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PUBLICIDADE E PROPAGANDA
Recife
2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO
DEPARTAMENTO DE COMUNICAÇÃO
PUBLICIDADE E PROPAGANDA
Recife
2021
ANDERSON PINHEIRO DE ALMEIDA
BANCA EXAMINADORA
________________________________________
Profº. Dr. Thiago Soares
Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________
Profº. Dr. Rogério Covaleski
Universidade Federal de Pernambuco
_________________________________________
João Vicente
GIRA Conteúdo Criativo
Dedico esta monografia à minha mãe,
Helena Alves, e a todas as mulheres da minha
família como forma de agradecimento pela
oportunidade de me dedicar aos estudos e pelo
incentivo para que eu conseguisse concluir a
minha graduação. Muito obrigado. Eu amo
todas vocês.
AGRADECIMENTOS
(Gayatri Spivak)
(Djonga)
RESUMO
INTRODUÇÃO ...................................................................................... 12
1 VIDEOCLIPE: PUBLICIDADE OU PROPAGANDA? ....................... 16
2 PODE O ARTISTA SE POSICIONAR?................................................29
3 AUTORREPRESENTAÇÃO E MASCULINIDADE NEGRA
PERIFÉRICA NA MÍDIA ....................................................................... 44
4 POR UMA METODOLOGIA HOOKS-SOARES-KELLNIANA ........... 66
5 UMA ANÁLISE DOS VIDEOCLIPES DO @DJONGADOR ............... 83
5.1 “Olho de Tigre” .............................................................................. 84
5.2 “Junho de 94” ................................................................................ 91
5.3 “Nós” .............................................................................................. 97
FONTES .............................................................................................. 107
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................... 108
INTRODUÇÃO
O audiovisual nunca esteve tão “em alta” como está hoje: alta qualidade
de imagem e som; alto nível de consumo; altos investimentos. O que antes se
limitava às telas de cinema e TV’s com as grandes produtoras, hoje ganha outras
proporções e públicos nos monitores de computador e telas de celular em
plataformas como YouTube, Netflix, redes sociais como Instagram, TikTok,
Snapchat, etc. O videoclipe, um dos produtos do audiovisual, não foge desta
lógica: longe disso, ele não só está “em alta” pelo seu objetivo primário de
divulgação de uma canção, mas também tem se mostrado uma importante
ferramenta estratégica para posicionar o artista enquanto uma marca em um
mercado cada vez mais concorrido. Existem diversos estudos analíticos que
mostram como a publicidade audiovisual se apropria da linguagem do videoclipe,
hibridizando-se, e assim, tornando-se cada vez menos parecido com um
“comercial televisivo”. No entanto, o nosso objetivo neste trabalho é outro.
Vamos tentar compreender como o videoclipe em si pode se tornar um
instrumento da publicidade e, talvez, até se classificar enquanto uma peça
publicitária.
Uma vez constatada essa nossa hipótese de que o videoclipe é
publicidade a partir da revisão da literatura de autoras e autores como Thiago
Soares (2005, 2013), Rogério Covaleski (2013), Juliana Souto (2005), Eloá
Muniz (2004) e Rafiza Varão (2013), pretendemos investigar como o mercado
fonográfico tem valorizado cada vez mais os produtos audiovisuais (isto é, o
videoclipe, mas poderia ser também o álbum visual) a ponto de se tornarem
indispensáveis para adentrar e permanecer no mercado da música. E mais:
como esse mercado, que movimenta milhões de reais no Brasil, se articula e
qual é a sua finalidade para além da divulgação de uma canção. Para tal,
questionaremos: se um videoclipe gera um rosto midiático, ou seja, um corpo
nas mídias (SOARES, 2012), poderíamos dizer que a imagem do artista está
necessariamente atrelada à maneira como ele é consumido, o quanto lucra e de
que forma ele “se vende”? Se é a imagem que vende – e não só a música –
poderíamos, então, dizer que o artista é, em si, a sua própria marca? Se o artista
12
é uma marca, quais são as ferramentas do marketing usadas para a
administração dessa marca?
A partir dessas questões, vamos nos dedicar a traçar paralelos ainda mais
complexos entre videoclipe e publicidade, dessa vez, tentando examinar
minuciosamente temas como arte, mídia, lucro, marketing, e como esse
caldeirão de conceitos se relacionam. Se a música (e consequentemente o
videoclipe) hoje visa o lucro, em outras palavras, se está dentro da lógica
capitalista, faz-se necessário estudarmos como essa dinâmica está posta, quais
são as suas limitações, estratégias e como o artista se coloca dentro desse
esquema, afinal, um artista não mais será aquele que produz uma obra de arte,
mas sim aquele que conseguirá se fazer reconhecido enquanto um (FETTER,
2013). Neste trecho, dialogaremos com autoras e autores como Kotler & Keller
(2012), Thiago Soares (2006a, 2013), Nadilson da Silva (2005), Bruna Fetter
(2013) e Ana Araújo & Davi Moura (2014).
Após nos debruçarmos e compreendermos um pouco mais sobre o
videoclipe enquanto uma ferramenta de posicionamento de marca no qual o
artista é, em si, sua própria marca, entraremos no debate acerca da
autorrepresentação. A ideia é debatermos sobre o que é representação, qual é
a conexão entre representação e mídia e como isso se desdobra nos objetos dos
quais pretendemos analisar, afinal, se há videoclipe, há rosto midiático, tal como
posicionamento de marca. Portanto, quem ou o que ele (o rosto midiático)
representa? Em se tratando de analisar uma tríade de videoclipes do rapper
Djonga, um homem preto e periférico, achamos bastante relevante trazer essa
discussão para o nosso trabalho, uma vez que se trata de videoclipes cujo “corpo
midiático” tem muito bem demarcado a sua identidade racial e social.
Sabemos que existe uma problemática de representação de pessoas
negras e periféricas na mídia que é atravessada pela ação de estereotipar, fruto
de uma nação estruturada no racismo. Por isso, vamos tentar apreender um
pouco mais sobre o fenômeno da autorrepresentação, uma vez que, o artista a
ser analisado também é quem produz e dirige a maior parte de seus videoclipes.
Ou seja: o fato de termos uma pessoa preta na frente e por trás das câmeras —
um evento pouquíssimo prestigiado na grande mídia, diga-se de passagem —
nos gera uma vontade de melhor compreender o processo de se
13
autorrepresentar, quais são suas contradições e complexidades, como se
relaciona com as mídias e em que isso implica. Para tanto, vamos nos basear
em estudos de bell hooks (2019), Robenilson Barreto; Paulo Ceccarelli e
Warlington Lobo (2017), Stuart Hall (2016), Elisa Oliveira; Manoela Martins
(2014), Fabiane Sgorla (2009) e Daniella Zanetti (2008).
Somado a isso, pretendemos também articular ideias e reflexões sobre
masculinidades negras afim de aguçar e embasar a nossa análise, dando-lhe
muitos mais autenticidade. O debate sobre as masculinidades vai nos permitir
visualizar como a performance inscrita na canção e videoclipe (SOARES, 2013)
tensiona ou reproduz maneiras de ser homem. Com o avanço dos estudos do
feminismo negro, o fundamento da raça passa a ser observado dentro dos
estudos das masculinidades, atentando-se aos efeitos do racismo e como ele
modifica a construção do ser masculino. Por isso, pretendemos trazer alguns
apontamentos e possibilidades de agenciamento que ampliarão a nossa
compreensão acerca deste tema, permitindo-nos refletir sobre como a ideia de
uma hegemonia igualmente distribuída entre todos os homens (brancos e não-
brancos) é ilusória. Aqui traremos estudos e reflexões de bell hooks (2015) e,
principalmente, do Deivison Nkosi (2014), ambas referências em temas como
raça e gênero.
Elencamos 03 videoclipes do rapper mineiro Djonga para compor o nosso
objeto de estudo. Com base nesta triangulação, optamos por fazer um recorte
temático e temporal (histórico) afim de compreender como esse artista lida com
o racismo, as questões masculinas e como a sua autorrepresentação em seus
produtos audiovisuais entre os anos de 2017 e 2021 o posiciona no mercado da
música. Como metodologia para a análise do nosso objeto, pretendemos fundir
03 importantes métodos de pensadores dos estudos culturais, já que o nosso
objetivo é visualizar um esquema não somente estético, nem tão somente
discursivo, mas sim uma junção dos dois. A partir de Douglas Kellner (2001) e o
seu conceito de crítica diagnóstica, vamos interpretar politicamente a construção
de uma narrativa de um produto da cultura da mídia, interseccionando raça,
classe e gênero e ainda levantando alguns aspectos mercadológicos. Com bell
hooks (2016), vamos entender que o nosso “olhar opositor” enquanto analista
preto tem “poder” e também deve se manter crítico ao nos tornarmos
14
expectadores de produções audiovisuais concebidas por e para pessoas negras.
Por fim, utilizaremos a base teórica de análise estética de videoclipes proposta
por Thiago Soares (2004, 2006a, 2006b, 2013), criando, assim, uma metodologia
única para dar conta da complexidade do nosso trabalho.
15
1 VIDEOCLIPE: PUBLICIDADE OU PROPAGANDA?
16
Baudrillard, Armando Sant’Anna, Harwod Childs e outros, para entendermos os
conceitos de publicidade e propaganda. No entanto, vamos nos aprofundar
brevemente no conceito de propaganda partindo dos escritos de Harold Lasswell
trazidos, aqui, pela pesquisadora Rafiza Varão (2013). O nosso objetivo é
entender a historicidade dos conceitos, criando uma linha narrativa e
evidenciando a diferenciação de seus significados. Posto isso, vamos
argumentar que o videoclipe não só pode, como deve ser um objeto de estudo
da publicidade & propaganda, uma vez que, analisando a sua linguagem,
podemos observar o teor “publicitário” que os artistas e produtores audiovisuais
inserem nesses produtos, dialogando com os discursos sociais vigentes e,
consequentemente, criando novas formas de representação na sociedade, isso
tudo atrelado a uma lógica de mercado, fruto da afinidade entre publicidade e
videoclipe. Vamos ainda tensionar as estruturas do videoclipe e da propaganda
com o intuito de compreender até que ponto essas linguagens dialogam entre si.
O século XXI trouxe com ele um marco histórico na forma em que a
sociedade ocidental pensa, se relaciona e, principalmente, consome. O acesso
à Internet não só amplificou as maneiras de se comunicar (se conectando) com
o outro, mas também possibilitou um diálogo mais direto com a indústria do
consumo, ou melhor, com as marcas; agora, o consumidor ganha status de
(também) um enunciador. Neste sentido, surge um “novo tipo de consumidor”,
como afirma Covaleski:
“Os prosumers, atualmente, formam um segmento composto
basicamente por público jovem, em boa parte ainda na adolescência. Dentre
suas maiores habilidades estão o domínio e o relacionamento com os
aparelhos celulares e com a internet, e diante de um crescimento exponencial
que a mídia via telefonia de celular e os negócios m-commerce devem gerar
nos próximos anos, daí a importância que estes jovens conquistam junto às
indústrias de bens de consumo, de entretenimento e da publicidade.” (2010,
p. 23, grifos do autor)
Hoje, uma década depois do dito pelo pesquisador, percebemos o quanto ele foi
preciso em sua afirmação: tanto o consumo de mídia via telefonia celular, quanto
os negócios m-commerce1 cresceram, dando, de fato, aos prosumers, um lugar
1
M-commerce: versão reduzida de “mobile-commerce”, que quer dizer comércio
realizado por meio do celular.
17
de destaque para a indústria de consumo de uma maneira geral. É o que aponta
a Zebra Technologies Corporation em sua 13ª Pesquisa Anual sobre o
Panorama dos Consumidores2, indicando que 88% dos latino-americanos já
compraram por dispositivos móveis e 91% pretendem manter o hábito.
Para além do surgimento do prosumer, Covaleski (2010) acredita que o
cenário atual da publicidade também está passando por um momento de ruptura
e transição. Assim como Hal Riney, nomeado uma das 100 pessoas mais
influentes da publicidade mundial do século XX pela revista Advertising Age, cuja
entrevista em 2002 diz “que a era dos comerciais de 30 segundos havia
acabado”; o autor fala que “à época a publicidade já mostrava sinais de estar em
transição, especialmente a veiculada na televisão — mas, por extensão, todas
aquelas que faziam uso da linguagem audiovisual [...].” (COVALESKI, 2010, p.
