

African-diasporic cultures, spread around the world outside of Africa, use several festive
rituals as a way to stay alive and transmit their memories in the post-colonization world. With
Hip Hop Culture, it is not different. At parties, the place responsible for the birth of Hip-hop
is where elements of this culture are celebrated. MC, DJ, Breaking and Graffiti – those artistic
languages that make up the hip hop culture – not only keep themselves but also their agents
alive. Groove Party: festa, política e performatividade negra das danças urbanas cariocas
makes a cut, analyzing the socio-cultural importance of these dances in the black
(inter)subjectivities and performativities of hip hop culture agents involved in the party-
movement Groove Party, which in the interval from 2009 to 2019, was organized in at least
four annual editions in the city of Rio de Janeiro. The protagonist at Groove Party is dance,
but not any dance. It is the dances and practices that are connected and influenced by hip hop
culture, here called Street Dances. The young history in relation to other African-diasporic
cultures shows that these agents are people who are part of historically oppressed populations.
Therefore, this work thinks about how these dances and the subjectivities of their agents are
reformulated by the socialization at Groove Party, and how this political process is only
possible through a collectivity inherited from the hip hop culture.

Keywords: Blackness, African diaspora; Party; Hip Hop, Street dances; Subjectivity.
Lista de Figuras

Figura 1: Fila de entrada Groove Party, por Eduardo Magalhães, edição do dia 11 de janeiro de 2014,
no Espaço Marun, em frente à saída do metrô do Catete. ........................................................... 12
Figura 2: Montagem para publicação no perfil do Instagram com fotos de Suryan Cury, na edição do
dia 14 de março de 2015, agradecendo às pessoas que aderiram à campanha. ........................... 66
Figura 3: Foto de Suryan Cury, repostada em publicação no perfil do Instagram em 2017 informando
sobre manifestação popular no Centro do Rio de Janeiro ........................................................... 66
Figura 4. Carrossel de fotos da manifestação contra violência policial no caso do menino João Pedro,
por Rafael Ferreira, coletivo Cena BXD ..................................................................................... 67
Figura 5. Edição do dia 5 de junho de 2015, repostada em 2020 com a #TBT, sigla utilizada na internet
para Throwback Thursday, que literalmente significa “quinta-feira de retorno”, é uma hashtag
utilizada nas mídias sociais para postar fotos antigas e lembrar de momentos marcantes. ........ 77
Figura 6. Edição do dia 17 de jan de 2016, repostada em 2017. Esta foi a segunda de 3 postagens que
sublinha a “careta” estereotipada que pessoas negras comumente fazem ao curtir uma música
boa, e que também ironiza a tentativa de fazer poses para supostamente sair bem em uma foto,
atitude popularmente chamada de “fazer carão”......................................................................... 79
Figura 7. Groove Party, por Suryan Cury, edição do dia 14 de novembro de 2013. Esta foto foi tirada
num momento de provocação entre es dançarines num racha entre as danças breaking e
voguing, com o bboy Mario Perdomo à esquerda, e Thiago Basseto, artista que interpreta a Drag
Melanie Bounce à direita, ambos no centro da roda. .................................................................. 85
Figura 8. Groove Party, por Suryan Cury, edição do dia 14 de novembro de 2013. Thiago Basseto está
finalizando um dip no centro da roda, enquanto confetes brilhosos explodiam no ar e as pessoas
ao redor gritavam com os movimentos de dificuldade executados............................................. 86
Figura 9. Postagem de um dos cartazes eletrônicos de divulgação da 53ª edição da festa, no espaço La
Paz Club, localizado no bairro da Lapa, região do Centro do Rio de Janeiro. Na imagem vemos
um bboy PcD com um dos membros inferiores amputado, executando um power move no centro
de uma roda de dança. ................................................................................................................. 89
Figura 10. Publicação com cartaz eletrônico de divulgação do Festival de Hip Hop produzido pela
Frente Nacional Mulheres no Hip Hop (sigla FNMH2) que mostra, eu, Luciana Monnerat como
uma das personalidades homenageadas pelo festival, representante do elemento
CONHECIMENTO na cultura hip hop. .................................................................................... 112
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 12
2 HIP HOP, DANÇAS URBANAS E POPULAÇÕES HISTORICAMENTE
OPRIMIDAS NO BRASIL .................................................................................................... 23
2.1 Mas quem é esse tal de Hip Hop? ................................................................................... 24
2.2 Quem tem medo das “danças urbanas”? ......................................................................... 33
2.3 Políticas de aliança e populações historicamente oprimidas .......................................... 46
2.4 Escrevivendo as danças urbanas, “Groove Party” que quase foi “Urban Party” ............ 53
3 A GROOVE PARTY PERFORMANDO AQUILOMBAMENTO, ESCREVIVÊNCIA
E MEMÓRIA .......................................................................................................................... 59
3.1 A festa como nosso quilombo "mete dança" .................................................................. 62
3.2 Mídias sociais, escrevivência e produção de memória ................................................... 74
3.3 Escrevivendo a Groove Party, onde todas as subjetividades são acolhidas.................... 81
4 ANTES E DEPOIS DA GROOVE PARTY: (INTER)SUBJETIVIDADES E DANÇAS
URBANAS REELABORADAS ............................................................................................ 88
4.1 “Quem vê close não vê corre!” ....................................................................................... 93
4.2 A dança reelabora a festa, a festa reelabora a dança ..................................................... 105
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 113
6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 119
APÊNDICE I – Carta-Homenagem da Universal Zulu Nation ....................................... 126
APÊNDICE II – Links dos vídeos de depoimentos de Stella Messias e Camylla Brainer
Lua ......................................................................................................................................... 127
APÊNDICE III – Links para as produções audiovisuais da Groove Party .................... 128
12

1 INTRODUÇÃO

Figura 1: Fila de entrada Groove Party, por Eduardo Magalhães, edição do dia 11 de janeiro de 2014, no Espaço
Marun, em frente à saída do metrô do Catete.

Fonte: https://www.facebook.com/photo/?fbid=813767258637351&set=a.813766548637422 acesso em 20 de


dez. 2022.

Na fila da entrada, já se ouve o grave do som vibrando nas estruturas do prédio. Tem
gente chegando do metrô, do ponto de ônibus do outro lado da rua e saindo dos táxis que
encostam próximo ao meio-fio. Nem todo mundo vai direto para a fila. Algumas pessoas
resolvem conversar, matar a saudade de quem não vê tem tempo ou apenas beber alguma
coisa para “aquecer”.
Chega sua vez de entrar e duas mulheres muito bem vestidas te recebem: uma branca
com a cabeça raspada, batom vermelho, purpurina nas pálpebras e muitas tatuagens coloridas
visíveis, outra negra de pele clara com o cabelo cacheado, muito volumoso e brincos enormes
que se destacam no meio de toda aquela moldura capilar no seu rosto. Elas conferem seu
nome na lista e você entra. A primeira pessoa conhecida que você encontra faz uma dancinha,
quase como um ritual de cumprimento, e vocês dão um abraço daqueles que a gente se
balança de um lado para o outro. Sem que você perceba, esse balanço acaba sendo no ritmo da
música. O som é tão alto que as caixas de som produzem vento quando chegamos bem perto
delas. Todo mundo na pista de dança está dançando, alguns com mais energia, outros com
mais timidez, mas todos os corpos se movem ao ritmo da música escolhida pelo DJ. Aquela
era uma edição especial homenageando a obra do cantor Michael Jackson. Quem comandava
13

os toca-discos, num set1 mais que especial e fugindo à regra dos demais (pois foi todo tocado
com discos de vinil) era o DJ Nyack, que, além de DJ do rapper Emicida, é também figurinha
marcada no line up2.
Perto da mesa de som, um clarão se abre na multidão: é uma roda de dança. Duas
pessoas estão no centro, dançando juntas e ocupando todo aquele espaço que se abriu para
elas. Um homem negro, nem muito alto nem muito baixo, usando uma camisa de basquete,
uma calça preta e um cordão enorme de madeira pendurado no pescoço, junto com uma
mulher também negra, com cabelo bem crespo com um corte recente que desenhava uma
estrela na lateral da sua cabeça, brincos e correntes douradas e a roupa toda preta. Eles
dançavam juntos, mas não fazendo movimentos iguais. Num primeiro olhar, era difícil dizer
se estavam numa espécie de flerte ou competição de dança (ou quem sabe as duas coisas).
Quem fica ao redor na roda vibra com a cena, grita, sorri e levanta um braço em aceno aos
movimentos de maior dificuldade... isso é uma festa de hip hop. Isso é a Groove Party.

A cultura hip hop nunca morre, ela nasce a cada vez que você admira um graffiti,
um passo de break, um scratch ou a rima de um MC. E ela ressurge com mais força
ainda quando você compartilha isso. Lembro-me até hoje da capa com KL Jay na
saudosa revista Rap Nacional, do Alexandre de Maio, dizendo que o Hip Hop era a
liberdade da mente, um ajudando o outro. Não há um só dia em que eu não olhe no
espelho e não diga, mesmo que silenciosamente, um sincero obrigado aos que me
salvaram com suas rimas e seus rabiscos. Quando você terminar esta leitura, você
tem a obrigação de fazer com que o Hip Hop renasça (EMICIDA in PISKOR, 2016,
p. 6).

Esta pesquisa tem pretensões grandiosas, não se contendo em apenas fazer com que a
cultura hip hop “renasça” em uma literatura com tom acadêmico e artístico. Aqui há também
o intuito de trazer junto corpos dissidentes e dançantes, que vivem cotidianamente as heranças
dessa e de outras tantas culturas atravessadas pelo movimento Hip Hop, para uma exaltação
merecida de toda a beleza das ações e transformações políticas possíveis a partir de processos
de intersubjetivação3 que essas práticas de dança são capazes de produzir. Desse modo, não
havia melhor acolhimento para esta pesquisa do que o Mestrado em Dança do Programa de
Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

1
Set, ou DJ Set, é a expressão que usamos para nos referirmos à apresentação de DJs em shows, festas ou
transmissões de rádio ou internet.
2
Line Up, aqui, é uma expressão utilizada para se referir às atrações de um evento, festa ou festival, ou seja, a
lista de DJs selecionades para cada evento ou festa.
3
Intersubjetivacão, nesta dissertação, é compreendida como o processo de construção de subjetividades a partir
da relação com outras subjetividades, sociabilidades e contextos sociais, que se reelabora ao passo que se
constitui.
14

Seguindo na linha de pesquisa de Performance e Performatividades da Dança, foi


possível conversar com pensadores dos campos da Dança, dos Estudos da Performance e dos
Estudos Negros, pois só a partir desse olhar plural de conhecimento seria possível a
formulação de um pensamento que desse conta da quantidade dos atravessamentos do objeto
escolhido para essa pesquisa – a festa.
Uma das motivações para a realização desta pesquisa é exaltar os saberes de agentes-
praticantes4 da cultura hip hop, onde muitos de seus mestres não possuem títulos
institucionais. Também escolhemos não dar tanto espaço, neste trabalho, a vozes que já foram
ouvidas mais que o suficiente dentro de um saber branco, hegemônico e institucionalizado
pela academia. A escolha aqui é priorizar uma bibliografia de maioria negra, mulheres ou
pessoas com identidades de gênero não binária, evitando o ponto de vista, já muito bem
sabido e conhecido no espaço acadêmico, do homem-branco-cisgênero-heterossexual.
Vivemos e convivemos com “uma história de vozes torturadas, línguas rompidas, idiomas
impostos, discursos impedidos e dos muitos lugares que não podíamos entrar, tampouco
permanecer para falar com nossas vozes” (KILOMBA, 2019, p. 27). Desse modo, nossas
visitas bibliográficas têm cor e gênero, não são neutras e, por vezes, não tão óbvias, afinal,
“nem todo mundo que tá é/nem todo mundo que é tá”.5
A cultura hip hop é, dentre as culturas produzidas pela diáspora africana, uma das
mais difundidas mundialmente na atualidade. Essa é uma afirmação que fazemos sem receio
de exageros, pois é uma cultura riquíssima nas linguagens artísticas que seus elementos
representam, além de atravessar e ser atravessada por diversas outras culturas da diáspora
africana – fator que, juntamente com a globalização, provavelmente colabora para sua
popularidade. Halifu Osumare, em seu livro The Africanist Aestetic in Global Hip-Hop:
Power Moves (2007), fala justamente sobre como esta cultura se faz presente em todo lugar,
de capitais a zonas rurais, se internacionalizando e sendo abraçada por milhares de culturas
pelo mundo pós-moderno. Mesmo tendo a rebeldia e a desobediência em sua raiz, a autora
analisa como a cultura hip hop se torna esse fenômeno internacional de cultura pop pela
convergência de duas forças: a mídia capitalista e transnacional e a cultura popular afro-
americana, sendo ainda uma cultura que “permanece impregnada de modos de expressividade
africanistas6” (OSUMARE, 2007, loc. 106)7. A autora ainda fala sobre como “a cultura hip-

4
Escolhi chamar de “agentes-praticantes” os fazedores da cultura hip hop e das danças urbanas, por entender que
são não somente as pessoas responsáveis por agenciar essas culturas, como também só o são por se manterem
ativos dentro destas com suas práticas, seja dentro da dança, seja em outras linguagens artísticas.
5
Trecho da música BANG! de Emicida com participação de Adriana Drê, de 2013.
6
Tradução minha do original: “remains steeped in Africanist expressive modes”.
15

hop se tornou internacional em amplitude e profundidade, com milhares de culturas pelo


mundo a abraçando de várias formas”8 (OSUMARE, 2007, loc. 106) essencialmente reunindo
corpos de juventudes marginalizadas, o que aqui no Brasil compreendemos como pessoas de
maioria negra, por vezes de gêneros dissidentes e de classes sociais mais baixas.
A Groove Party é uma festa onde celebramos e vivemos a cultura hip hop,
juntamente com outras práticas de dança atravessadas por esse universo amplo e diverso. Essa
festa é também para onde os olhares desta pesquisa se direcionam. Desde novembro de 2009,
organizo a Groove como um encontro onde a relação entre as linguagens da dança e da
música é protagonista. A trilha sonora produzida pelas mixagens de DJs conduz corpos a
expressarem, através da dança, suas subjetividades, alegrias e frustrações na pista de dança.
Até o final de 2019, realizamos edições da festa pelo menos quatro vezes ao ano, em regiões
de fácil acesso via transporte público, quase sempre em bairros do centro da cidade do Rio de
Janeiro. A festa produziu assim uma zona intermitente comum a quem transita pelas Zonas
Sul, Norte e Oeste da cidade, mas que também acolhe populações de outros municípios como
Niterói, São Gonçalo, cidades da Região Serrana do estado – Petrópolis, Nova Friburgo – e da
Baixada Fluminense – Nova Iguaçu, Duque de Caxias.
A partir do ano de 2020, por conta das medidas de isolamento social para tentar
conter a pandemia da covid-19, tivemos que nos reinventar como festa. Nossa maneira de
mobilização cultural dependia de corpos aglomerados, música alta, muito contato físico,
dança, suor e uma troca direta entre quem dança na pista e quem comanda a trilha sonora da
noite. Assim, nos reinventamos como coletivo mobilizador de cultura negra, com foco na
dança, música e (re)construção coletiva de autoestima com o público. Para continuarmos com
atividades remotas, fizemos transmissões ao vivo por nossas mídias sociais, com DJs
sozinhos/as e/ou acompanhados/as de dançarinas/os/es, que improvisavam ao vivo em cima
de seus sets musicais. Também fizemos transmissões promovendo discussões sobre temas em
torno do racismo, convidando sempre pessoas do nosso público, e, para falar e informar sobre
dança e música negra, criamos o podcast “MixCuta Groove!”,9 em parceria com outro
coletivo de cultura negra do Rio de Janeiro, o MixCuta! – liderado pelo produtor e amigo da

7
Nesta pesquisa utilizamos como referência a obra de Osumare (2007) na versão e-book kindle que não contém
paginação. Indicamos a numeração “loc.” para facilitar a localização da referência para o/a leitor/a na versão
digital.
8
Traduação minha do original: “Hip-hop culture has become international in breadth and depth, with thousands
of cultures throught the globe having embraced it in various forms.”
9
Ações virtuais realizadas nos perfis das mídias sociais da festa, podem ser vistas nos canais do Instagram,
Spotify, YouTube e Facebook em https://linktr.ee/grooveparty/. Acesso em: 5 Jan. 2023.
16

Groove Party Nathan Mafra, junto com o DJ Will Ow e a DJ Tamy Reis10. Desse modo, tanto
a festa quanto a escrita deste trabalho foram extremamente afetadas pela situação social
consequente da pandemia e da situação política do país, mas a resiliência do movimento-festa
Groove Party permanece firme, ao menos até a finalização desta pesquisa.
Desde sua primeira edição, na sala de uma academia de dança no centro da cidade de
Niterói, até as ações virtuais de podcasts e lives, a realização, produção e concepção da festa,
são de responsabilidade de um coletivo – com alguma rotatividade em sua formação –
liderado por mim, autora desta pesquisa. A festa é pensada e vivida há mais de dez anos como
práxis cotidiana e, desde 2019, passou a ocupar também o espaço acadêmico como objeto de
pesquisa desta dissertação. A Groove Party ocupa diversos espaços em minha vida pessoal e
profissional, mas, assim como essa pesquisa, nunca se realizou de maneira solitária ou
individual. Contamos com saberes dos nossos mais velhos e mais velhas da cultura hip hop,
braços e pernas de quem faz a festa acontecer como equipe de produção e público
frequentador, colaboração de amigas, amigos e amigues dos campos de conhecimento da
música, da dança e da performance, além da própria orientação e referências das mais
diversas. Assim, assumiremos aqui uma escrita em primeira pessoa do plural e por vezes
performativa, inspirada também em Luciane da Silva, que em sua tese justificou uma escolha
semelhante:

menos por seguir um modelo de conduta científica, mas por acreditar que estas
linhas são uma escrita conjunta a uma genealogia de intelectuais que referimos e
sucedemos. Assim, dizer “nós” significa reconhecer a parceria com a orientadora
assim como a ancestralidade e os percursos intelectuais que respaldam e compõem
este trabalho. De toda forma, vez por outra a primeira pessoa do singular aparece,
fruto da inevitável manifestação da experiência especificamente individual e cuja
subjetividade impõe feições particulares ao trabalho. Tentamos, entretanto, não
escorregar na subjetividade exacerbada e tampouco na autocomplacência. O “ser
sujeita” se impõe como pessoa e como membra de coletividades que não se
reconhecem nas narrativas hegemônicas. Salientamos ainda que essas alternâncias
na pessoa do discurso, que inevitavelmente resultam em um texto com certa
variação do ponto de vista científico normativo – afinal “quem está falando”? – são
conscientes. Sou eu e somos nós, o que parece fortalecer a ideia geral de construção
desta tese pautada na premissa de que a escrita é um diálogo e não um monólogo
(SILVA, L., 2018, p. 20).

Queremos refletir sobre o papel político da festa na socialização de populações


historicamente oprimidas, que são as grandes fundadoras e realizadoras de culturas como hip

10
Nathan Mafra e Will Ow foram os fundadores do coletivo MixCuta e todos são também parceiros de longa
data da Groove Party. Nathan e Tamy Reis eram casados e o começo de sua história como casal também passou
pela Groove. Em novembro de 2020, aos 30 anos, nosso amigo Nathan faleceu por complicações de um
Acidente Vascular Cerebral. Desse modo, Tamy assumiu seu lugar no coletivo e fizemos a segunda temporada
do podcast em homenagem ao nosso “queridão” (como ele chamava suas pessoas mais próximas).
17

hop e das práticas de dança aqui chamadas de danças urbanas11. Falamos sobre dança, festa,
subjetividades e os possíveis atravessamentos acerca da racialidade essencialmente, porém
tentando também observar, ainda que superficialmente, outras questões como gênero,
sexualidade e classe social nessas populações das quais também faço parte.
Nosso ponto de partida se dá pela formulação da questão: como as danças urbanas e
as subjetividades racialiazadas e dissidentes de seus agentes-praticantes são reelaboradas a
partir da Groove Party? Chamamos de reelaboração, inclusive, por entender que existe uma
elaboração de nossas subjetividades – e aqui usamos o plural por entender que esse “nós”, que
se refere a agentes-praticantes da cultura, inclui pessoas de gêneros, raças, sexualidades e
classes diversas, logo podendo ter subjetividades diversas também – que ocorre em
consequência de onde vivemos, nascemos, moramos ou com quem convivemos nesses
ambientes socialmente. Entretanto, a entrada desses agentes-praticantes na cultura hip hop e a
sociabilidade em festa, torna-se um novo capítulo na elaboração de nossas subjetividades, já
marcadamente produzidas em relação umas com as outras, como intersubjetividades, portanto.
Sou corpo e alma que participa da realização dessa festa em todas suas etapas. Sentimos em
nossas próprias peles a força destas reelaborações em dança, intersubjetividades e autoestima.
Percebemos a influência da festa na dança produzida por essas pessoas, as práticas de
libertação nesse ambiente a partir de uma sensação de segurança, que pode ser produzida
tanto pelo discurso que empodera a autoestima negra, quanto pelo acolhimento resultante da
sociabilidade. Pela primeira vez, penso teoricamente sobre isso.
Para vislumbrarmos um pouco da sensação do que é fazer parte desse movimento-
festa que chamamos de Groove Party e todas as práticas de dança alimentadas nesse espaço, é
necessário entender também os elementos que compõem a cultura hip hop. Para isso,
apresentamos algumas de suas nuances e como esses atravessamentos culturais acontecem.
Entendemos aqui, que culturas da diáspora negra possuem territórios móveis, que
falam muitas linguagens e até mesmo línguas diferentes. Stuart Hall (2003) nos demostra bem
sobre como identidades culturais africanas sobrevivem até a atualidade em territórios fora de
África, através de uma hibridização com culturas locais. Com a cultura hip hop não é
diferente. Ela possui o território do Brooklyn como local de seu nascimento e onde ganha seu
nome. Este encontro, que começa no início da década de 1970, se faz presente em todo o
globo na atualidade, contaminando e se deixando contaminar pelas culturas das periferias
(geográficas ou sociais) aonde chegou.

11
Falo sobre a historicidade e pertinência do termo danças urbanas para esta pesquisa no capítulo 2.
18

Desse modo, neste texto muitos termos serão escritos em inglês e nem sempre
traduzidos, pois, além de serem utilizados no idioma original dentro da cultura, também
entendemos que, com a tradução, podemos perder seus significados. O próprio termo aqui
adotado – “danças urbanas” –, inclusive, é uma tradução adaptada de street dances, assunto
melhor explicado no próximo capítulo desta dissertação. Para outros termos, como nomes de
práticas de danças (como breaking, popping ou locking) ou de elementos da cultura e palavras
usadas pelos praticantes (como feeling, flow ou Disco Jockey, o “DJ”), nem mesmo uma
tradução adaptada daria conta. Por esta razão, não houve esforço em traduzir termos e nomes
para o português, tentando aproximar o leitor ainda mais do universo dos agentes-praticantes
dessa cultura.
Para apresentarmos um breve histórico do Hip Hop, cruzamos histórias contadas
pelos/as/es mais velhos/as/es do movimento, OGs ou Original Generation – as pessoas
consideradas como (ou mais próximo de) a primeira geração de uma dança (com os/as/es
quais tivemos inúmeras oportunidades de conversar ao longo de anos de práticas nessa
cultura) – com informações de filmes documentários. Utilizamos Nos tempos da São Bento
(Guilherme Botelho, 2010) e Check your body at the door (Sally Somer, 2012), que falam
sobre algumas danças urbanas e suas histórias, e a obra Hip Hop Genealogia (2016), de Ed
Piskor, quadrinista, amante e pesquisador da cultura hip hop que conta essa história de
maneira precisa e poética em seu livro.
Não nos limitando à palavra escrita, acredito que imagens e sons podem e devem ser
lidos como parte integrante do texto. Desse modo, utilizaremos como parte da nossa
metodologia de pesquisa, a análise de materiais produzidos em nossas mídias sociais12, como
fotos e vídeos de edições da festa, além de produções audiovisuais utilizadas como peças de
divulgação. Para dar sonoridade à leitura, músicas utilizadas como epígrafes e listas de
músicas disponibilizadas em nosso perfil na plataforma de streaming Spotify, têm links em
QR-code13 colocados junto com o texto escrito. Vídeos gravados de transmissões ao vivo com
discussões, performances de dança e discotecagem de amigos/as/es e membros do coletivo da
Groove Party, episódios de podcasts produzidos em parceria com o coletivo MixCuta!, e
imagens da festa, também são parte do texto aqui escrito, enriquecendo a vivência através da
leitura do universo criado pela Groove Party. Convidamos, então, a quem nos lê, a entrar no

12
Mídias sociais da Groove Party: perfil no Instagram, https://www.instagram.com/grooveparty/ e página no
Facebook, https://www.facebook.com/GroovePartyOficial. Acesso em: 14 Jan. 2023.
13
Os QR-codes, códigos lidos por smartphones para acesso instantâneo de links ou outras informações, são
colocados sempre ao lado das citações de letras de músicas, para que possam ser ouvidas instantaneamente
acompanhando a leitura do texto.
19

jogo entre saltos e concomitâncias das multiplataformas que articulam a experiência desta
dissertação.
Uma das possibilidades pensadas como metodologia para essa pesquisa foi a
utilização de ferramentas ou estratégias da etnografia e da autoetnografia. Já não é novidade
que pesquisas de práticas artísticas e pesquisas em dança utilizem os estudos etnográficos
como metodologia e a autoetnografia “como uma escrita de si, que permite o ir e vir entre as
experiências pessoais e as dimensões culturais, buscando reconhecer, questionar e interpretar
as próprias estruturas e políticas do eu” (DANTAS, 2016, p. 173). Entretanto, entendo que
essas seriam ferramentas insuficientes para dar conta da profundidade de uma vivência
experienciada por mim ou mesmo que eu não daria conta das especificidades de tais métodos
amplamente estudados e debatidos nos campos da Antropologia e Sociologia e, mais
recentemente, da Dança.
Desse modo, como este trabalho também se trata de uma pesquisa realizada dentro
do campo da arte, adoto a escrevivência como principal metodologia de pesquisa, com uma
estratégia de escrita performativa também para que se produza uma memória escrita da festa e
da cultura hip hop no Rio de Janeiro. Acreditamos que a dança produzida dentro das festas
blacks e do movimento Hip Hop está intimamente ligada às nossas subjetividades, portanto
escrever sobre essa dança é escrever sobre nossas vivências. Não há melhor referência para
esse método do que Conceição Evaristo:

Minha escre-vivência vem do quotidiano dessa cidade que me acolhe há mais de vinte
anos e das lembranças que ainda guardo de Minas. Vem dessa pele-memória-história
passada presente e futura que existe em mim. Vem de uma teimosia, quase insana, de
uma insistência que nos marca e que não nos deixa perecer, apesar de. Pois entre a
dor, a dor e a dor, é ali que reside a esperança (EVARISTO, 2016).

Assim, em cada seção desta dissertação, separo uma subseção para narrar momentos
vividos durante/com a festa, com personagens que fazem parte da construção dessa história,
coletiva e compartilhada. Trago a prática da vivência dessas culturas para o texto, fazendo
esse experimento que mistura realidade e ficção, declaradamente inspirada em Evaristo, que
se refere ao seu livro Becos da memória (2017) como um “primeiro experimento em construir
um texto ficcional con(fundindo) escrita e vida, ou, melhor dizendo, escrita e vivência”
(EVARISTO, 2017).
Além de vivências, ainda pretendemos falar sobre sobrevivência. Você já deve ter
ouvido alguém dizer: “O Hip Hop salvou minha vida”! A partir dessa máxima, tão repetida
principalmente por pessoas pretas e periféricas ao falar do significado desta cultura em suas
vidas, procuramos na literatura para trazer referências que falam sobre as situações de
20

precariedade de determinadas populações (BUTLER, 2018) e as transformações provocadas


por um processo de empoderamento coletivo (BERTH, 2018) que acontece na cultura hip hop
e nas práticas de danças urbanas. O processo de realização desta pesquisa trouxe percepções
de minha história, do meu corpo e de minha subjetividade como uma mulher preta, bissexual,
dançarina de hip hop dance e de tantas outras danças urbanas, arte-educadora e mobilizadora
cultural, que não pareciam importantes até começar a aprofundar meus estudos sobre minhas
práticas. Exaltar esta cultura periférica e de diáspora africana, capaz de alterar o poder
capitalista através de mudanças sociais e culturais nas estruturas dos sistemas econômicos,
muitas vezes se utilizando do próprio capitalismo (OSUMARE, 2007), é a maior motivação
não só desta pesquisa, mas de toda a realização do movimento-festa Groove Party.
Foi através da vivência dessa cultura que me reconheci, com orgulho, como mulher e
negra! Vejo todos os dias, nos ambientes das festas, das cyphers14, dos treinos, das batalhas,
das aulas de dança e de tantos outros, o quanto essa vivência nos ajuda a reconhecermos nossa
identidade enquanto população negra e periférica e, a partir desse reconhecimento, nos
afirmarmos para o mundo. Se não fosse pela minha vivência dentro da cultura hip hop e da
festa, provavelmente não estaria vivendo o processo de mestrado. “Desde que era impossível
livrar-me de um complexo inato, decidi me afirmar como Negro. Uma vez que o outro
hesitava em me reconhecer, só havia uma solução: fazer-me conhecer” (FANON, 2008, p.
108). Quero fazer-nos conhecer em outros espaços. Já começamos nossa ocupação na mídia
como cultura pop, inicialmente pela música, seguida do grafite e da dança (PISKOR, 2016;
OSUMARE, 2007). Nosso objetivo agora é avançar as discussões no espaço acadêmico.
Eu poderia dizer que estes são os objetivos artísticos ou acadêmicos desta pesquisa.
Entretanto, entendendo que estamos estudando e potencializando aqui o alcance e poder das
alianças políticas feitas pelos agente-praticantes das danças urbanas a partir da festa e que o
conhecimento e sua produção também o são, nossos objetivos são também políticos.
Queremos nos unir a forças como os Racionais MCs que, ao alcançarem projeção nacional
com a música Diário de um detento, fizeram “com que os debates promovidos pelos
movimentos identitários extrapolassem as fronteiras mais estreitas da academia e dos
movimentos sociais, ganhando assim o campo mais amplo da cultura” (BOSCO apud
OLIVEIRA, 2018, p. 23).

14
No Rap, a palavra cypher se refere a um encontro de vários MCs em uma única música, normalmente com
duração maior (5 a 15 minutos) e com letras construídas por improviso. Na dança, é um encontro informal, quase
como uma festa espontânea ou uma roda de dança sem competitividade (rachas ou batalhas), onde os/as/es
dançarinos/as/es improvisam dentro da técnica de dança que dominam.
21

Dentro do campo de Estudos da Performance, Butler (2018), que possui foco em


questões de gênero em suas pesquisas, já traz a importância de alianças políticas entre
diferentes grupos feitas em assembleias e manifestações políticas em espaços públicos, para a
sobrevivência dessas populações colocadas em situações de precariedade. Esta situação é
definida pela autora como “politicamente induzida na qual determinadas populações sofrem
as consequências da deterioração de redes de apoio sociais e econômicas mais do que outras,
e ficam diferencialmente expostas ao dano, à violência e à morte” (BUTLER, 2018, p. 40).
Nesta dissertação, trago a festa como aliança política que faz parte de um processo maior de
sobrevivência de culturas e de vidas, pois quando esses corpos dançam e celebram juntos, eles
também estão exercitando o “direito de aparecer, uma demanda corporal por um conjunto de
vidas mais vivíveis” (ibdem, p. 31).
A nossa precariedade é marcada primeira e principalmente, mas não somente, pela
raça. Pois é a partir do processo de escravização de pessoas negras e do colonialismo que
nossa sociedade atual foi sendo estruturada, o que levou aos descendentes de pessoas
escravizadas a serem colocados nesse local de precarização social, como veremos. Por isso,
este é um dos pontos mais abordados ao longo da dissertação, explicitando mais como o
Racismo Estrutural nos afeta em tantas camadas, trazendo diversos autores, como Stuart Hall
(2003, 2016, 2019), Achile Mbembe (2018a), Sueli Carneiro (2011), Grada Kilomba (2019),
Frantz Fanon (1968, 2008) e Cuti (2010), a fim de dar conta dos vários aspectos políticos e
psíquicos que conformam nossas subjetividades. Trago também as minhas próprias vivências
para a discussão, pois as marcas e violências causadas pelo Racismo não nos atingem somente
subjetivamente em nossas psiquês, mas também fazem parte de “um verdadeiro projeto de
gerenciamento da miséria por meio da violência” (OLIVEIRA, 2018, p. 20), que entendo aqui
como uma ferramenta da necropolítica exercida pelo Estado, como explicada por Mbembe
(2018b).
Desse modo, organizei esta dissertação em mais quatro capítulos, que se seguem a
partir desta introdução. Em 2. Hip Hop, danças urbanas e populações historicamente
oprimidas no Brasil, apresento mais demoradamente a cultura hip hop e seus elementos, as
danças urbanas, questões essencialmente políticas acerca deste termo guarda-chuva e quem
são as populações que fazem parte desse movimento artístico e cultural. Miramos em trazer
esses elementos para um contexto brasileiro e, então, carioca para melhor compreensão do
objeto e do campo desta pesquisa.
Em 3. A Groove Party performando aquilombamento e escrevivência como
memória, falo mais sobre a festa Groove Party, conto um pouco mais sobre sua história,
22

analiso a estética da festa (com suas mídias sociais) e como isso a direciona politicamente
para um público, ainda que este seja diverso. Penso sobre os conceitos de quilombo e
quilombismo – trazendo autores como Abdias Nascimento (2002) e Beatriz Nascimento
(1985) – e relaciono com os Estudos da Performance para entender qual a importância política
de celebrações de culturas da diáspora negra, como a festa, para as populações que a
frequentam. Chegando em 4. Antes e depois da Groove Party: (inter)subjetividades e danças
urbanas reelaboradas, aponto as dificuldades vividas nos processos de produção da festa e da
pesquisa. Busco compreender como essa reelaboração intersubjetiva ocorre em seus agentes-
praticantes e pensamos sobre as mudanças na autoestima das populações apresentadas nas
primeiras seções da pesquisa, tudo a partir de um olhar de escrevivência, inspirado no método
de escrita de Conceição Evaristo (2017).
Enfim nas Considerações Finais, o quinto capítulo, retomo as principais questões
levantadas ao longo da dissertação, levantando os possíveis desdobramentos acadêmicos,
artísticos e políticos desta pesquisa e imaginando um futuro do movimento-festa Groove
Party. Nos Apêndices, quase como um presente ao leitor, trago as produções audiovisuais e
documentos que tornam nossas personagens, os/as/es agentes-praticantes das danças urbanas,
reais. São depoimentos dos corpos que fazem parte da Groove, captados para a produção de
projetos para editais de fomento à cultura, fora do espaço acadêmico, mas que trazem para o
nosso mundo, prático e cotidiano, a importância da revolução política que fazemos ao celebrar
nossas vidas.
23

2 HIP HOP, DANÇAS URBANAS E POPULAÇÕES HISTORICAMENTE


OPRIMIDAS NO BRASIL

Começamos nos guetos das grandes capitais


Movimento dos pretos e de seus ideais
Somos filhos de Ketu somos originais
Hip hop é feito com tempero de paz
Dançamos por aí, grafitamos murais
La eles tem jay-z aqui tem racionais
Pode ser mc, se não for tanto faz
O importante é sentir...
Que o hip hop é f*da!

Rael da Rima (2013)15

Para pensar os processos de reelaboração de (inter)subjetividades de agentes-


praticantes das danças urbanas ou mesmo entender que danças são essas e como a cultura hip
hop as atravessa, existem escolhas de termos e caminhos importantes a serem definidos nesta
pesquisa. Dedicamos essa seção a explicar que cultura é essa, a quais práticas de dança
estamos nos referindo ao usar o termo “danças urbanas”, a escolha política mais do que
apenas conceitual de seu uso, como essas práticas são atravessadas pelo movimento Hip Hop
(principalmente no Rio de Janeiro) e de onde vem esse atravessamento focando no histórico
de seu surgimento no Brasil.
Também é importante destacar e repetir que as vozes escolhidas para contar essas
histórias não são as mais comumente ouvidas. Existe uma disputa de narrativa assumidamente
construída nesta pesquisa – iniciada muito antes desta ocupar o espaço acadêmico –, mas que
não tem real interesse em definir conceitos e sim reclamar visibilidade política e exaltar os
pontos de vista (ou visões estéticas) sobre as práticas de dança, termos e definições das
culturas de diáspora negra vindos de seus próprios agentes-praticantes. Afinal, somos os/as/es
maiores especialistas de nossas próprias culturas e infinitamente plurais em nossas
subjetividades e identidades.

