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Teatralidade tátil: alterações no ato do espectador

O que advém, com o desaparecimento da ilusão e o noção de obra de arte, que deixa de ser concebida
declínio da aura nas obras de arte, é um crescimento com a aura que a envolvia tradicionalmente. A
considerável de possibilidades com as quais podemos produção teatral pode ser considerada, desde então,
jogar (Walter Benjamin). não como obra, mas como objeto artístico, passando
a assumir função social bastante diversa daquela

O
compreendida até então.
modo de atuação proposto ao
espectador vem sofrendo alterações
significativas nos últimos séculos, O mergulho no universo ficcional
em diálogo estreito com as
transformações observadas, tanto Afinado com os ideais iluministas que propunham
nas propostas formais dos artistas, importantes reformas políticas e sociais, o drama
quanto no contexto social dos diversos períodos, burguês se afirma no decorrer do século XVIII em
dando conta do caráter histórico que condiciona a contraposição à tragédia neoclássica, que
recepção teatral. Pois a relação do espectador com o predominava nos palcos europeus de então –
teatro está intimamente relacionada com a maneira, especialmente na França –, filiada aos preceitos
própria a cada época, de ver-sentirpensar o mundo. absolutistas da nobreza dominante. Essa forma
As reflexões seguintes buscam elaborar algumas

Flávio Desgranges é professor do Departamento de Artes Cênicas e do Programa de Pós-Graduação


em Artes Cênicas da ECA-USP.

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características e distinções que marcam os dramática, que acompanha o nascimento e o
movimentos teatrais que, desde o Iluminismo, vêm estabelecimento da classe social que lhe empresta o
operando transformações subseqüentes e que nome, vai, aos poucos, afastando as antigas
constituem traços marcantes para compreendermos convenções e estilizações da cena, em conformidade
o ato do espectador em nossos dias. Ressaltarei aqui, com o refinamento de seus propósitos estéticos.
especialmente, aspectos da teatralidade recente, em A renovação artística que marca a
que, como tentarei descrever, a recepção passa a ser transição da tragédia classicista e heróica
compreendida por seu caráter de experiência, que, para a forma dramática nascente se faz,
pois, em tensão com as lutas da burguesia
Flávio Desgranges em ascensão no período. O programa e a
apologia do drama burguês são realizados
por dramaturgos – o inglês Lillo, os
franceses Diderot e Mercier, e o alemão
Lenz – que, além de escreverem as novas
peças, articulam também os tratados
para se efetivar, depende de uma disponibilidade teóricos que defendem e justificam as
distinta do espectador, inaugurando outro modo mudanças na arte teatral. O drama surge
participativo. Além de alterar significativamente a como crítica ao existente, valendo-se de