20 - 21). Para nós assim como para o autor, essa transição já ganhou outros
contornos, mais avançados, passando a se firmar, por exemplo, em estratégias
de product placement, uma técnica que envolve a promoção de produtos ou
serviços aplicada em materiais audiovisuais na qual a marca não
necessariamente anuncia através de, mas “se insere” no discurso — assim como
na narrativa — do próprio material audiovisual em questão, seja ele um
videoclipe, uma telenovela, um filme, etc. Outros desdobramentos possíveis que
poderíamos levantar para a “morte” dos comerciais televisivos de 30 segundos
são o uso de digital influencers nas redes sociais, que podem romper com esse
formato redondo de tempo e até mesmo os novos formatos de anúncios
audiovisuais com 20, 15 e até 6 segundos em plataformas digitais como o
YouTube.
Até então, percebe-se que essas modificações entre a forma ativa de
consumo e as novas configurações de produção e veiculação de conteúdo
audiovisual têm atenuado progressivamente a linha entre publicidade e
entretenimento que, no caso deste trabalho, se apresenta como um videoclipe.
“A mensagem publicitária, da maneira como é compreendida hoje —
paradoxalmente — quanto mais deixa de se parecer consigo mesma; quanto
menos faça uso dos elementos tradicionais que constituem o discurso
publicitário convencional. Apresenta-se, de forma crescente, inserida e
camuflada no entretenimento; travestida de diversão, mas não destituída de
sua função persuasiva, mesmo que dissimulada.” (COVALESKI, 2010, p. 21).
2
Disponível em: <https://www.clientesa.com.br/estatisticas/71348/m-commerce-cresce-
na-pandemia> Acesso em: 13/09/21.
18
Corroboramos ainda com Covaleski (2010) quando ele aponta as “duas grandes
tendências que podem resumir o panorama do ambiente comunicativo atual [...]”
(p. 22). Seriam elas:
1. A passagem da “mídia de massa” para a “mídia segmentada”,
propiciando consequentemente uma “mídia personalizada”, fruto da
convergência midiática e da evolução das relações de consumo.
2. O distanciamento da interrupção do conteúdo editorial e/ou
artístico, hábito este historicamente associado à publicidade, que se especializou
nessa estratégia com o objetivo de “suplicar” pela atenção do consumidor.
Levantado esses pontos, fica nítido que a publicidade, no contexto pós-
moderno, além de assumir um papel relevante nas dinâmicas
sociocomunicativas, apresentando, ela mesma, como propôs Jesús Martín-
Barbero (2001), “elementos reguladores das relações sociais e que estão na
própria base da constituição dessas interações” (apud COVALESKI, 2010, p.
16); tem, ao mesmo tempo, “sentido os efeitos de uma sociedade em
transformação, e a ela também cabe se adaptar, transformar-se; por vezes,
hibridizar-se.” (op. cit., p. 24-25). Posto isto, questionamos: de que maneira o
videoclipe se enquadra neste contexto? Qual é a relação entre publicidade e
videoclipe? O que é o videoclipe? Pode ele ser encaixado enquanto publicidade?
E enquanto propaganda?
Reconhecendo a carência de uma sistematização no estudo acadêmico
do videoclipe, Thiago Soares apresenta um artigo em 2004, — cujo se
transformará em um livro muito mais profundo e detalhado anos mais tarde —
contribuindo expressivamente para a discussão acerca deste produto cultural
que é o videoclipe, na época, enquadrado como um “gênero televisual pós-
moderno” (2004, p. 1) e que se expandirá para plataformas online como o
YouTube no futuro (2013, p. 75). Para Soares (2004), o videoclipe se dá no
entrelaçamento entre música, imagem e montagem, mas, como vai afirmar mais
tarde, não se resume apenas a isso. O videoclipe é, sim, a união entre a música
e a imagem com um explícito objetivo mercadológico de gerar um produto
audiovisual que servirá como alicerce essencial para a divulgação de uma
música. E mais: o videoclipe enquanto produto cultural é capaz de gerar um
19
“rosto midiático” que vai posicionar o artista em questão no cenário musical.
(SOARES, 2013). A montagem, que antes caracterizava o videoclipe como uma
linguagem única e que foi a diretriz de uma primeira reflexão acerca do videoclipe
(2004), mais a frente, passa a ser o que Soares classifica como “maneirismos”
que a linguagem do videoclipe vai tomar emprestado do cinema, da videoarte,
entre outros (2013).
Ainda nos primeiros estudos, Soares vai dizer que segundo Arlindo
Machado (1997), são os elementos do cinema, do teatro, da literatura e da
computação gráfica que vão se hibridizar para dar origem ao que conhecemos
como videoclipe. (apud SOARES, 2004). Complementa Canclini:
“o videoclipe é um elemento da contemporaneidade que presentifica
a hibridização cultural, provocando, sobretudo, uma ruptura com o conjunto
fixo de arte-culta-saber-folclore-espaço-urbano. Junto às histórias em
quadrinho, aos videogames, às fitas cassetes e às fotocopiadoras, o
videoclipe, ainda segundo Canclini, seria responsável por uma não só não-
hierarquização dos fenômenos culturais, mas também por uma banalização
dos bens culturais simbólicos que se reconheciam ‘intocáveis.’” (1998 apud
SOARES, op. cit. 12 - 13)
21
mesmos polos? Assimilamos através do pensamento de Janotti Jr (apud
SOARES, 2013), que uma das características mais básicas na compreensão da
produção midiática é o surgimento de uma cadeia produtiva que rompe com a
autoria individual, a criação solitária e a autonomia criativa. Ou seja, é a
colaboração de diferentes profissionais das áreas de produção, circulação e
consumo que vai conceber e possibilitar, por exemplo, a origem de um
videoclipe. Dentre esses profissionais, arriscamos dizer que ao menos um deles
seja um publicitário, que pode contribuir nesta tríade midiática produção-
circulação-consumo por diferentes vieses: escrita do roteiro, direção fílmica,
direção de arte, direção de fotografia, distribuição nas mídias, planejamento
estratégico, enfim. Soma-se a isto, o fato de que muitas gravadoras e selos não
possuem, em seus departamentos, profissionais do audiovisual, deixando este
cargo às produtoras de TV, cinema e, óbvio, publicidade3.
Juliana Souto e Thiago Soares (2005) já identificaram a — não mais
tímida — relação entre publicidade e videoclipe. Ela e ele observaram que existia
uma certa singularidade na campanha da Rider4 que, em seus VT’s publicitários,
se apropriou de recursos próprios do videoclipe, ampliando os horizontes da
marca, alcançando, inclusive, o mercado fonográfico — através da venda de
milhares de cópias de um CD com as faixas que compunham os “videoclipes” da
marca. “Mais do que uma simples propaganda de chinelos, a linguagem
publicitária foi capaz de utilizar-se de um gênero de forte influência no público
jovem, o videoclipe, e criar uma esfera de consumo muito mais abrangente e
sedutora.” (SOARES; SOUTO, 2005, p. 3). Percebendo aí um fenômeno de
hibridismo, Soares & Souto pretendiam, através da análise desta campanha
audiovisual, enquadrar na categoria Publicidade o gênero Videoclipe. Para tal,
se apossam das ideias sobre cinema e televisão de Arlindo Machado (2000) e
de gêneros e formatos televisivos de José Carlos Aronchi de Souza (2004).
A princípio, Aronchi de Souza vai nos apresentar uma sistemática de
estudo da televisão dividindo-a em cinco categorias: entretenimento, informação,
3
É válido ressaltar que este cenário tem se transformado. Alguns selos já possuem um
departamento específico para as produções dos videoclipes do artista. No entanto, corroboramos
com Thiago Soares (2013) na afirmação de que no geral, a produção de um videoclipe ainda se
dá pelas produtoras audiovisuais.
24
Na classificação dos gêneros publicitários na televisão que apontamos
anteriormente a partir de Aronchi de Souza (apud Soares & Souto, 2005), assim
como muitos autores, ele não diferencia os conceitos de publicidade e
propaganda, abarcando ambos no termo “Publicidade”. Neste ponto, não
corroboramos com Aronchi de Souza quando o mesmo classifica o gênero
“propaganda política” dentro da categoria Publicidade. Preferimos, portanto, nos
debruçar sobre os escritos de Eloá Muniz (2004) na categorização e
diferenciação entre os termos “publicidade” e “propaganda”.
Para Muniz (op. cit.) a confusão entre os termos publicidade e propaganda
decorre da Revolução Industrial com o desenvolvimento das relações comerciais
e a diversificação de produção. O seu artigo nos revela que entender a diferença
entre um termo e outro se torna relevante na medida em que estas se
apresentam como atividades distintas que possuem características e linguagens
próprias. Para além de “evitar a dissonância comunicacional provocada pelo
desperdício de mensagens [...]”, Eloá (2004) diz que “a identificação conceitual,
a partir das relações e diferenças entre publicidade e propaganda, efetiva o
delineamento dos campos de ação e as estratégias adotadas em cada
campanha.” (p. 1). Por outras palavras, forja-se a necessidade de conceituação
dos termos não tão somente na academia, como também dentro de espaços
publicitários — os quais nem sempre se enquadram no termo “agência”
atualmente.
Publicidade: do latim, publicus, que tempos depois originará o termo
publicité, do francês. Ainda com o sentido de “publicação”, o vocábulo publicité
apenas circulava em ambientes jurídicos, afinal, lá era onde as leis, ordenações
e julgamentos eram “publicados”. Foi somente no século XIX que a palavra
ganhou cunho comercial. Publicidade, logo, no sentido mais literal da palavra,
significa o ato de divulgar, isto é, tornar público. Não é de se admirar que, com a
implantação do capitalismo, a concentração econômica e até a produção de
massa, a publicidade, para atender às incessantes demandas do já consolidado
neoliberalismo, precisou se aperfeiçoar, tornando-se mais persuasiva e menos
informativa. Sendo assim, concordamos com o que Malanga (1979) entende por
publicidade: “[um] conjunto de técnicas de ação coletiva no sentido de promover
25
o lucro de uma atividade comercial, conquistando, aumentando e mantendo
clientes.” (apud MUNIZ, 2005, p. 3).
A propaganda, por sua vez, teve suas bases em origem católica apostólica
romana, quando no século XVII, o papa Gregório XV fundou uma comissão de
propagação de fé com o objetivo de imprimir livros religiosos, formar missionários
e difundir a fé cristã. O papa, preocupado com o alastramento dos atos
ideológicos da Reforma Protestante, deu o título de Sagra Congregatio Nomini
Propaganda a organização responsável por disseminar o catolicismo em países
não-católicos. (MUNIZ, 2005). Podemos concluir, então, que a propaganda por
muito tempo assumiu um caráter religioso com o nítido objetivo de “converter”,
ou seja, catequizar, doutrinar, por associação: persuadir. Contudo, a Igreja
Católica, após as transformações sociais que já conhecemos, perdeu o seu
monopólio de propagação de ideias, tornando a atividade da propaganda, uma
prática de diferentes tipos de organizações de natureza econômica, social e,
inquestionavelmente, política.
“[...] [É] na primeira metade do século XX que se inicia o
desenvolvimento das condições técnicas dos suportes que darão à
propaganda política (e as demais modalidades) os canais para uma atuação
de ilimitada frequência sobre as massas que necessitavam de informações e
eram extremamente influenciáveis. (MUNIZ, 2005, p. 4)
27
Acreditamos, no entanto, que a linguagem videoclíptica também compartilha da
manipulação dos símbolos, afinal, o videoclipe enquanto experiência estética e
produto da cultura contemporânea, produz sentido e possui discurso. Apesar
disso, não acreditamos que o videoclipe tenha tamanha autoridade de sugerir
condutas, atitudes, maneiras de enxergar a realidade.
28
2 PODE O ARTISTA SE POSICIONAR?
5
LICHOTE, Leonardo. Mercado fonográfico brasileiro cresceu acima da média mundial
em 2018. Entenda os motivos. O Globo, 2019. Disponível em:
<https://oglobo.globo.com/cultura/musica/mercado-fonografico-brasileiro-cresceu-acima-da-
media-mundial-em-2018-entenda-os-motivos-23568320>. Acesso em: 29/03/2021.
6 HU, Cherie. Como o mercado de videoclipes vai se transformar em 2019. Forbes, 2019.
Disponível em: <https://forbes.com.br/principal/2019/02/como-o-mercado-de-videoclipes-vai-se-
transformar-em-2019/>. Acesso em: 29/03/2021.
29
relevante para o mundo (e o negócio) da música que pretendemos adentrar. A
partir do momento em que os artistas se apropriam dos recursos audiovisuais
não somente nos seus processos criativos para divulgar uma canção, mas
também como modelo de negócio, faz-se necessário investigar como tudo isso
se articula. Investigar o artista e as suas dinâmicas discursivas pela perspectiva
do audiovisual e como isso está atrelado a uma lógica de mercado nos leva a
tentar compreender a máxima do filósofo Confúcio: uma imagem [do artista] vale
mais do que mil palavras [de uma canção?].
A partir das constatações anteriores, surgem algumas indagações.