15
Trecho da música O Hip Hop é foda Pt. 1, de Rael da Rima. Disponível no link:
https://www.youtube.com/watch?v=e5lBmlJLsw4, Acesso em: 5 Jan. 2023
24

2.1 Mas quem é esse tal de Hip Hop?

O movimento Hip Hop não é somente celebrado na festa. Ele também se originou e
se construiu enquanto cultura de festa. Seu primeiro elemento, o DJ (Deejay ou Disco
Jockey), tem como um de seus marcos históricos uma festa produzida junto a um de seus
principais criadores, o DJ Kool Herc. Em meados da década de 1970, mais precisamente no
dia 11 de agosto de 1973, o então jovem jamaicano tocou em uma festa produzida por sua
irmã, Cindy Campbell, para celebrar a volta às aulas no número 1520 da Avenida Sedgwick,
no South Bronx (PISKOR, 2016). A data acabou ficando conhecida mundialmente como
aniversário do hip hop e foi recentemente declarada como “Dia de Celebração do Hip Hop”
nos Estados Unidos (cf. REB TEAM, 2021). Foi em festas como essa, normalmente gratuitas
ou com ingressos muito baratos, que começou a se desenvolver o primeiro e mais importante
elemento fundador da cultura hip hop, através da arte da mixagem musical. Utilizando álbuns
de Funk, Soul e Disco Music16 e dois toca-discos conectados a um mesmo equipamento de
som, DJs como Kool Herc, Grandmaster Flash e Afrika Bambaataa deram seus primeiros
scratchs17, escolhendo as melhores músicas – e seus trechos mais dançantes – para não deixar
ninguém parado na pista de dança.
Praticamente simultâneo ao nascimento do DJ, veio o segundo elemento: o MC ou
Mestre de Cerimônia. Este aparece como um animador de festa, a pessoa do microfone
responsável por apresentar o show dos/das DJs e manter o público enérgico. A arte desse jogo
com as palavras e a música, majoritariamente improvisado, se desenvolveu e fez nascer o
Rap, Rhythm and Poetry (Ritmo e Poesia). O rapper brasileiro Emicida define MCs como
“controladores do microfone, senhores das palavras que manipulam em seus corpos de
maneira que, juntas, a vivência e o conhecimento se tornem o fogo e a pólvora, prontos para
um disparo certeiro” (EMICIDA in PISKOR, 2016, p. 5).
Na apresentação de seu livro Querem nos calar: poemas para serem lidos em voz
alta, Mel Duarte fala sobre como “a poesia falada nada mais é do que uma herança cultural”
(DUARTE, 2019, p. 9) e que a oralidade sempre foi uma maneira comum em diversas
culturas de manter seus costumes e crenças vivos. A autora se refere ao movimento poetry
slam ou batalha de poesia, que se iniciou na década de 1980 com o poeta Marc Smith em
16
Para ilustrar o gênero musical, sugerimos ouvir as playlists Groove Party Disco, disponível em
https://open.spotify.com/playlist/1EHsFdF9zeNbjVGyZn2kfz?si=yJZ3WZsdTXaulPap1YjpvQ, e FunkSoul
Brazucas, disponível em
https://open.spotify.com/playlist/4jbLd2nIvdOCXbaylvTcKY?si=zomdCHiMSeKWx2YYrGEEFw. Acesso em:
14 Jan. 2023.
17
Scratch é a palavra utilizada para se referir a uma técnica de discotecagem que produz um som de “arranhar”
os discos de vinil.
25

Chicago, nos Estados Unidos, e que foi trazido para o Brasil pela atriz e MC Roberta Estrela
D’Alva à cidade de São Paulo, em 2008 (ibdem, p. 10). Assim como no slam, no Rap a
“palavra falada” é uma das formas de oralidade da cultura hip hop. É através de sua poesia
que MCs, também agentes-praticantes desta cultura, se expressam para celebrar, lamentar ou
até mesmo vociferar raivas e frustrações, mantendo a cultura viva e registrada em suas letras.
Desde seu nascimento até a atualidade, o Rap não acontece somente na forma de improviso,
como em batalhas semelhantes aos slams. Ele também se desenvolve como gênero musical,
em que a letra pode ser previamente escrita e trabalhada juntamente com a produção
instrumental da música.
A fluidez ritmada, chamada no movimento Hip Hop de flow, aparece como
característica nas vozes de diversos gêneros musicais periféricos, como o próprio Rap, o
Trap18, nosso Funk Carioca,19 o Grime20 ou mesmo outros gêneros com menos influências
diretas do norte das Américas como o Repente21. Fazendo com que saiam das periferias, na
humilde opinião desta autora, as melhores produções musicais do país com tamanha riqueza
de ritmos, poesias, memórias e oralidades.
Voltando ao Hip Hop e suas origens estadunidenses, o contexto social da época e
local onde a cultura nasce é dominado pela cultura das gangues de rua do Bronx. Em muitas
das versões contadas sobre essa história, isso fez com que Bambaataa, ex-líder de gangue e
fundador da Universal Zulu Nation22, enxergasse um potencial afirmativo nessa nova cultura
que o levou a guiar seus seguidores por um caminho menos violento para resolverem suas
diferenças. Foi nesse clima de rivalidades e territorialismos que o fenômeno das citadas
batalhas, também chamadas de rachas, nasceu (PISKOR, 2016). Essas poderiam ser disputas
entre equipes de som, DJs, MCs e/ou dançarinas/os/es onde o público era o júri.

18
Gênero musical mais recente, normalmente com uma estética voltada para a ostentação de bens materiais,
como no clipe Boné da Lacoste, do artista Leskill. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=RzxPYnw2o7s. Acesso em: 10 Jan. 2023.
19
O Funk Carioca, foi um gênero que nasceu nos bailes das comunidades do Rio de Janeiro e se espalhou pelo
país, influenciado principalmente pelo Miami Bass. Possui influência do Hip Hop, Rap e diversos outros gêneros
negros principalmente estadunidenses. Uma das MCs mais antigas e com maior reconhecimento na cena é Tati
Quebra Barraco, que aparece no clipe Mamãe da Putaria, em parceria com o coletivo de música e festa Heavy
Baile e MC Carol. https://www.youtube.com/watch?v=vw09YpI_QMQ. Acesso em: 10 Jan. 2023.
20
O Grime é um gênero que surgiu na Inglaterra em 2000 com influência jamaicana. Aqui no Brasil, o Brasil
Grime Show convida artistas MCs do Funk, Rap, Hip Hop e outros gêneros musicais pretos para cantarem em
beats (batidas/bases instrumentais) de Grime, como na vídeo-performance de DINIBOY, MC NANINHA &
N.I.N.A. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ykQIEtzGDtU. Acesso em: 10 Jan. 2023.
21
Para ilustrar o estilo Repente ou Cantoria, assistir ao show Coqueiro da Bahia, Chico de Assis e João Santana,
disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ia7dE1M28Nk. Acesso em: 10 Jan. 2022.
22
A Zulu Nation surgiu, inicialmente, como um grupo organizador de festas de Hip Hop liderado por Afrika
Bambaataa. Com o tempo, se tornou a Universal Zulu Nation, a maior ONG internacional de conscientização da
Cultura Hip Hop. Cf. https://www.facebook.com/OfficialUniversalZuluNation/. Acesso em: 13 Jan. 2023.
26

As batalhas e rachas ocorrem até hoje em encontros, festas, slams e festivais da


cultura hip hop. Popularmente, diferenciamos ambas chamando de “rachas” as disputas que
acontecem de maneira espontânea, em festas, cyphers ou rodas de improviso. Já as “batalhas”
são competições sistematizadas, separadas por categorias ou linguagens e normalmente
organizadas em eventos com premiações, banca julgadora e/ou critérios de avaliação
previamente estabelecidos. É importante destacar aqui que a existência dos rachas e das
batalhas é comum em várias práticas de dança de outras culturas da diáspora negra além do
Hip Hop. Isso pode ser um dos fatores que colabora para a aproximação entre estas práticas de
dança e outras culturas com a cultura hip hop, mas estes termos, “racha” e “batalha”, não
necessariamente são diferenciados dessa maneira no cotidiano de nenhuma dessas culturas.
O terceiro elemento fundador da cultura é o Graffiti ou Grafite. Este, que começou
como assinaturas e/ou desenhos em fachadas urbanas e equipamentos públicos, demarcava
territórios de gangues e representa a linguagem das artes gráficas dentro da cultura – as tags
que no Brasil ainda conhecemos como “pixo” ou “pixação”. Fred Brathwaite, que assinava
inicialmente com o codinome “Bull 99”, posteriormente adotando o nome “Fred Fab Five”,
foi um dos primeiros a entender o potencial de sua arte ao compará-la com as Pop Arts que
via nos museus e galerias que visitava. Fred criou a crew (grupo) The Fabulous Five,
responsável pelo famoso Trem de Sopas Campbell, que circulava pela cidade de Nova Iorque
(PISKOR, 2016). Junto com Jean-Michel Basquiat, seu amigo, conheceram Glenn O’Brien,
editor da revista Interview de Andy Warhol, e levaram essa arte das ruas para as grandes
galerias e museus de arte.
Chegamos ao quarto elemento que representa a linguagem da dança: o Breaking.
Justamente por se tratar de uma prática de dança, este é o grande conector entre as histórias da
cultura hip hop e da Groove Party, com todas as práticas de dança que aqui se reúnem. O
breaking ganha esse nome por, inicialmente, ser dançado por seus agentes-praticantes, os
bboys e as bgirls, no breakdown da música – parte instrumental mixada para tocar em loop
por DJs. É uma linguagem construída inicialmente em cima de fundamentos relativamente
simples: top rock, footwork, freeze e power moves.
O top rock, simplificadamente, seria a parte da dança feita em pé, desenvolvida a
partir de danças sociais, principalmente da era da Soul Music. As danças sociais, ou social
dances, são passos que surgem a partir justamente da socialização da comunidade negra
estadunidense, por vezes acompanhados de músicas que descrevem movimentações nas suas
letras ou relações bairristas. Na música, artistas como James Brown (cantor, compositor,
dançarino e multi-instrumentista, conhecido por mesclar a dança em suas performances,
27

inspirando passos que levavam seu nome em homenagem ao gingado de seus pés), Rufos
Thomas (autor de sucessos como Do The Funky Chicken e (Do The) Push And Pull, músicas
em que o cantor literalmente ensinava como executar os passos que as nomeavam) e Aretha
Franklyn (que assim como Thomas, lançou a música Rock Steady, com um step de mesmo
nome) deram grandes contribuições para criação e/ou difusão das danças sociais. A produção
dessas danças sociais não se manteve apenas na era do Funk e Soul estadunidense, mas segue
continuamente com diversos outros gêneros musicais atualmente. Voltando a parte dançada
em pé do breaking, também podemos falar dos up rocks. Estes são danças com gestuais de
briga e provocações, com movimentações de ataque e defesa, com uma marcação,
normalmente feita a cada quatro tempos da música, em que agachamos até quase encostar os
ísquios nos calcanhares e subimos de volta.
Já o footwork é o trabalho de pés feito no chão, normalmente com mais de dois
apoios, trocando peso entre mãos, pés ou outros pontos possíveis a cada corpo que executa
essa dança, como cotovelos, costas, ombros, cabeça ou joelhos. O desenvolvimento desse
trabalho de chão acabou sendo chamado também de floorwork (ou por vezes de ground
moves) inclusive quando executado em outras práticas de dança. Existem alguns movimentos
de footwork considerados passos básicos, como six-steps, three-steps – que ganham estes
nomes de acordo com o número de vezes que os pés tocam o chão para dar uma volta em
torno do próprio eixo –, CC (ou crazy comandos) e baby-step – ambos movimentos em que o
quadril torce em relação aos ombros com apoio das mãos no chão simultâneo ou alternado em
relação aos pés, sendo o primeiro de costas para o chão e o segundo de costas para o teto.
O freeze, a pose de impacto da dança, é normalmente utilizado para a finalização de
uma entrada na cypher ou na batalha ou como forma de marcar pausas ou viradas na música.
Também poderiam ser consideradas freezes as pausas marcadas na música chamadas de
stance. Estes são poses normalmente com menor duração, complexidade técnica e de força,
que normalmente marcam o “estilo” ou a “identidade” de cada dançarina/o/e. Os fundamentos
do breaking possuem uma estética marcada pela virtuose, um esforço de fazer com que os
movimentos pareçam difíceis ou impossíveis a qualquer um. Nesse aspecto, os power moves
são as movimentações de maior dificuldade e demonstração de força, pois é este fundamento
que se apropria de acrobacias aéreas e de solo das mais diversas técnicas corporais.
Todas essas danças e steps foram muito bem ilustradas e explicadas em
documentários como Old School Dictionary (2004), dirigido por Nasazumi Kajiyama, onde
OGs estadunidenses fazem uma espécie de catálogo audiovisual das danças popping, locking
e breaking. Entretanto, muitas das informações presentes em todas as sessões desta pesquisa
28

sobre fundamentos das danças, histórias e descrição de determinados movimentos são


conhecimentos adquiridos também através de treinos coletivos e conversas com alguns OGs
ou grandes mestres brasileiros das danças urbanas como Frank Ejara23 (São Paulo, 1972), um
dos principais e mais antigos nomes das danças urbanas de São Paulo, e JP Black24 (Rio de
Janeiro, 1980), que, além de grande dançarino e professor no Rio de Janeiro, também é o MC
da Groove Party.
Tradicionalmente, a dança breaking é ensinada entre seus praticantes de uma
maneira que podemos chamar de oral. Assim como outras danças urbanas, a maior parte dos
conhecimentos sobre fundamentos e histórias da cultura hip hop e de culturas da diáspora
negra é perpetuada através da oralidade. Não há formação técnica ou teórica institucionalizada
dessas práticas de dança (na realidade existem alguns cursos e formações com esse intuito que
começaram a aparecer), ainda que existam grandes mestres e professores/as dando aulas de
qualidade inquestionável nos mais diversos espaços. No entanto, o que pretendemos mostrar
em texto escrito aqui é que uma formação consistente também é possível frequentando
ambientes como festas, batalhas, treinos abertos e cyphers, lugares onde inclusive me formei
como dançarina e professora de danças urbanas.
Entre os anos de 2007 e 2010, foi gravado o documentário Nos tempos da São Bento
(BOTELHO, 2010) na cidade de São Paulo (SP). O nome do filme homenageia o local que
ficou conhecido como berço da cultura hip hop na cidade, a estação de metrô São Bento, e
conta um pouco como foi o surgimento da cultura hip hop no Brasil no início dos anos 1980.
Chamamos de surgimento, pois não houve algo ou alguém que simplesmente pegasse uma
cultura com as mãos e trouxesse para o território nacional e simplesmente a espalhasse por
aqui. O documentário mostra como praticantes dessa cultura, em diferentes regiões do país,
mas focando no território de São Paulo, começaram a produzi-la de maneira quase espontânea
e simultânea, o que faz muito sentido com a ideia de diáspora apresentada por Stuart Hall

23
Frank Ejara é dançarino, coreógrafo, produtor musical e membro importante da cultura hip hop desde 1984.
Em meados dos anos 90, iniciou suas pesquisas sobre as origens e histórias das assim chamadas street dances
(dança de rua/danças urbanas) e desde então tem contribuído com a difusão, fundamentação e profissionalização
dessas danças no Brasil. É fundador da Companhia de dança Discípulos do Ritmo (com nove espetáculos
produzidos) e, por doze anos, foi produtor e curador da Jam Olido em São Paulo, evento (tipo cypher) de onde
emergiu toda uma geração de dançarinos/as/es a partir de meados da década de 2000.
24
JP Black, nome pelo qual João Paulo Félix é conhecido, é dançarino, professor, produtor e grande mobilizador
da cultura hip hop no Rio de Janeiro, principalmente na região do Complexo do Alemão, onde formou gerações
de grandes artistas da dança. Um dos maiores e mais antigos nomes nas cenas das batalhas de dança,
principalmente na modalidade Locking, possui reconhecimento do seu trabalho tanto nacional quanto
internacionalmente (América Latina e Europa). JP também é MC da Groove Party e DJ e sua história na dança se
mistura com a história das danças urbanas no Rio de Janeiro.
29

(2003) e de como identidades com raízes africanas sobrevivem em diversos territórios se


misturando às culturas locais.
Para Halifu Osumare (2007), os conectores que explicam o nível global do Hip Hop
seriam: cultura, classe, opressão histórica e rebelião juvenil. De acordo com a autora, o
encontro entre estes fatores e o chamado “poder da palavra” – um dos princípios primordiais
da estética africanista conhecido como nommo – é o que reflete nas características
transtemporal e transespacial da cultura hip hop. No filme Nos tempos da São Bento
(BOTELHO, 2010), apesar de o foco ser a história da capital São Paulo, é possível ver como
“o movimento Hip Hop pipocou no Brasil todo” (em depoimento de GOG, artista de Brasília,
gravado para o documentário), mesmo sem haver comunicação direta entre as regiões – como
hoje temos com o acesso à internet e às mídias sociais – mas sim, pela conexão intrínseca
entre as populações negras e periféricas das cidades. O narrador Paulo Brown abre o filme
com a fala: “diferentes sabedorias que emergem numa mesma época, numa mesma sociedade,
produzem variadas concepções de memórias e remetem a modos diferentes de história”.
Assim, o filme acaba sendo, além de um documento audiovisual de nossa história, uma linda
homenagem a colaboração de cada região para o que hoje conhecemos como cena brasileira
do Hip Hop e a um pouco das danças urbanas também.
No documentário, aparecem outras danças além do breaking, dança oficialmente
considerada como um elemento fundador da cultura hip hop, o que já nos aponta para um
entrecruzamento entre essas outras práticas de dança e o movimento Hip Hop. Quando
nossos/as OGs começaram esse movimento no Brasil, havia uma mistura de linguagens de
práticas de dança, que a partir da década de 2000 aprendemos a nomear como popping e
locking, a partir de trocas com OGs estadunidenses. Todas essas práticas, até então, eram
colocadas no “pacote breaking”. Naquele momento, esse fenômeno de adotar um termo
guarda-chuva por aqui aconteceu influenciado pelo cinema, com a grande repercussão dos
filmes Beat Street (de Stan Lathan) e Break Dance (de Joel Silberg), ambos de 1984, como
mostrado no documentário. Além do breaking conhecido em São Paulo, ouvíamos outros
nomes, que variavam de acordo com a cidade onde o movimento acontecia, também se
referindo às mesmas danças, como: “pop-lock”, “break de chão”, “break de alto”, “break
aéreo” e infinitas outras variações. Em outras regiões do país, também surgia o termo “dança
de rua”, que Rafael Guarato (2020, 2021) historiciza muito bem e sobre o qual comentamos
mais à frente. Assim, ainda na década de 1980, começam as conexões da cultura hip hop com
outras práticas de dança no Brasil.
30

O virtuosismo na execução da dança, já citado, também se faz presente nessas outras


práticas de dança, provavelmente por influência da cultura dos rachas e das batalhas com um
tom de afirmação identitária. O alto grau de dificuldade nas movimentações também foi
fortemente influenciado por artes marciais, como o Kung-fu e a Capoeira, e movimentos
acrobáticos da Ginástica Artística. Essa influência é mais evidente nos power moves do
breaking, mas ela também aparece em movimentações de impacto em outras danças. OGs da
hip hop dance e da house dance – também danças urbanas com origem marcada na cidade de
Nova Iorque com forte relação com a cultura de festa – como Buddha Stretch e Calleaf
Sellers, em suas visitas ao Brasil e no documentário New School Dictionary (2013) dirigido
pelos japoneses Que e Kenta, falaram como a criação das danças era diretamente influenciada
por quem a praticava e pelos movimentos musicais que a acompanhavam. A grande
quantidade de imigrantes e comunidades de outros países dentro da cidade de Nova Iorque
provavelmente colaborou para que esses corpos diversos, muitas vezes (porém não somente)
com a diáspora africana em comum, compartilhassem seus conhecimentos e vivências para a
criação das danças e culturas que ali nasciam entre as décadas de 1960 e 1980. Sobre os
nomes dados a essas práticas de dança, Marjory Smarth (1969-2015), uma das principais OGs
da house dance de origem e família haitiana e criada em Nova Iorque desde sua infância, nos
contou, em sua vinda ao Rio de Janeiro, como este nome foi escolhido por acaso. Quando
pesquisadores visitavam festas de house music para produção de documentários, perguntaram
a dançarinas/os/es que dança estavam dançando. Smarth conta que a resposta foi seguindo a
ideia de que “se estamos dançando em house music, provavelmente estamos dançando house
dance”.
Apesar do breaking não ter o mesmo nome que a cultura, como o hip hop dance tem,
é esta a dança considerada o quarto elemento da cultura, pelo histórico e contexto do seu
surgimento (PISKOR, 2016). As danças da era Funk e Soul Music, principalmente o popping
e o locking – também mostrados no documentário Old School Dictionary de Nasazumi
Kajiyama (2004) – antecederam o nascimento da cultura hip hop. Ainda assim, é possível ver
sua grande influência na criação do breaking nos Estados Unidos e um surgimento quase
simultâneo aqui no Brasil na década de 1980, como mostrado em Nos tempos da São Bento
(BOTELHO, 2010).
Voltando a cruzar com contextos da cidade de Nova Iorque, foi a partir de conversas
com grandes nomes da dança estadounidense como Brian Footwork Green, Archie Burnett,
Buddha Stretch, Don Campbell, Caleaf Sellers, Marjory Smarth e vários outros considerados
OG’s de suas práticas, que pudemos conhecer melhor essas danças e como eram chamadas
31

nos Estados Unidos. Foi a partir do ano de 2004, quando grandes festivais de dança como
Festival Internacional de Hip Hop de Curitiba-PR e, posteriormente, o Festival Rio Hip Hop
Kemp no Rio de Janeiro-RJ, trazendo essas personagens para o Brasil, que essas danças já
dançadas aqui, começaram a se consolidar como práticas de culturas da diáspora negra norte-
americana. O livro Danças Urbanas no Brasil: Terminologias, profissionalização e festivais,
de Vanessa Garcia dos Santos (2019), conta melhor como esse intercâmbio e o circuito de
festivais, inclusive os competitivos, influenciaram na construção e nomeação destas práticas.
Por último, mas não menos importante, temos o Conhecimento como quinto
elemento da cultura hip hop. Este elemento, menos palpável que os quatro primeiros e por
vezes menos citado também, é o construtor da comunidade internacional que vive esta cultura.
É o conhecimento incorporado25, passado através das letras das músicas e das vivências com a
sociabilidade nas festas, cyphers, treinos abertos (maioria em espaços públicos), batalhas,
aulas e até festivais, que perpetua a cultura hip hop e a conecta com outros movimentos
culturais da diáspora negra e juventude das periferias urbanas.
Foi juntando nossas próprias vivências e práticas de dança, aprendizados vindos da
oralidade com informações de filmes documentários já citados, com outros como It's All
About Dancing: A Jamaicam Dance-u-Mentary (Jason Williams, 2006) e Paris is burning
(Jennie Livingston, 1990), que nós, agentes-praticantes das danças urbanas, começamos a
entender a relação das danças que estávamos praticando com a festa. Afinal, já praticávamos e
transmitíamos esse conhecimento incorporado como exercício de afirmação comunitária
muito antes de este estar registrado em literaturas acadêmicas. Estas danças não são apenas
produzidas no espaço da festa: elas formam lugares, territórios, comunidades ou até mesmo
culturas locais como o Charme26 no Rio de Janeiro e o Lagartixa27 em São Paulo.
A famosa pirataria, muito utilizada desde os tempos das mixtapes com sets inteiros
de DJs tocados na festa, gravados em fita K-7 e vendidas no mercado paralelo, foi (e talvez
ainda seja) uma das principais vias pelas quais disseminamos as informações que adquiríamos

25
No livro Arquivo e Repertório, Diana Taylor (2013) define performance como conhecimento incorporado. Na
obra, a autora explica como essa transmissão de conhecimento se dá não apenas por memórias produzidas na
forma de “arquivo”, como bibliografias escritas, mas também através do “repertório”, que seriam os atos de
transferência, práticas e eventos de comportamento reiterado, as performances, que produzem e mobilizam as
interações culturais.
26
Sobre a cultura dos bailes charmes, assistir a série Charme Anos 80, do Acervo Cultne. Disponível em:
https://acervo.cultne.tv/musica/charme/197/charme-anos-80. Acesso em: 13 Jan. 2023
27
“Lagartixa” é o nome dado para uma prática de dança, comum nas festas blacks de São Paulo na década de
1990. É um movimento semelhante ao dos bailes charmes do Rio de Janeiro, mas com passos mais enérgicos e
marcados com mais força, principalmente com as pernas e os pés, como mostra o vídeo 1min de lagartixas
domingo das antigas. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ua4dXpB-i9o. Acesso em: 13 Jan.
2023
32

no movimento Hip Hop. No segundo episódio do podcast MixCuta Groove!28, falamos


principalmente sobre a cultura house e brevemente sobre a difusão de culturas pop da
diáspora negra pela pirataria. No documentário Nos tempos da São Bento (BOTELHO, 2010),
também é possível ver como muitas informações, coletadas através de recortes de jornais,
revistas, fotos, músicas ou de qualquer outro tipo, eram tratadas como tesouros e
compartilhadas entre as crews frequentadoras dos encontros e treinos. Também era comum
agentes-praticantes se iniciarem na dança em determinadas técnicas mais populares, como
breaking ou hip hop dance, e migrarem para outras em que sentissem seus corpos mais
confortáveis. Esse trânsito acontece muitas vezes por intermédio de socialização em eventos
como festas, treinos abertos ou oficinas de dança, tornando notável como algumas dessas
práticas de dança se relacionam não somente por semelhanças técnicas fortes, como também
pelos territórios produzidos por elas.
Dentre esses pontos em comum, de maneira muito superficial podemos citar: o
dancehall, cultura complexa com origem na Jamaica, país de origem de Kool Herc e Cindy
Campbell, que influenciou o nascimento da cultura hip hop e possui elementos semelhantes
com nomeações diferentes, como Selecta, que cumpre o papel de DJ, ou Toaster, como MC; a
cultura ballroom tendo a dança voguing como um de seus elementos e como esta se
relacionava com a cultura house musicalmente, cuja dança já foi chamada de clubbing para
indicar sua origem nos clubs noturnos de dança, ambas culturas com nomeações que indicam
sua origem em festas, inclusive; a relação interpessoal muito próxima entre dançarinos/as/es
da cena house dance com dançarinos/as/es da cena hip hop dance, inclusive com alguns como
Brian Green e Buddha Stretch passeando por ambas; ou ainda como o waacking se
relacionava com o locking, por ambos se originarem mais próximos a costa oeste, e com o
voguing por ambos fazerem parte da comunidade negra LGBTQIAP+. Enfim, os exemplos e
as histórias são vários!
Os próprios OGs vieram para o Brasil colocando essas danças num grande pacote se
referindo a elas como street dances. Aqui no Brasil, a expressão ganhou uma primeira
tradução para “dança de rua”, expressão altamente difundida para o grande público com o
sucesso nos anos 1990 do grupo Dança de Rua do Brasil, liderado pelo coreógrafo Marcelo
Cirino29.

28
Disponível em https://open.spotify.com/episode/6OMCyuHJdwE18GUQcvQdYr?si=be245ddb67b74383
Acesso em: 13 Jan. 2023.
29
Rafael Guarato (2020) faz uma ótima revisão bibliográfica e histórica, que discutimos mais à frente, a respeito
do surgimento do termo aqui no Brasil.
33

No final da década de 2000 e começo da de 2010, o acesso à internet se tornou cada


vez mais comum nas casas brasileiras30. Desse modo, vídeos musicais e de dança de outros
países ou regiões do Brasil, filmes artísticos e documentários se espalharam mais rapidamente
e, junto com a grande mídia capitalista e transnacional, potencializaram a difusão do Hip Hop
como parte integrante da cultura pop (OSUMARE, 2007). Era um momento em que já
estávamos cheios de certeza quanto a “saber” o que estávamos fazendo, dançando e
produzindo. Foi nesse contexto de difusão entre mídias, profissionalização de mais agentes-
praticantes e criação de novos mercados de trabalho que o termo “danças urbanas” apareceu e
foi ficando. Era clara a existência de um elo muito forte entre essas danças, negras e
periféricas em sua origem. Assim, nomeamos nossas práticas com esse termo guarda-chuva,
que poderia significar tantas coisas ou mesmo incluir conceitualmente uma infinidade de
outras práticas, mas que para nós significava simplesmente o nome daquilo que fazíamos
como artistas e produzíamos como comunidade.

2.2 Quem tem medo das “danças urbanas”?

A expressão “danças urbanas” é usada, nesta pesquisa, para se referir a todas as


práticas de dança que protagonizam a Groove Party. Apesar do que pode indicar o significado
literal da expressão, não tratamos por “danças urbanas” qualquer dança originada em
ambientes urbanos, mesmo que a principal característica comum às suas origens seja o fato de
todas possuírem populações negras de periferias urbanas como agentes criadores dessas
práticas. Entretanto, existe outro elo maior, que não necessariamente se refere à origem, mas
que une as danças às quais nos referimos aqui: a cultura hip hop. Citamos algumas dessas
danças na subseção anterior e falamos sobre o que elas podem apresentar em comum com a
cultura. Desse modo, apresentaremos um pouco mais dessas danças e do modo como o
movimento Hip Hop as une em aliança cultural e política.
Ao pensarmos na escolha do uso do termo, entendemos que a validação de uma
pesquisa acadêmica exige uma fundamentação teórica e assim a fazemos por um caminho que
passa por referências diversas. Passamos por publicações bibliográficas, mas conversando
com conhecimentos adquiridos através da oralidade e vivência, característica marcante de
culturas da diáspora negra e demarcando ainda mais a metodologia de escrevivência presente
nesta pesquisa. Afinal, como disse Abigail Campos Leal em seu texto Me curo y me armo,

30
No breve artigo escrito por Herivelto Raimundo L. Macedo (2017), é possível se situar um pouco melhor
sobre o histórico da internet e sua entrada nas casas brasileiras.
34

estudando: a dimensão terapêutica y bélica do saber prete e trans (2020), o conhecimento


está nas publicações, nos autores conhecidos e reconhecidos academicamente,

essa merda toda, sim, mas também (e esse também não pode ser subestimado) a
poesia, a poesia marginal que é a poesia da poesia, o palavrar solto y perdido,
disruptivo, afetado, as diferentes vocalizações, os gestos de lábios e línguas, a voz, o
som preto, de Maya Angelou à Luz Ribeiro, de Aimé Césaire a tatiana
nascimento.(...) a literatura, as narrações fantásticas de bocas pretas que
relampejam o futuro da palavra empro(vi)sada, as viadagens pretas de James
Baldwin, as gongações ácidas de Lima Barreto, a exusidade afetiva de Cidinha da
Silva, azamizade sapapreta de Audre Lorde, as escrevivências de Conceição
Evaristo. a música, a revolta sônica do punk, a pulsação rebolativa do funk, a dança
das ondas sonoras que saem de superfícies golpeadas para golpear os nossos
labirintos, a beleza invisível do som, Dona Ivone Lara y Racionais MC’s, Leadbelly
e Tim Maia, Erykah Badu y Cólera, blocos de marchinha de carnaval de rua, os
atabaques pulsando força espiritual nos terreiros, a caixa estourando ao som do funk
150 bpm nos bailes de favela, a roda de samba no quintal aos sábados, a House
Music que faz os corpos voguearem numa Ballroom; a espiritualidade, as giras y as
coreografias da cura dos terreiros, a macumba y o maculelê ressoando, os contos, as
gargalhadas, os passes, as águas e comidas y seus barulhos, o tom das histórias, os
gritos y as mudanças de vozes, os cantos, a calma do silêncio, a escrita do silêncio.
aí, em tudo isso aí, o tempo todo y em toda parte, são os saberes que estão
circulando. (LEAL, 2020).

Ainda, cabe ressaltar que os usos e desusos de qualquer palavra ou termo (como o de
“danças urbanas”) para designação de um conjunto de danças, signos, agentes e/ou eventos
são sempre políticos. Envolvem um processo de reiterações e desvios de disputas entre
aquelas/es/us que os invocam (como sobre os direitos, as legitimidades e as formas de uso do
termo), bem como dos seus efeitos performativos (o que o termo/a palavra faz?) e dos campos
de força mobilizados (as convenções, as narrativas etc.). Avançamos nessa discussão passo a
passo, mas por ora gostaria de destacar que esse processo de legitimação se complexifica
ainda mais quando esse ato de fala é marcado pela experiência de resistências e de modos de
subjetivação de grupos sociais historicamente oprimidos e marginalizados.
Em seu texto Quem tem medo da palavra negro (2010), Cuti – codinome pelo qual o
poeta, escritor e dramaturgo Luiz Silva é mais conhecido – fala sobre como a palavra “negro”
no Brasil foi e ainda é muitas vezes rejeitada para se referir a pessoas racializadas como
negras. Essa escolha não é feita apenas por pessoas brancas, mas por vezes por instituições ou
mesmo por pessoas com fenótipos da negritude. No texto, o autor conta sobre a “luta
semântica entre a palavra ‘negro’ e aquelas associadas ao prefixo ‘afro’” (CUTI, 2010, p. 7) e
a relação dessa disputa de narrativas com o racismo que estrutura sociedade e história
brasileiras.
No Brasil, movimentos sociais como o Movimento Negro Unificado (MNU) contra a
Discriminação Racial – apresentado à sociedade nas escadarias do Teatro Municipal de São
35

Paulo em 1978 e ainda em atividade – e a Frente Negra Brasileira (1931-1937) – também


fundado em São Paulo, movimento que chegou a se organizar como partido político por
algum tempo – fizeram a escolha política de se apropriar da palavra negro e positivá-la.
“Naquele momento (e ainda hoje) foi escolhida a palavra ‘negro’ porque ela é a única do
léxico que, ao ser empregada para caracterizar organização humana, não isenta o racismo”
(CUTI, 2010, p. 7). Como poderia uma pessoa, não integrante de quaisquer desses
movimentos, afirmar qual a melhor palavra para ser utilizada por eles? Com que autoridade,
num mundo pós-abolição da escravatura, poderia um pesquisador contrariar o nome escolhido
pelos próprios movimentos sociais? Cuti responde em seu texto quais as motivações políticas
por trás da disputa de narrativas entre os termos “afro” e “negro” e a quem ela interessa: “No
‘afro’, o fenótipo negro se dilui. É por isso que o jogo semântico-ideológico tem se
estabelecido e o sutil combate à palavra ‘negro’ vem se operando, pois ela não encobre o
racismo, além disso lembra reivindicação antirracista” (ibdem, p. 1). Cuti apresenta a falta de
historicidade do racismo no prefixo “afro” e como o mesmo não acontece com a palavra
“negro”, que em seu performativo coloca um determinado grupo de pessoas como subumanos
por seu contexto histórico, por isso a escolha de utilizá-la positivando seu significado político.
Entretanto, outra discussão em torno da palavra negro aparece, mas com outra
oposição: a palavra “preto”. Nabby Clifford, homem negro ganense conhecido como
embaixador do reggae no Brasil e que já mora no país há pelo menos 30 anos, afirma que a
palavra correta para se referir às mesmas populações e culturas seria “preto” ou “preta”31.
Clifford sinaliza que o Brasil é o único país que fala português e utiliza a palavra negro de
maneira positiva para se referir a pessoas e culturas da diáspora africana. Entretanto, na
explicação de Cuti, a escolha de se apropriar do termo “negro” é justamente sobre um
posicionamento político de adotar um termo que gera incômodo e positivá-lo socialmente,
argumentando justamente que quando se trata de palavras, “seus significados e suas
morfologias não são para sempre” (CUTI, 2010, p. 4). Mas afinal, qual seria o correto?
Pensando ainda sobre a diversidade de subjetividades entre as populações negras –
ou pretas – e periféricas, é difícil definir um termo como correto e outro como errado.
Entretanto, nesta pesquisa, assumimos que tais disputas estão presentes em diversos jogos
semânticos em diferentes territórios, inclusive no campo da dança e nos estudos de culturas de
diáspora africana, como as aqui abordadas. Estas disputas, muitas vezes, estão mais

31
Fala de Nabby sobre discussão “Negro ou Preto? É Preto”. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=3ccWLl0m4QA acesso em: 19 Jan. 2023.
36

conectadas a contextualizações políticas, temporais, culturais e territoriais das palavras, do


que apenas à semântica ou definições de termos ou conceitos.
Sem a pretensão de definir uma verdade absoluta e conceitual sobre terminologias,
mas atenta a argumentos bem fundamentados e que, em uma observação rápida e superficial,
podem até soar decoloniais e antirracistas, mas que de alguma maneira também podem
reproduzir algum tipo de silenciamento colonial, explicarei aqui a escolha histórica e política
da utilização do termo “danças urbanas”. Aqui, levaremos em consideração o contexto
brasileiro do surgimento do termo, pensando mais sobre quem fala, do que sobre o que fala.
No filme New School Dictionary (QUE; KENTA, 2013), o dançarino e OG da hip
hop dance Buddha Stretch fala sobre a conexão entre música e dança ao dizer “onde quer que
a música vá, há sempre uma dança para acompanhá-la”32. Ele se refere aos movimentos ou
eras da música negra estadunidense e como danças sociais surgem concomitantemente,
essencialmente através da sociabilidade de pessoas da diáspora negra que vivem nas periferias
das cidades. Essas danças, por sua vez, são aglomeradas em diferentes práticas, chamadas por
ele de styles, ou estilos [de dança]. Esses estilos são as práticas, algumas já citadas neste texto,
aglomeradas sob o termo guarda-chuva street dances. Mas por que usamos termos guarda-
chuva e que práticas são por eles englobadas?
As escolhas de termos guarda-chuva normalmente estão associadas a questões de
mercado e políticas, simultaneamente. Avanti Meduri (2013) fala, em seu estudo sobre dança
e política, de um movimento político na Grã-Bretanha que remarca a dança indiana como
“South Asian dance genres” (danças do Sul da Ásia). A utilização deste termo guarda-chuva
cria, naquele contexto territorial, uma aliança política entre as danças de países como Índia,
Sri Lanka e Bangladesh, entendendo a diversidade cultural entre essas danças, mas “usando-o
seletivamente como uma bandeira de conveniência para integração na cultura britânica
dominante, e também para, simultaneamente, etnizar e historicizar suas identidades
culturais”33 (MEDURI, 2013, p. 178).
Nos Estados Unidos, alianças entre as street dances são descritas pelos OGs, desde
seu surgimento. Em uma situação mais atual, podemos citar como exemplo o festival de
dança Ladies of Hip-Hop Festival (cf. LADIES OF HIPHOP, 2023), movimento que se
iniciou entre mulheres dançarinas de hip hop dance para treinar floorworks e empoderá-las

32
Tradução minha do original “wherever the music takes of, there is always a dance to go with it” (QUE;
KENTA, 2013).
33
Tradução minha do original “using it selectively as a flag of convenience to integrate into british mainstream
culture, and also to ethnicize and historicize their cultural identities and both simultaneously” (MEDURI, 2013,
p. 178).
37

através da dança. A partir de 2004, o encontro se tornou um festival anual com batalhas, aulas
e cyphers, incluindo outras práticas de dança além do hip hop dance, como house dance,
locking, popping e waacking. O festival acontece na cidade de Nova Iorque, berço de muitas
dessas danças – não de todas –, o que também pode ser um exemplo de como essas outras
culturas e práticas de dança são atravessadas pela cultura hip hop, não somente pelos
contextos de origem, como também por essas alianças que se criam para o mercado, e em
algumas vezes tornando o próprio “Hip Hop” um termo guarda-chuva. Essa aliança pode ser
analisada como um movimento, semelhante ao descrito por Meduri (2013), que une as danças
de diáspora negra do país em pacotes inicialmente simplistas, mas que permitem a entrada de
seus agentes-praticantes no mercado.
No Brasil, como já indicamos, algumas dessas práticas surgiram simultaneamente
nas periferias urbanas. Rafael Guarato, recentemente publicou o artigo Os conceitos de
“dança de rua” e “danças urbanas” e como eles nos ajudam a entender um pouco mais
sobre colonialidade (Parte I) (2020)34. Neste texto, o autor faz uma grande revisão
bibliográfica sobre como os termos “dança de rua” e “danças urbanas” são definidos de
maneiras distintas, por autores distintos e que atuam em áreas bem diferentes de
conhecimento, o que o autor entende ser

compreensível que o esforço em compreender os conceitos tenha sido alijado de


atenção. E, por isso, os termos “dança de rua” e “danças urbanas” são tratados como
nomes descritivos e generalistas, agrupando um conjunto muito pluralizado de
diferentes fazeres em dança. (GUARATO, 2020, p. 118).