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argumentos e soluções formais que da comédia jocosa” (Diderot, 2005, p. 19). George
mantêm em tensão as naturezas política e Lillo, para defender o ponto de vista dos
poética de seus princípios. Os embates da dramaturgos burgueses, argumenta que o herói
nova forma dramática se colocam em trágico não precisa necessariamente ser um nobre,
consonância com as reivindicações da mas um homem com espírito nobre (Szondi, 2004). E
classe social que idealizava as ressalta que não se encontra em Aristóteles uma
transformações político-sociais em definição taxativa sobre a condição principesca do
curso. São colocados em jogo, deste herói. A nobreza, sugere o autor inglês, precisa ser
modo, aspectos fundamentais do aferida pelo caráter de um homem, por sua fala, por
Iluminismo: a constituição de homens suas decisões, e não por sua condição social. Assim,
livres, capazes de traçar seus próprios um cidadão comum – ou, mais especificamente, um
rumos, para além de qualquer submissão burguês – também pode ser tomado como herói nas
política; a defesa pelo direito de cada um peças teatrais. Além do que, a ampliação da condição
à consciência religiosa; e o de nobreza do herói pode significar a própria
estabelecimento de bases morais que ampliação do alcance do teatro, que não precisa mais
fundamentem o progresso da se restringir a um pequeno segmento da sociedade,
humanidade. mas pode interessar e atingir um vasto contingente
Em defesa dos princípios da população. Ou seja, segundo a astuta
dramáticos, os teóricos burgueses se argumentação de Lillo, não é o burguês que depende
relacionam de maneira crítica e do teatro, mas o teatro que depende do burguês.
revisionista com os escritos de Outra importante questão levantada no
Aristóteles, que inspiravam a tragédia período acerca da leitura da Poética se refere aos
heróica em voga. Para afirmarem seus efeitos da tragédia em sua relação com o público. A
postulados artísticos, relacionados com a noção, largamente difundida então, de que a poesia
defesa de suas causas políticas, precisam dramática se caracterizaria pelo ensinamento que
partir para o embate no âmbito pode proporcionar aos espectadores, que poderiam
conceitual, questionando a leitura da aprender com os erros cometidos pelo herói, advém
Poética empreendida pelos teóricos de já de uma reinterpretação de Aristóteles realizada
então. As interpretações dos escritos pelos teóricos renascentistas. E que foi aproveitada
aristotélicos se mostram, de ambos os pelos teóricos burgueses no Iluminismo para a
lados, carregadas pela luta deflagrada no concepção dos princípios da nova arte dramática. O
palco histórico do período pelas classes drama burguês utiliza-se deste potencial de
sociais em conflito. aprendizagem, já presente nos efeitos da tragédia
Uma das questões de fundamental heróica, com o intuito de ampliá-lo (com
importância para que o drama burguês se adaptações), estabelecendo uma tensão entre a nova
afirme está na possibilidade de que forma e os propósitos da burguesia em ascensão. A
personagens pertencentes a essa classe fábula deve servir como um exemplo para a conduta
social se tornem protagonistas das novas na vida; um exemplo negativo, do qual se podem
peças. Pois, como anota Diderot, as tirar lições.
regras do teatro clássico indicam que, “se Os efeitos do drama burguês estão, assim,
quiser representar uma fábula trágica, o voltados para a correção de comportamentos
dramaturgo deve escolher personagens desregrados, que possam ser considerados como
de condição principesca, reservando os prejudiciais ao bem-comum e que contrariem os
burgueses ao estilo baixo interesses da sociedade. A catarse aristotélica, por
sua vez, passa a ser compreendida como vazão à
sentimentalidade, a purgação entendida como
correção pelas lágrimas.
O drama burguês, surgido em tempos de
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afirmação do núcleo familiar, faz das reprimendas de

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conduta seu efeito primordial. Como destaca Lillo, que a constituição dos aspectos
“convém ao palco” alertar a juventude “dos vícios individuais torna-se eixo para a
destrutivos” (Szondi, 2004, p. 38). As tramas se composição da lógica das ações. Se na
voltam prioritariamente para a apresentação e a antiguidade o destino geria as peripécias
recriminação de falhas individuais, como a dos heróis, em tempos iluministas, de
incapacidade de organizar seus apetites irracionais, constituição de sujeitos livres e de
seus desejos mundanos, e a valorização do amor rompimento com a inexorabilidade das
familial e do comportamento respeitoso entre os determinações divinas, a trajetória de
membros do lar, base da sociedade burguesa. Tudo cada ser humano precisa ser composta
em nome dos ideais iluministas de constituição de por seus próprios atos. A constituição da
sujeitos livres, capazes de gerir por si mesmos as suas trama se dá a partir da caracterização
opções de vida, mas sem perder de vista o individual, são os “personagens que
compromisso moral em sua relação com as criam suas próprias ações, que movem
instituições sociais, especialmente aquelas que por si mesmos a grande máquina, de
ganham terreno nesse momento de transição para a forma autônoma e inelutável, sem
ética burguesa. precisar das divindades e das nuvens”
A força dramática de convicção e de persuasão (Lenz, 2006, p. 38).
se estabelece em cena como uma cortina de lágrimas, A comoção vivida pelo
que será rasgada e revelada em seus meandros, mais personagem precisa ser cuidadosamente
tarde, pelos dramaturgos e encenadores modernos. construída, de modo que o público possa
A relação do espectador com a cena teatral se vê acompanhar o herói. Somente dessa
caracterizada por forte envolvimento emocional, maneira se pode provocar o almejado
marcada por identificação irrestrita com o impacto emocional capaz de
protagonista. Colado à pele do herói, cada indivíduo “transtornar” o espectador. Pois, “o
da platéia vivencia os acontecimentos que poeta ludibria a razão do homem
constituem a sua trajetória: suas dores, sofrimentos, instruído, como a governanta ludibria a
agruras, e também suas alegrias, descobertas, fraqueza de espírito da criança” (Diderot,
resoluções. As peripécias do protagonista são 2005, p. 65).
cuidadosamente concebidas de maneira a O palco dramático se apresenta
produzirem importantes lições para o público. O como uma representação sintética da
espectador se vê convidado a vivenciar com o herói, vida social, como um universo fechado
não apenas as suas falhas, mas, e principalmente, as concebido diante do espectador, que
reprimendas que lhe são impostas no decorrer da observa esse pequeno mundo de
trama. esguelha, como se não estivesse ali.
Para se adequar aos princípios do drama, em Impelido a se lançar na corrente da ação
sua busca por caracterizar o palco como fração da dramática, a mergulhar por inteiro no
própria vida, e propor ao espectador envolvimento e ambiente ilusório cuidadosamente criado
comoção, a cena precisa abandonar qualquer recurso pelo autor (que se faz ausente), o leitor
em que a teatralidade esteja revelada. Dessa maneira, da cena observa esse mundo fictício sob
os coros, o verso, os maneirismos e exageros dos o ponto de vista do protagonista. Em
atores, a descontinuidade das cenas, os apartes, ou conformidade com os ideais burgueses
qualquer modo de relação direta com o público vão de valorização dos interesses privados e
pouco a pouco sendo abolidos. da livre iniciativa, o ensinamento moral,
A caracterização psicológica de advindo da empatia com
cada personagem torna-se, a partir de
então, fundamental na definição do
encadeamento da ação e na sustentação
da coerência da trama. O drama burguês
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se compõe a partir da “psico-lógica”, em