Partindo do pressuposto que o mercado (as condições de produção e circulação)
de um videoclipe movimenta milhões todos os anos (no Brasil), como se organiza
essas questões mercadológicas atualmente? Se o artista em questão gera,
através do videoclipe, um corpo nas mídias (SOARES, 2013), isso implica dizer
que a sua imagem está completamente associada à sua produção artística e,
consequentemente, o quanto e como ela vende. Poderíamos alegar que o artista
é, em si, a sua própria marca? Caso sim, que dispositivos do marketing são
acionados para o gerenciamento desta marca? Levando em consideração que o
posicionamento de marca é “a ação de projetar a oferta e a imagem da empresa
para que ela ocupe um lugar diferenciado na mente [e no coração] do público-
alvo” (KOTLER; KELLER, 2012, p. 294), podemos afirmar que um artista se
posiciona enquanto marca? Vamos além: seria o videoclipe um dos suportes
encontrados pelo artista (e pelo mercado) para se posicionar? Essas são
algumas das questões que tentaremos responder ao longo deste capítulo.
Não é de hoje que os teóricos e pesquisadores pensam o videoclipe a
partir das imagens. Na verdade, como Thiago Soares (2006a, 2013) já nos
alertou, o percurso histórico no terreno acadêmico do videoclipe parte do Film
Studies, isto é, dos conceitos que tratam da análise estrutural do Cinema pelo
qual a construção imagética tem um “peso maior” que a música. No entanto,
compreender este produto audiovisual unicamente pelo viés imagético, para
Soares (2006a), “pode acarretar na impossibilidade de vislumbrar toda a cadeia
de sentido originada a partir das lógicas produtivas da indústria fonográfica.” (p.
2). Sendo assim, o autor vai elencar 3 pressupostos que nos ajudam a entender
a ancoragem estrutural do videoclipe. São eles: 1) o videoclipe como objeto
30
promocional cujo estratégias de ênfase, convencimento e persuasão serão
levadas em conta; 2) há uma relação direta entre vídeo e áudio, não se
sobrepondo um sobre o outro; 3) as questões estruturais do videoclipe estão
mais ligadas à ordem da canção popular massiva do que à do cinema.
(SOARES, 2006b, 2013).
Soares vai abordar as estratégias de produção de sentido do videoclipe a
partir do conceito de versos ganchos e ganchos visuais. Ele argumenta que do
mesmo modo em que as canções possuem um refrão que “convoca” o ouvinte a
“participar” da música, o videoclipe possui um “gancho visual”, que seria uma
estratégia imagética pelo qual o espectador poderia “cantar junto” a canção e
“participar” do videoclipe. (SOARES, 2006b). Carol Vernallis (2004) define o
verso gancho como “o trecho que mais evidentemente se projeta como imagem
ou que cristaliza um ponto de vista sobre a letra, que, na maioria das vezes, está
relacionada ao título da canção". (apud SOARES, 2013, p. 110). Soares
complementa afirmando que o verso gancho, de maneira geral, está localizado
no refrão da canção. Neste sentido, para o autor, o verso gancho é um
“interessante indicativo para a verificação de escolhas estéticas e temáticas dos
vídeos, com o intuito de construir noções estratégicas que perpassem indicativos
dos artistas protagonistas dos clipes, dos diretores audiovisuais e dos diretores
de gravadoras.” (op. cit. p. 111).
Partindo da ideia de “gancho”, Andrew Goodwin (1994) estende a
perspectiva para o visual, originando o “gancho visual” que pressupõe “uma
espécie de localização, na imagem, de uma estratégia utilizada para manter o
espectador assistindo ao clipe – tais quais as ferramentas para manter o ouvinte
na canção, empreendidas nos refrões.” (apud SOARES, 2013, p. 115). Baseado
em Goodwin, Soares classifica em 4 os ganchos visuais: 1) os close-ups nos
rostos dos cantores e os enquadramentos próximos, que operam em relação à
memória do espectador; 2) a geração de planos que se configuram como marcas
visuais, ou seja, a fixação ou referenciação de um símbolo no videoclipe; 3) a
utilização de planos que mostram fragmentos do corpo físico do artista,
convidando para um suspense e gerando uma expectativa; 4) a existência de
um plano, ou uma sequência, que desvende o final da narrativa do clipe
31
construída em cima do molde “apresentação–conflito–resolução”. (SOARES,
2013).
A identificação dos ganchos visuais no videoclipe é, ainda, a primeira
parte do processo de esmiuçar os sentidos estéticos desse produto cultural.
Soares afirma que é necessário, então, tentar apreendê-lo através da canção
(como vimos anteriormente), do gênero musical e, finalmente, da performance.
Sobre o âmbito do gênero musical, Soares declara que é indispensável perceber
que a produção deste audiovisual faz parte de uma dinâmica que considera uma
gama de expectativas geradas a partir de algumas “regras” do próprio gênero.
Essas “regras” constroem uma imagética no videoclipe que articula de um lado,
as cenografias dos gêneros musicais e do outro, as narrativas específicas dos
artistas, concebendo uma composição “músico-imagética”. (SOARES, 2013).
Ele diz:
“Para nos encaminharmos para uma leitura imagética do gênero musical,
podemos, por exemplo, nos utilizar da observação de capas de álbuns,
encartes, bem como cartazes e flyers de shows e eventos. O apelo a certas
leituras, bem como a projeção de uma imagética que seduza o fã, vão sendo
pontuais no reconhecimento imagético de um gênero musical. Os “ambientes”
futuristas presentes em flyers de festas de música eletrônica, o design de
elementos retrôs nos eventos saudosistas de décadas como 70 ou 80, bem
como a visualização de elementos satânicos nos cartazes sobre eventos de
heavy metal vão construindo uma imagética associativa que, na maioria das
vezes, vai “habitar” álbuns, cartazes e todo aparato de divulgação do artista,
incluindo o videoclipe.” (op. cit., p. 133-134)
32
gêneros musicais da cultura contemporânea”. (apud SOARES, 2013, p. 151-
152)
7
Na tradução literal: sistema da estrela.
33
pro chão tem visão limitada / E nunca vai ter uma empresa LTDA / Eu já não vejo
meu sapato há muito tempo / Meu pai ensinou só a olhar pra onde eu quero
estar”. (2021). Portanto, a familiaridade do artista (e a sua voz) perante o nicho
que pretende alcançar que vai permitir que ele mesmo não precise
necessariamente marcar presença no videoclipe — enquanto corpo físico na
tela, ou seja, materialmente falando — para ser reconhecido no audiovisual.
Produtos culturais, mídia e mercado: que relação é esta? Pretendemos,
agora, abordar algumas reflexões sociológicas trazidas por Nadilson Manoel da
Silva (2005) a respeito desta relação. Vamos dialogar com conceitos que partem
de duas perspectivas: 1) da economia política da mídia; 2) dos estudos culturais.
A primeira pretende abordar a cultura a partir dos reflexos de transformações
econômicas. A segunda, dos resultados de várias dinâmicas que envolvem os
desejos dos criadores desses produtos, os contextos de recepção e a
multiplicidade dos discursos. Da Silva vai nos falar que os teóricos da teoria
crítica já discutiram a relação entre subcultura8 (cf. nota 8) e mercado. Nesta
corrente, os produtos culturais vinculados a uma subcultura não incorporariam
as dinâmicas do mercado que os padronizassem, tornando-se resistência. Esse
debate, que é colocado em torno da ideia de "autenticidade", ignora a “relação
da cultura com outras esferas sociais que possam interferir no processo de
criação dos bens culturais” (DA SILVA, 2005, p. 35). Dick Hebdige é um dos
teóricos dessa corrente.
Para Hebdige (1996 apud DA SILVA, 2005), os produtos culturais seriam
um reflexo fiel do modo de vida dos integrantes da subcultura, tendo a mídia
como importante aliada neste processo. Esses produtos seriam um retrato de
uma resistência que se opõe ao mercado comercial. No entanto, essa posição
não se sustenta a partir do momento em que se observa que os produtos
alternativos e até de discurso contra-hegemônico estão submetidos às
dinâmicas do mercado tais quais os hegemônicos. Pela perspectiva dos estudos
culturais acerca da cultura popular, John Fiske (1987) vai entender os produtos
culturais enquanto uma pluralidade de vozes expressas de maneira democrática,
ou seja, só existem no encontro com a audiência e, por isso mesmo, é
8
Trazemos aqui o termo “subcultura” na sua escrita literal, ou seja, exatamente como foi
cunhado pelos estudiosos. No entanto, achamos bastante problemático utilizar o prefixo “sub”,
que denota inferioridade, para classificar as culturas tidas como marginalizadas.
34
corresponsável pela criação desta mesma cultura. Dessa forma, a cultura
popular deve ser entendida enquanto economia popular, diferenciando-se da
economia financeira. (apud DA SILVA, 2005).
Os estudos pós-modernos, por sua vez, trazem a “compreensão da
cultura a partir de uma perspectiva de negociação entre as práticas cotidianas
das audiências e as promessas de satisfação dos produtos culturais.” (DA
SILVA, 2005, p. 37). Nesta corrente, há uma “sobrevalorização das
representações e signos” (ibid.) na cultura. A sociedade estaria vivendo o ápice
dos significados cuja importância se sobreporia ao próprio valor de uso dos
objetos. Baudrillard (1996) é um importante teórico desta corrente. Para ele, a
mídia, a partir da expansão das novas tecnologias, estaria desmanchando o
senso de real, irreal e virtual. E mais: é a superprodução de imagens que provoca
esse fenômeno, fazendo com que as “massas” valorizem mais a experiência
virtual do que a própria realidade material e imediata. (ibid.). Percebemos que a
mídia desempenha um papel fundamental para a compreensão da cultura e suas
produções na sociedade contemporânea. Embora não haja uma evidência
concreta de uma inversão de valores pelos quais os produtos culturais se
configuram como mais relevantes que as próprias dinâmicas sociais, é
perceptível a expansão das novas tecnologias nas práticas sócio e individuais.
Da Silva (2005), através de Mikhail Bakhtin (1948), vai nos dar uma ideia
sobre o aspecto carnavalesco da cultura popular investigando a “relação entre
as tradições do povo e as culturas dominantes, uma relação intensa marcada
pela inversão, questionamento e reapropriação de culturas que se apresentam
na sociedade numa posição hierárquica.” (DA SILVA, 2005, p. 39). O filósofo
(apud DA SILVA, 2005) vai dizer que o carnaval não se resume a uma forma
artística; é, na verdade, “[um] ponto de intersecção entre a arte e a vida.” (ibid.
p. 39) Para Da Silva, esse aspecto carnavalesco encontra espaço na cultura
popular, na subcultura e até nas tradições orais. Portanto,
“É esperado que os produtos direcionados a um público mais restrito lidem
com esses elementos carnavalescos de forma mais intensa, porque eles não
estariam sujeitos às demandas do mercado comercial. O direcionamento para
um público delimitado a uma pressão menor de mercado, sem se preocupar
com a competição, facilitaria a aproximação desses produtos a conteúdos
diferentes dos encontrados na grande mídia.” (DA SILVA, 2005, p. 39-40)
35
Nadilson da Silva percebe que há uma contradição, ou melhor, um conflito
entre a lógica do mercado — que opera sob os moldes do lucro dos produtos
culturais — e a cultura popular — que dá ênfase à construção de relações sociais
a partir de uma cultura comum. Martín-Barbero (2001) vai contribuir com essa
discussão afirmando que a cultura da mídia não pode ser pensada em oposição
à cultura popular; pelo contrário, são as características populares que serão
incorporadas à cultura midiática adequando-se à lógica do consumo. (apud DA
SILVA). Sendo assim, corroboramos com o autor quando ele afirma que a cultura
midiática revela enormes contradições entre os objetivos do capital, (a busca do
lucro) e os da cultura (a formação de uma cultura comum a partir do
entretenimento). (op. cit., p.40).
É pertinente trazer esses conceitos e autores para, finalmente,
adentrarmos de modo mais direto no panorama da discussão em torno dos
aspectos mercadológicos que envolvem o videoclipe. Poderíamos ainda passear
pelos conceitos de hibridismo que nos levaria ao conceito de desterritorialização
(CANCLINI; TOMLINSON apud DA SILVA, 2005), porém, este primeiro já foi
amplamente discutido a partir de Covaleski (2010) e o último não problematiza a
cultura pelo viés (ou ao menos perpassa pelo sentido) mercadológico. Todavia,
é válido ainda trazer alguns levantamentos feitos por Nadilson da Silva (2005).
Corroboramos com a ideia de que há uma “tendência do mercado cultural de
entretenimento de utilizar várias mídias simultâneas para vender o mesmo
produto.” (p. 42).