Já no início do texto, o autor também afirma que atualmente é possível encontrar


uma quantidade considerável de estudos, comparando com sua própria pesquisa anterior no
ano de 2008, sobre o que ele define como “danças populares com técnicas e estéticas de
danças afro-estadounidense” (GUARATO, 2020, p. 117). Na hipótese de Guarato:

“dança de rua” e “danças urbanas” não são sinônimos e não se configuram como
simples termos descritivos. Mas são conceitos formulados e difundidos por seus
fazedores(as), ao longo do tempo, carregando consigo não apenas o intuito de

34
Em Os conceitos de “dança de rua” e “danças urbanas” e como eles nos ajudam a entender um pouco mais
sobre colonialidade (Parte II), Guarato (2021) aprofunda a discussão decolonial, explicando a raiz racista da
relação de poder performada por pessoas, ainda que negras e periféricas, vindas dos Estados Unidos em relação à
população negra e periférica do Brasil e/ou da América Latina. Ele também fala da continuidade do pensamento
colonial, que de fato ocorre, que reconhece determinados “saberes” advindos das capitais como válidos, em
detrimento de outros advindos de cidades do interior – quando compara a força dos termos “dança de rua” em
cidades do interior como Uberlândia e “danças urbanas” em capitais como Rio de Janeiro e São Paulo.
Entretanto, segue com a manutenção de uma narrativa de disputa ontológica entre os termos “dança de rua” e
“danças urbanas” (como desenvolvo ao longo do capítulo) que, nesta dissertação, busco pensar a partir de outro
ponto de vista: entendendo ambos os termos como advindos da comunidade que vivencia essas práticas de
dança.
38

designar saberes específicos vinculados a práticas empíricas peculiares, mas como


demarcadores de um distanciamento significativo em relação às suas estética, regras,
locais de saber e modos de organização cultural (GUARATO, 2020, p. 118-119).

Ainda segundo o autor, a “dança de rua”, enquanto conceito, seria uma invenção
brasileira, pois em sua visão “em nenhum outro lugar do globo existiu a dança de rua, ela foi
um termo elaborado e difundido para designar um fazer em dança, assumindo suas
especificidades aqui, no território nacional”35 (GUARATO, 2020, p. 120). O autor descreve
uma narrativa histórica brasileira, onde grupos de dança, se inserindo no mercado dos
festivais competitivos de dança, difundiram o termo entre as décadas de 1980 e 1990, tendo
como um dos protagonistas dessa difusão o coreógrafo Marcelo Cirino, com o grupo Dança
de Rua do Brasil (Santos-SP), e o Festival de Dança de Joinville. Dessa forma, essa
abordagem nos leva a inferir que a difusão do termo se encontra diretamente conectada ao
mercado dos festivais competitivos:

Quando danças oriundas das regiões periféricas passam a frequentar o ambiente dos
festivais competitivos — ambiente historicamente criado no Brasil por profissionais
vinculados em sua maioria à prática e ao ensino do balé em sua tradição clássica —
os fazedores da dança de rua passaram a prospectar a possibilidade de sobrevivência
monetária mediada pela dança. No ambiente dos festivais, havia profissionais de
dança que viviam e sobreviviam desse ofício. O aparecimento do desejo em ser
profissional de dança veio acompanhado do esforço em ser reconhecido como
artista, fazedor de arte.
(...) o desafio não era mais convencer seus pares populares, mas os novos pares com
os quais pleiteavam o reconhecimento enquanto profissionais (GUARATO, 2020, p.
127).

Guarato aponta que o termo “danças urbanas”, por sua vez, surge como uma espécie
de disputa semântica com o termo anteriormente adotado “dança de rua” – o que para mim,
discursivamente, parece emular algum traço daquela disputa descrita por Cuti (2010) entre os
termos “negro” e “afro” ou a descrita por Cliford entre “negro” e “preto”. Guarato afirma que
o abandono do termo “dança de rua” não foi gradativo. Ele acontece pelo fato de o termo
começar a não dar conta das multiplicidades de práticas de dança produzidas pela população
periférica fazedora dessa dança que ocorre fora dos ambientes de festivais competitivos
(GUARATO, 2020, p. 134).
Umas das figuras centrais para difusão do termo “danças urbanas” no Brasil foi
Frank Ejara, que não era uma figura muito presente, até então, nos festivais competitivos
como Cirino, mas como mostrado no documentário de Guilherme Botelho Nos tempos da São

35
Não necessariamente concordamos com a ideia do autor de que a dança de rua só existiu aqui no Brasil. Dança
de rua nos parece como uma primeira tradução do termo street dance, mesmo que tenha existido sim uma
estética específica de “dança de rua” em determinados tempo e/ou lugares no Brasil Nos parece haver uma
incompatibilidade com a história do street dance nos EUA. Mais à frente desenvolvemos esse assunto.
39

Bento (2010), é considerado um dos nossos OGs, especializado nas danças popping e locking.
Estas são danças da era Funk e Soul Music, também por vezes foram chamadas de funk styles
– ainda que existam algumas discordâncias sobre este termo e quais práticas ele engloba, mas
não vamos entrar nessa discussão aqui –, originárias da Califórnia e anteriores ao nascimento
da cultura hip hop, como mostra o documentário de Nasazumi Kajiyama Old School
Dictionary (2004).
Como já dito, algumas dessas práticas de dança no Brasil se iniciaram
simultaneamente, como o popping, o locking e o breaking, catalogadas no filme de Nasazumi
(2004) e protagonistas no filme de Botelho (2010). Quando essas práticas começam,
diretamente conectadas com a música, ganham nomes que são influenciados pelas
informações da cultura pop, que chegam através da grande mídia com videoclipes musicais e
filmes: street dance, breaking, break dance entre outros. Isso é um dos fatores que mostra
como o desenvolvimento e a difusão da cultura hip hop estão diretamente ligados à utilização
de tecnologias eletrônicas e/ou digitais. Entretanto, nas periferias sempre existiram
dificuldades de acesso das mais diversas e uma delas é com a língua inglesa. Se referir a essas
práticas com palavras na língua portuguesa facilita a fala e o entendimento de todos os
praticantes. Assim a primeira tradução “dança de rua” aparece. Estes foram alguns dos
primeiros termos guarda-chuva descritos no filme de Botelho (2010), que não cobre a cena
dos festivais competitivos, mas apenas o contexto das ruas e dos espaços públicos,
especificamente da estação de metrô de São Bento, no centro da cidade de São Paulo.
Quando estes mesmo agentes-praticantes da cultura hip hop saem das ruas e levam
suas práticas para os palcos dos festivais competitivos, novas estéticas vão se formando para
se adaptar às normas de competição. É nesse movimento que aparecem e ganham destaque
grupos como Jazz de Rua e, principalmente, Dança de Rua do Brasil, dirigido por Marcelo
Cirino, que com seu sucesso fez com que o Festival de Dança de Joinville criasse a categoria
Dança de Rua, seguindo o nome de seu grupo (GUARATO, 2020). É criada uma fórmula de
sucesso baseada na estética de Cirino na década de 1990, no circuito dos festivais. Entretanto,
o termo também continua sendo usado por outros agentes-praticantes fora deste circuito, que
mantêm outra estética, também atravessada pelas referências da grande mídia e cultura pop,
mas sendo praticada ainda nas rodas, cyphers e batalhas que ainda não ocupavam teatros e
que, até hoje, seguem ocupando outros territórios geográficos.
Com o sucesso nos festivais competitivos e a ocupação cada vez maior da cultura hip
hop, tanto com a linguagem da música quanto com a da dança, na grande mídia internacional
descrita por Osumare (2007), a necessidade de criação de novos territórios dentro do mercado
40

de trabalho para dançarinas/os/es de danças urbanas foi surgindo. O local do festival


competitivo, na prática, não gerava renda para seus agentes-praticantes. As academias de
dança e outros festivais como os de dança contemporânea – onde artistas recebem cachês para
se apresentarem, diferentemente dos competitivos onde artistas pagam taxas de inscrição – se
mostraram como opção. É nesse período, que Ejara descreve a decisão por usar o termo
“danças urbanas” no lugar de “dança de rua”:

Eu sempre achei, e por experiência própria, que o termo ‘dança de rua’ era
pejorativo. A tradução literal de ‘Street Dance’ nunca foi bem vinda pra quem não
faz parte dela. Eu como diretor de uma Cia. profissional de dança, sei bem o que já
ouvi de produtores e programadores sobre o termo ‘dança de rua’ para definir as
danças que fazemos. Muitos acham de imediato que somos mendigos, crianças
abandonadas, sem teto e todo tipo de preconceito embutido que vem de brinde com
a palavra ‘rua’, pois é cultural e é assim que o povo encara a palavra. (EJARA apud
GUARATO, 2011, p. 136).

Identifico, porém, que o que Ejara descreve como pejorativo sobre o uso do termo
“dança de rua” é quando assume uma função de depreciação por parte de pessoas que não
vivem esse universo. Ainda, é importante notar que, por essas danças se tratarem de práticas
coletivas de periferias majoritariamente negras, o exercício que fazemos nesta pesquisa de
teorização sobre essas práticas precisa se atentar para não criar narrativas marcadas por um
certo tipo de estereotipagem consequente do racismo, tal como descrita por Stuart Hall (2016,
p. 192), que “tende a acontecer onde existem enormes desigualdades de poder”. Segundo
Hall, “a estereotipagem implanta uma estratégia de ‘cisão’, que divide o normal e aceitável do
anormal e inaceitável. Em seguida, exclui ou expele tudo o que não cabe, o que é diferente”
(ibdem, p. 191, grifos no original). É pensando em não reproduzir essa estereotipagem de
cisão que nesta pesquisa avançaremos para a compreensão de que o surgimento do termo
“danças urbanas”, ao contrário do que aponta Guarato, denota então uma reelaboração de
estratégia dos próprios agentes-praticantes dessas danças de se profissionalizarem e entrarem
em novos mercados, mas que interpelavam uma estereotipagem em cima do termo “dança de
rua”.
Há sim divergências entre opiniões sobre a escolha e uso do termo, que, não
esqueçamos, é um exercício de tradução de outro termo street dance (e “dança de rua” é
literalmente isso). Porém essas divergências, a meu ver, dizem mais respeito às múltiplas
dinâmicas da performatividade da linguagem em diáspora36 do que denotam uma dramaturgia

36
Me refiro, com performatividade da linguagem em diáspora, às rearticulações transformativas que as culturas
negras em diásporas vão reelaborando desde o exercício situado da língua – como vemos no dinamismo histórico
do “pretuguês” pensado por Lélia Gonzales (2020), que não se enquadra em qualquer discurso de origem
simples.
41

de mais ou menos colonialidade, de mais ou menos brasilidade, como parece querer teorizar
Guarato. O projeto do autor, apesar de seu importante trabalho historiográfico, me parece
falhar nesse sentido.
Seguindo a dramaturgia da cisão, o autor primeiro destaca que:

A pesquisadora Laís Torres (2015) destaca que foi assim que Henrique Bianchini,
André Bomfim (Jaspion), Frank Ejara e Ivo Alcântara definiram o termo dança de
rua, como “carregado de preconceitos” (p. 35). De modo simultâneo, xs
pesquisadores Ana Cristina Ribeiro e Ricardo Cardoso (2011, p. 16) salientam que o
termo danças urbanas “(...) é a terminologia mais utilizada atualmente, com o intuito
de tornar a cultura hip hop mais ‘elitizada’” (GUARATO, 2020, p. 136).

Mais adiante, ainda sobre o termo danças urbanas, criando uma disputa semântica
com o termo dança de rua, Guarato afirma:

Desacreditado por supostamente carregar consigo simbologia pejorativa, o


desmerecimento do termo dança de rua veio acompanhado de uma necessidade
prática: a de anunciar e divulgar um ofício em dança marginal para regiões urbanas
centrais, para pessoas que não convivem com a periferia e para profissionais de
dança que pouco ou quase nada sabiam a respeito das danças que então eram
dançadas pelos dançarinos populares. Com o objetivo de agregar valor monetário a
seus valores culturais, Frank Ejara propôs o uso do termo danças urbanas não como
conceito que remete ou designa fazeres diferentes da dança de rua. Inclusive o
próprio Frank Ejara (2011) afirma que danças urbanas se trata de um “sinônimo”
para dança de rua. (GUARATO, 2020, p. 136)

Entretanto, o autor acredita que estes termos não seriam sinônimos:

Para iniciarmos essa empreitada, começo destacando a principal diferença das


danças urbanas para as danças de rua. Enquanto na dança de rua a configuração de
movimentos e gestos que compunham a dança é identificada pela ausência de regras
definidas, dando preferência à hibridação, as danças urbanas como foi proposta por
Ejara, assume outra postura, a de se esforçar em nomear, segmentar e separar
técnicas e estéticas em danças distintas. Essa diferença é crucial, pois, apesar de
ambos os termos funcionarem como termos guarda-chuva, o que ocorre dentro do
guarda-chuva são modos diferentes de organização do corpo que dança. Enquanto na
dança de rua havia uma indistinção de técnicas e estéticas, sendo valorado a mescla
entre diferentes danças, as danças urbanas promovem uma espécie de racionalização
e sistematização dessas danças, resultando na separação entre elas. (GUARATO,
2020, p. 138)

Prefiro compreender que ambos os usos – mais do que um termo em si – surgem


como estratégias de organização do trabalho profissional em momentos históricos diferentes,
atuando como guarda-chuvas que abraçam práticas de dança associadas à cultura hip hop,
inclusive porque o termo “dança de rua” também aparece nos contextos fora dos festivais
competitivos com a estética que Guarato descreve como pertencente do termo “danças
urbanas”, como falamos sobre o documentário de Botelho (2010). Esse movimento ocorre
para introduzir essas danças em contextos de mercados elitistas, como uma estratégia para que
42

os/as/es próprios/as/es agentes-praticantes dessas danças não necessitem explicar seus fazeres
para quem não vive essa cultura. São eles/as/us – e somos nós – que sentimos o estigma ao
tentar entrar em mercados elitistas e traçamos nossas próprias estratégias de sobrevivência.
Sendo assim, por que toda essa discussão que parece querer desacreditar o uso de “danças
urbanas”?
É preciso notar que todo esse questionamento sobre o uso do termo “danças urbanas”
aqui no Brasil ser correto ou não, de um ponto de vista antirracista e decolonial, também tem
dimensões de uma discussão importada que viralizou na internet, através das mídias sociais –
o que por si só já deveria causar estranhamento, ao menos no contexto brasileiro. Quando
dizemos que toda cultura hip hop é atravessada pelos efeitos das dinâmicas do capitalismo e
da apropriação de suas tecnologias (OSUMARE, 2007), isso não quer dizer que tal cultura
localmente não estabeleça seus próprios mecanismos de reelaboração de suas práticas, tendo
sempre que acompanhar uma onda global.
Com o isolamento social como medida de segurança para a contenção da pandemia
da Covid-19, durante o ano de 2020 – primeira e principalmente – o uso da internet e das
mídias sociais como principal meio de sociabilidade entre a juventude, incluindo as
populações de agentes-praticantes das danças urbanas, se intensificou. Juntamente, ou talvez
consequentemente, a viralização do vídeo do assassinato de George Floyd, homem negro de
46 anos, por um policial branco, na cidade de Mineápolis, nos EUA, provocou uma segunda
onda de manifestações, virtuais e presenciais, do movimento Black Lives Matter no país, com
grandes reverberações pelo mundo (MILARÉ, 2020).
Em decorrência deste acontecimento, várias discussões em torno do racismo
voltaram a ganhar visibilidade na grande mídia e se espalharam pelo globo. Uma destas
discussões foi sobre os rótulos da indústria fonográfica, que, com campanhas nas mídias
sociais promovendo a hashtag #MTVRacista, contestavam categorias de premiações onde
apenas artistas negros concorrem, como R&B e Urban Music, excluindo-os de concorrer nas
principais categorias, que ficavam apenas entre artistas brancos/as (REDAÇÃO, 2020). Foi
nesse contexto que o termo urban e todas suas implicações históricas raciais e racistas nos
Estados Unidos voltou a ser discutido amplamente. Com a ampla difusão nas mídias sociais,
que, como sabemos, na contemporaneidade tem efeitos de mundialização, não demorou para
que esse debate chegasse ao campo e comunidades da dança. Se o adjetivo “urban”, em
inglês, no contexto da indústria fonográfica está carregado de estereótipos racistas, por que
seria correto utilizarmos sua tradução em português para designar danças de origem negra e
estadunidense?
43

Camilla Millan escreveu um artigo para a revista Rolling Stones, cruzando as


discussões entre as categorias da música e o termo guarda-chuva utilizado até então pela
comunidade da dança no Brasil (MILLAN, 2020). Neste artigo, dois importantes nomes da
dança, de uma geração mais nova, porém próxima aos nossos OGs, são entrevistados:
Henrique Biachini, homem branco, professor e pesquisador de danças e músicas da diáspora
negra nos Estados Unidos, e Hugo Oliveira, artista da dança, negro, favelado e então
doutorando em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Além
deles, também são entrevistados outros grandes nomes do campo da música, como Djenane
Vieira, ativista negra, mestra em Música pela Universidade Federal da Bahia e então
doutoranda em Educação pela Universidade de São Paulo.
No artigo, o contexto estadunidense da palavra “urban” e os motivos pelos quais o
termo é considerado racista pela população negra é muito bem explicado. Contudo, atentamos
aqui para o fato de que as “palavras trazem conteúdo, têm suas histórias no idioma, seus
significados e suas morfologias não são para sempre” (CUTI, 2010, p. 4). Apesar da tradução
literal de “urban dances” ser justamente o termo que usamos aqui, “danças urbanas”, o
contexto territorial de seu surgimento não é igual e o termo anterior, em inglês, seria “street
dances”.
No ponto de vista de Hugo Oliveira:

A tradução de street dance para dança de rua deixa uma lacuna. Lá [nos Estados
Unidos], street dance é tido como dança popular, feita de forma social, não
necessariamente na rua. O hip hop, por exemplo, é uma dança de club, o locking e
popping também. A dança que de fato foi feita na rua seria o breaking, então isso
causou durante um tempo esse lastro de informação que é decorrente das pessoas
que participam dessa cultura (OLIVEIRA apud MILLAN, 2020).

Já Henrique Biachini, problematiza os conceitos de todos os termos guarda-chuva:

Qual é o problema? A omissão do crédito. A ideia de apagamento ou esvaziamento


cultural pode ser um resultado do uso de ambos os termos, já que nenhum deles dá
crédito à cultura que deu origem a isso. Quando falo ‘urbano’ estou falando que é de
cidade, porém cidade não dá crédito, ela omite informação sobre de quem e de onde
veio. ‘Street’ traz consigo o mesmo problema, com o agravante de ainda ter a
possibilidade de interpretação literal ‘da rua (...). Nem todas têm relação direta com
chão, rua ou asfalto. Esse agravante da interpretação literal é o que aconteceu no
Brasil e continua acontecendo em várias partes do mundo. Pessoas que entendem
que dançamos na rua — e não necessariamente é verdade. Porém, por um outro
lado, street não tem este histórico de ser uma palavra que é usada como substituto
para tudo aquilo que vem de comunidades afro-diaspóricas. Então não carrega
consigo esse estigma do racismo estrutural como carrega a palavra urban nos EUA
(BIACHINI apud MILLAN, 2020).
44

Por sua vez, no entendimento de Guarato, os termos nem ao menos seriam


sinônimos, procedimento teórico que cria uma disputa de narrativas entre “dança de rua” e
“danças urbanas” semelhante à proposta por Cuti entre a palavra “negro” e “aquelas
associadas ao prefixo ‘afro’” (CUTI, 2010, p. 7). Para Guarato,

Até os primeiros anos do século XXI, o termo dança de rua adquiriu respeito e
passou a ser empregado não somente nos festivais, mas também no cotidiano
periférico, como forma vocabular para descrever diferentes fazeres de dança que se
identificavam com o tempo presente, com as mídias audiovisuais e com o ambiente
e estética marginalizada da sociedade. Portanto, tratava-se de um termo que apesar
de ganhar certo aspecto organizativo e estético cada vez mais delineado nos
ambientes dos festivais competitivos, ela apresentava feição genérica quando
aplicada ao cotidiano das danças e suas diversidades técnicas, estéticas e hibridações
(GUARATO, 2020, p. 133-134).

Essa pressuposição de Guarato, por sua vez, não ocorre também atualmente com as
danças urbanas? Desde minha prática situada, acompanhada de diversos coletivos de danças
urbanas no Rio de Janeiro que participei ou participo, diria que sim. É assim, como “danças
urbanas”, que as pessoas fazedoras da Groove Party, majoritariamente pretas e periféricas, se
referem a essas danças.
O que propomos nesta pesquisa não é um encerramento conceitual do termo “danças
urbanas”. Como um performativo, “danças urbanas” é um termo guarda-chuva, genérico, e
que nunca será capaz de dar conta de todas as peculiaridades de cada cultura e prática de
dança englobadas pré-discursivamente por ele. Ou seja, ele é uma prática: faz e reelabora sua
própria cena constantemente, sua própria atuação como termo a cada contexto em que se
apresenta e se rearticula. Além disso, entendo que, por se tratar de uma categoria racializada
(como negra), jamais dará conta conceitualmente de uma “coisa em si”, pois o próprio
conceito de “raça em si” é uma invenção hegemônica de uma ordem de poder (HALL, 2016).
Sendo assim, nesta pesquisa adotamos um entendimento político do termo, articulando-o
como um performativo: ou seja, mais do que meramente descrever um conjunto de realidades
ele as reiteram, as reinscrevem.
Apesar de se tratar de uma cultura com nascimento delimitado no território do
Brooklyn e por isso ter a influência de um contexto político e social estadunidense, o
movimento Hip Hop é também uma cultura da diáspora negra. É uma prática que cria novos
territórios culturais nas regiões geográficas onde ela é vivida. É o que Osumare (2007) explica
em sua pesquisa sobre a estética africanista presente na cultura e como esta se faz presente em
tantas outras culturas pelo mundo pós-moderno. Assim, considero que ainda que a questão de
45

uso ou desuso do termo “urban” seja levantada em outro país, concordo que sim, podemos
contextualizar suas implicações aqui no Brasil.
Sobre esse aspecto, Oliveira diz:

É o momento de parar, olhar, refletir e falar “caramba, se machuca de alguma forma


meus irmãos norte-americanos que são pioneiros da cultura...” A discussão da
indústria sobre a palavra urban vem causando muitos desgastes e complicações,
então é melhor parar para começar outro termo. Acho que é um momento oportuno
de fazer uma revisão sobre o termo urban, pela abordagem no debate decolonial,
porque vai possibilitar dar às devidas modalidades o seu valor histórico, sociológico
e antropológico da produção de cada pioneiro daquela dança (OLIVEIRA apud
MILLAN, 2020).

Enquanto os termos (igualmente guarda-chuvas) usados por Biachini e Guarato, que


supostamente dariam conta dos conceitos, são “danças vernaculares afro-estadunidenses”
(BIACHINI apud MILLA, 2020) e “danças populares com técnicas e estéticas de danças afro-
estadounidense” (GUARATO, 2020, p. 117) respectivamente, vejo surgirem duas
problemáticas. Primeiramente, se tratando de práticas e culturas periféricas e entendendo as
faltas de acesso dessas regiões e populações, como nomearemos suas práticas com expressões
e termos que os próprios agentes-praticantes não se identificarão? Como chamar um conjunto
de aulas praticadas por diversos professores no Rio de Janeiro, por exemplo, com todas suas
dinâmicas locais de reelaboração, de “afro-estadunidense”?
Estamos diante, outra vez, de uma discussão sobre o uso de um termo que busca,
politicamente, dar contorno às práticas quilombistas que fazemos, tal como a uso da palavra
“negro” pelos movimentos sociais no Brasil. Como nos aponta Cuti:

Focalizando no Brasil, último país a abolir a escravidão (esse dado é importante!),


vamos encontrar os próprios negros assumindo a palavra no seu aspecto positivo,
para nomear o seu movimento de reivindicação de plena cidadania. Já em 1930, em
São Paulo, um movimento que se tornou partido político por curta duração, chamou-
se Frente Negra Brasileira. E assim outras tantas organizações de antes e posteriores
traziam em seus nomes a palavra “negro”. Na década de 40, em Paris, estudantes
negros das Antilhas e da África haviam fundado o movimento da Negritude. Na
década de 60, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos empregou a palavra
“black” cuja versão correta, no contexto social brasileiro, é “negro” e não preto
como querem alguns. Ou seja, este assumir a palavra “negro” pelos próprios negros
não é recente, nem tampouco local (CUTI, 2010, p. 5).

Portanto, após a revisão e reflexão sobre a origem do termo no contexto brasileiro,


entendemos que a incorporação do termo danças urbanas pelas/os/es próprias/os/es agentes-
praticantes desta cultura ocorre não necessariamente pela conceituação do termo, mas sim por
motivações essencialmente políticas relacionadas à entrada desses corpos, dissidentes, no
mercado de trabalho. Retomando a disputa construída entre os termos “negro” e “preto” já
46

mencionada, levantada por Clifford, concluímos que aqui está o melhor paralelo a ser feito em
relação ao questionamento de Guarato (2020) sobre qual seria o termo que creditaria melhor a
comunidade de agentes-praticantes (“dança de rua” ou “danças urbanas”), pois, em ambas as
situações, o que temos são as próprias populações refletindo e decidindo sobre suas próprias
nominações.
Nesta pesquisa, escolhemos um posicionamento, mas não entre um termo ou outro, já
que ambos emergem do mesmo local. Assim como Grada Kilomba pensa, na apresentação de
sua obra Memórias da Plantação (2019), sobre a tradução tardia do seu livro para o
português, acreditamos que a língua, “por mais poética que possa ser, tem também uma
dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada
palavra que usamos define o lugar de uma identidade” (KILOMBA, 2019, p. 14). Nesse
sentido, não há ato de fala que esteja imune a tal dimensão. O nosso posicionamento, se refere
a quem fala e não puramente (e o borrão aqui é proposital) a o que se fala. Se essa população,
da qual – volto a lembrar – faço parte, vai se identificar e se autodenominar negro, preto,
dançarinas/os/es de danças urbanas, de dança de rua, de break de auto, de break de chão, de
bleique ou o termo que for, a nossa escolha é usar a denominação escolhida por nós. Aqui,
“eu sou quem descreve minha própria história, e não mais quem é descrita. Escrever, portanto,
emerge como um ato político” (KILOMBA, 2019, p. 28).

2.3 Políticas de aliança e populações historicamente oprimidas

No Brasil, para realizar diversos trabalhos de dança como profissional, é exigido um


documento que se popularizou em chamar de “DRT”, que nada mais é que um número de
registro profissional emitido pelas antigas Delegacias Regionais do Trabalho (sendo o DRT
um acrônimo, portanto), hoje chamadas de Superintendências Regionais do Trabalho e
Emprego de cada estado do país. Uma das instituições responsável pela regulamentação
desses registros – sobretudo para aquelas pessoas que não têm diploma de graduação em
dança – são os Sindicatos. Na maior parte do país, são os Sindicatos identificados pela sigla
SATED (Sindicato de Artistas e Técnica em Espetáculos de Diversões) e, nos estados de São
Paulo e Rio de Janeiro, são os Sindicatos dos Profissionais da Dança, identificados pela sigla
SPD, seguida pelas siglas dos respectivos estados.
Para os agentes-praticantes de danças urbanas, o interesse em obter esse registro vem
junto com as primeiras possibilidades de colocação no mercado. Como apontado por Guarato
47

(2020)37, o primeiro contato dos profissionais de danças urbanas com a possibilidade de


monetizar profissionalmente suas práticas vem com os festivais competitivos. Entretanto,
estes participavam sempre de categorias amadoras e o registro profissional não era exigido
(GUARATO, 2020). Aos poucos, com o crescimento da dança de rua nestes festivais, a
modalidade começou a ganhar atenção dos sindicatos, principalmente dos SPDs, com a
criação da modalidade específica para estas danças.
No Rio de Janeiro, o SPDRJ foi fundado em 1985 e não demorou muitos anos para
criar a modalidade que abraçaria a comunidade da dança ligada à cultura hip hop. Seguindo o
nome adotado pelos festivais competitivos, a categoria se chamava inicialmente “dança de
rua” e tinha a história de Marcelo Cirino como única referência teórica para sua avaliação.
Ainda sobre o modo como essa avaliação era feita – e aqui fazemos um recorte focando no
estado do Rio de Janeiro –, a relação de poder criada por uma hegemonia racializada se fazia
muito presente e as bancas avaliadoras eram formadas majoritariamente por artistas de
modalidades mais elitistas, como balé clássico ou dança contemporânea.
Até a primeira metade da década de 2000, o formato de avaliação para obtenção do
registro se manteve igual. Mesmo reconhecendo como um grande primeiro passo a criação da
modalidade “dança de rua”, o modo como a avaliação era feita e quem a fazia ainda estavam
bem longe de um ideal. Aqui, não estamos necessariamente concordando com esse modo
assumido pelo SPDRJ, no qual o sindicato cumpre mais o papel de “Conselho”,
regulamentando e fiscalizando os profissionais da dança, ao invés de organizar a classe e seus
interesses e, sim, fiscalizar os/as contratantes. De toda forma, dado o modo tortuoso de
regulamentação profissional em dança que ainda segue vigente, consideramos que ter uma
categoria específica para essa prática é de extrema relevância política uma vez que tais rotinas
legais definem quem pode atuar profissionalmente, em tese, com maior proteção aos direitos
trabalhistas. Porém, cabe ressaltar que a criação histórica da modalidade “dança de rua” no
sindicato não alterou automaticamente o fato de que a população fazedora da cultura hip hop
não fazia parte da banca avaliadora.
Historicamente, as populações criadoras dessas práticas de dança são
majoritariamente negras. Afinal, estamos falando de culturas da diáspora africana
37
“Quando danças oriundas das regiões periféricas passam a frequentar o ambiente dos festivais competitivos —
ambiente historicamente criado no Brasil por profissionais vinculados em sua maioria à prática e ao ensino do
balé em sua tradição clássica — os fazedores da dança de rua passaram a prospectar a possibilidade de
sobrevivência monetária mediada pela dança. No ambiente dos festivais, havia profissionais de dança que viviam
e sobreviviam desse ofício. O aparecimento do desejo em ser profissional de dança veio acompanhado do
esforço em ser reconhecido como artista, fazedor de arte. [...] O desafio não era mais convencer seus pares
populares, mas os novos pares com os quais pleiteavam o reconhecimento enquanto profissionais” (GUARATO,
2020, p. 127).
48

(sobre)vivendo nas Américas. Quando falamos de negritude aqui, estamos levando em


consideração que a ideia de raça é uma ideia construída por um determinado grupo de
pessoas, criando uma relação de poder em cima de qualquer “outro” grupo que não faça parte
desse:

Para nós, só é possível falar da raça (ou do racismo) numa linguagem fatalmente
imperfeita, dúbia, diria até inadequada. Por ora, bastará dizer que é uma forma de
representação primária. Incapaz de distinguir entre o externo e o interno, os
invólucros e os conteúdos, ela remete, em primeira instância, aos simulacros de
superfície. Vista em profundidade, a raça é ademais um complexo perverso, gerador
de temores e tormentos, de perturbações do pensamento e de terror, mas sobretudo
de infinitos sofrimentos e, eventualmente catástrofes (MBEMBE, 2018a, p. 27).

As catástrofes às quais Mbembe se refere são o colonialismo e sua história


sanguinária marcada por um sistema político, jurídico e econômico gerado pela escravização
moderna de povos africanos, que ao mesmo tempo forjou o projeto “América” e um sistema
social globalizado e violento, como nenhum outro jamais foi na história da humanidade.

Embora a escravização em si tenha existido desde a Antiguidade e permaneça


familiar em muitas partes diferentes do mundo, o Tráfico Negreiro foi único do povo
africano, pois, pela primeira vez na história, seres humanos se tornaram artigos de
comércio: ao longo de séculos, eles podiam ser comprados, vendidos e substituídos
(REED-ANDERSON; OGUNTOYE apud KILOMBA, 2019, p. 206).

A herança desse sistema escravocrata no mundo pós-moderno fundamentou a


sociedade que vivemos hoje, tendo como um de seus principais pilares o racismo, que se
manifesta de várias formas e em diversos setores, não podendo ser lido como simples
preconceito.

O racismo não é um problema pessoal, mas um problema branco estrutural e


institucional que pessoas negras experienciam. Esse é um acontecimento comum
para negras e negros quando abordamos a questão do racismo: intimidação por um
lado, patologização individual por outro. Ambas controlam mecanismos que
impedem que o sujeito branco ouça verdades desconfortáveis, que, se levadas a
sério, arruinariam seu poder (KILOMBA, 2019, p. 204).

Aqui no Brasil, o racismo se materializa em diversas formas de crueldade, apesar da


falsa ideia de democracia racial vendida por uma política histórica eugenista, que tentou
embranquecer a população. “Porque, aqui no Brasil, o racismo se pauta, além dos traços já
apontados, pela gradação de melanina na pele” (CUTI, 2010 p. 2). Cuti ainda fala sobre esse
ressentimento da branquitude se materializar em forma de “sentimento de superioridade
congênita”, o que o autor lê como uma “patologia social”:

Para esse grupo — que se constitui o grupo hegemônico do ponto de vista da


economia e da política — tal patologia acaba sendo incluída dentro dos parâmetros
49

de normalidade das relações raciais. Então, todas as formas de violência advindas


dessa doença são invisibilizadas, tornam-se nada. Ou seja, é como se não existissem
(CUTI, 2010 p. 3).

Toda essa violência, gerada pela estrutura que fundamenta nossa sociedade, faz com
que determinadas vidas sejam vistas como menos valorosas que outras, que seus corpos não
sejam considerados importantes. Esses são os corpos dissidentes que falamos. São todos os
corpos lidos como diferentes dos que estão na hegemonia do poder econômico, mas
principalmente político. E o principal fator de segregação histórico, é a raça, que:

não existe enquanto fato natural físico, antropológico ou genético. A raça não passa
de uma ficção útil, uma construção fantasmática ou uma projeção ideológica, cuja
função é desviar a atenção de conflitos considerados, sob outro ponto de vista, como
mais genuínos — a luta de classes ou a luta de sexos, por exemplo (MBEMBE,
2018a, p. 28-29).

