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O que advém, com o desaparecimento da ilusão e o noção de obra de arte, que deixa de ser concebida
declínio da aura nas obras de arte, é um crescimento com a aura que a envolvia tradicionalmente. A
considerável de possibilidades com as quais podemos produção teatral pode ser considerada, desde então,
jogar (Walter Benjamin). não como obra, mas como objeto artístico, passando
a assumir função social bastante diversa daquela
O
compreendida até então.
modo de atuação proposto ao
espectador vem sofrendo alterações
significativas nos últimos séculos, O mergulho no universo ficcional
em diálogo estreito com as
transformações observadas, tanto Afinado com os ideais iluministas que propunham
nas propostas formais dos artistas, importantes reformas políticas e sociais, o drama
quanto no contexto social dos diversos períodos, burguês se afirma no decorrer do século XVIII em
dando conta do caráter histórico que condiciona a contraposição à tragédia neoclássica, que
recepção teatral. Pois a relação do espectador com o predominava nos palcos europeus de então –
teatro está intimamente relacionada com a maneira, especialmente na França –, filiada aos preceitos
própria a cada época, de ver-sentirpensar o mundo. absolutistas da nobreza dominante. Essa forma
As reflexões seguintes buscam elaborar algumas
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características e distinções que marcam os dramática, que acompanha o nascimento e o
movimentos teatrais que, desde o Iluminismo, vêm estabelecimento da classe social que lhe empresta o
operando transformações subseqüentes e que nome, vai, aos poucos, afastando as antigas
constituem traços marcantes para compreendermos convenções e estilizações da cena, em conformidade
o ato do espectador em nossos dias. Ressaltarei aqui, com o refinamento de seus propósitos estéticos.
especialmente, aspectos da teatralidade recente, em A renovação artística que marca a
que, como tentarei descrever, a recepção passa a ser transição da tragédia classicista e heróica
compreendida por seu caráter de experiência, que, para a forma dramática nascente se faz,
pois, em tensão com as lutas da burguesia
Flávio Desgranges em ascensão no período. O programa e a
apologia do drama burguês são realizados
por dramaturgos – o inglês Lillo, os
franceses Diderot e Mercier, e o alemão
Lenz – que, além de escreverem as novas
peças, articulam também os tratados
para se efetivar, depende de uma disponibilidade teóricos que defendem e justificam as
distinta do espectador, inaugurando outro modo mudanças na arte teatral. O drama surge
participativo. Além de alterar significativamente a como crítica ao existente, valendo-se de
argumentos e soluções formais que da comédia jocosa” (Diderot, 2005, p. 19). George
mantêm em tensão as naturezas política e Lillo, para defender o ponto de vista dos
poética de seus princípios. Os embates da dramaturgos burgueses, argumenta que o herói
nova forma dramática se colocam em trágico não precisa necessariamente ser um nobre,
consonância com as reivindicações da mas um homem com espírito nobre (Szondi, 2004). E
classe social que idealizava as ressalta que não se encontra em Aristóteles uma
transformações político-sociais em definição taxativa sobre a condição principesca do
curso. São colocados em jogo, deste herói. A nobreza, sugere o autor inglês, precisa ser
modo, aspectos fundamentais do aferida pelo caráter de um homem, por sua fala, por
Iluminismo: a constituição de homens suas decisões, e não por sua condição social. Assim,
livres, capazes de traçar seus próprios um cidadão comum – ou, mais especificamente, um
rumos, para além de qualquer submissão burguês – também pode ser tomado como herói nas
política; a defesa pelo direito de cada um peças teatrais. Além do que, a ampliação da condição
à consciência religiosa; e o de nobreza do herói pode significar a própria
estabelecimento de bases morais que ampliação do alcance do teatro, que não precisa mais
fundamentem o progresso da se restringir a um pequeno segmento da sociedade,
humanidade. mas pode interessar e atingir um vasto contingente
Em defesa dos princípios da população. Ou seja, segundo a astuta
dramáticos, os teóricos burgueses se argumentação de Lillo, não é o burguês que depende
relacionam de maneira crítica e do teatro, mas o teatro que depende do burguês.