Em se tratando do mercado “fonográfico-audiovisual”, essa proposição
faz ainda mais sentido quando atrelamos à ideia de Coher (o diretor global de
música do YouTube) de que o ramo audiovisual está se tornando um ramo visual
de áudio. Quase como em um looping, voltamos à ideia da relevância da imagem
no mercado fonográfico (SOARES, 2013). Podemos atestar isso, por exemplo,
quando Djonga lança o seu álbum nas plataformas digitais de streaming horas
depois de já o ter lançado no YouTube. E mais: quando o rapper lança uma
marca de vestimenta e artigos para casa e banho (que se esgotam em menos
de 24 horas) com peças que estampam o seu rosto, um bordão já conhecido
pelos seus fãs e até elementos visuais dos videoclipes, isto aproximadamente 1
mês depois de ter lançado o álbum, ele está vendendo algo muito mais relevante
36
que essas peças: ele está vendendo a sua imagem. O artista é, em si mesmo, a
sua própria marca.
De acordo com Da Silva,
“[...] podemos pensar em produtos culturais que estariam inseridos num
circuito comercial cujo objetivo principal é atingir uma audiência cada vez
maior. Esses produtos utilizariam recursos culturais para sua produção
baseados numa cultura comum, usariam um código restrito para atingir um
maior número de pessoas.” (2005, p. 42).
38
comercialização e de sua comunicação.” (LIPOVETSKY apud FETTER,
2013, p. 119)
Mas o que é uma marca? O que é um produto, afinal? Uma vez que se
compreende que o artista está inserido na lógica do mercado e da concorrência,
deduzimos que ele se apropria de algumas técnicas de marketing para
diferenciar o seu produto e fortalecer os seus vínculos. A partir deste ponto,
tentaremos relacionar alguns conceitos do marketing que acreditamos ser
compatíveis com as táticas da indústria cultural para posicionar o artista no
39
mercado fonográfico. A nossa tese é de que o videoclipe é um importante — mas
não a única — ferramenta que vai sustentar o posicionamento do artista. É
principalmente através das nuances estéticas e ideológicas do videoclipe que o
artista cria uma identidade de marca, isto é, um símbolo pelo qual o artista
pretende ser enxergado. Esse símbolo vai conceber uma imagem do artista no
imaginário do público, estabelecendo, a partir daí, uma personalidade e uma
proposta de valor que, juntos, vão construir uma representação na mídia. Nesta
representação, muitas vezes, habita um conflito. Haverá contradições entre o
que se espera do artista e o que ele representa e quem de fato o artista é.
Sobre a definição de produto, para Kotler & Keller (2012), “é tudo o que
pode ser oferecido a um mercado para satisfazer uma necessidade ou um
desejo, incluindo bens físicos, serviços, experiências, eventos, pessoas, lugares,
propriedades, organizações, informações e ideias.” (p. 348). Podemos
compreender a partir dos autores que a ideia de produto vai além do tangível.
Pensar uma pessoa enquanto um “produto” significa expandir o nosso conceito
do termo, assimilando, portanto, que as relações comerciais na sociedade
contemporânea são mais complexas do que o simples ato de comprar um item
no supermercado ou ir até um salão de beleza para fazer um corte de cabelo.
Em termos de mercado, se uma pessoa pode ser um produto, por associação,
presume-se que ela tenha uma marca pelo qual o consumidor vai poder
identificá-la diante de uma vasta gama de opções disponíveis. Entendemos por
marca como algo mais complexo do que um símbolo criado para diferenciar um
produto de outro. É, além disso, uma “[...] forma de expressão que faz parte do
cotidiano das pessoas, as quais têm em mente um nome ao lembrar de um
produto ou serviço [...]”. (KHAUAJA; PRADO apud ARAÚJO; MOURA, 2014, p.
9)
A marca, esse instrumento capaz de se expressar — e, por isso mesmo,
capaz também de se comunicar —, cria, a partir da comunicação, uma relação,
um vínculo com o seu consumidor, desempenhando um papel importante na vida
dele. A marca, por assim dizer, vai proporcionar ao comprador mais que uma
funcionalidade ou experiência (TYBOUT; CARPENTER apud ARAÚJO;
MOURA, 2014), mas uma intimidade que pode até despertar (na pessoa
compradora) valores “morais” como a fidelidade para uma manutenção saudável
40
desta relação. Além do mais, há uma série de fatores subjetivos que emergem
no processo de consumo de uma marca. Um deles, por exemplo, é apontado por
Araújo & Moura (2014): “o que compramos pode dizer quem somos, para onde
vamos e quem não somos.” (p. 9). O consumo de uma marca também é um fator
que molda a identidade cultural do sujeito, mas não é apenas o sujeito que detém
uma identidade: a marca igualmente a possui.
Pode-se entender a identidade de marca como uma síntese de todo o
valor que ela agrega para si. Conforme disse Araújo & Moura, “A identidade da
marca é todo o conjunto de conceitos e ideias divulgado pela comunicação
institucional. Em outras palavras, é a maneira pela qual a empresa pretende ser
vista.” (2014, p. 11). Se a marca pretende “ser vista” por alguém, dá a entender
de que estamos tratando de uma imagem. Porém, vale ressaltar a diferença
conceitual entre os termos identidade e imagem: “Identidade é um conceito de
emissão, e imagem é um conceito de recepção” (KHAUAJA apud ARAÚJO;
MOURA, 2014, p. 11). Posto isso, concluímos que o esforço da marca está em
aproximar cada vez mais a sua identidade da imagem que é criada pelo
consumidor. A comunicação com o seu público torna-se, portanto, uma
ferramenta crucial para que ambas, imagem e identidade, permaneçam sempre
conectadas. (ibid. p. 12).
A ideia de regime de marca (FETTER, 2013) é corroborada por Caldas &
Godinho quando estes afirmam que o mais importante não é o valor monetário
que uma marca pode valer, mas sim o quanto essa marca representa (valor
simbólico) na sociedade. (apud ARAÚJO; MOURA, 2014). Don Thompson
(2012) ressalta que a marca é o resultado final das experiências desenvolvidas
exclusivamente para os seus clientes e potenciais clientes em consonância com
a mídia durante um longo período. Essas experiências seriam fruto de um
trabalho de marketing e relações públicas que, juntos, tentam consolidar uma
identidade. (apud FETTER, 2013). Não basta simplesmente formar uma
identidade de marca e conter em si esta identidade; para além de comunicá-la,
é preciso que o público assimile e a valide. Ou seja: “o modo como o mercado
reage depende não só de quanta gente confia nessa ou naquela intervenção,
mas sobretudo até que ponto essa gente acha que os outros confiarão; não se
41
pode levar em conta o efeito da própria escolha”. (ZIZEK apud FETTER, 2013,
p. 122).
É na brecha entre a comunicação da identidade de marca e a imagem que
o público consumidor vai criar, que entra uma outra ferramenta do marketing: o
posicionamento. Posicionar-se é demarcar um território, expor a sua posição,
comunicar o seu diferencial; é dizer a que veio contribuir. Mas, mais do que isso,
o posicionamento pretende persuadir. Ocupar um lugar diferenciado na “mente
do consumidor” (KOTLER; KELLER, 2012) não é suficiente para, de fato,
conquistá-lo. É preciso adentrar no plano da sedução para fazer morada no
“coração do consumidor”. Todo artista pode se posicionar, mas é o diferente, o
ousado, que vai garantir a difusão deste posicionamento, afinal, como Araújo &
Moura dizem, “O diferente geralmente chama mais atenção.” (2013, p. 14). O
regime de singularidade proposto por Heinich (apud FETTER, 2013) explica bem
isso. Corroboramos com Araújo & Moura (2013, p. 15) na definição de
posicionamento “como a ação necessária, embasada em um planejamento
concreto, para projetar o produto na cabeça do consumidor, implicando um
comparativo com a concorrência e indo além dos fatores tangíveis [...].
Acreditamos que não é somente a satisfação pelo produto ou serviço, ou ainda
a criação de uma identidade, que assegura o posicionamento da marca no
mercado, mas sim a partir do momento em que a própria marca alcança o campo
subjetivo do consumo.
Como nos alerta os autores acima, o posicionamento está sempre
atrelado à segmentação. (op. cit.). Se o videoclipe é capaz de produzir um rosto
midiático (SOARES, 2013) para o artista, pelo qual vai definir o posicionamento
dele no mercado fonográfico, deve-se compreender a quem esse rosto será
mostrado. Embasados por diversos autores que discutem posicionamento,
Araújo & Moura concluem que a definição do público-alvo é o “x” da questão,
pois até então, tem-se mostrado impossível conquistar com propriedade todos
os públicos possíveis. Por outro lado, alcançar a liderança de determinada
categoria é o objetivo de toda grande marca. E o resultado, para os artistas, vem
em números: “A gente investe grana pra fazer a festa, também investe grana pra
fazer a guerra / Empresários e visionários, prontos pra bater de frente, pra bater
as metas.” (BK, 2019). Se é verdade que o espírito do capitalismo (FETTER,
42
2013) é estrutural e estruturante, permeando todo o âmbito das relações sociais,
lançar um olhar mais crítico e aprofundado no campo da produção cultural
significaria, então, concluir que os artistas do mercado fonográfico estão sempre
procurando novas e criativas formas de se posicionar. E isso de fato não só tem
acontecido, como movimentado milhões em todo o mundo, fazendo com que o
mercado artístico-cultural seja um dos mais rentáveis. “Vendendo igual Coca-
Cola, tudo que eu rimo cola, é que eu só rimo coca”. (BK, 2019). O videoclipe,
por sua vez, tem se mostrado como uma importante ferramenta para não só
comportar o posicionamento do artista, mas para difundi-lo massivamente na
mídia.
“Mantra da marca” é um conceito criado pelos renomados nomes do
marketing, Kotler & Keller (2012). Ritualisticamente, os autores vão definir esse
conceito como uma “articulação do coração e da alma da marca, intimamente
relacionada com outros conceitos de branding como “essência da marca” e
“promessa principal da marca”. Na cultura indiana, um mantra é uma sílaba, uma
palavra ou poema, curto, repetido de forma a auxiliar a concentração durante a
meditação. Para o marketing, o mantra é uma frase curta, composta de três a
cinco palavras no máximo, que remete à essência da marca, como um slogan
publicitário. Kotler & Keller dizem: “Os mantras da marca devem comunicar de
modo econômico o que ela é e o que ela não é.” (ibid. p. 302). Para nós, não é
mera coincidência o conceito de mantra de marca se assemelhar ao que Soares
entende por “verso gancho”. (SOARES, 2013). O verso gancho, que origina o
gancho visual é promovido na repetição, tal como um mantra. É, portanto, a partir
das bases teórico-analíticas elencadas por Soares para compreender o
videoclipe em toda a sua dimensão estética, a discussão acerca da indústria
cultural e a sua relação com o mercado na contemporaneidade e a conexão aos
conceitos do marketing, que podemos concluir que este produto cultural — o
videoclipe — serve como dispositivo para conceber e disseminar o
posicionamento do artista nas mídias. Esse posicionamento vai destacar o artista
enquanto marca e será fundamental para o diferenciar de outros artistas do
mesmo gênero — a concorrência —, visto que as relações no âmbito da cultura
estão cada vez mais inseridas na lógica do capital.
43
3 AUTORREPRESENTAÇÃO E MASCULINIDADE PRETA
PERIFÉRICA NA MÍDIA
9
A internet, hoje, é, na maior parte, transmitida através dos cabos de fibra óptica, que
funcionam com a transmissão de dados por meio da luz no interior de suas fibras.
10
Disponível em: <https://propmark.com.br/mercado/apenas-6-dos-negros-se-sentem-
representados-nas-campanhas-de-tv/> Acesso em: 01/04/21.
44
sentem representadas nos VT’s publicitários. Por outro lado, a mesma pesquisa
aponta que a população negra representou R$ 1,6 trilhão em consumo no ano
de 2017. Essa disparidade nos indica uma problemática social que vai muito
além de um preto estar ou não nos espaços publicitários, mas, sobretudo, deixa
transparecer o quão político é o controle da imagem no que diz respeito ao
domínio racial pela supremacia branca. Da mesma maneira, nos parece
igualmente problemático os 6% que se sentem representados, afinal, que
representações são essas, em que na sua grande maioria são oriundas das
lentes racializadas, não necessariamente da pessoa branca, mas pela ótica — e
lógica — dominante?