Compreendemos que a persistência de tal estado de violência simbólica e total,


autorizado e justificado pelo sistema jurídico-econômico, se configura como uma dívida
impagável (SILVA, D., 2019) que acumula negativamente um mundo implicado entre o
colonial, o racial e o capital: uma “implicação profunda (o nível quântico do emanharamento
[entanglement]) de tudo o que aconteceu e ainda está por vir na existência espaçotemporal”
(SILVA, D., 2019, p. 152). Ainda, consideramos que tal condição se intensifica com a atual
conjuntura neoliberal, criando para os corpos dissidentes uma situação que Judith Butler
(2018) vai definir como precariedade: uma “situação politicamente induzida na qual
determinadas populações sofrem as consequências da deterioração de redes de apoio sociais e
econômicas mais do que outras, e ficam diferencialmente expostas ao dano à violência e à
morte” (BUTLER, 2018, p. 40).
A autora, reconhecida por seus estudos sobre as políticas de sexualidade e de gênero,
tem se debruçado mais recentemente sobre a aliança política dos corpos dissidentes frente à
política hegemônica de gestão da precariedade:

Agora estou trabalhando a questão das alianças entre várias minorias ou populações
consideradas descartáveis; mais especificamente, estou preocupada com a maneira
pela qual a precariedade — este termo médio e, de algumas formas, esse termo
mediador — pode operar, ou está operando, como um lugar de aliança entre grupos
de pessoas que de outro modo não teriam muito em comum e entre os quais algumas
vezes existe até mesmo desconfiança e antagonismo (BUTLER, 2018, p. 34).

Ainda sobre precariedade, a autora acrescenta:

A precariedade também caracteriza a condição politicamente induzida de


vulnerabilidade e exposição maximizadas de populações expostas à violência
arbitrária do Estado, à violência urbana ou doméstica, ou a outras violências não
50

representadas pelo Estado, mas contra as quais os instrumentos judiciais do Estado


não proporcionam proteção e reparação suficientes (BUTLER, 2018, p. 41).

Butler defende a importância de alianças políticas entre essas populações colocadas


em situação de precariedade. Sua pesquisa fala especificamente de alianças feitas em
manifestações nas ruas e em espaços públicos, que, para os fins desta pesquisa, oferece uma
ponte epistemológica bastante relevante, uma vez que tais políticas de alianças são produzidas
pela mobilização entre corpos e os espaços fora e contra a arquitetura, não sendo esse
encontro nunca um lugar ou uma superfície pré-determinada senão uma conjunção de práticas
performativas38. Inevitavelmente, penso esse chamado de Butler a partir das alianças que já
performamos na Groove Party. Um dos desafios desta pesquisa, portanto, é o de refletir sobre
as políticas dessa prática situada com as danças urbanas. Neste sentido, é preciso falar
primeiramente dessa aliança já a afirmando, necessariamente, atravessada pelo hip hop, pois:

Alhamdulillah, Allah, Jehovah,


Yahweh, Dios, Ma’at, Jah,
Rastafari, fyah, dance, sex, music, hip-hop

It’s bigger than religion


Hip-hop
It’s bigger than my niggas
Hip-hop
It’s bigger than the goverment
(BADU, 2007).39

Como dito, a primeira aliança entre agentes-praticantes das danças urbanas foi feita a
partir da criação de termos para designar seus fazeres e, assim, poder apresentar sua cultura
para quem não a vive de dentro. No Rio de Janeiro, quando o termo “danças urbanas”
começou a se firmar, na segunda metade da década de 2000, a força dessa aliança foi tanta

38
Para Butler, “a questão não é se reunir por modos de igualdade que nos mergulhariam a todos em condições
igualmente não vivíveis. Ao contrário, a ideia é exigir uma vida igualmente possível de ser vivida, que também
seja posta em prática por aqueles que fazem a reivindicação, e isso requer a distribuição igualitária dos bens
públicos. O oposto da precariedade não é a segurança, mas luta por uma ordem social e política igualitária na
qual uma interdependência possível de ser vivida se torne possível — esta seria, ao mesmo tempo, a condição do
nosso autogoverno como uma democracia, e a sua forma sustentada seria um dos objetivos obrigatórios desse
governo” (BUTLER, 2018, p. 52). A autora defende que os corpos reunidos em assembleia “exercem o poder
performativo de reivindicar o público de uma maneira que ainda não foi codificada em lei e que nunca poderá ser
completamente codificada em lei. E essa performatividade não é apenas a fala, mas também as reivindicações da
ação corporal, do gesto, do movimento, da congregação, da persistência e da exposição à possível violência.
Como entendemos essa ação conjunta que abre tempo e espaço fora e contra a arquitetura e a temporalidade
estabelecidas pelo regime, uma ação que reivindica a materialidade, apoia-se nos seus suportes e recorre às suas
dimensões materiais e técnicas para retrabalhar suas funções? Essas ações reconfiguram o que vai ser público e o
que vai ser o espaço da política” (BUTLER, 2018, p. 54).
39
Trecho da música The Healer (A Cura), de Erykah Badu (2007). Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=n25vseUQdK8, acesso em: 10 Jan. 2023. Tradução minha: “Alhamdulillah,
Allah, Jehovah/ Yahweh, Dios, Ma’at, Jah/ Rastafari, fogo, dança, sexo, música, hip-hop/ É maior do que
religião/ Hip-hop/ É maior do que meus irmãos/ Hip-hop/ É maior do que o governo”.
51

que tivemos uma das primeiras organizações enquanto classe, capaz de alterar não só o modo
como a avaliação feita pelo Sindicato de Profissionais da Dança era feita, como também as
bancas avaliadoras e então o novamente o nome da modalidade. Fomos um dos primeiros
estados do Brasil a ter uma prova, teórica e prática, formulada pelos próprios agentes-
praticantes de danças urbanas, possibilitando assim o acesso ao registro profissional para
pessoas que não tiveram acesso a formação acadêmica formal. Para essa organização,
algumas práticas de dança foram escolhidas como principais: popping, locking, hip hop
dance, house dance e breaking.
O critério de escolha para elencar essas danças, foi relativamente simples, baseando-
se primeiramente na quantidade de dançarinas/os/es especializadas/os/es em cada uma dessas
práticas, que, até aquele momento, eram as mais populares. Além deste ou por este fato, os
maiores eventos internacionais de batalhas que conhecíamos abraçavam justamente essas
danças: o Redbull BC One (cf. RED BULL…, 2023), maior campeonato de breaking do
globo, com eliminatórias que acontecem anualmente em diversos países em todos os
continentes do mundo, e o Juste Debout (cf. JUSTE DEBOUT, 2023) – “somente em pé” –,
festival francês que, desde 2002, se firmou como um dos maiores eventos de batalhas de
dança do mundo e que inicialmente incluía as modalidades locking, popping¸ house dance e
hip hop dance (anteriormente chamado de new style, como abreviação para New York style ou
“estilo de Nova Iorque”).
Nos anos 1980 e 1990, época do nascimento da cultura hip hop, havia uma conexão
muito forte entre seus elementos. Brian Footwork Green, em sua visita ao Brasil em 2011
como professor e jurado no Festival Rio Hip Hop Kemp, contou sobre como era necessário,
para se ter respeito nas ruas, um mínimo de vivência dentro de todos os elementos. No filme
Nos tempos da São Bento (BOTELHO, 2010), também é mostrado como a música, com DJs e
MCs, o grafite e a dança nasceram integrados naquele espaço.
Após a separação entre os elementos, essa cultura de integração entre diferentes
práticas permaneceu como uma espécie de herança ancestral, fazendo com que muitas pessoas
participassem de diferentes práticas de dança. No Rio de Janeiro, o maior exemplo vivo que
temos disso é o dançarino, professor, mobilizador cultural e MC da Groove Party, JP Black.
Este, apesar de ser especializado nos estilos popping e locking assim como Frank Ejara, é
reconhecido por ganhar batalhas em diversas modalidades pelo país, além de participar da
formação de gerações inteiras de dançarinas/os/es nas mais diversas práticas de danças
urbanas, no Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio de Janeiro.
52

Em sua análise, Guarato (2020) afirma que uma das diferenças entre “danças
urbanas” e “dança de rua” seria justamente a de separar cada prática de dança como uma,
onde “a hibridação não é reconhecida, sendo valorado a qualidade técnica e de movimento de
cada dançarino, segundo a sua especialização numa tradição específica de movimento (ibdem,
p. 135). Entretanto, entendendo o real significado da fala de Buddha Stretch no filme de Que e
Kenta (2013), “você não pode saber para onde está indo, enquanto não souber de onde
veio”40, nesta dissertação, compreendo que o movimento de saber sobre cada uma dessas
práticas, suas peculiaridades técnicas, históricas e sociais, trata-se justamente de um resgate
da ancestralidade dessas danças, um pacto de respeito com os OGs, para então usar da
hibridação em produções artísticas com mais segurança – algo que aprendi como um dos
pilares também presentes no Candomblé: respeito às mais velhas, respeito aos mais velhos e a
importância de conhecer e reconhecer suas histórias e origens. Portanto, o entendimento das
peculiaridades de cada prática de dança, dentro do guarda-chuva danças urbanas, pelos
agentes-praticantes dessas culturas se faz mais que necessário para o reconhecimento de quem
veio antes e da origem dessas danças. Entretanto, esse movimento que Guarato entende como
“segregador” não anula a possibilidade de uma hibridização na aplicação de nossos
conhecimentos em nossas práticas artísticas. Pelo contrário, a enriquece.
Desse modo, nas primeiras versões das avaliações para obtenção do registro
profissional na modalidade de danças urbanas, era exigido um mínimo de conhecimento em
todas as cinco práticas elegidas como principais, sendo isso um resquício da cultura de que
“os reais” deveriam possuir vivência ampla nas práticas das danças urbanas. Pontuações
extras poderiam ser somadas à nota final da prova prática, se a pessoa avaliada demonstrasse
domínio em outra dança além das cinco.
A aliança criada pelo termo guarda-chuva “dança urbana” nem de longe foi a
primeira organização enquanto classe que nos possibilitou ocupar outros espaços além das
periferias e espaços públicos. No entanto, foi uma das maiores entre as mais recentes,
permitindo que nossos agentes-praticantes buscassem a profissionalização e ocupassem, ou
mesmo criassem, espaços no mercado além do único inicialmente visto como possível, o
festival competitivo de dança.
Com o tempo, diversas outras práticas foram sendo abraçadas pelo guarda-chuva das
danças urbanas, agregando seus agentes-praticantes nos festivais da cultura hip hop. Isso
aumentou a mobilização para eventos de batalhas, preenchendo cada vez mais os testes de

40
Tradução minha do original: “You can’t know where you’re going, until you know where you came from”
(STRETHC apud QUE; KENT, 2013).
53

elenco para ocupar espaços midiáticos como balés de cantoras/es da indústria fonográfica,
balés de programas de televisão, as cerimônias de abertura dos mega eventos realizados no
Brasil, ou ainda as companhias profissionais dentro do circuito, ainda muito fechado, de
dança contemporânea.
Foi desse modo que as corpas queer41 das danças waacking42 e voguing43
encontraram os corpos mais brutos do breaking. Que a sensualidade hipersexual do
dancehall44 encontrou a explosividade do popping45. Que a leveza e musicalidade da house
dance46 se mistura à precisão do locking47 e novos espaços são criados para todos esses corpos
celebrarem suas culturas, suas identidades e suas vidas.

2.4 Escrevivendo as danças urbanas, “Groove Party” que quase foi “Urban Party”

Era porque nós estávamos estudando que resolvemos fazer uma festa! Frequentar
festas – qualquer festa – já era algo muito presente e comum nas nossas vidas, mesmo antes
de termos a idade “adequada” para isso. No Rio de Janeiro pelo menos, é assim. Me lembro
de, aos dez anos de idade, ir pela primeira vez em uma matinê para adolescentes num bairro
chique de Niterói, minha cidade natal. Mas essa é uma outra história.
Até o final da década de 1990, as matinês, essas festas em casas noturnas para um
público mais jovem e que acabavam cedo, estavam no seu auge. Isso em Niterói e, como mais
tarde descobri, na capital, Rio de Janeiro, também. No bairro onde eu passei a maior parte da
minha infância e adolescência, Santa Rosa, rolavam muitas festas do bairro além dos bailes,
todo fim de semana na quadra da comunidade. Pela minha idade, minha mãe não me deixava
frequentar os bailes, mas às festinhas nos prédios eu ia em todas. E dançava muito! Como eu
dançava nas festas. Isso muito antes do meu primeiro contato com o mundo da dança mesmo.

41
Mais à frente falamos sobre os termos “queer” e “cuir”, a versão aportuguesada, e sua importância na
comunidade LGBTQIAP+.
42
Uma dança que acompanhou a era da Disco Music, com movimentações de braço fortes, rápidos e uma
estética de elegância inspirada nas divas do cinema dos anos 1950/60.
43
Elemento da dança na cultura ballroom, criada por mulheres transexuais e travestis negras na cidade de Nova
Iorque
44
Cultura jamaicana que tem a dança marcada por danças sociais, como na hip hop dance, criadas em sua
maioria nas festas características da cultura, sendo as mais tradicionais chamadas de passa passa, onde os passos
masculinos e femininos são socialmente delimitados e há uma predominância de movimentação de quadril
45
Com estética mais geométrica, a dança ganhou esse nome devido à técnica de contração que “explode” nas
batidas mais fortes da música, em inglês “to pop” ou “do popping” seria o ato dessa contração
46
dança surgida nos clubes de house music, marcada por trabalhos de pernas, chamados de footworks, mas com
influências de diversas outras práticas como samba, capoeira e sapateado entre muitas outras
47
Dança que ganhou esse nome por conta do passo “lock”, que em inglês significa “trancar”, um dos principais
grupos responsáveis pela difusão da dança na grande mídia, foi o The Campbell Lockers, que ficou conhecido
como The Lockers, com aparições importantes no programa Soul Train, apresentado por Dom Cornelius
54

Essa parte é importante para entender de onde veio a relação com a festa, mas sem me perder
muito nessa fase, vou pular para meados da década de 2000.
Em 2003 eu entrei no Xstyle Dance Company. Um grupo focado em festivais
competitivos de dança, do qual muitos de seus integrantes e amigos participaram ativamente
da história das danças urbanas no Rio de Janeiro e com quem pude construir algumas de
minhas relações interpessoais das mais duradouras e também das mais problemáticas. Éramos
jovens e vivíamos em um momento em que não era tão popular problematizar questões
referentes a racismo, machismo, gordofobia nem lgbtqfobia, por isso reproduzimos (e
sofremos) várias dessas violências em nossas relações pessoais. Mas também não é essa a
história que eu quero contar aqui, pelo menos não agora.
A partir de 2004 ou 2005, alguns amigos de integrantes do grupo entraram no Grupo
de Rua, do diretor e coreógrafo Bruno Beltrão. O Grupo de Rua é uma companhia profissional
de dança contemporânea da cidade de Niterói, que tem um trabalho marcado por corpos de
dançarinos, principalmente homens cisgêneros, e dançarinas/es de hip hop dance, breaking,
krumping48 entre outras danças urbanas. Na época, era conhecido como GRN (Grupo de Rua
de Niterói) e já era internacionalmente reconhecido pela excelência de seu trabalho. Foi a
partir das turnês com a companhia que alguns de nossos amigos começaram a conhecer o
mundo. Ao mesmo tempo, grandes festivais de dança começavam a trazer professores
internacionais para lecionar em workshops e oficinas de dança, os lendários OGs. Tudo isso
foi nos possibilitando aos poucos, e com algumas “trapaças” (lembra da história da pirataria?),
ir conhecendo mais sobre essa cultura que vivíamos diariamente.
Foi em 2008 que o GEDU (Grupo de Estudos das Danças Urbanas) foi criado a partir
de uma conversa entre Michell Baes e Bruno Nobru de Souza. Estes, quase que
imediatamente, convidaram Filipi Moura Ursão e Rodrigo Pires Soninho, todos integrantes do
grupo Xstyle Dance Company na época (e todos homens! Olha um ranço antigo aparecendo
aqui), para fazer parte do grupo de estudos — e nesse momento não me interessa muito
problematizar o porquê de apenas homens terem sido chamados para participar deste coletivo,
mesmo tendo mulheres em seu convívio que também dançavam e pesquisavam essas práticas
de dança, mas foi assim que eles escolheram fazer à época. No mesmo ano, entendendo que
era a melhor maneira de estudar essas danças, eles criaram o evento Batalha Urbana. Baes

48
Para saber mais sobre a dança krumping, sugiro dois documentários curtos sobre essa prática: o filme Krump
Nacional (2016), dirigido por Joice Soares Joy aka Girl Kwalker, que fala sobre a cena brasileira da dança
(disponível em https://www.youtube.com/watch?v=uA6b519HWC0. Acesso em: 16 Jan. 2023) e o filme The Art
Of Krump (2012), dirigido por Steve Won, com o OG Tight Eyez e Enforcer, falando sobre a origem da dança
e a importância de eventos que fomentam a cena (Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=0Sji8YlbOeo. Acesso em: 16 Jan. 2023).
55

escreveu um pequeno projeto do evento e apresentou a então presidente do Sindicato dos


Profissionais da Dança do Rio de Janeiro (SPDRJ), Lurdes Braga. Ela, por sua vez, adorou a
ideia e resolveu patrocinar. Assim, uma relação com o Sindicato se iniciou. Esta relação, mais
para frente, mudou drasticamente a avaliação e os avaliadores para o registro de profissionais
da categoria, assim como o nome da mesma.
Finalmente chegamos em 2009, às vésperas da entrada de novembro, mês da
Consciência Negra, quando Rafri Junior, aluno bolsista da extinta academia Dança & Cia no
Centro da cidade de Niterói, me fez uma provocação que ia mudar toda a minha vida. A
academia era focada em modalidades de danças de salão como samba de gafieira, bolero e
forró e com frequência promovia bailes para os alunos dessas modalidades socializarem e
experimentarem seus aprendizados na pista de dança. Eu era a professora de uma turma
volumosa de hip hop dance, então o Rafri, também meu aluno, perguntou: “Fessora, por que
a gente não faz uma festa pra gente também?” E assim, em 14 de novembro de 2009 nasceu a
Urban Party49.
Não, a gente não usou o “Groove” de primeira. Até então tudo era “urbano” ou
“urban”, mantendo, sempre que possível, a predileção pelo segundo, uma vez que a cafonice
de achar que nomes em inglês eram mais legais ou chamativos. Naquela época, já tínhamos
formado grupos de estudo informais, pesquisas individuais – feitas à nossa maneira, nada
acadêmica e muito menos formalizada – e já era possível encontrar muitos blogs50 na internet
com informações e vídeos sobre essas práticas de dança que resolvemos chamar de “danças
urbanas”. A única coisa que nos faltava, de fato, era o espaço para colocar em prática nossas
pesquisas. A festa era, é e sempre será o melhor espaço para o aprofundamento dentro do
universo Hip Hop, e isso já era um conhecimento incorporado na gente muito antes do próprio
Hip Hop.
De fato, não aconteceu nenhum fórum, assembleia ou reunião que levasse todo um
país a discutir e adotar o termo “danças urbanas”. Mas devido a uma hierarquia, não dita, de
idade na dança com algumas ressalvas e rebeldias dos mais novos, esse termo foi se
espalhando. E nosso OG Frank Ejara, indubitavelmente, foi um dos grandes protagonistas na
difusão do termo, assim como de muitos fundamentos teóricos e práticos das danças urbanas.

49
Na página do Facebook, é possível ver os flyers antigos da festa. Disponível em:
https://www.facebook.com/media/set/?set=a.750179931662751&type=3. Acesso em: 10 Jan. 2023
50
Um dos principais blogs internacionais usado como referência para a pesquisa dessas danças era o Style2Ouf,
All About Streetdance, que esteve em funcionamento entre os anos de 1999 e 2011. Hoje, seu antigo domínio
(http://www.style2ouf.com/) permanece na rede em forma de homenagem à sua contribuição às mais diversas
pesquisas.
56

Entretanto, controverso ou não, uma coisa todos/as/es concordavam: a gente gostava muito de
festa e esse era, com certeza, o melhor lugar para dançar.
Não era como se não tivessem festas para dançar em 2009 por aqui. Havia uma
quantidade considerável de festas de Hip Hop ou com a temática musical preta, afinal,
estamos falando de Rio de Janeiro. Os principais bailes que frequentávamos até então – e
ouso dizer que se não fosse pela crise gerada com a pandemia em 2020, não teríamos deixado
de frequentar – eram os de Hip Hop da FEBARJ, na Lapa, e do Viaduto de Madureira. A
FEBARJ é a Federação dos Blocos Afros e Afoxés do Rio de Janeiro, um espaço que existe
no bairro da Lapa desde 1992 e que até então abrigava, desde 1996, as festas Fúria Hip Hop
(primeira equipe de Hip Hop da cidade), toda sexta-feira, e Hip Hop na Fita, aos sábados. O
Viaduto Negrão de Lima, localizado no bairro de Madureira e apelidado de “Viaduto de
Madureira”, ficou famoso por receber um dos bailes blacks mais tradicionais da cidade, o
Baile do Viaduto, conhecido como “Baile Charme de Madureira”, nosso culto de todos os
sábados. Tradicionalmente, o espaço recebe festas de protagonismo negro desde sempre e o
seu entorno se tornou um centro comercial e cultural do bairro. Os gêneros musicais
predominantes nessas festas, eram Hip Hop, Rap e R&B, variando muito pouco além disso
nos seus repertórios. E vale lembrar aqui uma outra festa que existia no Rio de Janeiro, a Soul
Baby Soul, em que a predominância na trilha eram as músicas da era Funk, Soul e Disco, mas
o público era mais próximo da idade de nossos pais e mães, logo menos atraente para quem
ainda estava entrando na casa dos 20 anos.
Voltando àquela história de estar estudando e por isso querer fazer festa, um dos
principais aprendizados que tivemos com os OGs foi sobre a relação direta das danças com
movimentos musicais e como uma música criava uma dança e vice-versa. A festa é um dos
alicerces que constitui a arquitetura dinâmica do conhecimento produzido por muitas culturas
da diáspora africana, e com o movimento Hip Hop e as danças urbanas não é diferente. Uma
das principais metodologias utilizadas por nós, professoras/es de danças urbanas, até a
atualidade, para incorporar o conhecimento das práticas de dança, é a simulação de uma festa
ou cypher em sala de aula. Diminuímos a luz, aumentamos o som, ignoramos o espelho das
academias e incorporamos a sensação da festa para que a técnica seja mais facilmente
absorvida.
Apesar de estarmos todas/os/es conectadas/os/es com a cultura hip hop, as danças
que praticávamos não estavam conectadas apenas aos gêneros musicais gerados por ela.
Queríamos ouvir house music, dancehall, disco music, funk, soul, tudo numa mesma noite. A
gente queria treinar! Tem um flavor, um feeling, uma “pegada” que a gente só desenvolve na
57

pista de dança.51 Com aquela luz que sozinha já entorpece, o calor daquele monte de corpos se
mexendo junto, a vibração do grave nas caixas de som que chega a produzir vento, com DJs
nos surpreendendo com a trilha sonora que embala a noite, os corpos, os passos e as danças.
A Urban Party nasceu em uma academia de dança no mês da Consciência Negra do
ano de 2009, produzida por jovens que estavam iniciando suas jornadas como DJs,
produtores, dançarines e professores. Só essa frase já carrega muitas simbologias do que se
tornou esse movimento tantos anos depois. O nome “Groove Party” veio logo no ano
seguinte, na terceira edição da festa em março de 2010. A palavra groove é entendida por nós,
dançarinas/os/es e amantes da música, como aquele balanço do corpo conduzido pelo som.
Me lembro do Henrique Bianchini explicando o groove como o que há de humano na música,
um ritmo que não pode ser matematicamente perfeito e reproduzido pelos beats eletrônicos, o
que existe no entre as notas e as batidas da música. Definitivamente o groove combinava mais
com a Groove (do que o urban).
Já a partir da segunda edição, migramos para o espaço Gafieira Elite, localizado em
frente ao Campo de Santana e bem próximo a Central do Brasil, na capital Rio de Janeiro. Só
dentro da equipe da época, eram quilômetros e quilômetros de deslocamento para chegar na
festa. Eu vinha de Niterói, Rodrigo Soninho, que chamei para me ajudar na produção e
organização da festa no seu início, e o DJ Will Speed — que já era representante nacional da
Universal Zulu Nation e foi nosso residente de 2009 a 2015 — da Ilha do Governador. O DJ
Bruno X, que seguiu residente desde a primeira edição até o período da pandemia da Covid-
19, vinha de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense do estado, e Amannda Olliveira, nossa
primeira door (recepção do evento, que confere listas, entrada e caixa de entrada), vinha de
Petrópolis, região Serrana do estado. Nós mobilizamos dançarinas, dançarinos e dançarines de
muitos lugares, o mínimo que poderíamos fazer era sempre pensar no deslocamento do nosso
público (e nosso!).
Foram muitos anos lidando com os altos e baixos da produção de eventos dedicados
à cultura preta, mas não focando naquela cena que mobiliza o capital das grandes mídias. O
que fazíamos ali, e ainda fazemos, era um trabalho de base. Fundamentando, mas nunca
sozinhos, a cena underground do movimento Hip Hop, das danças urbanas e tudo mais que
estas culturas de diáspora africana carregam consigo. A festa era o começo e o fim de tudo. A

51
Flavor é uma gíria muito usada na dança breaking para se referir ao diferencial da dança de cada
dançarina/o/e. Feeling é uma gíria mais usada entre as demais danças urbanas, se referindo normalmente a um
modo específico de mover o corpo de cada prática, que supostamente seria guiado pela música. “Pegada” é uma
gíria paulistana da época, que se popularizou com o dançarino, professor e produtor André Rockmaster, muito
usada como elogio a quem dança mais energicamente.
58

Groove Party mudou não só a vida daquelas pessoas que iniciaram aquele movimento lá em
2009, mas de gerações de dançarinas/os/es que frequentaram a festa. A festa criou espaços,
educou seu público e gerou um grande arquivo de memórias da história das danças urbanas no
Rio de Janeiro.
Relato tudo isso não como alguém que queira reconhecimento por algum grande
feito ou algo do tipo. Relato para produzir memória e garantir nosso legado. O que vivemos é
uma experiência comunitária e coletiva, e o reconhecimento mais importante já temos. Ele
vem de cada agente-praticante da cultura hip hop e das danças urbanas que vive esse
multiverso da festa conosco e compartilha seus conhecimentos incorporados. E não por acaso,
ele também veio em 2019, quando realizamos nosso último evento presencial antes da
pandemia da covid-19, em comemoração aos nossos dez anos junto com o mês da
Consciência Negra. No dia 15 de novembro, a Universal Zulu Nation nos homenageou com
uma linda carta enviada pelos seus mestres e assinada pelo próprio Afrika Bambaataa, que
traduzo aqui um pequeno trecho:

Universal Zulu Nation reconhece a Groove Party como um evento da Cultura Hip
Hop Original que luta pela cultura, comunidade, dança, música e pelos Direitos
Humanos e luta contra a Discriminação Racial e Humanitária. O trabalho duro da
equipe e membros da Groove Party são importantes para o desenvolvimento da
Humanidade. Nós desejamos que a jornada do seu objetivo seja abençoada com Luz,
Poder, Amor, Verdade, Paz, Liberdade, Justiça, Conhecimento, Sabedoria e
Compreensão para seguir com Fé, Fatos, Pesquisa e Desenvolvimento. As mais
sinceras honras estão sobre vocês todos.

Esse reconhecimento vindo da Zulu Nation Internacional é um divisor de águas para


qualquer mobilizador cultural ou pessoa envolvida com o Hip Hop. É um dos
reconhecimentos mais importantes do mundo. Para nós, com este reconhecimento vem um
descanso no meio do caos. Um alento de habitarmos uma certeza no meio de tantas dúvidas.
De que estamos, realmente, fazendo na nossa prática, o que afirmamos nessa pesquisa: a
revolução com nossos corpos que constrói uma comunidade forte, a qual, unida, tem chance
de ajudar a imaginar um mundo melhor.
59

3 A GROOVE PARTY PERFORMANDO AQUILOMBAMENTO,


ESCREVIVÊNCIA E MEMÓRIA

It feels so good in my hood tonight


The summertime skirts and the guys in Kani
All the gangbangers forgot about the drive-by
You gotta get your groove on, before you go get paid
So tip up your cup and throw your hands up
And let me hear the party say

Montell Jordan, 1995.52

Quando pensamos em culturas da diáspora negra, é bem possível que imagens de


festa – ou festividades – venham quase automaticamente à nossa mente. Quando trazemos
reflexões sobre a cultura hip hop nesta pesquisa, um de nossos desejos é que essa seja
imediatamente associada à festa, qualquer que seja seu elemento fundamental – DJ, MC,
grafite, breaking ou conhecimento – utilizado como ponto de partida de estudo. Desse modo,
utilizando a cultura hip hop como lente metodológica, através do conhecimento incorporado
pela vivência dela focando no contexto das festas, escrevivemos sobre a Groove Party.
Falamos sobre as relações desta e das práticas de dança que aqui protagonizam, com o
movimento Hip Hop, para discutir a importância das festas para as populações que agenciam
e praticam essas culturas da diáspora negra.
Buscamos aqui compreender a força operativa da festa, como ambiente performativo
que articula os agentes-praticantes da cultura hip hop, como uma forma de aquilombamento e
escrevivência. O caráter performativo (AUSTIN, 1990), aqui, pensado desde a festa, produz
algo através de sua repetição ou reiteração, sendo que a “performatividade caracteriza
primeiro, e acima de tudo, aquela característica dos enunciados linguísticos que, no momento
da enunciação, faz alguma coisa acontecer ou traz algum fenômeno à existência” (BUTLER,

52
Trecho da música This Is How We Do It (É Assim Que Nós Fazemos), de Montell Jordan (1995), disponível
em https://www.youtube.com/watch?v=0hiUuL5uTKc, acesso em: 17 Fev. 2023. Tradução minha: “Tá tão bom
na minha área esta noite/As saias do verão e os caras de Kani/Todos os gangsters esqueceram das chacinas/Você
tem que ativar o seu groove, antes de ir trabalhar/Então pegue o seu copo e jogue as mãos para cima/E eu quero
ouvir a festa cantar”.
60

2018, p. 35).53 Desse modo, “a performatividade é um modo de nomear um poder que a


linguagem tem de produzir uma nova situação ou de acionar um conjunto de efeitos” (idem),
portanto, a performatividade pensa como essa produção de efeito acontece por esses
enunciados linguísticos.
Quando compreendemos a festa como comportamento reiterado incorporado
operativo da cultura hip hop, a observamos como uma performance (de longo arco histórico)
de aquilombamento, um modo coletivo de produção de resistência, organização,
autorreconhecimento e reelaboração de corpos e culturas negras. Considero que, em especial,
a Groove Party, no Rio de Janeiro, ao longo de seus mais de dez anos performou o
aquilombamento das comunidades das danças urbanas no Rio de Janeiro. Uma compreensão
de performance que nos ajudar a compreender essa questão é oferecida por Diana Taylor:

[performances] funcionam como atos de transferência vitais, transmitindo o


conhecimento, a memória e um sentido de identidade social por meio do que
Richard Schechner denomina “comportamento reiterado”. Em um primeiro nível. A
performance constitui o objeto/processo de análise nos estudos da performance, isto
é, as muitas práticas e eventos — dança, teatro, ritual, comícios políticos, funerais
— que envolvem comportamentos teatrais, ensaiados ou convencionais/apropriados
para a ocasião. Essas práticas são geralmente separadas de outras à sua volta para
constituir focos de análise distintos. (TAYLOR, 2013, p. 27)

Existem comportamentos sociais que se repetem nesses espaços, e eles produzem o


movimento Hip Hop onde quer que ele esteja acontecendo, pois “a performance e a estética
da vida cotidiana, variam de comunidade para comunidade, refletindo a especificidade
cultural e histórica existente tanto na encenação quanto na recepção” (TAYLOR, 2013, p. 27).
A cultura hip hop produz realidades e territórios onde e por quem quer que esta esteja sendo
performada, e o performativo dessa cena, como cultura negra, periférica, de uma juventude
rebelde e com território móvel, vai de acordo com as características de estética africanista
como a descrita por Osumare (2007) e diaspórica como a descrita por Hall (2003).
Pensando especificamente na performatividade negra, uma das primeiras referências
que trazemos é Frantz Fanon, que, em seu trabalho anterior ao campo de Estudos da
Performance ser estabelecido, fala sobre como “no mundo branco, o homem de cor encontra
dificuldades na elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente
uma atividade de negação. É um conhecimento em terceira pessoa” (FANON, 2008, p. 104).

53
É importante notar que, quando Butler diz que o performativo se refere “aquela característica dos enunciados
linguísticos”, a autora não restringe a função performativa a signos linguísticos. É bem verdade que o estudo
dessa característica de “ao se repetir fazer acontecer algo” foi preconizado pelos estudos linguísticos de Austin
(1990), porém, a questão da performatividade pode ser pensada em toda prática de se fazer, de se utilizar ou de
por algo em ação ou no próprio poder de agência.
61

O autor, natural da Martinica, descreve essa vivência após ir pela primeira vez à França e ter
contato com as pessoas brancas de lá. Essa reelaboração (inter)subjetiva – e estamos aqui
mais uma vez reclamando essa elaboração como um novo momento a partir de outras
interações com outras subjetividades, já que existiu uma elaboração (inter)subjetiva anterior,
como por exemplo, em seu território natal – ocorre a partir da diferença constantemente
apontada e sinalizada pela população branca e francesa ao vê-lo naquele território. Desse
modo, a elaboração da subjetividade de pessoas negras, num local como a cidade do Rio de
Janeiro –uma cidade que tem sua história construída a partir da colonização do país – é
atravessada por como a branquitude vê a pessoa negra:

“Olhe, um preto!” Era um stimulus externo, me futucando quando eu passava. Eu


esboçava um sorriso.
“Olhe, um preto!” É verdade, eu me divertia.
“Olhe, um preto!” O círculo fechava-se pouco a pouco. Eu me divertia abertamente.
“Mamãe, olhe o preto, estou com medo!” Medo! Medo! E começavam a me temer.
Quis gargalhar até sufocar, mas isso tornou-se impossível. (FANON, 2008, p.105)

É com essas expressões performativas que uma certa experiência de raça negra se
torna real e a performatividade de uma negritude também. Esses enunciados não são apenas
linguísticos, mas são também ações e políticas que constroem a história do Rio de Janeiro e
performam essa negritude que vai criando particularidades com o território.
Ao afirmarmos que a Groove Party performa aquilombamento, estamos nos
apropriando da teoria da performatividade e do conceito de quilombo de Beatriz Nascimento
(1985) e Abdias Nascimento (2002) – que apresentaremos na seção 3.1 – demonstrando como
a ideia de quilombismo é performada através da estética da festa e dos atos de transferência de
quem a produz e frequenta. Procuramos entender melhor a importância política e social das
festas nas intersubjetividades de agentes-praticantes das danças urbanas e da cultura hip hop
do Rio de Janeiro.
Já ao falarmos da escrevivência e memória, nosso desejo é contribuir com a memória
na cultura hip hop do Rio de Janeiro. Essa contribuição acontece através da criação de um
arquivo com essa dissertação, além dos registros já existentes em locais como as mídias
sociais da Groove Party e de seu público frequentador, e da vivência e conhecimento
incorporados pela experiência da festa, tentando juntar um pouco de todas essas coisas no
mesmo lugar. A escrevivência assim, acontece tanto na festa quanto na pesquisa.
62

3.1 A festa como nosso quilombo "mete dança"

Disse que era quilombola. Escutou que ninguém nunca havia falado
sobre quilombo naquela região. “Mas nossa história de sofrimento e
luta diz que nós somos quilombolas”, respondeu, tranquila, diante do
escrivão e do delegado.