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o protagonista, se constitui como protagonista; colado ao herói, o


principal vetor de leitura – e de efeito espectador imerge na trama.
estético – proposto ao espectador. O drama moderno, por sua vez, se vale
A atividade estética no drama de variados recursos cênicos narrativos,
burguês é compreendida – já nas que se
propostas dos dramaturgos do século
XVIII, e com notável refinamento nas
soluções técnicas e artísticas de épocas
posteriores – como assimilada a um ato
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de empatia.

“A idéia é a seguinte: o objeto estético


caracterizam pela assunção da teatralidade, e visam a
– os produtos da arte, os fenômenos
ruptura com a ilusão do palco dramático. O princípio
da natureza e da vida – expressa certo
dramático se mostra interrompido, problematizado,
estado interior cujo conhecimento
cada vez que um elemento cênico se revela, cada vez
estético consiste em vivenciar esse
que o teatro se apresenta enquanto tal, quebrando
estado interior” (Bakhtin, 1992, p. 78).
com a lógica do drama fechado. As brechas no
mecanismo dramático rompem com a ficcionalidade
O ato do espectador tem como
irrestrita e expulsam o espectador da vivência
eixo principal a própria imersão no
interior da obra, lançando-o de volta à própria
mundo ficcional. O modo de concepção
consciência, convidando-o a desempenhar um ato
das obras de arte, em consonância com o
propriamente estético, reflexivo.
modo de compreensão do ato de leitura,
indica a busca por intensificar a atividade “Devo identificar-me com o outro e ver o mundo
do espectador, partindo dos próprios através de seu sistema de valores, tal como ele o vê;
parâmetros de recepção estética em voga devo colocar-me em seu lugar, e depois, de volta
no período. ao meu lugar, completar seu horizonte com tudo o
que se descobre do lugar que ocupo, fora dele;
devo emoldurálo, criar-lhe um ambiente que o
A explicitação do ato estético acabe, mediante o excedente da minha visão, de
meu saber, de meu desejo, de meu sentimento. [...]
O drama moderno surge como oposição A atividade estética propriamente dita começa
a essa empatia por abandono (Brecht, 1978) justamente quando estamos de volta a nós
estabelecida pelo drama burguês. O mesmos, quando estamos no nosso próprio lugar,
convite críticoreflexivo feito ao fora da pessoa que sofre, quando damos forma e
espectador, nesse caso, pode ser acabamento ao material recolhido mediante a
compreendido como um retorno nossa identificação com o outro” (Bakhtin, 1992,
freqüente à própria consciência, p. 45-6).
descolando-se da pele do herói e
reassumindo seu lugar de observador, seu Esses movimentos de ir e vir do espectador –
ponto de vista, fora do mundo fictício, que, por empatia com o protagonista, adentra no
para, desse lugar que lhe é próprio, interior da obra ficcional, e, ante as interrupções da
elaborar um juízo de valor acerca dos lógica dramática operadas pelos recursos cênicos
acontecimentos levados à cena. Ou seja, narrativos (épicos), se distancia da ação dramática, e
a identificação com o personagem não retorna à própria consciência para empreender um
está inviabilizada, mas a empatia não se ato propriamente autoral e analítico – caracterizam o
efetiva de modo irrefletido. O mergulho efeito estético proposto pelo drama moderno.
no interior do universo ficcional se dá Ao contrário daquela teatralidade surgida em
ainda via identificação com o consonância com os princípios burgueses, na cena