Para nós, tentar compreender as dinâmicas e os conflitos que regem a
atual sociedade — não apenas brasileira, mas qualquer sociedade
contemporânea — sem analisá-la pelo prisma do colonialismo nos parece mais
que um deslize intelectual: é, na verdade, uma desresponsabilização intencional
com o nítido objetivo da manutenção do status quo. “O colonialismo significa que
nós sempre devemos repensar tudo”, já dizia o cineasta senegalês Ousmane
Sembene (apud hooks, 2019, p. 33). Para hooks, existe uma conexão direta
entre a manutenção do patriarcado supremacista branco e a naturalização de
imagens específicas na mídia. Essas imagens antecedem o processo de
midiatização (SGORLA, 2019) que vivenciamos hoje. Imagens da negritude e de
pessoas negras que reforçam as noções de superioridade racial e imperialismo
político vêm de antes da escravidão, é atravessada por ela e se desdobra hoje
na mídia. Nas palavras de hooks, “os supremacistas brancos reconheceram que
controlar as imagens é central para a manutenção de qualquer sistema racial.”
(2019, p. 33).
“As maneiras pelas quais os negros, as experiências negras, foram
posicionados e sujeitados nos regimes dominantes de representação
surgiram como efeitos de um exercício crítico de poder cultural e
normalização. Não só, no sentido “orientalista” de Said, fomos construídos
por esses regimes, nas categorias de conhecimento do Ocidente, como
diferentes e outros. Eles tinham o poder de fazer com que nos víssemos, e
experimentássemos a nós mesmos, como “outros”. Todo regime de
representação é um regime de poder formado, como lembrou Foucault, pelo
binômio fatal “conhecer/poder”. Mas esse tipo de conhecimento não é
externo, é interno. Uma coisa é posicionar um sujeito ou um conjunto de
pessoas como o Outro de um discurso dominante. Coisa muito diferente é
sujeitá-los a esse “conhecimento”, não só como uma questão de dominação
e vontade imposta, mas pela força da compulsão íntima e a conformação
subjetiva à norma.” (HALL apud hooks, 2019, p. 34)
45
Dito isso, torna-se evidente o teor conflituoso no campo da representação
no que diz respeito à reivindicação do povo negro por novas representações na
mídia. A ausência da pessoa negra, ou pior, a sua imagem inferiorizada na mídia
é consequência de uma exclusão social gerada pelo preconceito racial fruto da
colonização que instaurou um sistema de escravização de povos africanos em
territórios americanos por mais de 3 séculos. Segundo Barreto, Ceccarelli &
Lobo, “os negros continuam vivendo as mesmas experiências desagregadoras
de uma autoimagem depreciativa, gerada por uma identidade racial negativa e
reforçada pela indústria cultural brasileira, a qual insiste no ideal de
branqueamento como referências identificatórias.” (2017, p. 3). Se para os
autores, a população negra “continua” experienciando uma autoimagem
depreciativa, quer dizer que já era assim antes mesmo de nos tornarmos uma
“sociedade da imagem” com sua ultravelocidade de disseminação de símbolos.
Barreto, Ceccarelli & Lobo (2017) vão dizer que o trabalho escravo
contribuiu expressivamente para a construção do “lugar” do negro. Silvio Almeida
(2019) vai dizer que o racismo (enquanto sua concepção estrutural e não
enquanto um ato cometido individualmente) constitui um complexo imaginário
social que é reforçado pelos meios de comunicação, pela indústria cultural e pelo
sistema educacional. A democracia racial — um mito conceitual criado por
Gilberto Freyre para relativizar a violência praticada pela supremacia branca —
e o pacto narcísico da branquitude — conceito cunhado por Cida Bento que
explica o acordo tácito entre os brancos de não se reconhecerem enquanto parte
privilegiada pela estrutura e reorganização do racismo — serão duas
ferramentas fundamentais para a manutenção deste “lugar” que ainda hoje a
grande mídia insiste em reproduzir. A atribuição forçada de um “lugar”, para além
de uma violência simbólica, é pilar constitutivo do estereótipo a partir do
momento em que o “outro”, violentado, incorpora e “aceita” este lugar, o
internalizando. São inúmeros os estudos acerca das mazelas psíquicas e “crises
identitárias” que só a população negra vivencia. A obra “Pele negra, máscaras
brancas” de Frantz Fanon é uma literatura clássica deste ramo.
Stuart Hall (2016) explica bem o fenômeno da estereotipação. Ele diz que
historicamente, a prática de reduzir a cultura do povo negro à natureza, ou ainda,
a prática de naturalizar a “diferença” do “outro” ficou a cargo das políticas
46
racializadas da representação. Hall explica a lógica por trás da naturalização:
“Se as diferenças entre negros e brancos são ‘culturais’, então elas podem ser
modificadas e alteradas. No entanto, se elas são ‘naturais’ — como acreditavam
os proprietários de escravos —, estão além da história, são fixas e permanentes.”
(HALL, 2016, p. 171). Para Hall, então, a naturalização é uma estratégia de
representação que tende a fixar a “diferença” e, portanto, deve-se permanecer
imutável. Nas palavras dele, “É uma tentativa de deter o inevitável ‘deslizar’ do
significado para assegurar o ‘fechamento’ discursivo ou ideológico.” (op. cit.).
Isso explica o porquê a mídia hegemônica repete as mesmas fórmulas, reproduz
as mesmas representações, ora escancarando a sua ideologia racista, ora
escondendo-a, nos revelando “novas embalagens pra [manutenção de] antigos
interesses”11, como diria o rapper Criolo.
Então, o que é representação? Esse conceito tão explorado e difundido
nos estudos da Comunicação é, na verdade, originário do campo da Psicologia
Social. No entanto, essa relação não se dá apenas como concessão do conceito
da Psicologia para a Comunicação. É consensual que não apenas ambas as
áreas a investiguem, mas também a Sociologia, a Antropologia e até a Filosofia.
A Comunicação, porém, se enquadra como componente cultural essencial na
sua concepção, afinal, a representação é uma manifestação própria de uma
cultura, como propõe Denise Jodelet. (2002 apud OLIVEIRA; MARTINS, 2014).
Serge Moscovici foi o precursor dos estudos da representação social em 1961,
afirmando que o indivíduo vive e se comporta a partir da sua interpretação do
mundo, isto é, uma realidade simbólica pela qual ele tem potencial de promover
mudanças. (OLIVEIRA; MARTINS, 2014). Porém, hoje, a definição consensual
é de Jodelet. Ela diz que “representações sociais são uma forma de
conhecimento socialmente elaborado e compartilhado, com um objetivo prático,
e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto
social”. (op. cit., p. 3).
Oliveira & Martins (2014) trazem uma definição mais íntegra. Eles afirmam
que a representação é um fenômeno psicossocial formado a partir de um
processo cognitivo que atua juntamente com a cultura e a aprendizagem
histórico-social do sujeito. E mais: além de ser processo, a representação social
11
Trecho da canção “Esquiva da Esgrima” composta pelo rapper Criolo em 2014.
47
é, também, fruto desse fenômeno. Moscovici, por sua vez, diz que a
representação social é responsável por abstrair sentido do mundo (apud
OLIVEIRA; MARTINS, 2014), portanto, vai conferir significado de modo que o
sujeito possa reproduzir, isto é, representar. E, uma vez que estão atreladas a
um contexto sócio-cultural-histórico, são mutáveis, dinâmicas, estão em
constante movimento, como vimos em Hall. Para os autores, a representação
também deve ser entendida como formadora de pensamento, orientadora de
comportamentos e práticas, além, óbvio, de geradora de identidade. (op. cit.).
Aliás, a pauta identitária, para muitos, ainda permanece sob uma ótica
reducionista, como se identidade fosse pouca coisa. Borges, ainda no prefácio
de hooks (2019), afirma que há uma equivocada visão que paira nas discussões
universalistas vs. identitários. Os universalistas acreditam que os identitários
desviam o foco da luta fundamental (contra o capitalismo, as estruturas, etc.),
quando, na verdade, a estrutura é hierarquizada pelos fundamentos de raça,
gênero, orientação sexual e outros.
Como já vimos, a mídia tem um papel fundamental no que diz respeito à
representação, afinal, ela tem a capacidade de compartilhar ideias, ideologias,
valores, e, por isso mesmo, serve de suporte para conceber e espelhar
representações. Por mídia entendemos ser
“[...] todo o conjunto material e imaterial que compõe o universo da
comunicação social e a sua dinâmica como uma necessidade existencial das
sociedades modernas, e do qual as pessoas cada vez mais dependem para
gerir processos individuais ou coletivos.” (BARRETO; CECCARELLI; LOBO,
2017).
49
É notável que a mídia pode ser vista como um terreno de confronto
político, intervenção cultural e agregação social quando lançamos o nosso olhar
para as produções culturais que emergem no ambiente midiático no qual os
videoclipes também fazem parte. No que se refere às produções audiovisuais,
Daniela Zanetti (2008) contribui ao examinar o que ela vai chamar de “cinema da
periferia”: um circuito fílmico alimentado por festivais como “Visão Periférica” que
articula representações sociais e territórios periféricos como instrumento de luta
por reconhecimento. Aliás, as produções audiovisuais de baixo custo, muitas
vezes, vão reafirmar uma estética “periférica” como forma de pertencimento;
estética, essa, que frequentemente perdura ainda que se elevem as condições
de produção. No campo do hip hop, as batalhas de rimas ganham muito mais
visibilidade e repercussão quando filmadas e compartilhadas em redes sociais
como YouTube e Instagram. Sabotagem, um dos maiores rappers nacionais,
mencionou, ainda nos anos 2000, o que era o maior propagador do gênero no
país: o site rapnacional.com. Ao que nos parece, a midiatização também
comporta algumas contradições. Djonga, no início da ascensão da sua carreira,
diz que ainda que seus vídeos estejam “batendo” milhões de visualizações, ele
ainda “bate carteira” no centro.
Uma vez que estamos tratando da representação do “outro”, que está à
margem da sociedade; uma representação “periférica”, “marginal”, faz-se
necessário entender que periferia é esta. Zanetti (2008) aborda em seu texto o
que vai chamar de uma categoria midiática da periferia. Neste sentido, o conceito
de periferia se expande para além do geográfico e ganha uma dimensão
simbólica, o que implica determinados discursos, ideologias, cenários
imagéticos, etc. Para Zanetti, há um aspecto fundamental na compreensão da
periferia: a representação construída em torno dela e o modo pelo qual será
representada na grande mídia. Ela diz: “Se a periferia se tornou uma categoria
cultural, um gênero, um estereótipo, uma marca ou mesmo uma ‘grife’, isso em
muito se deve às representações que emergem dos processos de mediação
existentes na esfera pública e os discursos atrelados a essas representações
[...].” (ZANETTI, 2008, p. 4-5). Ou seja, a periferia ganha esse sentido
simbólico a partir de sua representação na mídia, originando assim um
imaginário (fixo?) que vai permear e reproduzir discursos na sociedade.
50
Não é de se estranhar que a grande maioria das produções audiovisuais
produzidas pelos atores não periféricos, mas que performam um cenário
(SOARES, 2013) periférico, retratam de modo estereotipado (quando não
racista) esses espaços e os indivíduos inseridos nele. A série televisiva “Sexo e
as Negas” (machista e racista, vale ressaltar) exibida na Globo e criada por
Miguel Falabella em 2014 é um caso nítido do que estamos falando. A série
recebeu uma enxurrada de críticas e centenas de denúncias. O simbólico da
periferia pode, inclusive, fazer com que os artistas do ramo musical “transitem”
entre diferentes espaços (periferia—centro) a partir da incorporação dos
elementos “ditos” periféricos. Anitta, ao lançar o clipe da música “Vai Malandra”
em 2017, absorveu elementos estéticos da negritude como as box braids12 e o
bronzeamento de fita para criar esse corpo (SOARES, 2013) periférico no
videoclipe. O filme Tropa de Elite (2007) dirigido por José Padilha, por outro lado,
carrega um discurso ideológico que naturaliza o extermínio da juventude negra,
apresentando uma trama policial de combate às drogas.
Em um cenário catastrófico no qual a população negra, quando não se vê
representada na mídia, se vê estereotipada, que surge a necessidade de criar
referenciais outros. Zanetti, a partir de Wilson Gomes, diz que é na esfera pública
onde vai ocorrer as medições, os debates e as disputas, entre elas, as de
representações. “A visibilidade pública através da mídia, portanto, tem sido cada
vez mais almejada por determinados setores da sociedade civil, como forma de
garantir que seus interesses possam fazer parte do debate público.” (ZANETTI,
2008, p. 7). A comunicação e a arte têm sido importantes ferramentas contra-
hegemônicas que atuam na/através da mídia neste sentido. (ALMEIDA, 2016).
Compreendemos, desta forma, que a atuação política também se faz presente
nesta tentativa de ocupar espaço na mídia. Talvez esta seja a principal forma de
se inserir em diferentes espaços midiáticos em busca de (criar) novas
representações. Nesta perspectiva, a autorrepresentação reivindica um direito
(digno?) à imagem, um espelho mais nítido, pelo qual permita os outros atores
se referenciar em sua integridade e complexidade.