Itamar Vieira Junior (2019)

Esta epígrafe vem do romance Torto arado, de Itamar Vieira Junior, de um momento
em que uma das personagens principais, que se torna professora e acompanha seu marido na
militância pelo direito à moradia de sua comunidade, reclama para si o lugar de quilombola a
partir do entendimento da história das comunidades quilombolas no país. A compreensão e
difusão do quilombo enquanto ideologia – e como essa tomada de direito, sobretudo, de ser
quilombola – são cruciais para nós neste texto.
Beatriz Nascimento (1985) apresenta o termo como algo que vai muito além da mera
ideia de um local onde habitam pessoas negras fugidas do sistema escravagista, ideia esta que
foi amplamente difundida e me foi apresentada no ensino básico na escola ao final da década
de 1990 e início dos anos 2000. Mas essa definição rasa não é mero acaso, ela está
diretamente ligada à nossa história colonial. Autoridades portuguesas definiram quilombo em
1740 pela primeira vez como “toda habitação de negros fugidos que passem de cinco, em
parte desprovida, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões”
(NASCIMENTO, B., 1985, p. 43). Entretanto, hoje sabemos que o quilombo é muito mais
que isso. Este, enquanto ideologia

(...) representa um instrumento vigoroso no processo de reconhecimento da


identidade negra brasileira para uma maior auto-afirmação étnica e nacional. O fato
de ter existido como brecha no sistema em que os negros estavam moralmente
submetidos projeta uma esperança de que instituições semelhantes possam atuar no
presente ao lado de várias outras manifestações de reforço a identidade cultural.
(NASCIMENTO, B., 1985, p. 48)

Tendo, assim, uma grande importância na construção e manutenção da memória


cultural e identitária da população negra, além de uma aliança ideológica que sonha e luta por
um mundo melhor. É dessa ideologia que uma das heroínas de Vieira Junior (2019) se
apropria para nomear sua luta, seu território e sua comunidade, utilizando “quilombola” como
um modo de fazer, portanto uma força performativa.
63

Esse encontro de comunidades, no caso as das danças urbanas, que constrói e agencia
a memória do movimento Hip Hop como um espaço de resistência identitária negra, também
é performado pela Groove Party. A festa promove encontros que oportunizam alianças
importantes entre as comunidades das danças urbanas, criando um ambiente onde podemos
extravasar nossa criatividade. Vamos na festa para treinar, estudar e praticar essas danças,
além de podermos utilizar símbolos destas culturas em nossas roupas e acessórios (como
veremos mais à frente), com a tranquilidade de que não teremos olhares que possam nos
deixar constrangidas/os/es.
No espaço da festa, o treino não acontece como comumente faríamos, de maneira
mais reservada e sem público. Na pista de dança, tanto na roda quanto fora dela, temos um
público bem participativo. Todas as pessoas presentes naquele espaço produzem
aquilombamento entre elas nesse encontro, que conjuga corpos dançantes e belos (como todo
tipo de beleza sendo admirada), diferentes práticas de dança sendo vivenciadas e
experimentadas de diversas formas, além da música alta que preenche todo o espaço e dita o
ritmo dos acontecimentos. O quilombo enquanto ideia nos inspira e a festa é vivida como um.
Aqui nós também o reclamamos como um modo de fazer, porém metendo um pouco de
dança.

No Gueto nego mete dança,


No baile nego mete dança,
Se eles invadir mete bala que eles dança

No Gueto nego mete dança,


No baile nego mete dança,
Se eu descer pro asfalto meto bico e playboy dança.
(KBRUM, 2018)54

Outra de nossas inspirações veio ao acaso e também provocado por nossa


precariedade. Uma das maiores dificuldades na continuidade da realização não só desta
pesquisa como da festa veio com o isolamento social prolongado como medida de prevenção
ao contágio do vírus da covid-19, como dito anteriormente. Fazer festa, como nós a fazíamos
até então, é necessariamente uma grande aglomeração de corpos dançantes, com a respiração
acelerada pelo gasto de energia, muito suor, troca de fluidos, contato físico, pessoas
consumindo bebidas e compartilhando seus copos e garrafas... uma imagem que até o começo
do ano de 2020 poderia remeter apenas ao prazer da celebração de nossos corpos e culturas,

54
Música Mete dança de Kbrum, com participação de MC Severo25 e produção de DJ Pamplona. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=yR3I9jNrGaw. Acesso em: 20 Jan. 2023.
64

mas que de repente passou a trazer uma enorme sensação de insegurança para a saúde coletiva
– ainda que isso tenha aliviado nos anos de 2021 e 2022 com a vacinação. Mesmo o
isolamento não tendo sido a única dificuldade encontrada para a continuidade da realização da
festa (como vemos na seção 3.2), este foi, sem dúvidas, um corte brutal nas nossas ações
possíveis naquele momento, o que dificultou também o retorno às atividades presenciais
mesmo com a redução ou suspensão dessas medidas.
Após este primeiro momento de isolamento social recomendado como medida de
segurança à saúde pública, juntamente com outros fatores que dificultavam desde sempre a
realização da festa, buscamos outras formas de realizar ações que pudessem gerar, no meio de
tanta insegurança inclusive social, algum retorno financeiro para nossa equipe e parceiros de
longa data, assim como manter contato com o público. Desse modo, o espaço virtual se tornou
nossa principal ferramenta de produção ao longo dos anos de 2020 e 2021.
Fizemos diversas ações virtuais, como transmissões ao vivo através das mídias
sociais promovendo uma série de discussões de subtemas em torno do racismo, que
chamamos de Groove Talks, como no episódio “Atitudes antirracistas efetivas”, em que
convidamos para o diálogo a pesquisadora de direito antirracista e arte-educadora Carolina
Câmara Pires55. Outra dessas ações virtuais foi a criação do podcast MixCuta Groove! (2021),
realizado em duas temporadas financiado por editais criados como políticas públicas
emergenciais de auxílio a trabalhadores da cultura56, um dos setores mais afetados pela
pandemia (cf. CARRIJO, 2020). Foi na gravação do quinto episódio da segunda temporada,
que o convidado Wagner Cria (Rio de Janeiro, 1987) – artista da dança e da fotografia, negro
e groover de longa data – falou sobre como algumas festas o ajudaram a se educar
politicamente, também comparando determinadas pistas de dança à ideia de quilombo. Ele
cita a Groove Party como um desses lugares e nossa pesquisa, mesmo antes dessa fala, já se
encaminhava para um pensamento semelhante.
O quinto episódio da segunda temporada do podcast Mixcuta Groove! teve como
tema as diferentes pistas de dança e suas identidades. Na apresentação, a DJ Tamy Reis
explica o tema do episódio da seguinte forma:

Nosso tema de hoje é identidade de pista, e ao meu ver, ao ver da Tamy, a pista é
muito além de um club ou boate. A pista é a rua, a pista é a aglomeração, a pista é
um festival onde a galera tá ali em prol da música/ouvindo música... então a pista

55
Vídeo completo da transmissão disponível em https://www.youtube.com/watch?v=ia3lB0eGsTk. Acesso em:
27 Jan. 2023.
56
O Prêmio pelo Edital do Programa Cultura Presente nas Redes, da Secretaria Estadual de Cultura e Economia
Criativa do Rio de Janeiro (2020), e o Prêmio pelo Edital Prêmio de Ações Locais, da Prefeitura Municipal do
Rio de Janeiro através Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc (2020).
65

pra mim, ela é algo muito maior, que não se limita a um club. (Tamy Reis in
MIXCUTA GROOVE!, 2021)

Logo no início da conversa, Wagner Cria, ao ser perguntado sobre como festas e
pistas contribuíram para sua construção enquanto artista, fala um pouco das diferenças que
sentiu entre quem ele era antes e quem ele se tornou depois de frequentar determinadas festas
e como estas contribuíram para sua formação inclusive política, citando festas de
protagonismo negro, mas dando destaque a Groove Party. Cria diz:

Eu gosto de uma coisa que rola nas festas, e isso constrói minha identidade como
pessoa, que é de falarem das coisas, das festas serem esse espaço de fala. Porque,
por um tempo, a gente teve esse discurso: ‘não, agora não é lugar de falar disso, não
é lugar de falar daquilo’. E fica sempre silenciado em relação a um monte de coisa, e
acha que tudo é só ‘eu vou beber minha cachaça ali na festa e tudo vai ficar
tranquilo’. E no dia seguinte não é, a gente sabe. Então eu acho que essas festas que
trazem esse lugar de discussão também, mesmo que seja na música que tá sendo
tocada, ou no tema que escolhe pra galera se vestir, ou sei lá! Mas fazem a gente:
desde o momento em que a festa escolhe o tema e você começa a se movimentar pro
dia que a festa chega, você vai, e as pessoas que você encontra, e o que acontece lá e
no pós, isso te modifica tanto enquanto pessoa, enquanto ser humano... e aí eu não
consigo não citar a Groove Party, porque é uma festa que eu acompanho desde lá do
iniciozão, e isso foi me construindo como pessoa. (Wagner Cria in MIXCUTA
GROOVE!, 2021)

Essa modificação à qual Cria se refere é o que entendemos como as reelaborações


que pesquisamos aqui, e o quilombo enquanto ideologia foi a ponte que encontramos para
caminharmos em direção à compreensão de como ocorrem e de onde vêm essas mudanças.
Dentre os temas e assuntos abordados pelas festas aos quais Cria se refere, podemos
citar três momentos marcantes na Groove Party, nos anos de 2015, 2018 e 2020, em que o
exercício da fala, da conversa e constituição do próprio fazer da festa se encontraram. Na
edição de março de 2015, chamamos a atenção para uma Proposta de Emenda Constitucional,
a PEC 181, redigida e votada pela primeira vez naquele ano, tentando mais uma vez
criminalizar o aborto mesmo nas situações onde este é atualmente permitido pela nossa
Constituição (cf. FERRO; RODRIGUEZ, 2018). Na ocasião, realizamos uma campanha
pedindo para que os groovers que fossem favoráveis aos direitos das mulheres sobre os
próprios corpos fossem para o evento com uma peça de roupa vermelha57 (Figura 2). Dois
anos depois, em 2017, relembramos a campanha em nossas mídias sociais e divulgamos o ato
marcado por movimentos de esquerda no Centro do Rio de Janeiro, chamando nosso público
a se unir às manifestações na rua contra a mesma PEC que mais uma vez tramitava na Câmara
dos Deputados (Figura 3).

57
Fotos do evento disponíveis em https://www.facebook.com/media/set/?set=a.1082180551796019&type=3.
Acesso em: 13 Jan. 2023.
66

Figura 2: Montagem para publicação no perfil do Instagram com fotos de Suryan Cury, na edição do dia 14 de
março de 2015, agradecendo às pessoas que aderiram à campanha.

Fonte: https://www.instagram.com/p/0bBYmckypj/, acesso em: 20 de Jan. 2023.

Figura 3: Foto de Suryan Cury, repostada em publicação no perfil do Instagram em 2017 informando sobre
manifestação popular no Centro do Rio de Janeiro

Fonte: https://www.instagram.com/p/BbcPH_OAFbs/, acesso em: 20 de Jan. 2023.


67

Já em 2018, na época daquela eleição presidencial conturbada, quando o


bolsonarismo nascia com força total e se firmava em nosso governo, também nos
posicionamos nas mídias sociais contra o mesmo apoiando o candidato de oposição Fernando
Haddad (PT-SP)58; mais uma vez em um movimento de politizar nosso público, mesmo em
tempos de despolitização e polarização.
No nosso último exemplo, no ano de 2020 e já vivenciando o primeiro ano e um dos
momentos mais tensos da pandemia da Covid-19 (pois ainda não tínhamos vacina nem uma
perspectiva real de um início de campanha de vacinação), acompanhamos as manifestações do
movimento negro, juntamente com o coletivo de audiovisual Cena BXD (Figura 4). Naquele
momento, mais uma vez viralizavam na internet vídeos e denúncias de assassinatos violentos
da população negra por parte do Estado, que culminou com o caso do menino João Pedro,
adolescente de 14 anos morto durante operação policial violenta em São Gonçalo (cf.
GUIMARÃES, 2021). A manifestação aconteceu em frente ao Palácio Guanabara – sede do
Governo do Estado do Rio de Janeiro – e se encerrou com repressão violenta por parte da
Polícia Militar do Rio de Janeiro (cf. LETA, 2020).

Figura 4. Carrossel de fotos da manifestação contra violência policial no caso do menino João Pedro, por Rafael
Ferreira, coletivo Cena BXD

Fonte: Publicação no perfil do Instagram disponível em https://www.instagram.com/p/CA6A1VtJUc2/, acesso


em: 20 de Jan. 2023.

Essas ações de exercícios políticos com a festa, conjugadas com as músicas que
compõem a nossa trilha sonora, a identidade visual e a estética nas mídias sociais, vão ao

58
Postagem disponível em
https://www.facebook.com/GroovePartyOficial/posts/pfbid02SSzNMVPHiamjYpFnHGSWj4SY7P21jP6P7tCU
omDVfUEv97NU3yxZ4tUWMjnbQnLxl. Acesso em: 13 Jan. 2023.
68

encontro da estética africanista da cultura hip hop estudada e descrita por Osumare (2007),
sempre utilizada na comunicação da Groove Party em seus perfis nas mídias sociais. Nosso
intuito sempre foi chamar a atenção de um público específico: os agentes-praticantes das
danças urbanas, da cultura hip hop e pessoas que simpatizassem com essas culturas. Como
falamos na seção 2.3, esses grupos são compostos majoritariamente por pessoas que fazem
parte da população negra e periférica do Rio de Janeiro. Não apenas nas falas de Wagner Cria
no podcast, mas em diversas outras situações que precedem o ano em que entrei no programa
de mestrado, eu, enquanto liderança do coletivo, pude sentir o quanto era importante construir
um posicionamento político claro para a festa. Isso porques nós, enquanto público de diversas
outras festas blacks do Rio de Janeiro, também percebemos o quanto determinados
posicionamentos não só atraíam públicos específicos, como também o educavam.
Quando a produção de uma festa anuncia claramente ao seu público que não
concorda com determinados comportamentos ou levanta determinadas bandeiras de questões
sociais como as que nós levantamos, ela inibe comportamentos indesejados e inconvenientes
– que eu mesma vivenciei em outras festas, mas isso também é outra história – com atitudes
machistas, homofóbicas, racistas, misóginas ou capacitistas59. Se a equipe de produção não é
conivente com determinados comportamentos, o público não fica à vontade para reproduzi-
los. Assim foi sendo construída a relação entre a festa e o público. Nós discutíamos e
apresentávamos posicionamentos políticos firmes e claros com as discussões que nos
pareciam mais importantes no tempo presente, sempre com atenção principal à estética negra,
já que a cultura que celebramos aqui é parte da diáspora africana.
Voltando à análise da conversa do podcast, percebemos que existe uma importância
social e política das festas na elaboração da subjetividade de seu público. Isso não é percebido
por nós apenas porque estamos pensando teoricamente sobre isso nesta pesquisa, mas também
é algo sentido por nossa vivência nas festas e muitas vezes verbalizado por quem não se
encontra – ou não se interessa por essas discussões – no ambiente acadêmico.
O quilombo como ideologia, que tem sido nova e amplamente difundido à juventude
por alguns movimentos periféricos – ligados às religiões de matriz africana, aos diferentes
gêneros de música negra e culturas e práticas de dança também de origem negra e periférica –

59
Quanto ao capacitismo, acho que aqui vale uma autocrítica também. Nosso público sempre foi diverso, isso
também inclui PcDs. Como nem sempre pudemos escolher os melhores locais para realização de nossos eventos,
a maior parte dos espaços tinham acesso com escadas, sem rampas ou elevadores, sendo apenas alguns com
entrada acessível de fato. Entretanto, isso não impediu que pessoas com alguma deficiência de locomoção
tivessem acessado a festa, pois tanto a equipe do espaço quanto da produção se mobilizava para o auxílio dessas
pessoas (como já aconteceu com cadeirantes que foram carregadas/os/es prontamente para dentro da festa por
seguranças ou outras pessoas da produção), mas não foi um ponto forte no acesso aos espaços das festas.
69

e, ao menos em relação a Groove Party e a cultura hip hop, parece ter ligação direta com o
acesso a tecnologias como a internet e a grande mídia, processos já bem explicados por
Osumare (2007). A Groove Party, assim como outras festas blacks, é “como se fosse um
quilombo mesmo”, como afirma Wagner Cria (MIXCUTA GROOVE!, 2021), um lugar que
nos acolhe pelas nossas semelhanças e diferenças, nos permitindo performar nossas
subjetividades num espaço seguro. A noção de quilombo enunciada por Cria acompanha o
que Beatriz Nascimento (1985) nos diz, que ainda que falte “um esforço historiográfico de, ao
estudar os quilombos brasileiros, defini-los segundo suas estruturas e sua dinâmica no tempo”
(NASCIMENTO, B., 1985, p. 44), este conceito se atualiza no século XX com uma mística
que alimenta “os anseios de liberdade da consciência nacional, (...) relembrado como desejo
de uma utopia” (ibdem, p. 47):

Por tudo isto, o quilombo representa um instrumento vigoroso no processo de


reconhecimento da identidade negra brasileira para uma maior auto-afirmação étnica
e nacional. O fato de ter existido como brecha no sistema em que os negros estavam
moralmente submetidos projeta uma esperança de que instituições semelhantes
possam atuar no presente ao lado de várias outras manifestações de reforço a
identidade cultural. (NASCIMENTO, B., 1985, p. 48).

Ainda que o quilombo esteja diretamente ligado a movimentos que chamamos de


identitários, sabemos que “com frequência, a identidade envolve reivindicações essencialistas
sobre quem pertence e quem não pertence a um determinado grupo identitário, nas quais a
identidade é vista como fixa e imutável” (WOODWARD, 2019, p. 13). A identidade,
compreendemos, porém, é “na verdade, relacional, e a diferença é estabelecida por uma
marcação simbólica relativamente a outras identidades” (idem). Do mesmo modo que
Woodward entende a formulação identitária, pensamos nas intersubjetividades como
formulações relacionais, pois uma subjetividade se formula se relacionando a outra através da
sociabilidade. Voltando as agendas identitárias, a autora mostra como essas podem ser
movimentos de extrema importância quando se refere às populações em situação de
precariedade, já que

A identidade está vinculada também a condições sociais e materiais. Se um grupo é


simbolicamente marcado como inimigo ou como tabu, isso terá efeitos reais porque
o grupo será socialmente excluído e terá desvantagens materiais (WOODWARD,
2019, p. 13, p. 14).

Sobre essa questão, Woodward, em seu estudo, se refere à conflitos estabelecidos


entre as identidades nacionalistas de sérvios e croatas, mas ao falarmos de colonialismo e as
populações que foram deixadas pela história em situação de precariedade, descrita por Butler
70

(2018), percebemos efeitos semelhantes nas relações de poder construídas entre quem ocupa o
poder hegemônico político e econômico e nós. Por outro lado, ao realizarmos esta pesquisa no
campo das artes, também se torna importante dar destaque às performatividades negras na
cultura hip hop e das danças urbanas
Ao nos aproximarmos de teóricos que estudam identidade, percebemos que as
discussões sobre sua definição entraram numa espécie de “crise” na contemporaneidade:

Na arena global, por exemplo, existem preocupações com as identidades étnicas; em


um contexto mais ‘local’, existem preocupações com a identidade pessoal como, por
exemplo, com as relações pessoais e com a política sexual. Há uma discussão que
sugere que, nas últimas décadas, estão ocorrendo mudanças no campo da identidade
– mudanças que chegam ao ponto de produzir uma ‘crise da identidade’. Em que
medida o que está acontecendo hoje no mundo sustenta o argumento de que existe
uma crise de identidade e o que significa fazer uma tal afirmação? Isso implica
examinar a forma como as identidades são formadas e os processos que estão aí
envolvidos. Implica também perguntar em que medida as identidades são fixas ou,
de forma alternativa, fluidas e cambiantes. (WOODWARD, 2019, p. 17)

Entretanto a própria palavra “identidade” é ainda muito presente no vocabulário dos


agentes-praticantes presentes na Groove Party. Ambas as autoras falam da importância de
movimentos identitários vindos de populações de alguma forma excluídas socialmente, que é
justamente de onde emergem as culturas hip hop e das danças urbanas. Entretanto, não nos
parece possível formular uma identidade única para todas essas populações. É por isso que
falamos de subjetividades e pensamos na identidade cultural que o movimento Hip Hop
carrega consigo, não como única ou fixa, mas como “fluida e cambiante” em cada território
geográfico em que se estabelece, adaptável às culturas locais como a ideia de diáspora
(HALL, 2003). A Groove Parry, uma festa de protagonismo negro, é apenas um tipo de
manifestação de reforço à identidade cultural como a descrita por Nascimento (1985) e, no
caso da Groove Party, dão continuidade às culturas hip hop e das danças urbanas, além de
celebrarem as mesmas assim como celebram a vida de seu público, os tais agentes-praticantes
que tanto falamos, pois “ao longo de sua reconfiguração, os quilombos tornaram-se sistemas
organizacionais complexos, de produção cultural, convivência inter-racial, trocas de saberes,
sistemas decisórios diversos” (NASCIMENTO, T., 2019, p. 16).
O racismo que estrutura nossa sociedade brasileira destrói narrativas de qualquer
outra cultura ou etnia que não seja parte da hegemonia branca e eurocêntrica. Viver nessa
sociedade para essas populações precarizadas é traumático pois, ainda que sejamos maioria
em números absolutos, somos consideradas/os/es minorias sociais:
71

O relato psicanalítico do trauma traz três ideias principais implícitas: primeira, a


ideia de um choque violento ou de um evento inesperado para o qual a resposta
imediata é o choque; segunda, a separação ou fragmentação, pois esse choque
inesperado priva a relação da pessoa com a sociedade; e, terceira, a ideia de
atemporalidade, na qual um evento violento que ocorreu em algum momento do
passado é vivenciado no presente e vice-versa (...)” (KILOMBA, 2019, p. 216).

Procuramos entender este trauma e como ele pode agir nas elaborações de nossas
subjetividades, pois “no trauma clássico, os laços com outros humanos, com a noção de
comunidade ou com um grupo, tão básico para a identidade humana, são perdidos”
(BOUSON apud KILOMBA, 2019, p. 220-221) e as subjetividades necessitam de laços e
interações para serem elaboradas. Essa união de pessoas em comunalidade e sociabilidade que
falamos, ou seja, numa festa, é uma grande potência social e política para reconstrução da
força de uma comunidade enquanto comunidade.
Podemos ainda compreender a Groove Party como uma assembleia de pessoas em
situação de precariedade (BUTLER, 2018), que toma para si o direito de aparecer e reinventar
sua condição desde a festa.

Podemos encarar essas manifestações de massa como uma rejeição coletiva da


precariedade induzida social e economicamente. Mais do que isso, entretanto, o que
vemos quando os corpos se reúnem em assembleias nas ruas, praças ou em outros
locais públicos é o exercício – que se pode chamar de performativo – do direito de
aparecer, uma demanda corporal por um conjunto de vidas mais vivíveis (BUTLER,
2018 p. 31).

Aqui a autora se refere especificamente aos corpos que se unem em manifestações


em espaços públicos, que pode ser uma chave de leitura para pensarmos a reunião festivo-
política que performa a Groove Party. Em festa, buscamos a identificação como um dos
mecanismos de defesa do ego60 ao trauma que a precariedade nos gera. “Em vez de se
identificar com a/o ‘outra/o’ branca/o, desenvolve-se uma identificação positiva com sua
própria negritude, o que por sua vez, leva a um sentimento de segurança interior e de
autorreconhecimento” (KILOMBA, 2019, p. 237). A ação de afirmação identitária feita como
festa faz parte de uma reelaboração de uma negritude que recusa se enxergar como a
hegemonia a vê. Assim, nos fazemos conhecer tanto entre nós quanto perante a sociedade,
abraçando uma identificação entre as populações que frequentam a festa, não apenas em

60
Na perspectiva da psicanálise (segundo a teoria de Freud), utilizada por Kilomba (2019), o ego é parte do
nosso aparelho psíquico que se formula justamente a partir da necessidade de intermediar a relação entre o Id
(voltado exclusivamente para a satisfação das necessidades básicas no começo da vida) e o ambiente em que
vivemos, ou seja, das interações sociais. Está relacionado ao desenvolvimento da nossa racionalidade (VILAÇA,
2019).
72

relação a questões de “raça”, mas também às normas de gênero, sexualidade, corpos


dissidentes e vidas que são constantemente precarizadas,

Porque quando corpos se unem como o fazem para expressar sua indignação e para
representar sua existência plural no espaço público, eles também estão fazendo
exigências mais abrangentes: estão reivindicando reconhecimento e valorização,
estão exercitando o direito de aparecer, de exercitar a liberdade, e estão
reivindicando uma vida que possa ser vivida. (BUTLER, 2018, p.33)

Essas palavras de Butler, para mim, conversam tanto com a festa quanto com o
quilombo como ideologia. Ao observarmos a pluralidade de subjetividades dissidentes num
exercício não só de reivindicação e luta, mas também de celebração, que compõem a
comunidade Groove Party, podemos ainda nos aproximar do “cuírlombismo literário”, de
Tatiana Nascimento (2019). Para a criação de seu conceito, a escritora e poeta se apropria
brilhantemente do conceito de quilombo, em diálogo com os textos de Beatriz Nascimento
(1985) e de Abdias Nascimento (2002), e da teoria queer, entendida pela autora como algo
que vai contra a

revisão estereotipada e homogeneizante sobre qual sexo cabe a um corpo preto, um é


tido como próprio, correto: hetero, disponível, explorável reprodutivo, cisgenerado.
a manutenção dessas expectativas obedece ao cistema ideológico, político,
econômico e afetivo de controle dos corpos e sexualidades negras: perseguição,
chacota, anulação existencial física (especialmente de corpos trans negros) e
simbólica, condenações a quem ouse escapar do imaginário racista colonial que
constrói “uma mulher negra” (que pode ser mulata ou preta, cada uma com
estereótipos específicos) e “homem negro” (que sole ser o pauzudo, estuprador,
afetivamente irresponsável)”. (NASCIMENTO, T., 2019, p. 5)

Como poeta, Nascimento racializa e traz para a negritude a discussão queer, e


entende que “a parecença entre queer e quilombo sugere algo urgente a celebrar y a retomar
pra nossas lutas e existências, já que os pilares mais rígidos e antigos do racismo colonial são
o silenciamento e as expectativas sexuais sobre corpos negros” (NASCIMENTO, T., 2019, p.
4). Portanto,

conectando a conceituação pioneira de nascimento b. ao projeto de nascimento a.,


forjo desde eu lugar afrodiaspórico sexual-dissidente o conceito de cuirlombismo
literário (nascimento t.). reagir à dor é ainda recontar histórias, falar dor nos permite
buscar cura (se é nosso projeto. imagino que, pra muitxs seja). sentir a ferida
colonial, pensar: como curar esse grande machucado íntimo, coletivo, antigo,
renitente? (NASCIMENTO, T., 2019, p. 18)

Este foi o caminho que Tatiana encontrou para a criação de seu conceito. Não
desejando ir tão longe a ponto de criar um conceito próprio baseado na leitura destes autores
73

sobre quilombo e quilombismo, aqui o que fazemos é escreviver a festa olhando-a como um
quilombo, acolhendo nossos traumas causados pelo racismo juntando quem faz a festa com
quem lê e escreve esta pesquisa. Como Wagner Cria, que diz que “tem certos lugares que eu
sinto até como se fosse um quilombo mesmo. É uma festa, mas você se sente em família”
(MIXCUTA GROOVE!, 2021), resolvemos aquilombar também na escrita e nos unirmos a
esse “cuírlombismo literário”, não falando apenas de nossas dores, mas também de nossos
amores.
Numa festa como a Groove Party, temos a interação de várias linguagens artísticas
de um mesmo movimento cultural. Daí a importância dessas expressões artísticas de culturas
da diáspora negra manterem sua continuidade e ocuparem cada vez mais espaços de destaque,
mas estes espaços devem, de fato, ser ocupados pela comunidade dos agentes-praticantes
destas culturas. De nada adianta que o número de festas com a temática musical negra seja
grande, como o é na cidade do Rio de Janeiro, se as pessoas que estiverem frequentando esses
espaços, tanto como público quanto como equipe de produção, sejam parte da hegemonia
branca, cisgênera e heteronormativa.

quem nos inventa como escravizados são os escravizadores. sempre fomos mais e
antes; sequer viemos pras américas pelo tráfico – Luzia caminhou até aqui. nossa
produção textual, uma das pontes mais importantes que temos no recontar e
reinventar tanto dessas histórias apagadas. (...) é também ferramenta pra nos
projetarmos ao futuro, que nos pertence e precisa ser brilhantemente negro.
deslumbrantemente dissidente. como artistas, temos nos acostumados com o dever
da denúncia (que rende inteligibilidade imediata legitimidade, reconhecimento) e
por vezes nos esquecemos do direito – humano – ao devaneio – vocação da arte.
(NASCIMENTO, T., 2019, p. 19)

Nem a festa nem esta pesquisa são feitas no intuito de meramente denunciar a
precarização social produzida pelo racismo. A festa, quando é produzida por nós para nós,
ainda que o alcance dentro da cultura pop ou grande mídia nem sempre aconteça, é importante
como trabalho de continuidade e celebração. Somos nós, as/os/es próprias/os/es agentes-
praticantes das danças urbanas e da cultura hip hop, quem devemos contar nossas histórias e
participar da difusão destas ao grande público. “Todo o processo alcança um estado de
descolonização; não se existe mais como a/o ‘Outra/o’, mas como o eu. Somos eu, somos
sujeito, somos quem descreve, somos quem narra, somos autoras/es e autoridade da nossa
própria realidade” (KILOMBA, 2019, p.238) e é importante que esse movimento de
resistência ou re-existência não seja apenas em forma de luta, mas também de celebração.
74

nossa poética é anúncio de mundos, subjetividades, epistemes que já havíamos


construído, que construímos no agora y que construiremos a partir dessa negritude
diaspórica sexual-dissidente ancestral afirmada pela palavra solta: devaneigros.
somos big-bang recriacionistas. fazemos rota de fuga com trocas de afago.
(NASCIMENTO, T., 2019, p. 31)

A Groove Party é uma festa essencialmente feita por amigos/as/es para amigos/as/es.
Desejávamos um espaço para dançar e performar nossas subjetividades sem julgamentos, e
conseguimos construir isso. Veja, não estou afirmando em momento algum que nunca houve
atrito ou discordâncias entre as partes envolvidas, tanto entre a equipe responsável pela
produção da festa quanto entre amigos/as/es que a frequentavam. Brigamos, discordamos
bastante e discutimos também. A equipe de produção da Groove Party mudou algumas vezes
ao longo dos anos, mas algumas características sempre se mantiveram: todes sempre foram
representantes de algum grupo social minoritário — pessoas negras, periféricas, mulheres
e/ou LGBTQIA+, ainda que muitas vezes fizessem parte de apenas um ou 2 destes grupos —
até porque eram as pessoas do meu convívio, com uma ligação forte com a dança, a música ou
a cultura hip hop. Se é para produzir, trabalhar, movimentar a cena, bora fazer isso com quem
a gente confia e ama, né?
É difícil de imaginar que um ambiente que envolve consumo de entorpecentes,
música alta, rachas de dança calorosos na pista de dança e pessoas dançando de maneira
sexualmente provocativa não pudesse causar algum tipo de atrito em mais de dez anos. Mas
somos uma comunidade. Criamos confiança nesse espaço e acreditamos que isso sempre teve
relação direta com as pessoas (porque são pessoas!) que estavam trabalhando nesses
acontecimentos que a Groove Party produziu. Somos um espaço de acolhimento desses
corpos dissidentes e absolutamente diferentes entre si enquanto sujeitos. Somos um quilombo
que mete dança!

3.2 Mídias sociais, escrevivência e produção de memória

Essa noção de quilombo ideológico e festivo que pensamos aqui também possui
grande importância na criação e preservação de nossas memórias coletivas. Abdias
Nascimento, em seu livro O Quilombismo (2002), fala sobre as constantes e antigas tentativas
de apagamento da história e da memória do negro brasileiro, por parte das instituições e da
importância de um esforço real por sua preservação:

A memória do negro brasileiro é parte e partícipe nesse esforço de reconstrução de


um passado, é ter uma consequente responsabilidade nos destinos e no futuro da
75

nação negro-africana, mesmo enquanto preservando a nossa condição de


edificadores deste país e cidadãos genuínos do Brasil. (NASCIMENTO, A., 2002, p.
258).

O autor ainda fala sobre a constante tentativa de branquear a história do país, da


mesma forma que acontece em outros países como o Egito Antigo, exemplo que citado
(NASCIMENTO, A., 2002, p. 262), e chama a atenção para a

Significativa dimensão da antiguidade da memória afro-brasileira [que não começa a


partir da escravidão]. Este é um assunto extenso e complexo, cuja seriedade requer e
merece pesquisa e reflexão aprofundadas, no contexto de uma revisão crítica das
definições e dos julgamentos pejorativos que há séculos pesam sobre os povos
negros-africanos. (NASCIMENTO, A., 2002, p. 262).

Como a sociedade brasileira é construída e marcada fortemente pelo período da


escravidão, principalmente de povos negros, e o pós-escravidão, em que não ocorreram
“medidas sociais que beneficiassem política, econômica e socialmente os recém-libertados”
(NABUCO apud CARNEIRO, 2011, p. 15), os quilombos são, além de resgates de nossa
memória, criações de narrativas próprias dessas populações oprimidas e precarizadas.

Lembro-me das incontáveis vezes em que a palavra “zumbi” era usada na minha
infância para assustar as crianças travessas. E é admirável como de lá para cá a
palavra vem sendo ressignificada. Tornou-se nome próprio, tendo por sobrenome
um território, Palmares, símbolo da resistência dos negros à escravidão. O “morto-
vivo” levado para o imaginário popular por meio das versões oficialescas sobre a
escravidão dá lugar ao escravo rebelde e libertário, que exige o seu lugar na história
e, ao fazê-lo, revela outra narrativa. É o primeiro herói popular do Brasil,
encarnando, contra o mito da passividade do negro, a luta da dignidade humana
contra toda forma de opressão. A cada 20 de novembro ele se espraia, amplia o seu
território na consciência nacional, empurra para os subterrâneos da história seus
algozes, que foram travestidos de heróis (CARNEIRO, 2011, p. 103-104).

Por tudo isso, o quilombo, de qualquer tipo que este seja, acaba sendo uma ação que
preserva e passa adiante essa memória negra.
No caso da festa que aqui investigamos, a Groove Party, preservamos a memória da
cultura das danças urbanas, os modos de dançar e produzir essas práticas de dança que – como
já foi dito inúmeras vezes por nossos OGs –tem suas origens diretamente conectadas com a
sociabilidade nas festas e cyphers. Vamos à festa também para experimentar e pesquisar
dança e nos comportamos conforme o esperado para esse espaço: dançamos, alguns se
entorpecem com o consumo de álcool ou outras drogas, enquanto outros se entorpecem pela
música; flertamos com quem nos desperta interesse sexual, curtimos a noite toda da melhor
forma possível.
76

O que temos de comportamentos reiterados que diferem a Groove Party de qualquer


outra festa black, está diretamente ligado às práticas das danças urbanas: são danças
espaçosas, virtuosas, exageradas e sem pudores inventados por uma etiqueta de como uma
dama ou um cavalheiro deveria se comportar ou não em quaisquer ambientes que sejam61; são
corpos que na emoção de uma roda de dança, não se importam muito se o chão está limpo
antes de se jogarem nos dips do vogue ou nos power moves do breaking; são dançarinas/os/es
que mesmo que estejam com o equilíbrio afetado de tanto álcool que já tenham consumido,
permanecem com ouvidos atentos e movimentos conectados ao som, às viradas e mixagens
feitas por DJs, que também se conectam com a dança que elas/es/us veem na pista. A
performance da festa, por si só, já contribui para a continuidade das culturas hip hop e das
danças urbanas produzindo memória nos corpos que vivenciam essa experiência. Mas, como a
juventude contemporânea também se encontra muito conectada a uma sociabilidade também
virtual, nossa memória acaba ganhando mais um registro: as mídias sociais.
A difusão da cultura hip hop pelo mundo está diretamente conectada com a mídia
capitalista transnacional, que tem seu alcance diretamente proporcional ao avanço tecnológico
das comunicações, pois esta é

Uma cultura pop global concomitante, transmitida pela revolução da comunicação, é


baseada em vídeos de músicas de hip-hop e de dança projetados por satélite,
transmissões simultâneas periódicas de concertos de rock nas grandes metrópoles e
um estilo de vida da juventude pós-moderna intensamente comercializado.
(OSUMARE, 2007, loc. 94)62.

A autora fala também das mídias sociais em sua pesquisa, cuja utilização, como
vimos no segundo capítulo, aumentou muitos nos últimos anos, principalmente após do
isolamento social no começo da pandemia de Covid-19. É possível compreender em seu texto
a conexão direta da difusão da cultura hip hop com os avanços tecnológicos da comunicação,
dos quais as mídias sociais fazem parte. Com esses avanços, a própria cultura hip hop vai se
remodelando, de modo que as mídias sociais passam também a ser incorporadas na
comunicação e sociabilidade de seus agentes-praticantes, tal como ocorre com a Groove
Party.
Juntamente com a cultura hip hop, como também falamos no segundo capítulo desta
dissertação, vêm as danças urbanas, pois estas estão diretamente conectadas e, no Brasil, são

61
Para uma leitura crítica desse contexto, conferir Silveira (2021).
62
Tradução minha do original: “A concomitant global pop culture, transmitted by the communication revolution,
is based in satellite-projected hip hop music and dance videos, periodics simulcasts of rock concerts through the
major metropolises and an intensely marketed post modern youth lifestyle.”
77

práticas de dança intensamente atravessadas pelo movimento Hip Hop. O estilo de vida dessa
juventude pós-moderna foi cada vez mais se conectando às mídias sociais63, o que deu a elas
grande importância na criação e nos registros de uma memória da juventude que vivencia
atualmente as danças urbanas. É por isso que podemos observar que sempre ouve uma
preocupação com a estética e a comunicação destas, pois a sociabilidade acaba por também
acontecer no ambiente virtual.
É nas mídias sociais que se encontram os principais registros fotográficos e
audiovisuais da festa e a da socialização dessa juventude (Figura 5).