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Teatralidade tátil: alterações no ato do espectador

moderna o autor se faz presente, revela as soluções como definida por Walter Benjamin
artísticas, expõe os recursos cênicos que utiliza em (1993), e, em seguida, retornarmos ao fio
sua montagem, mostra a sua concepção de teatro, analítico acerca das alterações históricas
assume posicionamentos críticos, e estimula o na compreensão do ato proposto ao
espectador a fazer o mesmo. espectador teatral. Os vislumbres
Efetiva-se, assim, a noção de obra aberta, em que a benjaminianos acerca das mudanças na
ambigüidade das opções de linguagem, a perceptividade, que se operam em
multiplicidade de significados que convivem em um diálogo com a ampliação no campo de
mesmo significante, constitui-se em uma das atuação da arte, podem abrir
finalidades explícitas da obra, um valor de possibilidades de análise das transições
importância destacada na proposta feita ao efetivadas pelo teatro pós-dramático
espectador. O artista se propõe a: (Lehmann, 2007). E possibilitam
ressaltar, especialmente, como a
“Definir os limites dentro dos quais uma obra pode teatralidade recente se estabelece em
lograr o máximo de ambigüidade e depender da tensão com (e por recusa a) os princípios
intervenção ativa do consumidor, sem, contudo, estéticos do drama.
deixar de ser “obra”. Entendese por “obra” um Diante de uma pintura de Cézanne,
objeto dotado de propriedades estruturais em relato de visita a uma exposição de
definidas, que permitam, mas coordenem, o arte, em 1926, Benjamin, em seu “Diário
revezamento das interpretações, o deslocar-se das de Moscou”, descreve o modo distinto
perspectivas” (Eco, 2005, p. 23). com que se relaciona com a obra desse
artista francês. O que se constitui em
As alterações no modo de compreender a vida rastro importante para pensarmos as
social – que não podia mais ficar restrita às questões mudanças na recepção artística desde os
de âmbito privado, como era característica do drama primeiros lances da modernidade, e, em
burguês, mas queria ampliarse para a dimensão seguida, nos aproximarmos de suas
pública dos acontecimentos – se efetivam em tensão reverberações na contemporaneidade.
com as alterações formais propostas pelo drama
moderno. A abordagem social das temáticas quebra “Olhando para um quadro
necessariamente com a linearidade própria ao extraordinariamente belo de Cézanne,
princípio dramático, pois a trama não está mais ocorreu-me como é errado, até
circunscrita a uma abordagem fechada, psicológica, linguisticamente, falar-se de
intersubjetiva dos fatos. O que desmonta com o “empatia”. Pareceu-me que
mecanismo de causa e conseqüência que faz avançar compreender um quadro – até onde
“com naturalidade” as situações, provocando isso se dá – não se trata, de maneira
interrupções na corrente dramática, gerando alguma, de penetrar em seu espaço,
brechas, espaços de análise. A teatralidade assumida mas, muito mais, do avanço deste
rompe com a ilusão do mundo-palco, propondo que espaço – ou de pontos bem
o espectador se distancie da ficcionalidade, se determinados e diferenciados dele –
descole da pele do herói e retorne à própria sobre nós. Ele se abre para nós em
consciência. A cena moderna não inviabiliza, pois, a seus cantos e ângulos nos quais
identificação do espectador com o protagonista, mas acreditamos localizar experiências
quer impedir que a empatia e o mergulho no cruciais do passado; há algo de
universo ficcional se dêem de maneira abandonada, inexplicavelmente familiar nesses
sem retorno reflexivo. pontos” (Benjamin, 1989, p. 53).
A recepção tátil
A descrição da experiência diante
Peço licença para fazer aqui uma breve do quadro de Cézanne, e a forma
digressão, de maneira que possamos nos particular com que Benjamin se
aproximar da idéia de recepção tátil, tal