É compreensível para nós quando Zanetti (2008, p. 8) afirma que “há um
discurso que busca tornar legítimo o fato de se viver na periferia, algo que
12
Técnica ancestral negra de trançar os cabelos.
51
geralmente é visto como um problema, às vezes como uma ‘tragédia’ urbana da
contemporaneidade.” Legitimar as vivências periféricas através de um discurso
inserido em um produto cultural é, para hooks (2019) “estar comprometidos em
realizar esforços de intervir criticamente no mundo das imagens e transformá-lo,
conferindo uma posição de destaque em nossos movimentos políticos de
libertação e autodefinição [...]”. (p. 36). Mas essa tentativa de se autorrepresentar
é mais complexa do que parece: há, ainda, as várias armadilhas de repetir os
mesmos paradigmas já muito bem estruturados pelo “outro” dominante.
Descolonizar o pensamento é crucial para transformar, de fato, as imagens, tanto
pelo olhar embranquecido e ainda mais pelo empretecido.
Nas palavras de Samia Mehrez,
“A descolonização […] continua a ser um ato de confrontação com um
sistema de pensamento hegemônico; é, consequentemente, um imenso
processo de liberação histórica e cultural. Como tal, a descolonização se
torna a contestação de todas as formas e estruturas dominantes, sejam elas
linguísticas, discursivas ou ideológicas. Ademais, a descolonização passou a
ser entendida como um ato de exorcismo tanto para o colonizado quanto para
o colonizador. Para os dois lados, deve ser um processo de libertação: da
dependência, no caso do colonizado, e, por parte dos colonizadores, das
percepções, instituições e representações imperialistas e racistas que,
infelizmente, permanecem conosco até hoje. […] A descolonização só pode
ser completa quando é compreendida como um processo complexo que
envolve ambos, o colonizador e o colonizado.” (apud hooks, 2019, p. 31).
53
lugares de privilégio que posicionam a maioria dos homens acima das mulheres.
No entanto, existe um
“regime de gênero no qual existem masculinidades hegemônicas
(onde ser branco, heterossexual, rico e ocidental são suas marcas mais
vísiveis) que estão sobrepostas a masculinidades marginalizadas ou
subordinadas (aquelas masculinidades identificáveis entre negros, gays,
pobres, não-brancos, transgêneros). (RIBEIRO, [s.d], p. 4, grifos do autor).
56
O #TheGangstaProject, projeto de pesquisa de Daniel dos Santos (2017),
retrata cirurgicamente o processo de construção da imagem e representação dos
homens negros norte-americanos a partir de uma análise dos videoclipes dos
rappers Jay-Z e 50 Cent. Segundo o autor, essas duas personalidades
desempenharam um papel significativo nos processos de identificação e
subjetivação de milhares de meninos e homens negros, mas não só isso, eles
também propuseram alternativas de representação de masculinidades negras
na e pela cultura do Hip Hop tal como uma “fórmula calculada repetidamente,
resultando em um produto que compreende processos de masculinização e
construção da autenticidade ilusória dos signos da raça e do gênero, instituídos
e conjugados historicamente.” (DOS SANTOS, 2017, p. 16). De fato, há uma
espacialidade geográfica-histórica-cultural gigantesca que separa os Estados
Unidos do Brasil, mas ao se tratar dos processos de sociabilização dos povos
pretos em diáspora, fica nítido para nós a verossimilhança desses constructos.
Portanto, concordamos com Dos Santos (2017) na ideia de que o discurso
iconográfico foi e é, hoje, um dos principais instrumentos de dominação dos
homens negros. E assim cabe a nós questionarmos a quem serve essa “fórmula”
de masculinizar os homens negros e quais as suas consequências para esses
sujeitos e para a sociedade como um todo.
Para Fanon (apud NKOSI), o racismo, em sua totalidade e complexidade,
não se resume simplesmente a uma suposta hierarquia entre brancos e negros,
mas, como já explicitamos, “na fixação de atributos biológicos dos indivíduos.”
(2014, p. 82). O ser humano, em sua subjetividade e complexidade, na
sociedade colonial passa a ser racializado, dividindo-se entre negros e brancos.
Contudo, o branco, na alienação de sua raça, configura-se como a expressão da
humanidade; e aqueles que não são europeus não podem almejar esse status
de universalidade, a eles restarão apenas ser os outros (NKOSI, 2014). É com
esse raciocínio que o autor pontua mais um aspecto da qualidade de ser um
homem negro: a invisibilidade. Essa particularidade de ser invisível surge
justamente quando se pensa no ser humano universal. Os outros são as
especificidades, as exceções, são todos aqueles que habitam as margens; é
possível falarmos de cultura negra, indígena, cigana, chinesa, etc., mas nos soa
completamente estranho falarmos de uma cultura branca. O negro, portanto, é
57
invisibilizado ao pensarmos a categoria de humanidade. “Quando não é
invisibilizado, o negro é apresentado como contraponto antiético do humano. A
sua aparição, quando autorizada, é reduzida a uma dimensão corpórea, emotiva
ou ameaçadora” [...] (NKOSI, 2014, p. 83, grifos nossos).
Esse estado de conservação do homem preto em suas dimensões
corpóreas, emotivas e/ou ameaçadoras é essencial na manutenção do racismo
e, consequentemente, na construção de uma masculinidade que será pautada
numa privação de sentido existencial. Corroboramos com Nkosi (2014) em sua
fala que trata de um dos tópicos mais importantes da racialização: a convicção
de uma “superioridade” corporal do negro e, como efeito, sua “inferioridade”
intelectual e, do outro lado, a “superioridade” intelectual do branco assim como
sua “inferioridade corporal”. Para nós, este raciocínio explicita a dificuldade
existente em reconhecer a humanidade do homem preto em outras esferas de
sua existência, o que configura a sua invisibilidade. Não sabemos mensurar em
quais das ordens, física ou simbólica, a violência é mais presente na vida de um
homem preto. É certo que, para além da violência institucional, responsável por
superlotar os presídios, exterminar a população a preta, impedir o seu acesso à
educação, dar-lhe condições precárias de trabalho e tantas outras mazelas
sociais, a violência simbólica vai atravessar, senão toda, uma grande parte da
vivência do homem preto. Nesse processo de masculinização, por exemplo, os
efeitos da crença de sua superioridade corporal — que muitas vezes será
direcionada ao seu pênis, visto que vivemos em uma sociedade falocêntrica —
vão chegar no nível mais profundo de sua psique a ponto de acreditar estar
finalmente acessando o “mundinho do macho” branco através do “poderzinho”
que o seu pênis lhe proporciona, como diria Heleieth Saffioti (apud NKOSI, 2014,
p. 77). Mas não só isso: esse processo vai marcar profundamente a maneira pelo
qual esse homem vai se relacionar afetiva e sexualmente.
Da perspectiva do homem negro, Edrigle Cleaver (apud NKOSI, 2014)
aponta dois principais problemas quando tensionamos sexo e raça para lançar
o nosso olhar sobre as relações raciais: 1) marcado pelo racismo, o homem
negro não consegue corresponder às expectativas patriarcais de masculinidade
perante uma mulher negra; 2) o preto não consegue identificar na mulher preta
o seu “outro ideal” (p. 87, grifo do autor). No Brasil, essa problemática se
58
complexifica ainda mais com o mito da democracia racial do século XX. A tese
difundida pelo sociólogo pernambucano Gilberto Freyre defendia a
miscigenação, isto é, as relações interraciais, partindo da ideia uma “harmonia
entre as raças”, ou seja, uma “relação cordial” entre as senhoras e senhores e
as escravizadas e escravizados no Brasil Colonial. No entanto, hoje, sabemos o
quanto ele estava precipitado em suas ideias. E como podemos ver em Nkosi
(2014), a realidade é que, atravessada pelo racismo, a mulher negra tem sua
feminilidade saqueada pela mulher branca, restando-lhe a dureza do trabalho
braçal. A consequência disso é a brutalização dessa mulher, o que a tornará
desatraente aos olhos do homem negro. Na outra ponta, a mulher branca
(símbolo de delicadeza, sensibilidade e inocência) “não será apenas o reflexo de
um padrão estético de beleza embranquecido e ocidentalizado, mas antes de
qualquer coisa representa o acesso VIP ao mundo dos homens [...] (NKOSI,
2014, p. 88, grifos do autor). E como nos demonstra Djonga (2020) em sua
canção “Hoje não”, a mulher branca, muitas vezes partindo de uma ótica
hiperssexualizante, não deixará de lado a busca por satisfazer os seus desejos
quase nunca nomeados: “[...] Sua filha é danada, ela gosta de meter e dançar /
De segunda a quinta, na zona sul ela é santa / Mas senta pros cria no baile toda
semana.”
Até então, discutimos o homem negro enquanto 1) um ser invisível (ou
invisibilizado), uma vez que ele não é enxergado pelo “outro” branco; 2) um
animal, aprisionado em seu corpo, ou seja, desprovido de intelectualidade; 3) um
“não-homem”, ou, um não homem de verdade, já que as barreiras racias o
impedem de atingir o ideal masculino branco. Corroboramos com Nkosi (2014)
que, apesar desse quadro anterior ser configurado em estereótipos e várias
generalizações, não sendo capaz, inclusive, de abarcar as diversas
possibilidades de se agenciar um homem negro, é valido questionar-mos até que
ponto ele (o quadro) não aponta alguns elementos interessantes para se pensar
as masculinidades negras. Ao se debruçar sobre este tema, percebemos, assim
como diversos outros autores, que o lugar da violência, infelizmente, ainda é uma
real possibilidade de agenciamento de uma masculinidade preta, sobretudo na
juventude, como relata muito bem Ralph Ellison (1999):
“Sentindo assim (invisível), você passa, por puro ressentimento, a devolver
os empurrões que recebe. E — permitam-me confessar — é que quase
59
sempre assim você se sente. Você se aflige com a necessidade de se
convencer que existe mesmo, num mundo real, de que faz parte de todo esse
ruído, essa angústia, e acaba revidando aos murros, aos palavrões, jurando
que fará com que eles reconheçam você. Mas isso nunca dá certo.” (apud
NKOSI, 2014, p. 93)
Nkosi (2014) vai nos mostrar a partir de Clóvis Moura (1994) que existe
uma relação muito íntima entre racismo e sociabilidade violenta ainda no período
escravagista, afinal, naquela época, o controle social do escravizado passava
necessariamente pelo controle do corpo físico, mas não somente, “tendo na
repressão dramática da linguagem um elemento central que resultava em um
estado psíquico de permanente tensão e conflito.” (p. 95) Para Moura, o escravo
“não poderia exprimir um pensamento crítico em relação à realidade
existente. Muitas vezes, mesmo pensando que poderia dizer, faltava-lhe a
coragem para transformar essa vontade em ato e soltar a frase que
expressava aquilo que pensava com medo que o senhor ouvisse. Poderia ser
considerada uma agressão à disciplina. Por isso o escravo muitas vezes
achava mais fácil uma agressão física, uma violência corporal a uma ofensa
verbal, a um xingamento, um “filho da puta”, um “vá a merda”, um “corno”, um
“estou de saco cheio”, ou mesmo uma simples frase de descontentamento
contra ordem recebida, o que seria catártico porém de consequências
imprevisíveis.” (1994 apud NKOSI, 2014, p. 95)
60
Rap. No entanto, a nossa proposta neste capítulo pretende se resumir apenas
às possibilidades de masculinização e como isso afeta o homem negro neste
processo, sem pretensões de aprofundar neste debate que há muito tem sido
feito na acadêmia e também nos espaços não-acadêmicos. Para nós, fica cada
vez mais nítida a relação entre virilidade e violência ao se pensar o homem preto.
Tudo indica que as exigências de se performar uma hipervirilidade parte, além
de tentar cumprir com as expectativas (brancas) de uma sociedade (branca)
patriarcal, também de uma necessidade de reforçar uma autodefesa, uma
resposta a uma violência real e simbólica, quase como uma vontade inerente de
apreciar o gosto da vingança por séculos de exploração, humilhação,
estigmatização, etc. A nós — nem a ninguém — cabe julgar aqueles que
escolhem a essa alternativa de agenciar a sua masculinidade, entendendo
muitas vezes que não se trata de uma escolha; mas sim da única possibilidade
concreta de se fazer presente em um país onde a todo tempo e a qualquer custo
objetiva eliminar as suas existências.