Figura 5. Edição do dia 5 de junho de 2015, repostada em 2020 com a #TBT, sigla utilizada na internet para
Throwback Thursday, que literalmente significa “quinta-feira de retorno”, é uma hashtag utilizada nas mídias
sociais para postar fotos antigas e lembrar de momentos marcantes.

Fonte: https://www.instagram.com/p/CCuYslgJSIg/ acesso em: 20 de Jan. 2023.

Foi através do Orkut, anteriormente, e, mais atualmente, é por meio de seus perfis no
Facebook e Instagram, bem como pela circulação de podcasts pelo Spotify e YouTube, que a
Groove Party fortalece e amplia um diálogo de continuidade da produção de mundos que
acontece na festa, afinal as mídias sociais estão intrinsicamente ligadas ao capitalismo e suas
criações de desejos e nós precisamos chamar nosso público para a festa. Não seria através da
criação de uma identificação que conseguiríamos chamar mais a atenção de nossos agentes-
praticantes? Então uma representação que criasse essa identificação precisou ser
desenvolvida.
Uma vez que compreendemos a ideologia do quilombo (NASCIMENTO, B., 1985) e
sua importância na construção não só de uma identidade negra brasileira, mas também de uma

63
Para saber mais sobre a relação da juventude com as mídias sociais e se ter uma noção do número atual de
jovens utilizando estas, conferir NIC (2020).
78

memória coletiva (NASCIMENTO, A., 2002), vamos também pensar em como este é
representado,

Como antes tinha servido de manifestação reativa ao colonialismo de fato, em 70 o


quilombo volta-se como código que reage ao colonialismo cultural, reafirma a
herança africana e busca um modelo brasileiro capaz de reforçar a identidade étnica.
Toda literatura e oralidade histórica sobre quilombos impulsionaram esse
movimento, que tinha como finalidade a revisão de conceitos históricos e
estereotipados. (NASCIMENTO, B., 1985, p. 47)

A estereotipagem apontada pela autora, ocorre como produto de uma relação de


poder com a hegemonia branca que não é apenas econômica e política, mas também cultural.
“A estereotipagem tende a acontecer onde existem enormes desigualdades de poder” (HALL,
2016 p. 192), além de implantar “uma estratégia de ‘cisão’, que divide o normal e aceitável do
anormal e inaceitável. Em seguida, o estereótipo exclui ou expele tudo o que não cabe, o que é
diferente” (ibdem, p. 191). Essa hegemonia, descrita por Hall (ibdem, p. 193) como “uma
forma de poder baseada na liderança de um grupo em muitos campos de atividade de uma só
vez, para que sua ascendência obrigue o consentimento generalizado e pareça natural e
inevitável”, é o que cria as tais representações excludentes e anacrônicas; essa que Beatriz
Nascimento (1985) também convoca a enfrentar pelo aquilombamento.
Entretanto, o próprio Hall (2016) descreve algumas estratégias utilizadas para
ressignificar as representações estereotipadas da hegemonia, de alguma forma positivando
pontos apontados como negativos, como o fetichismo:

O fetichismo [...] envolve rejeição, estratégia por meio da qual um poderoso


fascínio, ou desejo, é satisfeito e, ao mesmo tempo, negado. No entanto, é também a
forma pela qual aquilo que é considerado tabu consegue encontrar uma forma
deslocada de representação. (HALL, 2016, p. 207)

As estratégias utilizadas em nossas mídias sociais para ressignificar a estereotipagem


descrita por Hall, é bem semelhante à descrita pelo próprio autor. No artigo O poder de girar,
cair sem se machucar, produzir ilusões, andar como um pato ou como uma modelo – A cena
ballroom e o voguing como estratégia coreográfica de empoderamento, que escrevi junto
com Bruno Reis e Carolina Nóbrega e foi publicado em 2022, falamos sobre como estas
estratégias operam dentro da cultura ballroom juntamente com a dança voguing, e aqui
percebemos como este mesmo movimento pode ser reproduzido não apenas na festa, mas
também através da representação desta nas mídias sociais (Figura 6).
79

Em seu livro Cultura e Representação, Stuart Hall (2016) sugere três caminhos
possíveis para desmontar os regimes de imagem e performance que modulam o
poder através de programas de estereotipia. O primeiro se apoia na inversão de
estereótipos, representando figuras reconhecidas como subalternizadas
desempenhando papéis associados às figuras do poder. O segundo transforma
imagens negativas em positivas, reconhecendo elementos construídos como
inferiores pela cultura dominante e reapresentando-os como potentes, como no caso
da campanha Black Is Beautiful. O terceiro e último envolve revelar o mecanismo de
estereotipia nele mesmo, reproduzindo os papéis culturalmente induzidos das figuras
subalternizadas de forma explícita, exagerada e debochada, fazendo com que o
absurdo das próprias marcações sociais se evidencie (REIS; NÓBREGA;
MONNERAT, 2022, p. 45).

Figura 6. Edição do dia 17 de jan de 2016, repostada em 2017. Esta foi a segunda de 3 postagens que sublinha a
“careta” estereotipada que pessoas negras comumente fazem ao curtir uma música boa, e que também ironiza a
tentativa de fazer poses para supostamente sair bem em uma foto, atitude popularmente chamada de “fazer
carão”.

Fonte: https://www.instagram.com/p/Bar_ppLlAHR/ acesso em: 20 de Jan. 2023.

Já falamos sobre como o poder político e econômico exercido pela hegemonia


branca, cisgenera e heteronormativa produz a situação de precariedade para populações
marginalizadas, e agora vemos o tamanho da importância da representação cultural na
manutenção deste poder, pois

Muitas vezes, pensamos no poder em termos de restrição ou coerção física direta,


contudo, também falamos, por exemplo, no poder da representação, poder de
marcar, atribuir e classificar, do poder simbólico, do poder da expulsão ritualizada
(HALL, 2016, p. 193).
80

De fato, as mídias sociais podem ser vistas como ferramentas importantes para a
manutenção desse poder por como estas são também ferramentas do capitalismo. Entretanto,
assim como Osumare (2007) mostra como a lógica capitalista pode trabalhar de maneira
diferente quando a cultura hip hop se associa a ela, levando esses agentes-praticantes em
aliança em busca de uma ascensão social, mostramos também aqui que as mídias sociais se
tornam ferramentas importantíssimas de representação e construção imagética dessas
populações.
Voltando ao pensamento de Abdias Nascimento (2002) sobre a importância da
preservação de uma memória identitária e cultural negra, sabemos que o performativo que se
esforça em apagar nossas histórias ou subalternizar nossa população não acontece única e
exclusivamente na linguística, na forma de expressões performativas. O racismo estrutural
muitas vezes executa esses performativos em forma de políticas públicas e violências do
Estado, que de fato executam muitas vidas negras tratando-as como menos importantes como
foi descrito anteriormente neste texto e melhor aprofundado nos estudos de Beatriz
Nascimento (1985) e Abdias Nascimento (2002). Ao observarmos a produção das mídias
sociais da Groove Party como uma ferramenta que produz outras memórias para a cultura hip
hop do Rio de Janeiro, diferente das imagens negativa que a própria mídia hegemônica por
vezes tenta colar através de estereótipos dados a essa cultura (MOURA, 2020), entendemos
também a importância de essas histórias serem contadas em primeira pessoa.
Quando escrevemos em primeira pessoa, ora no singular, ora no plural, demarcamos
o local social de onde falamos, damos cor e corpo ao texto que conta nossas próprias histórias
podendo então compartilhar e gerar novos arquivos para essa memória que sempre foi e
sempre será coletiva. O próprio documentário Nos tempos da São Bento (BOTELHO, 2010) é
um movimento que busca registrar parte dessa memória coletiva da cultura hip hop, mas com
um recorte na cidade de São Paulo. Como o próprio Paulo Brown, narrador do documentário
diz, “Contar uma história, torna-se uma função social”,

Sendo assim, demando uma epistemologia que inclua o pessoal e o subjetivo como
parte do discurso acadêmico, pois todas/os nós falamos de um tempo e lugar
específicos, de uma história e uma realidade específicas – não há discursos neutros.
Quando acadêmicas/os brancas/os afirmam ter um discurso neutro e objetivo, não
estão reconhecendo o fato de que elas e eles também escrevem de um lugar
específico que, naturalmente, não é neutro nem objetivo ou universal, mas
dominante. É um lugar de poder. Desse modo, se esses ensaios parecem
preocupados em narrar as emoções e a subjetividade como parte do discurso teórico,
vale lembrar que a teoria está sempre posicionada em algum lugar e é sempre escrita
por alguém. Meus escritos podem ser incorporados de emoção e de subjetividade,
pois, contrariando o academicismo tradicional, as/os intelectuais negras/os se
nomeiam, bem como seus locais de fala e de escrita, criando um novo discurso com
81

uma nova linguagem. Eu, como mulher negra, escrevo com palavras que descrevem
minha realidade, não com palavras que descrevam a realidade de um erudito//
branco, pois escrevemos de lugares diferentes. Escrevo da periferia, não do centro.
Este é também o lugar de onde eu estou teorizando, pois coloco meu discurso dentro
da minha própria realidade (KILOMBA, 2019, p. 58 e 59).

A escrevivência é, para nós, a melhor ferramenta metodológica de escrita. Não


apenas para demarcar nosso local social, mas também para performar nossas memórias
vividas em escrita.

3.3 Escrevivendo a Groove Party, onde todas as subjetividades são acolhidas

Hoje é dia de Groove, bebê! Dia de escolher nosso melhor lookinho64 para chegar
chegando na pista e ficar bem nas fotos oficias da festa, mas que também não pode atrapalhar
a dançar, né? Afinal, a Groove Party é aquela festa que a gente vai e dança de verdade. É mão
no chão e bunda pro alto! É quicar de perna aberta ou fazer salto mortal. E se der mole na
escolha do figurino, corre o risco de voltar com o joelho ralado para casa ou faltando parte da
roupa (mesmo que muitas vezes isso tenha acontecido mesmo tomando esse cuidado).
Eu me lembro do amigo Josh Antônio, um dos maiores nomes do house dance aqui
no Rio de Janeiro atualmente, lá nos primeiros anos de festa, me dizendo: “ih, hoje eu só
quero dançar, vou de moletom e joelheira.” Isso basicamente significava que ele iria na festa
na intenção de treinar. Na Groove Party sempre teve essa vantagem, a gente realmente se
sente à vontade: à vontade para se vestir como se fosse o tapete vermelho de algum evento
cinematográfico; à vontade para quase não se vestir e deixar muita pele de fora, tampando só
o suficiente para não ser considerado atentado ao pudor (ou não); à vontade para se vestir
priorizando o conforto, como se estivéssemos indo em algum treino aberto ali nos pilotis do
Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,65 à vontade para mandar qualquer norma de
gênero relativa a roupa ou comportamento para bem longe dali; à vontade para dançar sem se
preocupar se o que estava saindo era bonito ou não; à vontade para performar o que a gente
estivesse a fim de performar.

64
“Lookinho” é uma gíria que usa a expressão em inglês look, que nesse caso se refere à roupa, e a coloca no
diminutivo apenas para se referir à escolha do visual ou figurino ideal para a ocasião.
65
Assim como São Paulo teve a estação de metrô São Bento como ponto chave para o nascimento da cultura hip
hop, no Rio de Janeiro, diversos equipamentos públicos são ponto de encontro de treinos abertos como as áreas
externas dos museus no centro, o prédio da Fundição Progresso ou os pilotis do prédio da Coca-Cola, no bairro
de Botafogo, além de muitos outros. No caso do MAM, a área externa do museu atualmente serve como um dos
principais pontos de encontro de treinos livres, aulas que começaram a ser lecionadas ao ar livre por conta do
período pandêmico e palco de eventos de cultura urbana como Arte Core.
82

Esse grupo de pessoas que forma a comunidade das danças urbanas e que
inicialmente pode parecer pequeno ou pouco significativo na realidade é composto de
diversos grupos ou perfis sociais. Aqueles que na nossa adolescência no começo da década de
2000 chamávamos popularmente de “tribos”, lembra? Que se formavam por semelhanças
sociais, físicas, orientação sexual mas principalmente se aproximavam pelo gosto musical.
Afinal era esse último que iria definir onde seria o rolé. É, mas a Groove sempre teve esse
diferencial né? Lembra da história de que cada movimento musical trazia uma dança? Pois é...
eram muitas músicas diferentes, muitas danças diferentes, então muitas dessas “tribos”
diferentes acabavam se juntando ali.
Era na pista de dança que esses grupos tão diferentes entre si num primeiro olhar,
mas com histórias sociais tão semelhantes se uniam como parte de uma mesma comunidade
movida pela vontade de dançar, compartilhando suas subjetividades e estas diversas
identidades na pista de dança. Mas é claro que essa diversidade toda, não ironicamente, só é
possível num espaço ou acontecimento de identidade negra, ainda que pessoas brancas
possam participar. Só assim a ideia de quilombo pode ser colocada em prática num formato
de festa, ou você consegue imaginar uma festa no Leblon, lá na ponta da zona sul, ou em
qualquer um desses bairros mais ricos, embranquecidos e caros da cidade, em que essa
diversidade de corpos pudesse ser de fato acolhida?
Cada um desses grupos que frequentam a Groove Party, tem suas próprias
peculiaridades e identidade. Sem inventar nenhuma regra, pois nem sempre é tão simples
assim, é quase como se pudéssemos identificar qual prática de dança é a especialidade
daquela pessoa só pela sua roupa ou postura. Isso, para quem não faz parte desse universo,
pode até soar como alguma espécie de estereotipagem ou até mesmo como algo caricato. Mas
é apenas a cultura – e aqui incluímos conjunto de valores, roupas, comportamentos e tudo
mais que puder vir no pacote “cultura” – de cada dança sendo expressada por seus agentes-
praticantes, suas/nossas subjetividades, identidades, nossa dança e nosso flavor66 sendo
simplesmente performados por nós.
É muito frequente que nós, dançarinas/os/es de danças urbanas, nos identifiquemos
com uma prática de dança não só pelas técnicas corporais que compõem cada uma (diria até
que algumas vezes esse pode ser um dos últimos critérios de escolha) mas também pelo seu
contexto social ou as identidades que acabam sendo carregadas com essas danças,
características que acabam ficando um pouco misturadas quando as observamos. Como as

66
Flavor é uma palavra utilizada, principalmente dentro do breaking, para falar da individualidade da/o/e
dançarina/o/e dançando, o que há de especial e único na pessoa.
83

danças queers (aqui falamos de waacking e voguing, principalmente) que conversam com
identidades de gênero mais fluidas e sexualidades mais diversas, como na comunidade
LGBTQIAP+. Como algumas danças com gestuais lidos ou marcados como mais masculinos
ou femininos, como no dancehall onde existem steps que na Jamaica, seu país de origem, são
considerados como sendo “de mulher” ou “de homem”. Como as danças mais explosivas ou
com maior demonstração de virtuosismo através da força, como no breaking, no próprio hip
hop dance, no locking ou no krumping. Como algumas danças com gestos que demonstram
maior leveza, como o house dance, ou maior controle corporal, como popping e outras danças
conectadas por sua origem na Califórnia e estética de movimentos “sobrehumanos”, como
waving67, animation68 ou tutting69. Como danças com gestuais com uma sensualidade mais
explícita, como fazem as dancehall queens70, ou mesmo alguns movimentos dentro do hip
hop dance quando este se apropria de outras danças como o twerking71; ou até mesmo danças
com essa sensualidade mais sutil, como por vezes a elegância do waacking pode ser lida, ou
algumas categorias de voguing como o vogue femme, que performa gestuais bem marcados
como femininos, mas não necessariamente executado por mulheres.
Logo nos primeiros anos vivenciando a cultura hip hop e as danças urbanas, após ter
iniciado minha vida como dançarina com o hip hop dance, me identifiquei também com o
waacking, o que ao longo dos anos também fez parte da construção de minhas subjetividade e
autoestima como dançarina, e também como mulher bissexual. Mas isso é um assunto que a
gente vai desenvolver daqui a pouco.
O waacking, ou whacking, é uma dança queer que nasceu entre as décadas de 1960 e
197072, ligada diretamente a era da disco music. Como toda dança urbana, tem seu gestual
muito ligado a uma ideia de performar uma autoestima boa – até porque no racha ou na
batalha, não rola demonstrar insegurança, né? Se não mostrar que é melhor que a/o/e
oponente, não tem como ganhar; como toda dança queer, a afirmação identitária e orgulhosa
do que se é também é muito forte. O waacking, com sua movimentação forte e rápida de
braços, chegou pra chegar aqui no Brasil. Mas o interessante foi que esta dança não chegou
sozinha. Não por acaso, o voguing, muito antes da própria cultura ballroom73, da qual faz

67
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=O1OHRxPJ0Oo. Acesso em: 20 Jan. 2023.
68
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=6jDVTJeF1hE. Acesso em: 20 Jan. 2023.
69
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xCAZlLZ6QT8. Acesso em: 20 Jan. 2023.
70
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=w9cEjn8l5FQ. Acesso em: 20 Jan. 2023.
71
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QryoOF5jEbc. Acesso em: 20 Jan. 2023.
72
Paula Dri, precursora do gênero no Recife (PE), explora a história desta dança no vídeo Waacking, na série
Momento da Dança. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=e8_Pd4kQPhI. Acesso em: 20 Jan.
2023.
73
Ver documentário Paris is Burning, de Jennie Livingston (1990).
84

parte, chegou junto e misturado (literalmente, não é gíria aqui não) com o waacking,
acolhendo as corpas que danças com gestuais mais masculinizados como o hip hop dance e o
breaking não conseguiram. Conforme as técnicas foram se diferenciando, algumas pessoas
foram se identificando mais com uma ou outra e eu, mesmo vendo a beleza da cultura
ballroom começar a se estabelecer no Brasil, acabei me identificando corporalmente mais
com o waacking.
Na Groove Party, a galera do dancehall chega caprichando nas cores e na pele de
fora, com roupas bem leves para não atrapalhar o alogamento e valorizar aquela sacudida que
a gente dá quando rebola a bunda com força. A galera mais old school capricha na elegância,
aquele visual saído direto dos vídeos do programa Soul Train ou das gravações dos bailes
charme do Rio de Janeiro74. Tudo com aquela cara de década de 1980, que nos passa a certeza
de que na hora em que o swing do baixo pesar no grave das caixas de sub, ao som de Papa
Was a Rolling Stone, de The Temptations, a braçaria do locking e do waacking vai dominar a
pista. Tem a galera que gosta de umas roupas mais largas ou soltinhas também, sem perder a
elegância e caprichando nos acessórios e no pisante75, que dá um movimento legal quando a
gente dança hip hop ou house dance. É parecido mas é diferente! Normalmente a gente vai
notar que a galera mais do house usa tecidos mais leves enquanto os “hip hopeiros” usam
tecidos mais pesados, como moletons mais grossos ou jeans.
Agora, se chegou no esquema com uma calça não muito larga, mas também sem ser
colada, uma camiseta básica, mas com uma cor ou estampa chamativa, um boné, boina,
turbante ou qualquer coisa na cabeça, e um cordãozão pendurado no pescoço, pode ter certeza
que vai invadir a roda na hora dos breakbeats! É a galera do breaking que chega para “limpar
o chão” para os debouts76 – “limpar o chão” é uma piada frequentemente usada para provocar
uma discórdia saudável (ou não) entre quem “dança no chão” e quem “dança em pé”, que
dentro desse universo coloca o breaking do lado do chão e todas as outras dança do lado em
pé. Mas quem também não tem medo de se jogar no chão com seus spins e deeps é a galera da
cultura ballroom, entregando tudo sem prometer nada, dançando todas as categorias de
voguing na pista. Um povo que chega literalmente brilhando – e ouso dizer que normalmente
são as pessoas mais bem vestidas da festa. É a galera que não importa o tamanho do salto no
pé, vai ao chão e volta com a elegância e sensualidade precisamente encaixadas na música.

74
Para saber mais sobre origem e história dos bailes charme no Rio de Janeiro, assistir a série Charme Anos 80,
do Acervo Cultne. Disponível em: https://cultne.tv/musica/charme/197/charme-anos-80. Acesso em: 20 Jan.
2023.
75
Gíria para se referir ao tênis.
76
Do francês, a palavra debout significa “em pé”. Por aqui popularizamos o uso por conta do evento de batalhas,
produzido pelo dançarino Bruce Ykanji, que foca em outras danças urbanas além do breaking.
85

E o que acontece quando o extremo das queers encontra o arquétipo caricato do bboy
machão na roda? (Figura 7)

Figura 7. Groove Party, por Suryan Cury, edição do dia 14 de novembro de 2013. Esta foto foi tirada num
momento de provocação entre es dançarines num racha entre as danças breaking e voguing, com o bboy Mario
Perdomo à esquerda, e Thiago Basseto, artista que interpreta a Drag Melanie Bounce à direita, ambos no centro
da roda.

Fonte: https://www.facebook.com/photo/?fbid=763620943651983&set=a.763614973652580 acesso em 20 de


Jan. 2023.

Em qualquer outro ambiente eu não sei, pode até ser que num contexto envolvendo
música alta e bebida alcóolica, brigas ou violências físicas pudessem acontecer. Mas não
numa festa como a Groove Party, aqui a gente leva a sério a ideia de que todes são bem
vindes. Esse encontro, que se repete quase que em todas as edições desde os primórdios da
festa, resultou em um dos rachas mais épicos que já rolaram na nossa pista em 2013! Breaking
versus Voguing! Uma batalha linda, repleta de movimentos de dificuldade e gritos que davam
aquela força para quem quer que fosse que estivesse dançando no meio da roda, com
explosões de confetes brilhosos (isso aqui foi ideia da produção) que completavam a magia da
cena que presenciávamos daqueles corpos dançando. Um dos momentos mais confusos e mais
lindos que eu já vi em uma Groove Party.
86

Figura 8. Groove Party, por Suryan Cury, edição do dia 14 de novembro de 2013. Thiago Basseto está
finalizando um dip no centro da roda, enquanto confetes brilhosos explodiam no ar e as pessoas ao redor
gritavam com os movimentos de dificuldade executados

Fonte: https://www.facebook.com/photo/?fbid=763621116985299&set=a.763614973652580 acesso em 20 de


Jan. 2023.

De um lado Thiago Basseto ou Bassetuda, quem atualmente tem um trabalho ótimo


com a drag que também é DJ Melanie Bounce, trazia a torcida queer consigo. Do outro, o
bboy Mario Perdomo, atualmente professor de dança especializado em técnicas de
movimentos de chão, carregou para roda a galera do breaking. Não deu para entender muito
bem como esse racha começou. Em rodas de festa é meio confuso mesmo como isso acontece.
Às vezes é uma música que chama uma galera específica, às vezes é uma pessoa que começa
a dançar muito sozinha e uma roda se forma ao redor dela. Também pode acontecer de uma
pessoa convidar outra para dançar junto porque quer vê-la dançar ou até mesmo desafiá-la
para o famigerado racha. Este último, quando acontece numa festa, dificilmente tem um início
bem definido, mas definitivamente tem um fim: quando fecha a roda! Se uma das partes fizer
uma entrada que seja avaliada pelo público como impressionante, nem adianta tentar entrar
depois. É nessa hora que a gente fala “fulaninhe fechou a roda!”. Tem nem graça entrar
depois, as pessoas invadem o espaço para vibrar com quem estava dançando e aquele desenho
se desfaz. Pode até ser que outra roda se forme novamente por ali, mas tem um tempo que
precisa ser respeitado.
Eles dançavam, por vezes um de cada vez no meio da roda e em alguns momentos
um invadindo a entrada do outro. Cada power move que saía, de qualquer lado que fosse,
arrancavam gritos cada vez mais altos de quem estava ao redor. Era lindo! Quem estava de
87

fora, não conseguia ficar exatamente parado olhando. A gente pulava, gritava, dançava junto,
torcia para um, trocava de torcida... tudo ao mesmo tempo! Eu, que adoro uma roda e uma
bagunça dessa, parei ali e o tempo parou comigo. Talvez tudo isso tenha durado cinco
minutos. Talvez tenha durado quarenta. Não deu para saber. Eu sei que em algum momento,
antes da primeira explosão de confetes, foi como se a cena toda passasse em câmera lenta na
minha frente.
Tudo aquilo se tornava ainda mais lindo para mim por conhecer essas pessoas.
Bassetuda era da galera que já frequentava a Groove mesmo antes de ter idade para isso e que
a gente fazia vista grossa por ser evento pequeno e saber da importância que a festa tinha. Eu
acompanhei um pouco de seu crescimento ou pelo menos pedacinho disso dentro da dança.
Mário foi meu aluno durante um período em que tive uma turma regular numa escola da Zona
Sul, no bairro de Botafogo, que possuía um projeto com várias aulas de diferentes
modalidades de danças urbanas. Ele era um dos bolsistas da escola e o projeto em questão era
o Projeto Urbanus, se não me engano. Esse projeto foi de extrema importância para sua
vivência na cena do breaking carioca e sua formação como professor de dança. Isso sem falar
das pessoas no entorno. A harmonia e a euforia daquele racha me marcaram muito e os
sorrisos que aconteciam no meio das trocas de provocações também. Esquenta meu coração
só de lembrar da sensação daquele dia, daquele racha... e anotei na minha memória, como
mais um daqueles momentos em que todo esforço e sacrifício, para a realização daquela festa,
valiam a pena. Eu sorri (depois de gritar e pular junto também) e segui o baile.
88

4 ANTES E DEPOIS DA GROOVE PARTY: (INTER)SUBJETIVIDADES


E DANÇAS URBANAS REELABORADAS

E chegamos à pergunta onde tudo isso começou: como as danças urbanas e as


(inter)subjetividades racializadas e dissidentes de seus agentes-praticantes são reelaboradas a
partir da Groove Party? Falar, escrever e pensar teoricamente sobre uma festa com mais de
dez anos de história, repleta de identidades e subjetividades ali representadas – de raça, de
gênero e de sexualidade, principalmente – e tentar entender como estas elaborações
acontecem, se construindo e reconstruindo a partir de interações em sociabilidade, de repente
pareceu um processo muito longo e uma pesquisa sem fim. Assim, novas escolhas tiveram
que ser feitas e é neste capítulo que falaremos sobre elas.
Ao longo desta intensa viagem autorreflexiva, fomos percebendo que precisávamos
abrir mão de alguns aprofundamentos para responder à nossa pergunta. Ainda que tenhamos
levantado muitos assuntos já bastante estudados em outras bibliografias, algumas destas
acabaram não entrando nesta pesquisa. Tivemos que entender nossos objetivos e desejos para
traçar nossos caminhos, uma vez que a pergunta e a metodologia já estavam decididas, para
analisar diversas ações ao longo de tantos anos. Uma delas foi entender que, por mais que
nosso principal objeto de estudo seja a festa, procuramos um caminho em nossa
fundamentação teórica que a olhasse não apenas como festa, mas mais como uma assembleia
de corpos dissidentes, de diferentes performatividades subalternizadas, que constroem uma
aliança política, como as descritas por Butler (2018), só que em celebração.
Ainda pensando sobre a essência dessa celebração que une esses corpos em aliança
política e com protagonismo negro, precisamos dar o merecido destaque a estética africanista
da cultura hip hop (OSUMARE, 2007) e, por consequência, das danças urbanas, pois estas se
entrecruzam à cultura tanto por sua história quanto por suas práticas. Desse modo, chegar ao
quilombo sendo performado enquanto ideia e sua importância na construção identitária e de
memória, como apresentado pelos autores Beatriz Nascimento (1985) e Abdias Nascimento
(2002), foi um caminho natural para a festa e construção desta pesquisa. Agora buscamos
entender a maneira como essa aliança política em celebração, que aquilomba tantos corpos
(Figura 9) dissidentes dentro da cultura hip hop, influencia a elaboração das subjetividades
destes.
89

Figura 9. Postagem de um dos cartazes eletrônicos de divulgação da 53ª edição da festa, no espaço La Paz Club,
localizado no bairro da Lapa, região do Centro do Rio de Janeiro. Na imagem vemos um bboy PcD com um dos
membros inferiores amputado, executando um power move no centro de uma roda de dança.

Fonte: https://www.instagram.com/p/BV3RJAsl4j2/, acesso em: 27 Jan. 2023.

Para falar sobre subjetividade, uma das questões que abandonamos ao longo do
caminho foi de falar mais profundamente sobre identidade, mesmo nos reconhecendo como
um movimento identitário e a citando tantas vezes. Afinal, como questiona Stuart Hall, quem
precisa de identidade?

Estamos observando, nos últimos anos, uma verdadeira explosão discursiva em


torno do conceito de “identidade”. O conceito tem sido submetido, ao mesmo
tempo, a uma severa crítica. Como se pode explicar esse paradoxal fenômeno? Onde
nos situamos relativamente ao conceito de “identidade”? Está-se efetuando uma
completa desconstrução das perspectivas identitárias em uma variedade de áreas
disciplinares, todas as quais, de uma forma ou outra, criticam a ideia de uma
identidade integral, originária e unificada. Na filosofia tem-se feito, por exemplo, a
crítica do sujeito autossustentável que está no centro da metafísica ocidental pós-
cartesiana. No discurso da crítica feminista e da crítica cultural influenciadas pela
psicanálise tem-se destacado os processos inconscientes de formação da
subjetividade, colocando-se em questão, assim, as concepções racionalistas de
sujeito. As perspectivas que teorizam o pós-modernismo têm celebrado, por sua vez,
a existência de um “eu” inevitavelmente performativo. Tem-se delineado, em suma,
no contexto da crítica antiessencialista das concepções étnicas, raciais e nacionais da
identidade cultural e da “política da localização”, algumas concepções teóricas mais
imaginativas e radicais sobre a questão da subjetividade e da identidade. Onde está,
pois, a necessidade de mais uma discussão sobre a “identidade”? Quem precisa dela?
(HALL, 2019, p. 103).
90

Para responder a essa pergunta, o autor entende que existem dois caminhos. No
primeiro, entende-se que determinados conceitos “não foram dialeticamente superados e que
não existem outros conceitos, inteiramente diferentes, que possam substituí-los” (HALL,
2019, p. 104), portanto não há como rejeitá-los totalmente, mesmo que pareçam
“inadequados”. No segundo caminho, precisamos observar de “onde e em relação a qual
conjunto de problemas emerge a irredutibilidade do conceito identidade” (idem), de modo
que, como o próprio autor explica, precisamos pensar no agenciamento político do conceito.
Quando iniciei minha trajetória nessa pesquisa, ainda era nebuloso para mim o
entendimento de tais definições, pois ouvia o termo “identidade” sendo comumente usado, de
maneira informal, entre agentes-praticantes de danças urbanas (inclusive por mim mesma) se
referindo, na maioria das vezes, a este “eu performativo” do qual o autor fala. Foi com a
compreensão de estudos sobre a “formação da subjetividade” que conseguimos então definir a
formulação da pergunta de pesquisa que abriu esta seção. É um caminho que também pode ter
sido natural com a escolha da linha de pesquisa Performances e Performatividades da Dança,
mas que fui perceber apenas após cursar o primeiro semestre de disciplinas do Programa.
Mesmo sem nos aprofundarmos sobre as questões da identidade, compreendemos no
capítulo anterior que movimentos identitários, principalmente de grupos sociais
subalternizados, possuem grande importância política, sobretudo na elaboração da
subjetividade dos sujeitos que compõem esses grupos. Portanto, por mais que a palavra
“identidade” apareça muitas vezes no texto e tenha forte relação com os processos coloniais,
de separações de gênero, sexualidade e racialização – principalmente quando pensamos na
população negra brasileira – entendemos que faz mais sentido falar sobre a performatividade
dessas subjetividades, porque a performatividade, como vimos, incorpora uma repetição que
se afirma e se altera, enquanto as identidades políticas que exaltamos na Groove Party –
população negra, periférica, homens, mulheres e pessoas da comunidade LGBTQIAP+ – se
referem à localização política dos sujeitos que agenciam a cultura hip hop, que podemos ler
em algum momento como fixas, se pensarmos nelas como políticas de localização. Foi assim
que chegamos ao conceito de empoderamento, muito bem explicado por Joice Berth (2018),
que nos ajuda a compreender sobre o porquê ou como esses movimentos identitários
agenciam as elaborações e reelaborações intersubjetivas de seus agentes-praticantes.
“Empoderar” se trata de um neologismo que significa literalmente “dar poder a”.
Mas não se trata de qualquer poder, segundo a autora:
91

O conceito de poder tem sido interpretado de diversas formas, mas na definição de


Hannah Arendt que pensa em poder a partir da ação coletiva, temos a ideia que
norteia o significado social e subjetivo de poder e que se aplica na compreensão do
que falamos quando assumimos a necessidade de empoderar grupos minoritários
(BERTH, 2018, p. 12).

Sobre este conceito, em um estudo anterior (REIS; NÓBREGA; MONNERAT,


2022), onde fizemos um recorte com a cena ballroom e a dança voguing, entendemos que
algumas questões poderiam ser levantadas em torno do termo empoderamento: “não
ignoramos que este conceito está bastante desgastado a partir de apropriações individualistas
que servem ao mercado e ao mundo empresarial. Entretanto, apostamos na sua acepção como
modo contra-hegemônico de criação de coletividades” (REIS; NÓBREGA; MONNERAT,
2022, p. 38). Foi desse modo que a compreensão deste termo me ajudou a identificar este
processo na minha própria vivência na cultura hip hop, nas danças urbanas e na Groove Party.
Era notório que essas vivências me modificaram subjetivamente, me permitindo criar
autoestima como mulher negra e bissexual de pele clara, cisgênera (ainda que não performe
tão bem o feminino estereotipado) e periférica, o que até a adolescência – antes de me tornar
agente da cultura hip hop – parecia impossível. A escrevivência deste processo na produção
acadêmica de conhecimento acaba se tornando também um complemento na construção desta
subjetividade e autoestima que, espero, ainda permanecerão constantes.
Assim, ao desenvolvermos este capítulo amarrando todos esses anos de vivência em
uma simples dissertação, fazemos diferente. Não tivemos nesta seção, lá no seu início, uma
música como epílogo nem separaremos um momento final do capítulo para escreviver a festa.
Acredito que a partir do começo deste capítulo, os limites entre a escrita performativa da
escrevivência e o texto com características que seguem uma estrutura, digamos assim, mais
academicista já foram borrados, de modo que sua estrutura não se repete como nos dois
capítulos anteriores.
A escrevivência nos permite um olhar afetivo de dentro, com todas as suas vantagens
e desvantagens, e assim escrevemos sobre a cultura que vivemos. Sentimos seu poder
revolucionário muito antes deste alcançar a mídia e a população de fora deste circuito, ainda
que esse “antes” não esteja se referindo a um tempo cronológico e sim subjetivo. Estamos
estudando, pesquisando e celebrando nossas vidas e culturas, mas também seguimos armando
nossos sucessores:

Os Racionais produziram a mais radicalmente engajada obra da história da música


popular brasileira – incluindo aqui a MPB dos anos 1960 –, o que, no limite, altera o
próprio significado do termo “representação” artística. Como afirmou Mano Brown
92

em 1998, em entrevista à revista ShowBizz: “Não sou artista. Artista faz arte, eu faço
arma. Sou terrorista”. Em Sobrevivendo no inferno, a ética atravessa a dimensão
estética de tal maneira que, em seus momentos de maior contundência, o valor da
obra deve ser calculado por sua capacidade de, literalmente, salvar vidas. Esse é o
grau de radicalidade dessa produção (OLIVEIRA, 2018, p. 32).

É muito importante, no momento político que vivemos com o bolsonarismo, sinalizar


a utilização da licença poética aqui juntamente com a fala de Mano Brown como referência.
Ao nos referirmos a essa “arma” e a um “terrorismo”, estamos falando do terrorismo poético,
tema já discutido no campo da arte política, que trata dos efeitos de atos artísticos como
conta-hegemônicos:

Uma primorosa sedução praticada não apenas em busca da satisfação mútua, mas
também como um ato consciente de uma vida deliberadamente bela — talvez isso
seja o TP [Terrorismo Poético] em seu alto grau. Os Terroristas-Poéticos
comportam-se como um trapaceiro totalmente confiante cujo objetivo não é
dinheiro, mas transformação. Não faça TP Para outros artistas, faça-o para aquelas
pessoas que não perceberão (pelo menos não imediatamente) que aquilo que você
fez é arte. Evite categorias artísticas reconhecíveis, evite politicagem, não
argumente, não seja sentimental. Seja brutal, assuma riscos, vandalize apenas o que
deve ser destruído, faça algo de que as crianças se lembrarão por toda a vida — mas
não seja espontâneo a menos que a musa do TP tenha se apossado de você (BEY,
2003, p. 7).