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relacionou com essa pintura, podem ser embates físicos e emocionais


melhor compreendidas se recorrermos desagradáveis.
A mudança na percepção inibe a
produção de memória (traços
mnemônicos inconscientes) e dificulta o
acesso freqüente aos conteúdos
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esquecidos, fundamentais para a
elaboração da experiência. A memória,
a sua definição, estabelecida para o filósofo alemão, constitui-se
posteriormente, de recepção tátil. No justamente pelos fatos significativos que
ensaio “A obra de arte na era de sua não foram filtrados pelo consciente e são
reprodutibilidade técnica” (Benjamin, lançados nas profundezas da psique.
1993), escrito dez anos depois, em 1936, Esses conteúdos, ao virem à tona,
o filósofo estabelece que a recepção tátil trazendo imagens do passado, provocam
se efetiva de modo inverso ao da o indivíduo a se debruçar sobre as
recepção contemplativa, pois, ao invés de situações vividas e a chocar os
convidar o espectador a mergulhar na
estrutura interna da obra, faz imergir o
objeto artístico no espectador, atingindo-
o organicamente – daí a noção de tátil. O 16
objeto como que avança sobre o
indivíduo, toca-lhe o íntimo e, de maneira
inesperada, faz surgir conteúdos ovos da experiência, fazendo nascer deles o
esquecidos, relacionados com a memória pensamento crítico.
involuntária. O retorno do esquecido, ou
do recalcado – em uma acepção “Benjamin acredita numa oposição entre a
psicanalítica que marca também os memória e a consciência que é similar à distinção
estudos de Benjamin –, possibilita que entre memória voluntária e memória involuntária
restos da história pessoal, associados à na obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust.
história coletiva, venham à tona, prontos Para ambos, a experiência ocorre quando traços
para serem elaborados pelo espectador. mnemônicos inconscientes na memória são
A percepção sensível do indivíduo despertados, casualmente ou não, por algum
moderno, destaca Benjamin, está acontecimento ou objeto exterior, realizando num
premida por uma vivência urbana instante uma feliz conjunção de significados capaz
marcada pelos riscos e choques do de modificar o rumo de uma vida, de uma história”
(Palhares, 2008, p. 78).
cotidiano, pela padronização gestual,
pelo consciente assoberbado, e pelo
desestímulo à atuação de regiões As alterações na percepção solicitariam
profundas e sensíveis da psique. Resta- procedimentos artísticos modificados para provocar
lhe o empobrecimento da experiência e a irrupção da memória involuntária. Somente uma
da linguagem. Ameaçado, vigilante, recepção distraída, em que o consciente seja
fugidio, voltado para seus interesses surpreendido, pego desatento, poderia se deixar
privados, o indivíduo se mostra inapto, atingir pelo instante significativo em que, na relação
seja para perceber o olhar que lhe é com o objeto artístico, o olhar nos é retribuído, nos
dirigido, seja para retornar o olhar que lhe toca o íntimo, e faz surgir o inadvertido, trazendo à
é lançado pelos objetos e pelos outros. A tona experiências cruciais do passado. O encontro
razão operacional passa a tomar sempre com a arte se coloca, desde então, para Benjamin,
a frente, calculando e catalogando os fundamentalmente vinculado com a proposição e a
acontecimentos, protegendo-lhe de produção de experiências.

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Teatralidade tátil: alterações no ato do espectador

O que indica a necessidade de efetivação de vale da memória de maneira voluntária, obediente,