revisionista com os escritos de Outra importante questão levantada no
Aristóteles, que inspiravam a tragédia período acerca da leitura da Poética se refere aos
heróica em voga. Para afirmarem seus efeitos da tragédia em sua relação com o público. A
postulados artísticos, relacionados com a noção, largamente difundida então, de que a poesia
defesa de suas causas políticas, precisam dramática se caracterizaria pelo ensinamento que
partir para o embate no âmbito pode proporcionar aos espectadores, que poderiam
conceitual, questionando a leitura da aprender com os erros cometidos pelo herói, advém
Poética empreendida pelos teóricos de já de uma reinterpretação de Aristóteles realizada
então. As interpretações dos escritos pelos teóricos renascentistas. E que foi aproveitada
aristotélicos se mostram, de ambos os pelos teóricos burgueses no Iluminismo para a
lados, carregadas pela luta deflagrada no concepção dos princípios da nova arte dramática. O
palco histórico do período pelas classes drama burguês utiliza-se deste potencial de
sociais em conflito. aprendizagem, já presente nos efeitos da tragédia
Uma das questões de fundamental heróica, com o intuito de ampliá-lo (com
importância para que o drama burguês se adaptações), estabelecendo uma tensão entre a nova
afirme está na possibilidade de que forma e os propósitos da burguesia em ascensão. A
personagens pertencentes a essa classe fábula deve servir como um exemplo para a conduta
social se tornem protagonistas das novas na vida; um exemplo negativo, do qual se podem
peças. Pois, como anota Diderot, as tirar lições.
regras do teatro clássico indicam que, “se Os efeitos do drama burguês estão, assim,
quiser representar uma fábula trágica, o voltados para a correção de comportamentos
dramaturgo deve escolher personagens desregrados, que possam ser considerados como
de condição principesca, reservando os prejudiciais ao bem-comum e que contrariem os
burgueses ao estilo baixo interesses da sociedade. A catarse aristotélica, por
sua vez, passa a ser compreendida como vazão à
sentimentalidade, a purgação entendida como
correção pelas lágrimas.
O drama burguês, surgido em tempos de
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afirmação do núcleo familiar, faz das reprimendas de
conduta seu efeito primordial. Como destaca Lillo, que a constituição dos aspectos
“convém ao palco” alertar a juventude “dos vícios individuais torna-se eixo para a
destrutivos” (Szondi, 2004, p. 38). As tramas se composição da lógica das ações. Se na
voltam prioritariamente para a apresentação e a antiguidade o destino geria as peripécias
recriminação de falhas individuais, como a dos heróis, em tempos iluministas, de
incapacidade de organizar seus apetites irracionais, constituição de sujeitos livres e de
seus desejos mundanos, e a valorização do amor rompimento com a inexorabilidade das
familial e do comportamento respeitoso entre os determinações divinas, a trajetória de
membros do lar, base da sociedade burguesa. Tudo cada ser humano precisa ser composta
em nome dos ideais iluministas de constituição de por seus próprios atos. A constituição da
sujeitos livres, capazes de gerir por si mesmos as suas trama se dá a partir da caracterização
opções de vida, mas sem perder de vista o individual, são os “personagens que
compromisso moral em sua relação com as criam suas próprias ações, que movem
instituições sociais, especialmente aquelas que por si mesmos a grande máquina, de
ganham terreno nesse momento de transição para a forma autônoma e inelutável, sem
ética burguesa. precisar das divindades e das nuvens”
A força dramática de convicção e de persuasão (Lenz, 2006, p. 38).
se estabelece em cena como uma cortina de lágrimas, A comoção vivida pelo
que será rasgada e revelada em seus meandros, mais personagem precisa ser cuidadosamente
tarde, pelos dramaturgos e encenadores modernos. construída, de modo que o público possa
A relação do espectador com a cena teatral se vê acompanhar o herói. Somente dessa
caracterizada por forte envolvimento emocional, maneira se pode provocar o almejado
marcada por identificação irrestrita com o impacto emocional capaz de
protagonista. Colado à pele do herói, cada indivíduo “transtornar” o espectador. Pois, “o
da platéia vivencia os acontecimentos que poeta ludibria a razão do homem
constituem a sua trajetória: suas dores, sofrimentos, instruído, como a governanta ludibria a
agruras, e também suas alegrias, descobertas, fraqueza de espírito da criança” (Diderot,
resoluções. As peripécias do protagonista são 2005, p. 65).