Falamos, logo no início dessa dissertação, sobre as pretensões grandiosas que temos
ao realizá-la. A análise que Oliveira (2018) faz do álbum Sobrevivendo no inferno dos
Racionais MCs – ainda que eu acredite que essa percepção não devesse se limitar apenas a
esse álbum, mas sim a toda obra do grupo – é uma comparação que cabe em nosso desejo de
fazer a cultura hip hop renascer neste texto. Assim, também construímos e deixamos um
legado para abrir caminhos para outras pesquisas, para que elas possam exaltar as culturas hip
hop e das danças urbanas, podendo aprofundar discussões sobre questões que ultrapassem a
mera vontade de definir conceitos, ou eleger termos que o façam, ou apenas descrever sua
historiografia, ainda que estas últimas sejam de grande importância também.
Aqui, a gente faz festa, dança, música e texto, além de quilombo, e a universidade
pode até ter nos aquilombado nessa pesquisa de alguma forma,

Entretanto, não podemos achar que esse aquilombamento da universidade é um


processo simples ou puro. O fato da entrada preta na universidade, segundo Harney
e Moten, precisa ser feita de forma sorrateira e do roubo ser a única forma de relação
possível, já nos mostra como o aquilombamento da universidade (y outras formas de
assalto aos saberes hegemônicos) não se dá sem tensões, assimetrias, violências e
contradições (LEAL, 2020).
93

Teve muito perrengue nesse processo todo também e chegou a hora de falar sobre
eles. Nossa produção arma quem vem junto e quem vem depois. Nós percebemos quantas
forças e linguagens unimos em festa, em movimento cultural e em pesquisa. Porém, torna-se
muito difícil nossa escrita não se bagunçar um pouco quando abrimos nossas maiores
dificuldades a quem nos lê quando nos aproximamos de seu fim77.

4.1 “Quem vê close não vê corre!”78

Sem ir muito longe numa viagem, que poderia se tornar sem fim, sobre a ideia de
começo ou de origem, posso fazer um recorte ao dizer que comecei tudo isso em 2009, num
começo de poucas certezas. Uma delas era a de que eu já era completamente apaixonada pela
cultura hip hop, pelas danças urbanas, por festas – e minha vivência nessas aqui, como já foi
relatada, começou bem cedo! – e tão logo comecei a produzi-la, me apaixonei pela Groove
Party. Mas nem sempre vivemos apenas momentos lindos e mágicos com nossas paixões, não
é mesmo? A cultura hip hop, como descrito por Osumare (2007), acaba se espalhando pelo
mundo utilizando a mídia capitalista e transnacional como ferramenta. Isso traz vantagens, no
sentido de alcançar locais diversos e até mesmo poder financeiro, mas entendemos que o
capitalismo está bem longe de ser um sistema econômico sem problemas. Acreditamos que é
a cena underground79 que alimenta a continuidade deste movimento, independentemente da
linguagem artística que o fomente. É a partir deste pensamento que buscamos compreender
que, em uma sociedade capitalista e pós-moderna, a cena underground é a produção cultural
realizada de fato pela população colocada por esse mesmo sistema em situação de
precariedade descrita por Butler (2018), da qual tanto falamos.
Vamos fazer um exercício bem simples agora: imagine uma festa de música negra,
na região do Centro da cidade do Rio de Janeiro, num fim de semana qualquer com pelo
menos quatro DJs diferentes anunciados no line up. Agora, imagine que o ingresso antecipado
dessa festa, comprado pela internet em algum desses sites de ingressos online, custe R$ 60,00.
Agora, imagine uma segunda festa, com a mesma descrição simplificada, onde o ingresso
mais caro, aquele de quem chega tarde e compra na hora do evento, custa R$ 20,00. Que
77
Em vários momentos ao longo dos anos de produção de Groove Party, tive vontade de encerrar a festa. A
palavra “fim” aqui também da conta de um desejo mal resolvido de descansar com um movimento, talvez
fazendo com que a conclusão desta pesquisa também traga junto o encerramento de um ciclo com a produção da
Groove Party. Mas nada foi decidido até a conclusão do mestrado.
78
Máxima popularizada na internet, principalmente entre o público LGBTQIAP+, que faz referência a pessoas
que só mostram suas vitórias, o “close”, sem os processos que podem ser dolorosos ou sacrificantes, o “corre”.
79
Aqui usamos a palavra underground, comumente usada por agentes-praticantes de danças urbanas e de outras
linguagens artísticas na cultura hip hop, que se refere à cultura vivida na periferia de fato, sem o glamour do
capital, como contraponto ao mainstream que é tudo da cultura que chega às grandes mídias.
94

músicas você consegue imaginar tocando em cada uma dessas festas? Em quais espaços você
imagina essas festas acontecendo? São iguais? A capacidade de público é semelhante? Os
preços de itens de consumo dentro das festas são próximos? Agora, quais as pessoas que você
imagina encontrar dentro desses dois ambientes, dessas duas festas? São as mesmas? Como
elas se vestem? Elas são da mesma cor? Acreditamos que quem nos leu até aqui, esteja
imaginando dois eventos bem diferentes, não está? Então vamos seguir...
Como é possível imaginar todas essas diferenças entre essas festas, sem descrever
muitas características sobre elas, só sinalizando uma diferença no valor dos ingressos?
Quando falamos de capitalismo, necessariamente falamos de “raça” e de classe, pois a
“pobreza tem cor no Brasil. E existem dois Brasis” (CARNEIRO, 2011, p. 57). Esses dois
Brasis a que Sueli Carneiro se refere são separados por um abismo racial e social. Em seu
texto, a autora mostra diversos números estatísticos da época, que infelizmente seguem muito
atuais, que apontam para a cor predominante no Brasil precarizado, e “apesar do facto de a
raça ser por vezes entendida como nebulosa no Brasil, existem efeitos tangíveis da
discriminação racial que definem as subjetividades raciais e as tornam legíveis. Estes
momentos são frequentemente violentos”80 (SMITH, 2015, loc 366). Smith fala da violência
do Estado, principalmente a violência policial, contra corpos negros e como essa entra em
contradição com o discurso de democracia racial, difundido inclusive pelo próprio Estado, e
como ficam as performatividades negras neste contexto. Sua pesquisa faz um recorte no
estado da Bahia, que vende uma imagem turística paradisíaca enquanto possui a Polícia
Militar mais violenta do país. Mas Smith também o compara com o Rio de Janeiro, onde a
fama de praias paradisíacas e pessoas bonitas anda em paralelo com a criminalidade e seu
poder militarizado. Entretanto, nesta pesquisa, também falamos de violências subjetivas
produzidas pelo racismo, como as que já apresentamos nos capítulos anteriores.
Voltando ao nosso exercício e as imagens que criamos destas duas festas fictícias
(será mesmo ficção?), a estrutura que uma equipe de produção goza no primeiro exemplo é
uma, enquanto no segundo é nitidamente outra, se pensarmos apenas no valor que poderia ser
arrecadado com os ingressos. Assim como seu público alvo também vai acabar sendo
diferente, o alcance midiático, o interesse de marcas e empresas privadas em conceder apoios
ou patrocínios, tudo, absolutamente tudo será diferente, exceto pelas atrações (DJs), que são
as mesmas. Nós, que trabalhamos na produção de eventos undergrounds e mobilização de

80
Tradução minha do original “despite the fact that race is sometimes understood to be nebulous in Brazil, there
are tangible effects of racial discrimination that define racial subjectivities and make them legible. This moments
are often violent.”
95

culturas periféricas para a população periférica – parece pleonasmo, mas achamos importante
destacar – vivenciamos esses perrengues de diversas maneiras e, quando pensamos sobre a
situação de precariedade em que as classes mais baixas no Brasil e, sobretudo, no Rio de
Janeiro se encontram, também estamos falando sobre classe e oportunidades.

Dados oficiais de 1997 assinalam que a taxa de analfabetismo da população negra


maior de 15 anos era de 20,8% e da população branca, 8,4%. Para os negros entre 7
e 22 anos que frequentavam a escola, o índice de escolaridade era de 77,7%,
enquanto a população branca na mesma faixa de idade era igual a 84,7%. Todos
sabem quanto, no mundo moderno, a educação constitui fator essencial para a
formação da cidadania e qualificação profissional. No entanto, com esses índices é
muito pouco provável que os negros/afrodescendentes tenham condições de
competir em igualdade de condições com a população branca (CARNEIRO, 2011, p.
51).

E olha que quem fala em primeira pessoa nesta dissertação, é uma mulher negra que
pôde ter acesso a vários direitos, inclusive a educação. Mas não é apenas a escolaridade que
vai nos permitir alcançar determinados espaços de protagonismo ou poder social. Eu já vi e
frequentei diversos eventos na cena underground produzidos por pessoas formadas tanto
quanto por pessoas que não haviam terminado sequer o Ensino Médio e, se comparo com
alguns produtores que pude conhecer de eventos maiores, na cena mainstream e com muito
mais circulação de dinheiro, não me pareceu que o número de pessoas com Ensino Superior
completo seja maioria. Mas adivinha qual era a cor desses produtores/as/us nas duas
situações? Mas claro que isso é apenas uma observação sem comprovação científica ou
estatística nenhuma, sou só eu fazendo o famoso “teste do pescoço”81.
Ao falarmos dos perrengues da produção da festa, acaba que, de alguma forma,
direta ou indireta, vamos esbarrar em questões de classe, pois quando se trata de produção de
eventos, falamos de dinheiro e de capitalismo, seja pela estrutura que constrói o evento, pelas
metas de lucro e movimentação financeira que a produção possa ter, seja pelo pensamento
produzido a partir da divulgação destes. Mas quando falamos de classe no Brasil, estamos
também falando de raça (CARNEIRO, 2011). Por isso, não podemos ignorar a existência do
racismo estrutural e estruturante de nossa sociedade, que permite que uma determinada parte
da população, hegemônica e branca, se beneficie dessa estrutura criando e mantendo seus
privilégios. Racismo, por mais óbvio que nos pareça afirmar isso, deveria ser um problema
dos brancos:

81
A expressão “Teste do pescoço”, é uma expressão popular e autoexplicativa, que sugere às pessoas que elas
observem e contem, em diferentes contextos sociais, quantas pessoas são negras em determinados espaços
(SOUZA; ANTERO, 2013).
96

O racismo não é um problema pessoal, mas um problema branco estrutural e


institucional que pessoas negras experienciam. Esse é um acontecimento comum
para negras e negros quando abordamos a questão do racismo: intimidação por um
lado, patologização individual por outro. Ambas controlam mecanismos que
impedem que o sujeito branco ouça verdades desconfortáveis, que, se levadas a
sério, arruinariam seu poder (KILOMBA, 2019 p. 204).

Mas as consequências violentas são sentidas pelas populações não brancas. “Em
outras palavras, apesar de a classe ser um fator importante, ser negro é um determinante social
único que tem uma relação particular com o terror do Estado”82 (SMITH, 2015, loc 303).
Então, como é possível a realização de um evento, onde nem o público alvo e nem a equipe de
produção possuem muitos recursos financeiros, sem perder a qualidade da coisa? Afinal, a
produção de evento também não deveria ser um trabalho remunerado? E quanto a cobertura
fotográfica e midiática, quanto ela vale nestes espaços? E os cachês de DJs que compõem o
line up desses eventos? Quem são esses/as/us DJs? Quanto cobram e quanto recebem quando
tocam em festas undergrounds e em festas de/para pessoas brancas? Eu, mesmo sendo
criadora e principal produtora da Groove Party, uma festa underground voltada para
dançarinas/os/es de danças urbanas e parte do movimento Hip Hop do Rio de Janeiro, mesmo
tendo contato e acesso a outros eventos mais caros e embranquecidos, não sei até hoje
responder essas questões. Será que é justo que nós da periferia, continuemos produzindo
cultura “no amor”, enquanto apenas uma mínima parcela de nossa população, goza junto com
a população branca do acesso ao dinheiro que a grande mídia rende a quem produz esse som
que é de preto, de favelado, mas que quando toca ninguém fica parado?

É som de preto
De favelado (demorô)
Mas quando toca
Ninguém fica parado

Nosso som não tem idade


Não vê raça nem vê cor
Mas a sociedade
Pra gente não dá valor.
(AMILCKA E CHOCOLATE, 2009)83

Quando os MCs Amilcka e Chocolate falam que a sociedade “pra gente não dá
valor”, é justamente sobre essas violências subjetivas que a população preta e periférica sofre,

82
Tradução minha do original: “In other words, despite the fact that class is an important factor, being black is a
unique social determinant that has a particular relationship with state terror.”
83
Música Som de preto de Amilcka e Chocolate, produção Som do Funk. Disponível em
https://www.youtube.com/watch?v=Z4aai7Bj2NY. Acesso em: 20 Jan. 2023.
97

quando a mídia se apropria de sua cultura e de suas músicas, sem dar o devido
reconhecimento para quem são os reais agentes dessa cultura. Isso acontece no Funk e no Hip
Hop, na indústria da música e da moda, mas também em mercados de dança e em toda cultura
pop.
A produção da Groove Party nunca foi simples. Pode até ser que durante seus
primeiros dois anos, quando ainda éramos jovens iniciando nossas carreiras e estávamos
aprendendo na prática o que era produzir um evento, aquilo tivesse um brilho e uma
empolgação diferente que nos fazia não nos importar muito com ganhos financeiros. A gente
via nosso projeto totalmente autônomo dando certo, ganhando espaço e reconhecimento na
cena e era só isso que importava. Mas quando a vida adulta começa a chegar com os boletos,
o tempo que se gasta para a produção de uma festa, em que não admitíamos jamais que
perdesse em qualidade, mas que também não poderia se tornar mais cara se não nossos
próprios amigos não poderiam mais frequentá-la, foi ficando muito mais caro.
Ao longo de todos esses anos de Groove Party, tivemos um curto período em que
algo mais próximo de lucro real começou a entrar na produção da festa, mas o preço a se
pagar por esse dinheiro também acabou sendo caro. Esse período foi mais ou menos entre os
anos de 2012 e 2014, quando nossa galera ainda não sentia as consequências diretas de uma
crise financeira e política monstruosa que se aproximava (cf. TEODORO, 2020). Mas isso
também teve relação com um espaço no bairro da Lapa – região conhecida por sua
diversidade de opções de lazer que abraçam os mais diversos públicos –, na Rua Mem de Sá,
bem perto dos Arcos da Lapa, chamado Teatro Odisseia. Na época, fazíamos a festa
alternando com outro espaço, também no bairro da Lapa, o La Paz Club, e ambos estão
fechados hoje.
O primeiro espaço, era muito bem localizado, no centro daquele “fervo” de gente na
rua, na procura do rolé ideal. Este nos trouxe um público em números, que nunca tínhamos
vivenciado até então, chegando a bater mais de 900 pessoas de público rotativo em uma só
noite. Isso para uma festa que possuía um público fiel que girava apenas em torno de 200
pessoas, vez ou outra com esse número chegando a 400, foi um salto monstruoso. Pudemos
pagar bem nossa equipe pela primeira vez, investimos na festa, na cobertura midiática, no
registro da marca e nas mídias sociais. Em paralelo, alternávamos fazendo algumas edições
nesse outro espaço, o La Paz, que, ainda que ficasse no mesmo bairro super badalado, era
localizado na Rua do Resende. Esta era uma rua menor, menos movimentada, mais distante
dos Arcos e daquele fervo das ruas principais, Rua Riachuelo e Rua Mem de Sá, que ficam
sempre lotadas de pessoas, sons, vendedores ambulantes e as mais diversas atrações todo final
98

de semana. Mas o espaço que nos trouxe o dinheiro e um cheiro do que poderíamos ser se nos
tornássemos uma festa mainstream de repente começaram a não agradar tanto assim.
Foi a primeira vez que tivemos experiências com brigas dentro da festa. Vi homens
da equipe de segurança do espaço reproduzirem comportamentos truculentos em cima de uma
menina, aparentando ter no máximo 22 anos, que, ao final da festa, precisava pagar pela sua
consumação durante o evento, mas havia perdido a comanda em que seus gastos tinham sido
anotados. Vi pessoas brancas estranhas, que nunca tinha visto na festa antes, tentarem tocar
nos cabelos de amigos, amigas e amigues ou mesmo no meu próprio, com curiosidade e
obviamente sem pedir autorização para tal. Ouvi a heteronormatividade reclamar, entre
cochichos e olhares maldosos, das roupas ou comportamentos do nosso público
LGBTQIAP+. Vi mulheres sendo assediadas na pista por conta de suas roupas ou seu jeito de
dançar. Então veio a pergunta: seria esse o preço que deveríamos pagar para que pudéssemos
receber bem pelo nosso trabalho? A conta não fechava. Nosso sonho, nosso desejo, tinha
pilares muito fortes e bem estabelecidos no que se referia à nossa liberdade de expressar nossa
subjetividade e nossa identidade cultural. Foi assim que fomos migrando para a realização da
Groove Party apenas no segundo espaço, o La Paz. Mas essa decisão, não foi tomada de uma
vez, nem sem conflito dentro do coletivo...
Será que seríamos capazes de continuar colocando a mesma energia na realização do
evento, quando o dinheiro voltasse a não entrar na mesma proporção? Nossas parcerias,
estariam dispostas a seguir conosco priorizando a mobilização cultural ao invés do ganho
financeiro? Seguimos, a partir de 2015, mais maduros e novamente duros. Me endividei
muitas vezes. Voltamos a pagar valores simbólicos de cachês. Era pelo movimento, não pelo
dinheiro. A energia da juventude rebelde já não latejava com a mesma força em nossas veias...
ainda assim resistimos! Aos trancos, barrancos e com algumas discordâncias e conflitos
internos. Mas era sempre meio assim: “Ah! Não quero mais fazer Groove se for assim!”, e
quando víamos a pista fervendo, voltávamos pra casa felizes, até ver o saldo bancário no dia
seguinte e a discussão acontecer novamente.
Junto com o ano de 2019, quando em novembro completamos dez anos de trabalho,
existência e resistência, iniciei também o processo do mestrado. Nossa memória, poderia ser
expandida e registrada também na linguagem da escrita acadêmica, pensando teoricamente
sobre todos esses atravessamentos e assuntos que a festa abarca. Já pensou? Uma dissertação
inteira falando só da importância que a Groove teve para a gente? Para a comunidade da
dança? Para a cultura hip hop no Rio de Janeiro? Mas eu não fazia ideia do que estava por
vir.
99

Lembra das pequenas certezas que falei no início desta seção? O início do meu
mestrado, desde a seleção no final do ano de 2018 até o começo de 2019, vinha acompanhado
de mais uma dessas “pequenas certezas”, que inclusive eu julgava ser suficiente enquanto
força motora necessária para dar conta de mais esse trabalho – ainda que já tivessem me
avisado o quanto este poderia ser desafiador. A certeza era de que eu também havia me
apaixonado pela escrita e pela pesquisa. Entrei no mestrado, consegui bolsa, pude interromper
os bicos que fazia como diarista e faxineira para complementar minha remuneração. Ia só
dançar, dar aulas de dança e estudar. Que sonho! E sim, talvez essa certeza da paixão ainda
me acompanhe até o presente momento e continue por muito tempo, mas essa seção é para
falar das dificuldades da realização e continuação desses trabalhos sem romantizar esses
processos, ainda que haja muito amor envolvido em tudo. E não me entendam mal. De fato,
me apaixonei por escrever e pesquisar, mas logo ao começar a frequentar as aulas, me deparei
com uma questão que só mais tarde fui entender como uma baixa “autoestima acadêmica” e
de onde ela poderia ter vindo.
A escrevivência – e a autoetnografia também (DANTAS, 2016) – como metodologia
de pesquisa e escrita, nos permite um discurso muito honesto, mas que por vezes nos exige
uma disposição em expor alguns detalhes que podem ser bem pessoais. Um desses é o que
abro agora, a insegurança que senti em relação à minha intelectualidade e inteligência ao me
ver ocupando esse espaço dentro da produção acadêmica.
Essa sensação aflitiva e conflituosa da própria experiência situada da pesquisa
acadêmica – eu, mulher preta, dançarina, produtora cultural da cena hip hop84 – também
aparece na reflexão da jornalista, fotógrafa e também bgirl, Amanda Baroni, em seu artigo
Favela e autoestima acadêmica: você já ouviu falar sobre isso? (BARONI, 2022):

Por vezes me senti inferiorizada na faculdade, pelo ritmo veloz, por não conseguir
absorver tão bem e de não estar tão perto do assunto. Por nem sempre conseguir
distinguir a cobrança (minha ou dos professores) pelos exageros do sistema
acadêmico, como: até que ponto o docente quer que eu melhore e seja uma
profissional de excelência e até onde ele(a) entende que minha realidade e ritmos são
diferentes e estão apenas tentando dificultar as coisas? (idem).

84
Como nota, acho importante acrescentar que ainda que estejamos falando de questões estruturais de uma
sociedade desigual que aparta pessoas negras das melhores fatias do bolo, minha primeira formação acadêmica,
foi no campo de ciências biológicas e da saúde, cursando a graduação de Fisioterapia e pesquisando dentro do
campo da Bioquímica. Ainda que hoje eu perceba que um letramento sobre questões de raça e racismo científico
fossem importantes nessas áreas, meu “letramento” (estudar teoricamente sobre, fora dos debates cotidianos) em
Estudos Críticos de Dança, Estudos Culturais e Teorias de Raça, Gênero e Sexualidade, ocorreu apenas já no
mestrado, o que também contribuiu para uma insegurança na minha autoestima acadêmica.
100

Nesse artigo, a autora fala sobre o que ela descobriu ser “autoestima acadêmica” e de
suas próprias dificuldades vividas ao se ver como uma favelada fazendo uma faculdade, ainda
que seja uma mulher branca.
Existem certos espaços que temos dificuldade de nos enxergar ocupando, pois não
temos muitas referências se não nos vemos representados nesses locais. Hall (2016) mostra
sobre como essas representações contribuem para a manutenção do poder hegemônico que
colabora para que algumas pessoas nunca acreditem que possa ser possível ocupar
determinados espaços. “Isso não é pra mim!” – quantas vezes já não ouvimos ou dissemos
essa frase?
Assim como só é possível construir uma pesquisa densa e embasada em diálogo com
referências – quem veio antes, nossos mais velhos, quem escreveu ou debruçou sobre
determinados temas e conceitos antes de nós –, como seria possível a construção de uma
autoestima consistente se não existirem referências em quem possamos nos espelhar? Foi
pensando na autoestima, e como essa é elaborada, que chegamos finalmente ao conceito de
empoderamento, do qual falamos anteriormente. Este

é mais do que o construto psicológico tradicional com o qual às vezes é comparado


ou confundido (por exemplo, auto-estima, auto-eficácia, competência, auto-
controle). As várias definições geralmente são compatíveis com o empoderamento
como ‘um centralizador de processos contínuos intencionais na comunidade local,
envolvendo respeito mútuo, reflexões críticas, cuidados e participação grupal, por
meio das quais pessoas possam se valer da distribuição igualitária de recursos
necessários, tendo facilitado o acesso e controle sobre esses recursos’ (Conwell
Empowerment Group, 1989), ou simplesmente pelo qual as pessoas possam ter
controle sobre suas vidas (Rappaport, 1987), participações democráticas na vida de
sua comunidade e uma compreensão crítica do mundo que o cerca (Zimmerman,
Israel, Schulz e Chekoway, 1992) (ZIMMERMAN; PERKINS apud BERTH, 2018,
p.21-22).

Percebi que a questão que me apareceu sobre minha própria autoestima possuía
raízes mais profundas, mas que de alguma maneira começavam também a serem resolvidas
quando tornava o processo de empoderamento mais consciente, e o próprio movimento de
compartilhar processos ou etapas de minha pesquisa com colegas de Programa, e receber os
mesmos compartilhamentos delas/es/us, foi permitindo que a pesquisa fosse ganhando corpo.
A troca não acontecia somente na festa, mas o espaço acadêmico deste Programa de Pós-
Graduação também foi permitindo brechas para criação de novas referências, que estavam
próximas, ao nosso lado, e vivendo as maravilhas e as ansiedades do mesmo processo de
mestramento juntos, o que foi nos fazendo perceber o quanto esse processo era muito mais
101

coletivo do que individual. Neste sentido, ao pensarmos empoderamento como processo


intersubjetivo ao longo desta pesquisa, o compreendemos como

uma gama de atividades da assertividade individual até a resistência, protesto e


mobilizações coletivas, que questionam a base das relações de poder. No caso de
indivíduos e grupos cujos acesso aos recursos e poder são determinados por classe,
casta, etnicidade e gênero, o empoderamento começa quando eles não apenas
reconhecem as forças sistêmicas que os oprimem, como também atuam no sentido
de mudar as relações de poder existente (BATLIWALA apud BERTH, 2018, p. 16).

O início da compreensão do empoderamento permitiu que aquela certeza inicial, da


paixão pelo ato de escrever e pesquisar voltassem a ser motor de produção acadêmica, estando
nunca sozinha, mas também sem romantizar os perrengues do processo. Mas ainda assim,
estes também estavam apenas começando.
Chegamos ao segundo ano de mestrado, onde o processo da pesquisa deveria
supostamente encontrar sua segunda metade e então se encaminhar para um encerramento.
Mas, como já sabemos, 2020 foi o ano em que o mundo viveu a pandemia da Covid-19 e isso,
por si só, já foi motivo para bagunçar todo o cronograma de todos os programas de pós-
graduação e graduação a nível nacional, pois os impactos da pandemia na educação foram
fortíssimos (cf. GLOBO, 2021)85. Aliás, todos os cronogramas e agendas de tudo e de todos.
Meus principais trabalhos e, por consequência, meus “bicos”, que a partir do ano de 2019
eram todos no setor cultural e na educação, dançando, produzindo eventos ou dando aulas em
projetos sociais e não por acaso, estes foram dois dos setores que mais sofreram com a
pandemia.86 Já pensou como é pesquisar sobre os benefícios das aglomerações, isolada
socialmente, num contexto pandêmico que requeria e defendia, positivamente, o isolamento
social? E se, com esse isolamento, você pesquisador/pesquisadora/pesquisadore, começa a
perder alguns acessos a direitos básicos como o de ir e vir? Ou a uma alimentação realmente
saudável por sua condição financeira? Como se paga moradia, alimentação e contas básicas
apenas com o valor de uma bolsa de mestrado? Possível é, sabemos que existem muitas
famílias que sobrevivem com valores inacreditáveis, mas elas sobrevivem apenas. E se
algumas das suas pessoas mais próximas começam a viver em situação de insegurança
alimentar? Essa sua renda (bolsa de mestrado) será usada apenas com a sua alimentação?
Você consegue não fazer nada sobre essa situação? Como seria para você dar continuidade a
uma pesquisa em alguma dessas condições? E em todas?

85
Alguns desses impactos podem ser lidos em artigo produzido pelo Globo (2021).
86
No capítulo 3, falamos um pouco sobre o fato de o setor cultural ter sido o mais atingido pela pandemia da
Covid-19.
102

Há algo nessa pesquisa, que pode inicialmente passar despercebido, mas que é de
grande importância para nós. Aqui mostramos o quão humano nós somos. Já que “a noção de
raça permitia representar as humanidades não europeias como se tivessem sido tocadas por
um ser inferior” (MBEMBE, 2018a p. 42), e, por isso, sendo consideradas menos humanas
pela hegemonia branca, ou vidas que simplesmente importam menos (BUTLER, 2018),
demarcar nossas humanidades se torna de extrema importância para nós. E a pessoa que
escreve este texto também quer estar incluída no pacote “humanos”.
Existem muitos recortes de opressões sociais que podem nos precarizar, e eles são
interseccionais.

As intersecções das formas de opressão não podem ser vistas como uma simples
sobreposição de camadas, mas sim como a “produção de efeitos específicos”
(Anthias e Yuval-Davis, 1992, p.100). Formas de opressão não operam em
singularidade; elas se entrecruzam. O racismo, por exemplo, não funciona como
uma ideologia e estrutura distintas; ele interage com outras ideologias e estruturas de
dominação como o sexismo (Essed, 1991; hooks, 1989) (KILOMBA, 2019, p. 98-
99).

Dessa forma, não ignoramos os recortes de gênero, nem de classe quando falamos
das populações precarizadas, mas elegemos a “raça” como recorte principal devido à sua
ligação com o processo colonial:

Um pouco por todo lado se reaviva a fabricação dos sujeitos raciais. Ao preconceito
de cor herdado do tráfico de escravos e traduzido nas instituições de segregação
(como no caso das ‘leis Jim Crow’ nos Estados Unidos e do regime de apartheid na
África do Sul), ao racismo antissemita e do modelo colonial de bestialização de
grupos considerados inferiores, vieram a se somar novas constantes do racismo, com
base em mutações das estruturas de ódio e na recomposição das figuras do inimigo
íntimo (MBEMBE, 2018a, p. 47).

Saindo um pouco do discurso teórico para a vida real, na prática, essas questões vão
influenciar, por exemplo, nos territórios que ocupamos e moramos majoritariamente, o que
também se relaciona diretamente com a elaboração ou reelaboração de nossa subjetividade.
Durante o período de 2018 até o primeiro trimestre de 2021, morei na comunidade do
Complexo do São Carlos, que ocupa os limites entre os bairros Rio Comprido (onde eu
morava), Estácio e Catumbi, na transição entre as Zonas Norte e Central da cidade do Rio de
Janeiro. Apenas nesse momento, não me interessa aqui falar dos aspectos positivos de morar
em uma comunidade, em uma favela ou em áreas próximas. Eles existem, são vários, mas não
são nosso assunto em questão agora. O que vamos relatar é mais uma vez as violências às
quais corpos que vivem nesses locais estão mais expostos.
103

Na cidade do Rio de Janeiro, também aumentou os números de incursões e operações


policiais violentas nas favelas, ao ponto de o próprio Supremo Tribunal Federal (STF) intervir
tentando proibir operações durante a pandemia (cf. STF MANTÉM…, 2020). Na prática, o
que tivemos foi um período de recordes de chacinas, estimando-se que no período de 2016 a
2021, dez das treze maiores chacinas no Rio de Janeiro foram responsabilidade da Polícia,
sendo quatro destas dez somente nesse período de proibição do STF (cf. PREITE
SOBRINHO, 2021), que claramente não aliviou o cenário de violência vivido pela população
favelada. No Rio Comprido, por exemplo, bairro onde eu morava, o cenário é há muitos anos
de uma disputa territorial entre facções criminosas rivais, em que a maior parte das
comunidades é liderada por uma facção criminosa, enquanto apenas o morro do São Carlos é
liderado por outra, rival.
No final do ano de 2020, um outro evento traumático contribuiu para a dificuldade
do processo de escrita: a invasão do morro do São Carlos pela facção criminosa rival
(TORRES; ALVES, 2020), que se iniciou justamente na rua onde eu morava, a Rua Azevedo
Lima. Foram horas de tiroteio contínuo e ininterrupto e, quando parecia que finalmente tinha
acabado, se iniciou uma ação policial que durou ao menos dois dias. Durante os dias de ação
policial que se seguiram, houve muitos relatos (alguns mais suaves outros nem tanto) de
invasão dos policiais às casas de moradores da região, inclusive na minha. Mas essa parte
infelizmente não aparece em reportagens ou artigos com a fidelidade do que vivemos, para
que possamos colocar em referências ou notas de rodapé.
A gerência da morte executada pelo Estado em situações como esta, chamada de
necropolítica por Mbembe em seu texto homônimo (MBEMBE, 2018b), onde o autor define
este conceito, tem ligação direta com as problemáticas do racismo no território do Rio de
Janeiro. O mesmo autor, em Crítica da Razão Negra (MBEMBE, 2018a) já apontava
problemas na invenção da “raça” e como esse movimento foi utilizado por um determinado
grupo de pessoas para justificar e produzir violências sobre outros:

Para nós, só é possível falar da raça (ou do racismo) numa linguagem fatalmente
imperfeita, dúbia, diria até inadequada. Por ora, bastara dizer que é uma forma de
representação primaria. Incapaz de distinguir entre o externo e o interno, os
invólucros e os conteúdos, ela remete, em primeira instancia, aos simulacros de
superfície. Vista em profundidade, a raça é ademais um complexo perverso, gerador
de temores e tormentos, de perturbações do pensamento e de terror, mas sobretudo
de infinitos sofrimentos e, eventualmente catástrofes. (...) De resto, consiste naquilo
que se consola odiando, manejando o terror, praticando o alterocídio, isto é,
constituindo o outro não como semelhante a si mesmo, mas como objeto
propriamente ameaçador, do qual é preciso se proteger, desfazer, ou ao qual caberia
simplesmente destruir, na impossibilidade de assegurar seu controle total
(MBEMBE, 2018a, p. 27).
104

Como, nesta pesquisa, buscamos humanizar as personagens que agenciam e


participam da história da Groove Party e das danças urbanas, vamos seguir no nosso exercício
aqui: consegue imaginar como seria, durante o período pandêmico, para uma mulher negra,
morando sozinha na comunidade do São Carlos, lidar com todas as questões que listamos
acima e o processo de escrita de uma dissertação? Como foi interromper uma pesquisa sobre
festa, por conta de um isolamento social generalizado? Ou como foi ter qualquer possibilidade
de trabalhos e rendas extras cortados pela falta de possibilidade de trabalhar dignamente com
produção de eventos ou apresentações de dança? E ainda ver amigos próximos e familiares
com a fome ou a insegurança alimentar batendo à porta? Ou mesmo ter o direito de ir e vir
praticamente cortado por ações policiais ou conflitos entre facções rivais que aconteciam do
outro lado do muro?
Trazendo novamente a narrativa para a primeira pessoa do singular, posso lhes dizer
que o processo de escrita, assim como a realização da festa, também foi bruscamente
interrompido. Se de alguma forma lhe agrada ou interessa a leitura deste trabalho nesse
momento, saiba que ele não foi contínuo, nem tampouco apenas prazeroso. Os “corres” que
passamos para chegar até a conclusão deste foram muitos e aqui escolhemos citar apenas
alguns, os que conseguimos conectar experiência pessoal com questões maiores presentes na
sociedade e precarização de populações negras e periféricas. Como uma pesquisa sobre
celebração, festa e cultura pode ser atravessada num contexto de extrema violência? Acredito
que esta é mais uma das questões que levantamos aqui e somos incapazes de responder
objetivamente, mas fatalmente conectamos esses problemas ao racismo cotidiano, como nos
aponta Grada Kilomba:

Eu gostaria, portanto, de conceitualizar a experiência do racismo cotidiano como


traumática. O relato psicanalítico do trauma traz três ideias principais implícitas:
primeira, a ideia de um choque violento ou de um evento inesperado para o qual a
resposta imediata é o choque; segunda, a separação ou fragmentação, pois esse
choque inesperado priva a relação da pessoa com a sociedade; e, terceira, a ideia de
atemporalidade, na qual um evento violento que ocorreu em algum momento do
passado é vivenciado no presente e vice-versa (KILOMBA, 2019 p. 216).

O que podemos dizer é que seguimos buscando a cura desses e de tantos outros
traumas através da escrita, teorizando sobre ou apenas escrevivendo os eventos, enquanto
estes acontecem simultaneamente nas nossas vidas, nas nossas casas, com nossa vizinhança,
família e círculos mais próximos de amizade.
105

Nossas subjetividades são elaboradas e reelaboradas conforme nos construímos


enquanto humanidade. Ao pensarmos numa reelaboração desta, acontecendo a partir da nossa
interação com a festa que performa aquilombamento da nossa cultura e das memórias
produzidas nesse espaço, nosso desejo era sair do texto raivoso. Pois temos raiva. Muita raiva.
Temos mágoas também, que são profundas. E a dor da violência, quando está quente e latente,
dificulta nosso processo de cura e busca por uma representação própria diferente da raiva e do
rancor. Desse modo, buscar a criação de uma autorrepresentação que não trate só dos aspectos
negativos dessas marcas demandou tempo, demandou pausa. Esse tempo também fez com que
o recorte temporal desta pesquisa aumentasse muito, pois ele se inicia no início do ano de
2019, sendo concluído na virada de 2022 para 2023, ano em que inclusive temos uma
mudança enorme no cenário político do país com a derrota do desgoverno bolsonarista, de
extrema direita, que colaborou criminalmente com o caos que vivenciamos (cf. ELEIÇÃO…,
2022).
Num esforço de seguir adiante, que não foi rápido nem simples, mas doloroso em
muitas camadas da minha subjetividade – incluindo lutos por perdas de pessoas próximas na
pandemia, o aparecimento da ansiedade não mais como um processo natural, mas agora quase
como um transtorno (ainda que reversível com tratamento) e um processo de mudança de casa
cansativo e perturbador, por conta das condições de violência urbana na casa anterior – invoco
mais uma vez o cuirlombismo literário na tentativa de retornar à paixão e ao amor, que são os
principais alicerces desta pesquisa e da própria Groove Party,

pois cuirlombismo literário é essa distração, uma deriva profunda y leve, desorbital
y propositada, momento em que sentimos poesia preta lgbtqia+ não tendo que ser
apenas pow pow pow: ela é sobre pó – de estrelas, tecendo nosso futuro da fricção
de galáxias. y essa lição, assim como a dissidência sexual preta na diáspora, é
tecnologia-ancestral afrofuturista (NASCIMENTO, T., 2019, p. 32).

Seguir adiante é pensar no futuro. Um amanhã onde a população negra possa


participar ativamente da sociedade, sem ter que gritar ou brigar por isso. Afrofuturismo é
poder acreditar que traumas das nossas subjetividades, que atravessam gerações através da
performatividade negra de hoje, poderão enfim ser curados, sem serem esquecidos.