Como nos aponta Nkosi a partir de Wladimir Rosa (2006):
“o racismo cria no homem negro um sentimento de emasculação que só seria
superado (ou pelo menos amenizado) pelo enfrentamento violento à
sociedade hostil. Este enfrentamento é violento não apenas porque se deseja
a violência como compensação vingativa, mas porque não se visualiza outra
forma de agenciamento. Neste contexto, forja-se uma agência que tem na
virilidade a sua maior expressão: elas nos permitem compreender que tomar
a virilidade como fator explicativo da masculinidade negra implica considerar
o efeito causado pelo sistema de supremacia branca patriarcal capitalista. A
virilidade do homem negro não pode ser tida, nesse caso, como um valor
masculino em si, mas sim como um efeito reativo a uma condição de
subalternização racial inerente a sociedade ex-escravistas, nas quais o
modelo hegemônico que deve ser alcançado é o do patriarcado, poder viril
exercido plenamente pelo homem branco.” (NKOSI, 2014, p. 97)
Obviamente, o Rap não irá fugir a essa dinâmica: “e, reativo a esse desafio, vê
no exercício da virilidade e sua ostentação o caminho para desafiar o homem
branco, seu interlocutor e oponente.” (ibid. p. 97). Ainda segundo Rosa (2006
apud NKOSI, 2014), essa “reação” toda traz com ela uma problemática que vai
permear as relações de gênero: a afirmação dessa masculinidade ultraviril acaba
por engendrar os componentes patriarcais sobre as mulheres, sobretudo as
negras como também outros homens negros, operando a manutenção das
hierarquias e relações de poder. Fanon confirma esse fenômeno ao apontar que
os homens colonizados, em resposta a não permissão de extravasar suas
61
tensões contra “seus superiores”, voltam-se a seus iguais de modo violento
(apud NKOSI, 2014).
No entanto, como vimos anteriormente, essas não são as únicas saídas
para se construir uma masculinidade negra. bell hooks (2019) no seu livro
Olhares negros: raça e representação, uma coletânea de ensaios críticos nos
quais analisa e discute algumas narrativas midiáticas pela perspectiva da
negritude, traz exatamente esse debate de possibilidades de se (re)construir as
masculinidades negras para além daquelas identidades enraizadas no ideal
patriarcal branco. Em várias produções literárias e cinematográficas norte-
americanas, ela descobre (e se espanta com) um retrato de uma masculinidade
negra no qual “constrói os homens perpetuamente como ‘fracassados’, que são
‘fodidos’ psicologicamente, perigosos, violentos, maníacos sexuais [...]” (hooks,
2019, p. 174). Para a pensadora, ainda nos falta um olhar crítico para desafiar
sistematicamente essas representações, ao invés de agir em colaboração com
o status quo, absorvendo essas imagens e perpetuando estereótipos e mitos.
É interessante como hooks complexifica os papéis de gênero e traz um
aparato histórico para o debate. Pensar como o homem negro via a si mesmo
antes de chegar ao “novo mundo” é, certamente, tentar buscar um outro
referencial, pré-colonial desta vez, de possibilidades de agenciamentos do que
é “ser homem”, não do ponto de vista essencialista, mas sim de um horizonte
possível que desvia daquele ideal patriarcal tal qual a gente conhece, afinal, a
partir do contato com os homens brancos, os homens africanos que chegavam
nas Américas tiveram as noções hombridade dos colonizadores impostas sobre
eles. Para hooks (2019), uma das consequências desse fenômeno é percebida
séculos depois, quando os homens negros norte-americanos estavam
comprometidos com o “aprimoramento da raça” como meio de enfraquecer o
racismo. (Essa ideia de aprimoramento da raça surge lá, nos Estados Unidos do
século XIX, como uma “estratégia” de se aperfeiçoar para se igualar aos brancos
em termos de cultura e educação.) A partir daí, podemos perceber como essa
noção de “hombridade” terá como referencial o homem branco, que será usado
como parâmetro para se alcançar determinado “progresso” de ser homem. Ao
analisar algumas narrativas documentais de escravizados, hooks conclui que “A
imagem da masculinidade negra que emerge das narrativas de escravidão é a
62
de um homem trabalhador que queria assumir completamente a
responsabilidade patriarcal com a sua família e seus descendentes.” (2019, p.
176).
Por outro lado, ainda segundo hooks, as representações do século XIX
tinham a imagem do homem negro como vagabundo e preguiçoso, estereótipos
estes que foram fundamentais para apagar da consciência geral a importância
do trabalho para o homem negro. E como busca de um outro referencial, hooks
(2019) problematiza como o conceito de “ócio” muda de acordo com
determinadas culturas. “Para os africanos e indígenas, o ócio era um espaço
para sonhar acordado, para a contemplação. Quando a escravidão acabou,
homens negros puderam mais uma vez experimentar essa noção de espaço.”
(ibid. p. 177). A noção de trabalho para os povos negros norte-americanos do
século XIX já continha algumas tensões de gênero. A grande maioria desses
homens não defendia direitos iguais para as mulheres; eles queriam, na verdade,
ser reconhecidos como patriarcas, mas não podiam caso as mulheres não se
conformassem com as “regras” machistas deste jogo. No entanto, elas mesmas
tinham posições contraditórias sobre esses papéis: não queriam ser
“dominadas”, mas queriam que os homens fossem provedores e protetores
(hooks, 2019). O fato é que, embora houvesse uma regra geral no qual o homem
deveria ser o trabalhador e provedor, havia também os homens que estavam
satisfeitos em criar papéis alternativos como cuidar da casa e das crianças,
enquanto a mulher trabalhava. Concordamos com hooks (2019) quando ela diz
que eles “podiam muito bem estar aliviados de não ter que se submeter à
exploração econômica” (ibid. p 181).
Acontece que o capitalismo em sua forma mais avançada foi essencial na
articulação de novas configurações de gênero como um todo, mas nos
atentemos ao papel do homem negro norte-americano. Como hooks mesma
atesta a partir de um ensaio, é no século XX que a imagem do patriarca se
solidifica. “Mais homens do que antes trabalhavam para alguém. O tempo do
homem não era dele; pertencia ao seu empregador, e os termos em que
comandava a família mudaram.” (hooks, 2019, p. 182). Paul Hoch nos explica:
“O conceito de masculinidade é dependente, em suas raízes mais profundas,
dos conceitos de repressão sexual e propriedade privada. Ironicamente, é a
repressão sexual e a escassez econômica que dão à masculinidade maior
significância como um símbolo de status econômico e de oportunidade
63
sexual. O encolhimento do conceito de homem a várias éticas de trabalho e
consumo também vai de mãos dadas com uma crescente divisão do trabalho,
e uma crescente restrição dos potenciais erógenos do corpo, culminando em
uma sexualidade limitada ao genital. Conforme nos movemos de sociedade
simples, coletoras de comida, para a sociedade agrícola e, então, para uma
sociedade baseada no trabalho urbano e na guerra, percebemos que é cada
vez mais estreita a gama de atividades que confere status ao homem. (HOCH
apud hooks, 2019, p. 182 e 183).
64
poderíamos dizer que essas representações emasculadas de homens negros na
mídia, neste caso, de rappers nos seus videoclipes, retroalimentam as ideias de
virilidade, violência e hiperssexualização associadas a esses homens
fomentando, assim, a aceitação e apoio por parte da sociedade civil aos ataques
genocidas aos homens negros (hooks, 2019). Portanto, podemos concluir
através de bell hooks que existe uma lógica conservadora que nega — ou não
dá acesso — às pautas do machismo e racismo, ou seja, gênero e raça no
mesmo debate. Está nítido que o falocentrismo se enraizou de forma tão violenta
nos homens negros que ele (o falocentrismo) não poderia gerar outra coisa
senão mais violência. “Muitos dos hábitos destrutivos dos homens negros são
adotados em nome da ‘virilidade’. Afirmando sua capacidade de serem ‘durões’,
de serem ‘descolados’, os homens negros põem suas vidas — e as dos outros
— em sério risco.” (hooks, 2019, p. 209). Como fugir a esta lógica e vislumbrar
outros horizontes possíveis?
65
4 POR UMA METODOLOGIA HOOKS-SOARES-KELLNIANA
66
um efeito ou significado político, posicionando-os nos debates de sua
contemporaneidade. Portanto, é preciso aprendermos a interpretar tais produtos
a fim de entendermos suas mensagens, seus significados e quais retóricas estão
sendo produzidas a partir destes.
A crítica diagnóstica, empregada aqui para interpretar politicamente a
cultura de mídia e seus produtos, se utiliza da intersecção de sexo, sexualidade,
etnia e classe como objetos que a compõe e a embasam. O resultado disso pode
ser visto através das formas das imagens, códigos genéricos, como a imagem é
apresentada, mecanismos técnicos de tv, música, bem como ideologias e
posições teóricas. Além disso, essa mesma perspectiva crítica exige que se
interprete a cultura e a sociedade em termos de relações de poder, dominação
e resistência. Isso significa que os valores de resistência, participação,
democracia e liberdade serão adotados como normas positivas para criticar as
formas de opressão (KELNNER, 2001). “As perspectivas críticas em relação à
cultura e à sociedade por muito tempo atacaram a dominação e a opressão ao
mesmo tempo que valorizavam positivamente a resistência e a luta...”
(KELLNER, 2001, p. 124). Baseado nisso, pretendemos relacionar essas teorias
à prática, a fim de desenvolver uma perspectiva contra-hegemônica ao
conservadorismo, ou seja, uma contestação que defende rumos progressistas à
cultura e, portanto, à sociedade.
Para nos atermos ao que o autor chama de perspectiva crítica,
precisamos debater e nos atentar aos sistemas de dominação existentes na
nossa sociedade. Isso requer mais que uma leitura inteligente do nosso objeto;
é necessário interpretá-lo entendendo como ele se relaciona com os discursos
políticos da sociedade e articular uma crítica às estruturas, às práticas de
dominação e a qualquer esfera hegemônica, impulsionando forças e modelos de
resistências (KELNNER, 2001). Sendo assim, o autor acredita que um estudo
cultural com uma perspectiva crítica – que objetiva construir um ataque à
opressão e a emancipação dos oprimidos – é essencialmente uma perspectiva
multicultural.
69
vamos adentrar no que Kellner vai chamar de “estudo cultural contextual”. Ele
condensa à sua teoria, a teoria da hegemonia de Antonio Gramsci (1971), que
articula a cultura, a sociedade e a política como terrenos de disputa entre
diversos grupos e classes. Isso significa que, na nossa leitura, devemos
especificar tais disputas em jogo, fazendo levantamentos de quais grupos e que
posições estão sendo expostas ali e, a partir daí, elencar o que é visto como o
lado mais progressista (2001, p. 133 e 134).
Compreender isto é compreender que, fundamentalmente, todo e
qualquer produto da cultura da mídia está inserido em um terreno de disputa que
reproduz os conflitos sociais, portanto, todo ele necessariamente possui um lado
neste terreno, melhor dizendo, possui uma ideologia. No entanto, a indústria
tende a limitar (quando não interceptar) os textos que possuem posições mais
críticas e radicais em relação a essas disputas. Ou seja, no nosso caso, as
grandes produtoras de música e audiovisual dificilmente vão ofender as
tendências dominantes com visões mais radicais inscritas nos seus textos. Isso
nos faz concluir que, através de Kellner, devemos nos voltar para os produtos da
categoria “independente” se o nosso objetivo for buscar intervenções políticas
progressistas dentro deste terreno. “De todo modo, [...] as formas de cultura da
mídia devem ser analisadas [...] em contexto e relação, vendo alguns textos
como reações radicais ou liberais mais progressistas às produções
(hegemônicas) [...] (KELLNER, 2001, p. 135). Ele afirma:
“Um estudo cultural contextualista lê os textos culturais em termos de lutas
reais dentro da cultura e sociedade contemporâneas, situando a análise
ideológica em meio aos debates e conflitos sociopolíticos existentes, e não
apenas em relação a alguma ideologia dominante supostamente monolítica
ou a algum modelo de cultura de massa simplesmente equiparada à
manipulação ideológica ou à dominação per se. Um modo de delinear as
ideologias da cultura da mídia é ver sua produção em relação, situando os
filmes, por exemplo, dentro de seu gênero, de seu ciclo e de seu contexto
histórico, sociopolítico e econômico. Ver os filmes em contexto significa ver
como eles se relacionam com outros filmes do conjunto e como os gêneros
transcodificam posições ideológicas.” (KELLNER, 2001, p. 135 e 136, grifos
do autor).
13
Traduzindo: influenciadores digitais. Profissionais das redes sociais com amplo número
de seguidores e com grande capacidade de influência. Produzem conteúdos sobre estilo de vida,
hábitos, opiniões, produtos; geralmente são patrocinados por marcas que compactuam com os
ideais/conteúdos desses profissionais.
71
imagens e discursos que são capazes de produzir representações imagéticas na
sociedade. É válido salientar também que, ao analisar os efeitos da cultura de
mídia neste nosso trabalho, pretendemos evitar o extremo de romantizar o
público ou pelo menos reduzi-lo a meros expectadores passivos, sugerindo que
seriam incapazes de raciocinar o que ouve, lê, assiste, etc.