cuidadosamente concebidas de maneira a O palco dramático se apresenta
produzirem importantes lições para o público. O como uma representação sintética da
espectador se vê convidado a vivenciar com o herói, vida social, como um universo fechado
não apenas as suas falhas, mas, e principalmente, as concebido diante do espectador, que
reprimendas que lhe são impostas no decorrer da observa esse pequeno mundo de
trama. esguelha, como se não estivesse ali.
Para se adequar aos princípios do drama, em Impelido a se lançar na corrente da ação
sua busca por caracterizar o palco como fração da dramática, a mergulhar por inteiro no
própria vida, e propor ao espectador envolvimento e ambiente ilusório cuidadosamente criado
comoção, a cena precisa abandonar qualquer recurso pelo autor (que se faz ausente), o leitor
em que a teatralidade esteja revelada. Dessa maneira, da cena observa esse mundo fictício sob
os coros, o verso, os maneirismos e exageros dos o ponto de vista do protagonista. Em
atores, a descontinuidade das cenas, os apartes, ou conformidade com os ideais burgueses
qualquer modo de relação direta com o público vão de valorização dos interesses privados e
pouco a pouco sendo abolidos. da livre iniciativa, o ensinamento moral,
A caracterização psicológica de advindo da empatia com
cada personagem torna-se, a partir de
então, fundamental na definição do
encadeamento da ação e na sustentação
da coerência da trama. O drama burguês
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se compõe a partir da “psico-lógica”, em
moderna o autor se faz presente, revela as soluções como definida por Walter Benjamin
artísticas, expõe os recursos cênicos que utiliza em (1993), e, em seguida, retornarmos ao fio
sua montagem, mostra a sua concepção de teatro, analítico acerca das alterações históricas
assume posicionamentos críticos, e estimula o na compreensão do ato proposto ao
espectador a fazer o mesmo. espectador teatral. Os vislumbres
Efetiva-se, assim, a noção de obra aberta, em que a benjaminianos acerca das mudanças na
ambigüidade das opções de linguagem, a perceptividade, que se operam em
multiplicidade de significados que convivem em um diálogo com a ampliação no campo de
mesmo significante, constitui-se em uma das atuação da arte, podem abrir
finalidades explícitas da obra, um valor de possibilidades de análise das transições
importância destacada na proposta feita ao efetivadas pelo teatro pós-dramático
espectador. O artista se propõe a: (Lehmann, 2007). E possibilitam
ressaltar, especialmente, como a
“Definir os limites dentro dos quais uma obra pode teatralidade recente se estabelece em
lograr o máximo de ambigüidade e depender da tensão com (e por recusa a) os princípios
intervenção ativa do consumidor, sem, contudo, estéticos do drama.
deixar de ser “obra”. Entendese por “obra” um Diante de uma pintura de Cézanne,
objeto dotado de propriedades estruturais em relato de visita a uma exposição de
definidas, que permitam, mas coordenem, o arte, em 1926, Benjamin, em seu “Diário
revezamento das interpretações, o deslocar-se das de Moscou”, descreve o modo distinto
perspectivas” (Eco, 2005, p. 23). com que se relaciona com a obra desse
artista francês. O que se constitui em
As alterações no modo de compreender a vida rastro importante para pensarmos as
social – que não podia mais ficar restrita às questões mudanças na recepção artística desde os
de âmbito privado, como era característica do drama primeiros lances da modernidade, e, em
burguês, mas queria ampliarse para a dimensão seguida, nos aproximarmos de suas
pública dos acontecimentos – se efetivam em tensão reverberações na contemporaneidade.