outra forma narrativa, outra abordagem dos fatos e pronta para cumprir a única função de registrar,
ficcionalidades, que, especialmente, estabeleça classificar e inventariar o passado.
contato com os conteúdos inauditos da memória A falta de lógica a priori estabelecida se
involuntária. relaciona com a noção de uma recepção
compreendida como experiência, que se constitui na
“Essas mutações culturais e históricas são lentas e própria junção/criação dos cacos de narrativa, ou em
não seguem mecanismos deterministas, mas elas quaisquer jogos propostos pelo artista e realizados
não podem ser eliminadas por boa vontade ou pelo espectador em sua relação com o objeto
decisão pessoal. Assim, mesmo que se lamente o artístico. O que cria condições para uma produção
desaparecimento das formas tradicionais de contar, radicalmente autoral do espectador, que passa a
o desaparecimento das lembranças compartilhadas produzir variados elementos de significação,
e de uma memória coletiva (...), o desaparecimento justapondo-os àqueles propostos pelo autor. Um
da escuta paciente e respeitosa dos anciãos, o conjunto de imagens, textos, texturas, sensações,
desenvolvimento capitalista e técnico emoções, afetos, mais ou menos definidos,
contemporâneo torna ilusória qualquer volta a suscitados a partir da escrita do artista, e que, ainda
essas formas comunitárias de vida, de lembrança e
que não façam parte do texto organizado pelo autor,
de narração (formas que são idealizadas com
se fazem presentes na leitura do espectador. Cabe a
facilidade retrospectivamente). Trata-se muito
este, ainda, tecer relações e estabelecer sentidos
mais de inventar outras formas de memória e de
possíveis entre os diversos conteúdos significativos
narração (...)” (Gagnebin, 2008, p. 61).
suscitados durante o ato de leitura. Trata-se cada vez
menos, nesse caso, de entender o que o autor quer
Benjamin não clama por uma volta nostálgica
dizer, de uma recepção contemplativa – que, como é
ao passado, mas saúda outra narratividade, tomada
característico do princípio dramático, vai, com maior
como uma trama de espaço e tempo que se abre
ou menor envolvimento emocional, acompanhando
como precipício, convidando o espectador a um
a escrita, compreendendo e estabelecendo
mergulho em si mesmo e produzindo uma
associações lógicas –, e, mais, de uma postura atenta
experiência aurática a partir de uma arte não-aurática.
e distraída, disponível a criar textos inauditos e
Se a experiência aurática da arte tradicional estava
sentidos improváveis a partir da proposta do autor.
calcada no mergulho no interior da obra, a
experiência da arte nãoaurática implica o espectador
no ato artístico, em que a leitura só pode efetivar-se
A inversão receptiva
na própria produção do participante, impingido-o a
uma atuação efetiva, já que passa necessariamente Se o drama moderno se estrutura como
por suas entranhas. questionamento ao drama burguês, o
A imagem mnêmica se constitui de lembranças mesmo se pode compreender com a
que surgem espontaneamente, sem a vontade e o irrupção da teatralidade recente, que
controle do sujeito. Trata-se, portanto, de imagens pauta suas invenções na recusa ao
que o indivíduo não escolhe, que não se relacionam princípio dramático, que ainda se
com a memória voluntária, o contrário de um mantém nas cenas da vanguarda da
processo consciente de rememoração. O que primeira metade do século passado.
configura outra noção de memória e de sujeito, pois Como vimos, o drama moderno, para
“este não é mais definido antes de tudo por sua efetivar as idas e vindas do espectador –
atividade consciente, voluntária, mas também por o mergulho no mundo ficcional via
um tipo de atividade passiva, receptiva”, e esta identificação com o personagem e o
receptividade é “interpretada agora não em termos retorno à própria consciência para a
de inércia, mas em termos positivos de efetivação do ato estético – mantém a
disponibilidade atenta” (Gagnebin, 2008, p. 65). ação dramática como eixo da cena,
Uma compreensão oposta à concepção clássica de calcada na trama que avança a partir de
um sujeito racional, consciente, soberano, que se

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diálogos e da constituição psicológica de ato de leitura valendo-se, tanto da análise


personagens. Ainda que essa constituição de elementos de significação oriundos do
dramática se efetive no drama moderno texto cênico proposto pelo autor, quanto
com quebras e rupturas freqüentes, de conteúdos outros, percebidos,
evitando o abandono do espectador na lembrados e criados durante seu percurso
corrente da ação, o vetor de leitura de leitura.
mantém-se marcado pela identificação,
por colar-se a pele do herói, mesmo que “Experimentar um texto significa que
para tecer uma análise crítica em face dos algo está acontecendo com nossa
gestos do experiência. (...) Quanto mais
freqüentes esses momentos durante a
leitura, tanto mais se evidencia a
interação entre a presença do texto e
nossa experiência relegada ao
17 passado” (Iser, 1999, p. 34).