4.2 A dança reelabora a festa, a festa reelabora a dança

Em Pele Negra Máscaras Brancas (2008), Fanon relata a sua própria elaboração
subjetiva a partir da experiência do racismo em ambientes brancos que ele mesmo passa a
106

frequentar ao longo da construção de sua carreira acadêmica. Como já vimos, ele fala sobre
como “no mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na elaboração de seu
esquema corporal. O conhecimento do corpo é unicamente uma atividade de negação. É um
conhecimento em terceira pessoa” (FANON, 2008, p. 104). Desse modo, o autor que possuía
uma elaboração de sua subjetividade em seu país de origem, Martinica, explica como uma
nova elaboração – ou uma reelaboração – de uma identidade negra ocorreu quando este passa
a conviver com pessoas brancas, uma identidade formada a partir das diferenças e exclusões
produzidas pelo racismo e ser apontado repetidas vezes como “um preto!” (ibdem, p. 105).
Com esse modelo fanoniano, compreendo que pensar na elaboração de subjetividades, é tratar
justamente de interações sociais, reiterações de comportamentos, de expressões
performativas, ou mesmo do performativo produzido pelo Estado e sociedade que, correndo o
risco de produzir um pleonasmo, são racistas.
No Brasil, a construção das subjetividades das chamadas minorias sociais, acontece
em meio a diversas violências, com o racismo como base destas ainda que elas sejam
interseccionais, como já vimos e revimos.

Tratando nossas mulheres como experientes


Corpos negros não valem nada até que você experimente
Nego, roubaram teu amor-próprio, mas ninguém avisou
Eu sei que guarda mágoa de uma cicatriz que não sarou
(CRISTAL ROCHA in DUARTE, 2019, p. 61).

Esse é um processo que vem com a colonização. O colonizador olha tudo que possa
ser de alguma forma diferente de si e exclui criando um “outro”. Isso é repetido e repetido por
ferramentas como políticas públicas e representações culturais que seguem produzindo
diferentes tipos de violências epistemológicas, que se manifestam das mais diversas e
perversas maneiras:

No processo, os inúmeros sedimentos de história que incluem incontáveis histórias e


uma variedade estonteante de povos, línguas, experiências e culturas, tudo isso é
desqualificado ou ignorado, relegado ao monturo, juntamente com os tesouros
esmigalhados até formar fragmentos insignificantes (SAID, 2019, p.14).

Obviamente não é apenas uma performatividade negra que é criada, mas uma branca
também, em covalidação:

Ser branco no Brasil, como ser mulher ou homem em qualquer parte, se valida e se
reconhece em atos, realizados em meio à teia de relações sociais. Americanos do
norte e europeus já expressaram ceticismo sobre a brancura de brasileiros que se
107

identificam como brancos, mas estão errados, pois no Brasil como em qualquer parte
do mundo, é quem age convincentemente como branco que é branco, é quem
desempenha bem esse papel social, pouco importam as gotas de sangue. Sentir ou
saber isso pode estar na origem da tendência recente de tantos brancos de reafirmar e
reconfirmar seus privilégios como direitos. (...) A branquitude como sistema de
valores racializados – ou a branquidade, como alguns preferem para afastar o termo
de “negritude” – é também da ordem do solipsismo, da autoafirmação narcísica, é a
negação da humanidade dos negros. A valorização de ser branco se realiza na
desvalorização do ser negro (SOVIK, 2019).

Ainda, como afirma Smith, no Brasil, “a apropriação da negritude para a identidade


nacional serviu para afirmar o status da nação como uma potência mundial emergente”87
(SMITH, 2015, loc. 267), de modo que seguimos sendo a população que sofre com as
violências necropolíticas do Estado, ainda que nossa cultura (preta!) ganhe visibilidade na
mídia com o discurso da suposta “democracia racial”. Ainda que a autora esteja se referindo
especificamente sobre a capoeira em seu estudo, na prática o que vivemos é que todas as
culturas da diáspora negra no Brasil acabam passando pelo mesmo processo.

Embora a sociedade continue a se apegar religiosamente à ideologia da democracia


racial e a celebrar discursivamente a vitalidade da negritude, o Estado se engaja em
uma necropolítica racializada que, em tensão com as práticas biopolíticas, marca o
corpo negro como violável e dispensável, mas necessário para a manutenção da
imagem mundial vendável da nação.88 (SMITH, 2016, loc 273).

Em sua pesquisa, Smith fala desse movimento do poder hegemônico de desassociar a


cultura da diáspora negra produzida no Brasil, dos corpos negros. A autora também explica
como, dentro das violências produzidas pelo Estado, ainda que a classe seja um fator
importante, a raça – sendo a pessoa negra – sempre será um fator social determinante para a
vivência dessa relação de violência com o Estado.
Cruzando as leituras de Smith com Fanon, vemos o quanto as violências dos nossos
ambientes de convivência vão influenciar na nossa formulação de esquema corporal e na
nossa (inter)subjetividade. Já o que buscamos formular nesta dissertação é o entendimento de
que não apenas essa formulação pode ser refeita através da sociabilidade em festa, mas
também o que essa reformulação traz de positivo. Para tal, voltamos ao quilombo enquanto
ideia e seus efeitos nas populações negras, este

87
Tradução minha do original “The appropriation of blackness to the national identity has served to assert the
nation’s status as an emerging world power.”
88
Do original: “Although society continues to hold on religiously to the ideology of racial democracy and to
discursively celebrate the vitality of blackness, the state engages in a racialized necropolitics that, in tension with
biopolitical practices, marks the black body as violable and expendable yet necessary to the maintenance of the
nation’s saleable world image.”
108

Positivamente se trata de todo um discurso cultural, complexo global, entranhado e


originado numa estrutura de pensamento simbólico e numa estrutura de organização
familiar, que, vindo da África com os escravos, se constituiu numa presença vital
que tem sido capaz de impregnar e de impor sua força criativa no Brasil, em que
pesem as barreiras, subestimações, perseguições de toda ordem que os povos
africanos e seus descendentes têm suportado por um tempo demasiado longo
(NASCIMENTO, A., 2002, p. 144).

As expressões culturais e artísticas da diáspora negra, foram reelaboradas quando se


encontraram em um novo território. Essa reelaboração acontece num contexto de violência
com a colonização, o sequestro de África e a escravização dessas populações fora de seu
território de origem. O quilombismo é um movimento de resgate e resistência dessa memória
a partir de uma reformulação. O autor ainda cita como exemplo a capoeira, uma luta herdada
de Angola, que foi “transformada, em virtude de proibições policiais à sua prática, além de
outras influências locais, em dança” (NASCIMENTO, A., 2002, p. 140). Isso mostra a
importância da música e da dança, enquanto linguagens artísticas que são reformuladas e
criam novas práticas a partir da vivência do quilombo: “Mesmo que sob a reclamação dos
brancos ou submetidos à tática divisionista oficial, o certo é que os africanos praticaram suas
danças, bateram seus tambores, cantaram e se divertiram recuperando algo de sua humanidade
ferida de morte” (ibdem, p. 139).
O que compreendemos a partir destas leituras é que práticas culturais africanas foram
sendo reformuladas a partir da experiência da violência colonial e, posteriormente, do
quilombo. A nossa hipótese é que tanto as danças urbanas quanto as subjetividades de seus
agentes-praticantes foram formuladas a partir da violência produzida pelo racismo e
reformuladas a partir da sociabilidade em festas que produzem esse espaço libertário, como a
Groove Party faz – hipótese que não nos parece nova dentro de estudos culturais e de raça.
A compreensão de uma cultura negra pós-colonial como um exercício de
“contraviolência do colonizado” (FANON, 1968, p. 69) aparece nas análises de Fanon sobre o
Rebelde, personagem da obra de Aimé Cesaire, como em sua análise sobre a experiência do
jazz-grito, como “momento que faz nascer a esperança e impõe um recuo ao universo racista”
(ibdem, p. 203). Também,

Poder-se-ia igualmente procurar e encontrar, ao nível da dança, do canto melódico,


dos ritos, das cerimônias tradicionais, o mesmo impulso, distinguir as mesmas
mutações, a mesma impaciência. Muito antes da fase política ou armada da luta
nacional, um leitor atento pode, portanto, sentir e ver manifestar-se o vigor novo, o
combate próximo. Formas de expressão insólitas, temas inéditos e dotados de um
poder não mais de invocação, mas de agrupamento, de convocação com “o fim de.”
Tudo concorre para despertar a sensibilidade do colonizado para tornar obsoletas,
inaceitáveis, as atitudes contemplativas ou de insucesso. Porque renova as intenções
109

e a dinâmica do artesanato, da dança e da música, da literatura e da epopeia oral, o


colonizado reestrutura a sua percepção. O mundo perde seu caráter maldito. As
condições estão reunidas para o inevitável confronto (FANON, 1968, p. 203).

Com Fanon, compreendemos a reelaboração dos processos de autopercepção do


colonizado desde a prática incorporada na poesia, na dança, no canto, nos rituais, nas festas –
e, já podemos dizer também, na Groove Party –, entendendo-a como uma forma de
agrupamento/convocação de luta e libertação frente ao mundo colonial. Aqui encontramos
outra vez um sentido de aquilombamento como forma ideológica de resistência, tal como
reflete Camila Daniel sobre a obra de Beatriz Nascimento:

A autora argumenta que o princípio do quilombo se renova na vida cotidiana de


negros e negras por meio de suas manifestações culturais, como o samba e a
congada, e nos espaços onde elas acontecem, como o baile soul, a escola de samba,
o terreiro e a favela. Tais manifestações culturais negras nutrem o espírito de vida e
liberdade que caracterizaram o quilombo como a rejeição da senzala e de todo o
sistema de dominação que ela caracterizava. Mais do que resistir à senzala, os
negros fizeram dos quilombos sua organização política, social e cultural autônoma,
baseada em princípios africanos não-eurocêntricos que valorizam a cooperação e
complementariedade. O quilombo tem como princípio a vida e a liberdade
construídas entre negros livres, entre indígenas e entre brancos pobres (DANIEL,
2020, p. 136).

O processo que acreditamos que permite essa reformulação tem que necessariamente
trabalhar a autoestima dessas populações, pois esta fica extremamente fragilizada nestas
populações, submetidas constantemente a violências subjetivas quando suas representações
são estereotipadas, fetichizadas ou estigmatizadas, ou ainda na performatividade dos
encontros violentos entre polícia e o corpo negro, pois “raça e racismo tornam-se explícitos no
Brasil durante a performance e a performatividade da violência em momentos de encontro
racializado”89 (SMITH, 2015, loc. 398). É justamente o processo de empoderamento coletivo
que permite este trabalho de reelaboração incorporada na autoestima destas populações numa
festa, numa pista de dança como a Groove Party.
Quando minha autoestima se transformou, eu me transformei. Quando vi corpos
negros sendo representados como belos, pude me sentir bela, mesmo sendo eu uma das
pessoas a realizar essas representações. Dançar waacking reformulou minha autoestima como
mulher. Não há nada como você entrar numa roda de dança, sendo desafiada/o/e ou não,
dançar aquela dança que é sua, que é natural para o seu corpo, não por conta apenas de um
treinamento profissional, mas também por conta de uma identificação com aquela prática e

89
Tradução minha, do original: “Race and racism become explicit in Brazil during the performance and
performativity of violence at moments of racialized encounter”.
110

aquela história, e ser admirada pelos seus. Performar a minha feminilidade, e não apenas a
que me foi ensinada a repetir dentro de outros contextos sociais fora da dança. Dançar hip hop
dance também me fez redescobrir minha força, capacidades corporais e criatividade. Deixar o
grave das caixas de som vibrar no meu corpo e reproduzir suas batidas com explosões
musculares realmente dá uma sensação de poder. E isso tudo é uma cura coletiva. Essas
danças urbanas que falamos, essas práticas de dança, só são possíveis em rodas, cyphers e
festas. Podemos até carregar essa memória corporal, essas técnicas e aprendizados para outros
ambientes como na dança cênica, por exemplo. Mas essas práticas de danças são forjadas na
festa e é nessa sociabilidade que reiteramos esse conhecimento no corpo – conhecimento que
cura nossos traumas sociais e que nos empodera coletivamente, pois só assim essa autoestima
poderá ser verdadeiramente reconstruída como processo de intersubjetividade.

A pesquisa e a intervenção da teoria do empoderamento unem bem-estar individual


ao meio político e social mais amplo. Teoricamente, a construção une a saúde
mental à ajuda mútua e a luta para criar uma resposta comunitária. Isso nos obriga a
pensar em termos de bem estar versus doença, competências versus déficits, e forças
versus fraquezas. Da mesma forma, a pesquisa sobre empoderamento centra-se na
identificação de capacidades, em vez de enfatizar fatores de risco e explorar
influências problemáticas do meio social ou em vez de culpar vítimas.
(ZIMMERMAN; PERKINS apud BERTH, 2018, p. 21).

Esse poder todo só é possível de sentir em festas que acolham diferenças. Na cena
ballroom, isso pode ser ainda mais evidente, por se tratar de uma cena artística e cultural que
acolhe minorias ainda mais violentadas, pelas intersecções de opressões: a população negra,
periférica e LGBTQIAP+. Tal como escrevemos em outro momento:

Se o gênero é um constructo histórico-social que produz subjetividades, relações


intersubjetivas e hierarquizações sociais, então a ballroom pode ser um território de
reorganização dessas relações em busca de uma certa utopia cuir. Podemos pensar a
cis-heteronormatividade branca como uma forma moderna/colonial de controle dos
corpos dissidentes de gênero e sexualidade, assim como aqueles marcados pela
racialização, quer dizer, corpas cuirs e negras que, não por acaso, são precursoras e
maioria na cultura ballroom, onde inventam seus próprios modos de classificação e
compreensão de gênero e sexualidade, escapando das marcas da hegemonia do
sistema cis-hetero. (REIS; NÓBREGA; MONNERAT, 2022, p. 38).

O documentário Paris is Burning (1990), de Jennie Livingston, teve uma


contribuição enorme para a visibilidade da cena ballroom mundialmente. Raquel Parrine
(2017), ao analisá-lo, fala que essa satisfação performativa – ballroom significa baile e o baile
nos traz essa autossatisfação – não é somente auto-afirmativa, pois ela produz sobrevivências
simbólicas em comunidade:
111

A participação no baile não é só uma estratégia de auto satisfação, é também uma


declaração da agência do sujeito subalterno. Também é uma declaração de agência o
desenvolvimento da dança vogue. Ao criar uma elaborada e complexa forma de arte
usando poses de capas de revista, os bailarinos mostram sua capacidade de dominar
a linguagem da cultura dominante e subverter a exclusão a que estão submetidos ao
criar a partir destas imagens pré-determinadas uma forma autêntica e sofisticada de
autoexpressão (PARRINE, 2017, p. 1429).

Essas análises sobre o poder da dança voguing e da cena ballroom talvez sejam mais
fáceis de visualizar. Afinal, é uma cena underground que conseguiu amplo alcance nas mídias
sociais e mainstream. O que tento mostrar aqui a partir da descrição de minha e de nossa
vivência na Groove Party, é quanto esses encontros na festa reformularam as danças – como
as reformulações da capoeira e do samba descritas por Abdias Nascimento (2002) –, assim
como minha subjetividade e de outros agentes-praticantes foi sendo formulada e reformulada
através do convívio na festa. Ao escrever sobre estes processos, sinto também o poder de
deixar de ser “objeto” para me tornar “sujeito”, tal como nos lembra Kilomba:

bell hooks usa estes dois conceitos de ‘sujeito’ e ‘objeto’ argumentando que sujeitos
são aqueles que ‘têm o direito de definir suas próprias realidades, estabelecer suas
próprias identidades, de nomear suas histórias’ (hooks, 1989, p.42). Como objetos,
no entanto, nossa realidade é definida por outros, nossas identidades são criadas por
outros, e nossa ‘história designada somente de maneiras que definem (nossa) relação
com aqueles que são sujeitos.’ (hooks, 1989, p.42). Essa passagem de objeto a
sujeito é o que marca a escrita como um ato político. Além disso, escrever é um ato
de descolonização no qual quem escreve se opõe a posições coloniais tornando-se
a/o escritora/escritor ‘validada/o’ e ‘legitimada/o’ e, ao reinventar a si mesma/o,
nomeia uma realidade que fora nomeada erroneamente ou sequer fora nomeada
(KILOMBA, 2019, p. 28).

Nesta citação, Kilomba se refere à importância política de uma escrita de si, de falar
da história de populações antes colocadas no lugar de objeto pela lente dos próprios
interpelados como tal, nos colocando como sujeitos. Antes mesmo de fazermos isso nesta
pesquisa, foi de extrema importância o fazermos também com nossas próprias celebrações.
Afinal, “está na moda ser preto, desde que você não seja preto.”90 De modo que não era mais
interessante frequentar apenas festas de temática negra, mas produzidas por pessoas brancas
com um olhar capitalista e elitista. Produzimos nossas próprias celebrações, músicas, danças,
festas e nos reconhecemos enquanto agenciadores de nossa cultura (Figura 10). Com o
aumento da produção de conhecimento reconhecida pelo poder hegemônico, vamos cada vez

90
Frase se popularizou na internet, e Rodrigo Teles Medrado faz um texto homônimo publicado no Portal
Geledés (MEDRADO, 2015).
112

mais construindo e fortalecendo esses corpos antes subalternizados, desde os múltiplos atos
incorporados de escrevivência, como sujeitos e humanos.

Figura 10. Publicação com cartaz eletrônico de divulgação do Festival de Hip Hop produzido pela Frente
Nacional Mulheres no Hip Hop (sigla FNMH2) que mostra, eu, Luciana Monnerat como uma das personalidades
homenageadas pelo festival, representante do elemento CONHECIMENTO na cultura hip hop.

Fone: https://www.instagram.com/p/CNvRXVBpsUj/, acesso em: 30 Jan. 2023.

Como Osumare (2007) mostra em sua pesquisa, a cultura hip hop – e,


consequentemente, seus elementos e as danças urbanas que falamos aqui – estabelece uma
conexão forte com a grande mídia como ferramenta de sua disseminação para juventudes
periféricas ao redor do globo. Então, acreditamos que quanto mais fortalecermos os
movimentos culturais undergrounds, seremos cada vez mais capazes de produzir novas
representações, novas referências e contribuir com a construção da autoestima de quem teve,
por tanto tempo, seu espírito destruído pelo racismo e pela colonização. Aqui, o conhecimento
também empodera.
113

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Fazendo uma rápida retrospectiva do começo de minha vida adulta, parece que os
ciclos de dois anos se repetem e se formulam em grandes mudanças na minha vida. Foi depois
de dois anos dançando em grupos amadores de danças urbanas, com todo seu trabalho
dedicado a festivais competitivos de dança, que me permiti imaginar a dança como uma
possibilidade de carreira, de enxergar um futuro para mim. Foi depois de dois anos estudando
e tentando muitas provas de diferentes vestibulares, que consegui entrar na Universidade
Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma universidade pública quase inalcançável, para cursar
minha graduação, ainda que esta não tenha sido em dança e sim em Fisioterapia. Foi durante
um estágio de dois anos de iniciação científica em um laboratório de Bioquímica (que entrei,
inicialmente, porque precisava da bolsa de pesquisa oferecida) que percebi o quanto eu amava
pesquisar e me interessei por ciência pela primeira vez... e outras pesquisas também
aconteciam simultaneamente na minha vida, praticamente em paralelo, quanto mais entrava
no universo fascinante do Hip Hop e das danças urbanas, quando a Groove Party nasceu.
Foi também durante os dois últimos anos da graduação, que percebi a besteira que
tinha feito ao não bancar a escolha de fazer o curso que eu realmente gostaria: o de Dança.
Podia parecer simples como atravessar uma rua91, mas na prática a burocracia da
universidade, minha preguiça e falta de tempo de me dedicar a uma nova prova para trocar de
curso não me permitiram fazê-lo. Após a formatura, quando imediatamente abandonei todos
os trabalhos onde exercia a profissão de Fisioterapeuta, também foram dois anos dedicados a
tentar “viver de dança” – isso aqui naquela época, 2011 e 2012, era praticamente um sonho
para quem vinha do Hip Hop ou das danças urbanas, era uma frase muito repetida por nós e,
por isso, as aspas – que me fizeram acreditar e criar um plano para dançar em companhias
profissionais de dança. Imagina isso, eu, uma dançarina mulher de hip hop dance, de
waacking, de dancehall, de locking, querendo dançar numa dessas companhias que
apresentam espetáculos em festivais de dança contemporânea, viajando para vários países,
ganhando salário para dançar? Com certeza era isso que eu queria!

91
No campus na Ilha do Fundão, da UFRJ, o prédio do Centro de Ciências da Saúde, onde cursei Fisioterapia,
fica exatamente em frente ao prédio da Escola de Educação Física e Desportos, onde estão localizados os cursos
de Graduação e Pós-Graduação em Dança.
114

Mas de onde eu tirei essa ideia? Eu tinha alguns poucos amigos que tinham
alcançado esse “sonho” de viver de dança e dançavam em companhias profissionais. Sim,
amigos! Todos homens e cisgêneros. As mulheres que conheci e chegaram nesse lugar eram
poucas e absolutamente todas eram brancas e com alguma formação em balé clássico. Mas
para onde mais eu poderia ir? Então, decidi tomar como referência meus amigos homens e
pretos. Me parecia mais fácil tentar fazer meu corpo chegar a um nível técnico como o deles
do que enfiar um balé no meu corpo (não que eu não tenha tentado isso também). Foram dois
anos, mais uma vez. Foi durante dois anos que treinei tudo o que era acessível para mim. A
todos os treinos abertos de breaking, house ou qualquer outra dança urbana que eu ficasse
sabendo eu tentava ir. Fazia todas as aulas que conseguisse gratuidade, qualquer técnica era
bem vinda. Eu queria ser incrível, eu precisava ser. Como eu poderia me destacar e entrar em
um lugar onde não via ninguém como eu?
Mas acabei encontrando mais referências, pois, como dizem, quem procura acha. Vi
outras mulheres dançando em companhias profissionais, inclusive negras. Mas elas eram
bgirls e monstruosamente mais fortes fisicamente do que eu, como a dançarina da cidade de
Macaé, Aline Corrêa, que vi dançar e brilhar em duas das companhias para as quais também
fiz audição (a extinta Membros Cia de Dança, de Macaé, e Cia Híbrida, do Rio de Janeiro,
onde danço atualmente). Me machuquei muito nesse processo, mas consegui. Entrei numa
companhia de dança finalmente. Para minha surpresa, lá fiz amizade com outra mulher
incrível, a assistente de direção da companhia Aline Teixeira. Na época, ela já era professora
na graduação em Dança da UFRJ e estava concluindo seu mestrado. Que loucura! Uma
mulher negra de pele clara, inteligentíssima, professora da UFRJ, mestra e que ainda dançava
daquele jeito... foram mais dois anos convivendo com essa mulher para desejar uma nova
mudança. Também foi conhecendo outras referências que me firmei na ideia de pesquisar
dança mais profundamente, como quando conversei com Carolina Pires, doutoranda em
Sociologia e Direito na Universidade Federal Fluminense (UFF), arte-educadora,
pesquisadora e consultora em relações raciais no Brasil e na diáspora africana. Essa conversa
aconteceu numa mesa redonda, durante um evento de Hip Hop que aconteceu no Centro
Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro. A partir daí, veio mais uma grande mudança:
comecei a estudar para entrar em um mestrado em algum campo de artes. Não, não entrei logo
em seguida. Foi mais um processo de dois anos apenas para descobrir o que e como pesquisar.
Minha formação acadêmica inicial era no campo das ciências biológicas, de modo que não me
parecia muito útil entender de transporte molecular para falar da cultura hip hop e das danças
urbanas, que era o que de fato me interessava.
115

Assim entrei no Programa de Pós-Graduação em Dança da UFRJ. Lá estava eu, mais


uma vez naquela universidade, em outra época, após sua adesão à lei de cotas (cf. PICANÇO
et al, 2020), vendo muito mais gente como eu circulando naqueles corredores e estudando
algo que de fato eu almejava enquanto carreira. Dessa maneira chegamos até aqui, a uma
pesquisa que tenta amarrar tantas histórias e vivências, sobre culturas que pareciam novidade
no campo de estudos da dança, utilizando a escrevivência como metodologia de pesquisa e
partes importantes da minha vida como objeto de estudo.
Justamente pelas culturas hip hop e das danças urbanas parecerem novidade dentro
do campo de estudos da Dança, da Performance e da Performatividade, fiz a maior seção
desta dissertação, com objetivo inicial de contextualizar minha pesquisa, dizer de onde eu vim
(já que se trata de uma pesquisa de mim), explicar o recorte da cultura hip hop no Rio de
Janeiro e explicar que danças são essas que insistimos em chamar de danças urbanas.
Entretanto, durante o processo da pesquisa, veio uma pandemia sem precedentes. Um vírus
respiratório que pode ser letal, altamente contagioso e em tempos em que se deslocar de um
país para o outro é só uma questão de algumas horas de voo mexeu com tudo e todes. O
isolamento social trouxe um excesso de sociabilidade virtual e não era mais apenas entre as
gerações mais novas. Isso transformou não apenas a vida cotidiana das pessoas, mas também
consequentemente a política, as pesquisas em todas as grandes áreas de conhecimento e todos
os cronogramas planejados até o começo de 2020. Assim, muita coisa também foi mudando
dentro deste trabalho.
Novas discussões em torno do termo “danças urbanas” surgiram, o que nos permitiu
(quase obrigou, na verdade) aprofundar nossa pesquisa sobre o porquê político da escolha do
termo. Não buscamos entendê-lo meramente como um conceito de uma prática de dança, já
que o termo envolve várias práticas e pode, ao longo dos anos, englobar mais ou menos
práticas de dança nesta aliança. Acredito que esta tenha sido uma das contribuições mais
importantes desta pesquisa para o campo, pois o que era para ser um capítulo apenas para
contextualizá-la acabou se tornando um material rico que mostra quem são as/os/es agentes
destas culturas negras e periféricas, sua situação de precariedade social e as violências
subjetivas e físicas que o Racismo produz sobre esses corpos, além de dar voz a uma escrita
em primeira pessoa e plural, que diz como nós decidimos chamar o que nós fazemos. Somos o
que e quem dizemos que somos e a força deste performativo ganhou corpo na pesquisa.
Eu entendo que não consegui dar conta de tudo que gostaria, inclusive acho que a
discussão de gênero é um dos pontos mais fracos nessa pesquisa, mas isso é um também um
reflexo de minha história e de meu entendimento sobre a importância de falar sobre “raça”
116

antes de tudo. Fazer essa amarração entre a história da Groove e a minha, pensando em se ou
aonde essa pesquisa ainda poderia me levar, ou até mesmo se eu fecho a firma e finalizo as
produções do coletivo... foram muitos anos de festa com outros tantos de pesquisa com
muitos desdobramentos possíveis e referências que por vezes ficaram de fora. Algumas destas
inclusive porque eu não pude compreender muito bem. Se a ideia é eu falar junto com e para a
minha galera, eu precisava compreender a linguagem bem o suficiente pra traduzir o
“academiquês”, o que nem sempre consegui e não é vergonha nenhuma escrever isso aqui.
Não foram apenas os estudos acadêmicos que me formaram. O conhecimento é um dos pilares
da cultura hip hop e ele foi – e segue sendo – adquirido através da vivência, da conversa, da
dança, da música e da festa.
Realizar uma pesquisa desta abrangência, apenas durante o processo de conclusão de
mestrado e escrita de uma dissertação, ainda que este tenha se estendido por mais dois anos
(olha eles aí de novo), parecia que seria impossível, ainda mais com pretensões grandiosas,
como a que trouxemos no início do texto: fazer com que o Hip Hop renascesse em uma
literatura com tom acadêmico e artístico. Mas não falamos em renascer como se o movimento
tivesse morrido. Estamos falando de uma cultura viva e em movimento constante, e renascer
aqui segue a liberdade poética dos MCs, que entende que a renovação da cultura acontece a
cada reiteração de nossas ações nela, reelaborando-a constantemente.
Mas, apesar de toda beleza que vemos nas linguagens artísticas das quais falamos
aqui, não poderíamos romantizar essa escrita. Pois quando falamos das performatividades de
agentes-praticantes da cultura hip hop e das danças urbanas, existe um protagonismo da
negritude, que aparece na estética da Groove Party. Falar das violências produzidas pelo
racismo quando falamos de performatividade negra torna-se necessário e inevitável.
Entretanto, na mesma proporção em que falamos das problemáticas dessas violências, falamos
sobre o acolhimento produzido pelo trabalho como um todo. O quilombismo tratado pelos
autores que compartilham o sobrenome Nascimento (Beatriz Nascimento, 1985; Abdias
Nascimento, 2002; Tatiana Nascimento, 2019) foi o conceito que coube à Groove Party em
todas suas camadas. Analisá-la como um quilombo acabou nos bastando, o que, entretanto,
pode ter deixado uma lacuna a ser preenchida no futuro, pois fomos abandonando pelo nosso
caminho literaturas que já pensavam na performatividade do ritual da festa.
Apesar de todos os perrengues, relativos à produção da festa, das demais ações da
Groove Party ou da finalização desta dissertação, acredito que conseguimos chegar a algum
lugar. Algum lugar que acolhe, mas não ignora conflitos e diferenças. Algum lugar que
celebra, mas não deixa passar as mágoas e raivas, advindas dos traumas subjetivos que
117

adquirimos. Como foi difícil pensar teoricamente sobre uma vivência que nos parecia tão
natural. Era óbvio que a vivência dentro da festa, da cultura hip hop e das danças urbanas nos
modificava e sabíamos que era de maneira positiva. Sentíamos esse poder. Poder inclusive,
que só poderia ter sido adquirido de maneira coletiva. A transformação definitiva na
autoestima de cada pessoa envolvida na Groove Party, só era possível porque havia troca. Só
era possível, porque esta festa performava um quilombo desde antes de entendermos o que
isso de fato queria dizer.
Foram muitos anos de produção, com muitos erros e muitos acertos. A autocrítica se
fez necessária diversas vezes e isso desde 2009, quando a Groove Party começou. Em
novembro de 2019, a comemoração dos dez anos da festa, nosso último evento presencial
antes da pandemia, foi repleto de lembranças boas com homenagens emocionantes, mas
também gerou prejuízos financeiros que só consegui compensar aproximadamente um ano
depois.
Fizemos praticamente um pequeno festival, com oficinas de dança, grafite e
discotecagem; exposição de fotos, com a série fotográfica intitulada Elã, com a temática de
dança em espaços urbanos, de Lucas Sá (um dos melhores fotógrafos que tivemos trabalhando
conosco); uma cypher aberta ao público, ressignificando o teto do prédio do Centro
Coreográfico da Cidade do Rio de Janeiro, maior centro coreográfico da América Latina
ainda hoje – em uma época, inclusive, em que o espaço estava sob a ameaça de ser
desapropriado da Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e reacoplado à rede de supermercado
que possuía o prédio anexo (cf. PREFEITURA…, 2020) –; além da nossa tradicional festa
com um line up composto pelas/os/es DJs que mais marcaram a história da nossa festa, como
DJ Nyack, André Rockmaster, EveHive, Will Speedy e HEYJIMMYJAY, além de residentes
da época, Marie Linhares e Bruno X.
O resultado final foi lindo, mas o processo nem tanto. Era muito trabalho. Quisemos
ousar e fazer algo muito maior e mais complexo do que estávamos acostumados. Teria sido
um passo maior do que nossas pernas eram capazes de andar? Ou seria, mais uma vez, a
questão do dinheiro, que não era certo que entraria, fazendo com que a energia direcionada
para a realização daquela edição, não fosse suficiente em relação ao que ela pedia?
Não tenho respostas para essas questões pois nem a pesquisa conseguiu responder a
todas as questões que fui levantando ao fazer essa pesquisa sobre mim mesma. Também não
faço juízo de valores para a energia dedicada ao projeto “Groove Party”, de cada pessoa que
fez parte da nossa história desde o começo. Mas posso afirmar duas coisas, após essa
118

experiência: primeiro, que mais uma vez, eu, “a bruta, a braba, a forte”92 fiz, como liderança
do coletivo Groove Party, a coisa acontecer e ser maravilhoso para quem estava lá curtindo
cada ação daquele evento; segundo, que não fazemos nada sozinhos/as/es. Seja falando de
produção, de coletivo, de mobilização cultural ou de pesquisa, nada, absolutamente nada disso
se faz sozinho.
Foi nesse evento, no dia 15 de novembro que recebemos aquela homenagem da
Universal Zulu Nation, citada no final do segundo capítulo da dissertação. Como poderia
dizer, depois disso, que todo aquele perrengue não valeu a pena? Mas se me perguntassem se
eu toparia viver a produção deste evento de dez anos da Groove Party de novo ou a pesquisa
deste mestrado, eu responderia rápida e rispidamente que “não, de jeito nenhum”. Agora, com
a licença de poder ser, enfim, bem humana em minha subjetividade e, por vezes, contraditória,
se a pergunta fosse se eu toparia viver todos esses anos de Groove Party de novo, de 2009 até
aqui, a resposta, que viria calma, serena e acompanhada de um sorriso abobalhado de orgulho
no rosto, e uma satisfação que é comunitária seria “Sim, com toda certeza!”.
Eu precisei de um mestrado inteiro para entender de verdade que a Groove Party é
meu maior legado material e imaterial para a comunidade da dança carioca e para o
movimento Hip Hop. E com essa dissertação, somada a todos esses anos de Groove, eu quero,
aliás, eu espero que as próximas gerações não precisem de tanto tempo para terem a
autoestima suficiente para reconhecerem seu próprio valor e a importância da Cultura que
vivenciam, sem parecerem prepotentes. Numa sociedade como a nossa, a aliança em festa não
é meramente uma “válvula de escape” das opressões e estresses do dia a dia. Ela é a potência
dos nossos corpos, das nossas diferenças juntas! Mostrando a força da nossa celebração em
sonhar novos lugares que podemos chegar festejando e dançando.
Tentamos falar aqui sobre nossa potência política tanto enquanto comunidade na
dança, quanto como corpos em festa que seguem transmitindo e reelaborando o conhecimento
incorporado pela cultura hip hop que nasceu como festa. E é botando a “raba pra rolo” na
pista e meu texto pra rolo aqui, que entrego minha pesquisa e uma grande parte da minha vida
a quem lê minhas memórias compartilhadas.

92
Referência à música de mesmo nome da rapper N.I.N.A. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=iOFdEpMFMyA. Acesso em: 19 Jan. 2023.
119

6 REFERÊNCIAS
@felixpimenta e @blackjhe. Festaamem. Nessa edição conversando sobre a síndrome do
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APÊNDICE I – Carta-Homenagem da Universal Zulu Nation


127

APÊNDICE II – Links dos vídeos de depoimentos de Stella Messias e


Camylla Brainer Lua
Depoimentos realizados para o Projeto no Edital Prêmio de Ações Locais de 2020, da
Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro

Depoimento de Camylla Brainer Lua Francisco sobre


importância da Groove Party, para Projeto no Edital
Prêmio de Ações Locais de 2020, da Prefeitura
Municipal do Rio de Janeiro

https://youtube.com/shorts/pSQObBgkgWU

Depoimento de Stella Messias sobre importância da


Groove Party, para Projeto no Edital Prêmio de Ações
Locais de 2020, da Prefeitura Municipal do Rio de
Janeiro
https://youtu.be/wZQk8XBs5zw
128

APÊNDICE III – Links para as produções audiovisuais da Groove Party

Primeira temporada do Podcast “MixCuta Groove!”

Através do Programa Cultura Presente nas Redes, promovido pelo Governo do Estado do Rio
de Janeiro/Secretaria de Cultura e Economia Criativa, O “MixCuta Groove!” é a união de 2
coletivos com o objetivo comum de levar cultura negra e música de qualidade para a
população fluminense! Luciana Monnerat - Coletivo Groove Party - convida Nathan Mafra e
DJ Will Ow - Coletivo MixCuta - para falar dos universos da dança e da música, em uma
minissérie para Podcast em 4 capítulos, que ficarão disponíveis no Spotify e YouTube.

https://www.youtube.com/playlist?list=PLNtmwsiS1hkhiP25dKvt-SpkmerYket3e

Segunda temporada do Podcast “MixCuta Groove!”

Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro e Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro


apresentam “MixCuta Groove!” Projeto contemplado pela Lei Aldir Blanc, pelo edital
“Prêmio de Ações Locais”. Na segunda temporada do Podcast "Mixcuta Groove!" sobre
cultura negra, Luciana Monnerat (Groove Party), DJ Will Ow (MixCuta) e DJ Tamy Reis
convidam DJs e Dançarines para torcar essa ideia unindo dança e música.

https://www.youtube.com/playlist?list=PLNtmwsiS1hkgBi_q19XtH7E45U-QHVf9B
129

Canal do Vímeo, com produções audiovisuais da


Groove Party

https://vimeo.com/grooveparty

Perfil do Spotify, com playlists musicais selecionadas


por DJs da Groove Party

https://open.spotify.com/user/jqn3z7q2hjf5rhldwzuy9li38?si=13ec843d681a45fc&nd=1

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