com as alterações formais propostas pelo drama
moderno. A abordagem social das temáticas quebra “Olhando para um quadro
necessariamente com a linearidade própria ao extraordinariamente belo de Cézanne,
princípio dramático, pois a trama não está mais ocorreu-me como é errado, até
circunscrita a uma abordagem fechada, psicológica, linguisticamente, falar-se de
intersubjetiva dos fatos. O que desmonta com o “empatia”. Pareceu-me que
mecanismo de causa e conseqüência que faz avançar compreender um quadro – até onde
“com naturalidade” as situações, provocando isso se dá – não se trata, de maneira
interrupções na corrente dramática, gerando alguma, de penetrar em seu espaço,
brechas, espaços de análise. A teatralidade assumida mas, muito mais, do avanço deste
rompe com a ilusão do mundo-palco, propondo que espaço – ou de pontos bem
o espectador se distancie da ficcionalidade, se determinados e diferenciados dele –
descole da pele do herói e retorne à própria sobre nós. Ele se abre para nós em
consciência. A cena moderna não inviabiliza, pois, a seus cantos e ângulos nos quais
identificação do espectador com o protagonista, mas acreditamos localizar experiências
quer impedir que a empatia e o mergulho no cruciais do passado; há algo de
universo ficcional se dêem de maneira abandonada, inexplicavelmente familiar nesses
sem retorno reflexivo. pontos” (Benjamin, 1989, p. 53).
A recepção tátil
A descrição da experiência diante
Peço licença para fazer aqui uma breve do quadro de Cézanne, e a forma
digressão, de maneira que possamos nos particular com que Benjamin se
aproximar da idéia de recepção tátil, tal
O movimento do espectador no
protagonista e do contexto histórico- drama se volta para a interpretação da
social que determina as atitudes dos cena apresentada, em que se debruça
personagens. O que não acontece na sobre a mesma, e tece associações entre
teatralidade pós-dramática, que, como fatos históricos, obras artísticas
sugere a própria denominação, refuta o anteriores, acepções teóricas, momentos
princípio dramático, abandona a “psico- vividos,
lógica”, e não opera mais
prioritariamente por empatia e imersão
no universo ficcional criado pelo autor.
No teatro pós-dramático, o que se
observa – e são justamente as 18
“Uma poética da compreensão é substituída por inadvertida, pois advindos e inventados pelo próprio
uma poética da atenção que armazena o estímulo e leitor durante o ato. O espectador não se pergunta
o mantém na pré-consciência; que lhe possibilita “o que isto quer dizer?”, mas sim “o que está
uma inscrição efêmera no aparelho perceptivo sem acontecendo comigo?”, o que lhe solicita
permitir que ele se dissipe num ato de disponibilidade para participar de um jogo que se
compreensão: um rastro de memória ao invés de apresenta de modo inesperado e sem uma seqüência
consciência, a compreensão fica adiada” preestabelecida, porque se propõe como experiência,
(Lehmann, 2007b, p. 146). e, enquanto tal, só se efetiva plenamente se o próprio
espectador se dispuser a constituí-lo enquanto joga.
Em sua relação com a cena pós-dramática, o A atitude autoral proposta ao espectador pelo
espectador não encontra orientação de leitura a drama moderno se vê radicalizada na cena pós-
seguir, que lhe indique pistas para o entendimento da dramática, já que o ato de leitura, para se constituir,
obra e do mundo. De modo que, acompanhando o a partir de então, solicita uma atitude francamente
direcionamento do autor, possa tecer relações artística do espectador – tomado como atuante –,
racionais, associações lógicas e fechar interpretações. que define o próprio percurso de sua leitura, em
A frustração marca esse movimento de leitura na função da seleção e elaboração dos variados
proposta não dramática, e, ao mesmo tempo, o elementos de significação com os quais se relaciona.
estímulo à concepção de percursos próprios, em sua Tanto os propostos pelo autor, quanto os que lhe
relação com o texto cênico e na relação deste com a surgem inadvertidamente ou que inventa durante o
vida social. Além do que, conteúdos significativos percurso. A concepção de leitura se aproxima
postos em jogo surgem de maneira surpreendente, amplamente da própria operação de escrita.
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