O movimento do espectador no
protagonista e do contexto histórico- drama se volta para a interpretação da
social que determina as atitudes dos cena apresentada, em que se debruça
personagens. O que não acontece na sobre a mesma, e tece associações entre
teatralidade pós-dramática, que, como fatos históricos, obras artísticas
sugere a própria denominação, refuta o anteriores, acepções teóricas, momentos
princípio dramático, abandona a “psico- vividos,
lógica”, e não opera mais
prioritariamente por empatia e imersão
no universo ficcional criado pelo autor.
No teatro pós-dramático, o que se
observa – e são justamente as 18

formulações teóricas de Benjamin acerca


da recepção tátil que nos possibilitam
essa análise – é uma inversão da relação e organiza uma compreensão própria da obra. Nessa
travada entre espectador e proposta operação, o entendimento do que o autor quer dizer,
cênica. Se, no princípio estético do a maneira como vê o mundo e estabelece uma síntese
drama, que mantém a noção tradicional deste, está em primeiro plano. Ante a teatralidade
da obra de arte como síntese pós-dramática, o espectador opera não sobre, mas a
representativa do mundo, a constituição partir da proposta do autor – ou mesmo para além
do mundo fictício convida o espectador dessa proposta –, e o que concebe, ainda que se dê
ao mergulho, na teatralidade pós- em relação com o texto cênico, se constitui em face
dramática – que se estrutura não como da impossibilidade de executar a tarefa de entender
obra, mas como objeto artístico, que o que o autor quer dizer, pois não há uma síntese a
trabalha com a idéia de algo que não está ser desvendada, mas lances sensoriais, imaginativos
pronto, e que para efetivar-se solicita e analíticos a serem desempenhados. A ludicidade
ampla atuação do espectador – a está fortemente presente no movimento proposto ao
recepção opera de modo contrário: o espectador. O que advém, portanto, com o
objeto artístico é que invade o desaparecimento da ilusão dramática, como aponta
espectador, atingindo-o em seu íntimo, Benjamin na epígrafe que abre este texto, é um
fazendo surgir sensações, percepções, crescimento considerável de possibilidades com as
imagens, entre outras produções, quais podemos jogar.
advindas da experiência pessoal do
participante. O espectador desempenha o

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Teatralidade tátil: alterações no ato do espectador

“Uma poética da compreensão é substituída por inadvertida, pois advindos e inventados pelo próprio
uma poética da atenção que armazena o estímulo e leitor durante o ato. O espectador não se pergunta
o mantém na pré-consciência; que lhe possibilita “o que isto quer dizer?”, mas sim “o que está
uma inscrição efêmera no aparelho perceptivo sem acontecendo comigo?”, o que lhe solicita
permitir que ele se dissipe num ato de disponibilidade para participar de um jogo que se
compreensão: um rastro de memória ao invés de apresenta de modo inesperado e sem uma seqüência
consciência, a compreensão fica adiada” preestabelecida, porque se propõe como experiência,
(Lehmann, 2007b, p. 146). e, enquanto tal, só se efetiva plenamente se o próprio
espectador se dispuser a constituí-lo enquanto joga.
Em sua relação com a cena pós-dramática, o A atitude autoral proposta ao espectador pelo
espectador não encontra orientação de leitura a drama moderno se vê radicalizada na cena pós-
seguir, que lhe indique pistas para o entendimento da dramática, já que o ato de leitura, para se constituir,
obra e do mundo. De modo que, acompanhando o a partir de então, solicita uma atitude francamente
direcionamento do autor, possa tecer relações artística do espectador – tomado como atuante –,
racionais, associações lógicas e fechar interpretações. que define o próprio percurso de sua leitura, em
A frustração marca esse movimento de leitura na função da seleção e elaboração dos variados
proposta não dramática, e, ao mesmo tempo, o elementos de significação com os quais se relaciona.
estímulo à concepção de percursos próprios, em sua Tanto os propostos pelo autor, quanto os que lhe
relação com o texto cênico e na relação deste com a surgem inadvertidamente ou que inventa durante o
vida social. Além do que, conteúdos significativos percurso. A concepção de leitura se aproxima
postos em jogo surgem de maneira surpreendente, amplamente da própria operação de escrita.

Referências bibliográficas

BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. São Paulo, Martins Fontes, 1992.
BENJAMIN, Walter. Diário de Moscou. São Paulo, Companhia das Letras, 1989.
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