Ainda aprofundando o tema da ideologia, Kellner afirma que
“[...] as ideologias da cultura da mídia devem ser analisadas no contexto da
luta social e do debate político, e não simplesmente como dispensadoras de
um tipo de consciência cuja falsidade é exposta e denunciada pela crítica da
ideologia. Embora a desmistificação faça parte da crítica ideológica, expor
simplesmente a mistificação e a dominação não basta; precisamos olhar por
trás da superfície ideológica para ver as forças e as lutas sociais e históricas
que geram discursos ideológicos e examinar o aparato e as estratégias
cinematográficas que tornam atraentes as ideologias.” (2001, p. 143).
Com isso, ele quer dizer que a crítica diagnóstica não é apenas uma ferramenta
denunciadora, mas sim um instrumento que deve procurar “momentos de crítica
social e de contestação em todos os textos ideológicos, inclusive nos
conservadores" (2001, p. 143). É a partir daí que Kellner começa a investigar a
utopia dentro dos textos culturais. Uma vez que compreendemos que a ideologia
contém uma retórica que tenta persuadir e convencer um determinado público,
podemos presumir que esta, portanto, deve possuir em seu núcleo, uma parte
atraente, com promessas ou momentos de emancipação; a isto, Kellner vai
chamar de momentos utópicos.
“A especificação dos momentos utópicos nas produções culturais mais
ostensivamente ideológicas constituiu o projeto de Ernst Bloch [...]. Bloch faz
um exame sistemático do modo como os devaneios, a cultura popular, a
grande literatura, as utopias políticas e sociais, a filosofia e a religião —
muitas vezes descartados como ideologia por alguns críticos ideológicos
marxistas — contêm momentos emancipatórios que projetam visões de uma
vida melhor capaz de pôr em xeque a organização e a estrutura da vida no
capitalismo (ou no socialismo estatal).” (KELLNER, 2001, p. 143).
72
mesmo, a pessoa analista deve, em sua leitura, atentar-se a uma “hermenêutica
dupla”.
Segundo Jameson:
“As obras da cultura de massa não podem ser ideológicas sem serem ao
mesmo tempo implícita ou explicitamente utópicas bem como não poderão
manipular se não oferecerem alguma genuína nesga de contentamento como
suborno de fantasia para o público que é assim manipulado. Mesmo a “falsa
consciência” de um fenômeno tão monstruoso como o nazismo foi alimentado
por fantasias coletivas de tipo utópico, com aparência “socialista” assim como
nacionalista. Nossa proposta sobre o poder de atração das obras da cultura
de massa implica que tais obras não podem administrar as ansiedades em
torno da ordem social se antes as tiverem revivido e não lhes tiverem dado
alguma expressão rudimentar; diremos então que ansiedade e esperança são
duas faces da mesma consciência coletiva, de tal modo que as obras da
cultura da massa, ainda que tenham por função legitimar a ordem vigente —
ou outra pior —, não podem cumprir sua tarefa sem colocarem a serviço
dessa função as esperanças e as fantasias mais profundas e fundamentais
da coletividade, às quais se pode dizer, portanto, que deram voz, mesmo que
de maneira distorcida.” (apud KELLNER, 2001, p. 144 e 145)
Uma vez que assimilamos que os textos ideológicos podem nos revelar
tanto os sonhos quanto os pesadelos de um determinado contexto social — esse
que vai gerir significados através da cultura —, faz-se imprescindível, para a
crítica diagnóstica, uma análise dos modos pelos quais esse contexto social
(sociedade) tenta direcioná-los (os textos ideológicos) para a manutenção das
atuais relações de poder. Assim dizendo, precisamos identificar os argumentos
inscritos no produto analisado não apenas criticando a ideologia dominante, mas
também detectando as utopias, as contestações, as possíveis subversões (?) e
suas contradições. Em suma, devemos assimilar também que a ideologia
precisa de uma “roupagem utópica” para se tornar atrativa e que, muitas vezes,
ela mesma cria mecanismos para ludibriar as pessoas levando-as a aceitar a
realidade como tal, incluindo os modos de vida e as condições sociais, por mais
absurdas que sejam. Além disso, a ideologia também pode apresentar como
universais os interesses que são de uma classe específica da sociedade,
naturalizando e eternizando imagens e narrativas com um nítido teor político: o
da manutenção do status quo. “A ideologia, pois, é uma retórica que tenta seduzir
os indivíduos para que estes se identifiquem com o sistema dominante de
valores, crenças e comportamentos.” (KELLNER, 2001, p. 147).
Depois de explorarmos exaustivamente cada lacuna, teoria e argumento
que compõem a crítica diagnóstica, pretendemos a seguir fazer uma síntese do
que é este conceito proposto por Kellner. Esta leitura diagnóstica (como
73
podemos chamar) da cultura da mídia pretende, a princípio, compreender o jogo
político atual, elencando os pontos fortes e fracos desta mesma força política em
questão. Deste modo, os produtos culturais vão nos dar uma compreensão da
sociedade — em um determinado contexto histórico — a nível psicológico,
sociopolítico e ideológico. Além do mais, uma leitura diagnóstica pretende
identificar as soluções ideológicas (por meio de utopias) que os textos culturais
oferecem como solução de vários problemas e conflitos sociais; e avaliar os
discursos hegemônicos e, consequentemente, contra-hegemônicos também.
Audaciosamente, a crítica diagnóstica (por escolher uma posição: a
progressista) também pretende auxiliar na formação de práticas políticas que
consideramos progressistas, além de fomentar alternativas para criadores,
artistas, escritores, roteiristas e outros interessados em fazer cultura, criarem
suas obras a partir de uma concepção menos centrada em interesses de uma
classe dominante, ou seja, incentiva, a sua maneira, a subversão desses
produtos que viriam a surgir. Para isso, ela vai se apoderar dos pilares sociais
que compõem a identidade de um sujeito pós-moderno como a intersecção de
sexo, sexualidade, etnia e classe. Como chave principal de sua análise, a crítica
diagnóstica vai adotar diferentes perspectivas (marxista, decolonial, feminista,
psicanalítica e outras) para a interpretação de um determinado texto. Por fim,
pretende, para além de uma metodologia inteligente para ler a cultura , fornecer
ferramentas aos interessados em recriar uma sociedade mais justa, mais
humana...
Assim como o próprio Kellner assume que o seu conceito de crítica
diagnóstica, embora muito bem delimitado e metódico, não consegue isentar-se
completamente em um processo de análise, ou seja, acaba escapando alguns
dos preconceitos e impressões pessoais (subjetivas) do analista, decidimos
assumir esta brecha como parte do nosso processo analítico neste trabalho. Em
outras palavras, queremos dizer que estamos conscientes dessa fissura que a
própria metodologia “kellniana” possui e, por isso mesmo, optamos por
acrescentá-la, integrá-la ao nosso método, criando, portanto, uma metodologia
única, que pretende unir o impessoal com o pessoal, o genérico com o particular.
Para isso, vamos a partir de agora adentrar um pouco no conceito de olhar
74
opositor, proposto por bell hooks (2019) no sétimo capítulo do seu livro de caráter
ensaístico “Olhares negros: raça e representação”.
bell hooks (2019) aborda nas primeiras páginas do capítulo a fundamental
relação que existe entre o “poder” e o “olhar”. Para ela, “o ‘olhar’ sempre foi
político [...].” (2019, p. 215). Enquanto rememora as suas vivências, hooks traça
um paralelo entre um olhar que tinha quando criança que era entendido como
gesto de resistência, confrontação e até como desafio à autoridade nos
momentos em que ela encarava um adulto, o desviar o olhar como uma não
confrontação — aprendido através da repetição do castigo ainda enquanto
criança — e, mais tarde nas aulas de história, as punições que os negros
escravizados tinham apenas ao olhar, entendendo que “[...] as políticas da
escravidão, das relações de poder racialzadas, eram tais que os escravizados
foram privados do seu direito de olhar.” (hooks, 2019, p. 215).
É nesta relação que a autora insere o pensamento do filósofo Michael
Foucault, entendendo agora a forma como o poder é capaz de se reproduzir sob
a forma de dominação, usando mecanismos e estratégias de controle. Isso
significa que em circunstâncias de dominação, não só é possível como de fato
acontece, uma manipulação do olhar. hooks (através de Foucault) vai dizer que
a dominação está inscrita em termos de “relações de poder”. Uma vez que
entendamos que o poder se revela enquanto um sistema de dominação que
tenta controlar tudo, sem deixar nenhum espaço para que a liberdade possa
expressar, conferimos que, segundo hooks (baseada em Foucault), todas as
relações de poder têm, necessariamente, a possibilidade de resistência (2019).
O olhar, a partir daí e nesse sentido, passa de mera observação passiva para
um olhar completamente político, capaz de transformar realidades. Assim, ela
vai se apropriar do termo “agência”, criado pelo então Michael Foucault. A
agência seria, então, toda margem ou brecha que surge como resistência nas
relações de poder.
“Existem espaços de agência para pessoas negras, onde podemos ao
mesmo tempo interrogar o olhar do Outro e também olhar de volta, um para
o outro, dando nome ao que vemos. O “olhar” tem sido e permanece,
globalmente, um lugar de resistência para o povo negro colonizado.
Subordinados nas relações de poder aprendem pela experiência que existe
um olhar crítico, aquele que “olhar” para registrar, aquele que é opositor. Na
luta pela resistência, o poder do dominado de afirmar uma agência ao
reivindicar e cultivar “consciência” politiza as relações de “olhar” — a pessoa
aprende a olhar de certo modo como forma de resistência.” (hooks, 2019, p.
217, grifo nosso).
75
Além de Foucault, hooks vai embasar a sua ideia também em outras pensadoras
e pensadores que estudam identidades, representações, imagens e mídia. Deste
modo, através de Stuart Hall, ela vai destacar o modo pelo qual se dá a
construção de representações de negritude pelos olhos da branquitude,
afirmando que “ [...] esse “olhar” a partir do lugar do Outro — por assim dizer —
nos fixa, não apenas com a sua violência, hostilidade e agressão, mas com a
ambivalência do seu desejo.” (hooks apud HALL, 2019, p. 217). Já citando
Manthia Diawara, em seus estudos sobre cinema negro, identidades e audiência,
hooks (2019) vai apontar como “cada narração põe o espectador em uma
posição de agência; e raça, classe e relações sexuais influenciam a forma como
essa posição de sujeito é preenchida pelo espectador” (p. 218).
É certo afirmarmos que, embora diferentes, o “olhar opositor” de hooks
converge para a “crítica diagnóstica” de Kellner, o que nos dá cada vez mais a
confiança por um processo de leitura íntegro que intencionamos fazer neste
trabalho. Além de pautar os pilares como raça, classe, sexualidade (e gênero)
como eixos importantes para uma leitura — que coloca o leitor / analista em uma
posição de agência —, o olhar opositor se propõe não apenas a analisar as
representações negativas (da negritude pela branquitude no caso desta obra),
como também as próprias produções criadas pelo grupo não-dominante (da
negritude para a negritude, como o cinema negro americano, também no caso
desta obra). Entendemos que, ainda que haja produções independentes e não-
hegemônicas, é possível criar representações estereotipadas, que mais se
assemelham com um olhar dominante. Para hooks, um exemplo disso é a
relação do olhar marcada pelo gênero, o que torna a experiência de um homem
negro (enquanto expectador) definitivamente diferente da da mulher negra
(enquanto expectadora).
Questionando a ausência das perspectivas das mulheres negras no
cinema, hooks aponta que este silêncio seria uma resposta à negação
cinematográfica que a mulher negra teve no cinema americano, indicando como
os discursos têm poder de violentar as pessoas; “uma violência que é material e
física, embora produzida por discursos abstratos e científicos, bem como pelos
discursos da mídia”. (2019, p. 220). hooks entende também que esta ausência
76
se dá pela não identificação com tais discursos, o que não só afastaria as
mulheres negras do cinema, mas, mais tarde, criaria a demarcação de um lugar
pelo qual o olhar crítico nunca esteve antes. Parafraseando Anne Friedberg,
hooks diz: a “identificação só pode acontecer através do reconhecimento, e todo
reconhecimento em si é uma confirmação implícita da ideologia do status quo”.
(hooks, 2019, p. 221, grifo nosso). Podemos concluir, portanto, que há uma
“territorialidade”, um lugar específico no qual se situa o olhar; e esse olhar se
desloca por diferentes “lugares”, ocupando as mais variadas combinações de
identidade da sujeita ou sujeito.
Tensionando como as representações convencionais de mulheres negras
no cinema norte-americano cometiam (e ainda cometem?) uma violência contra
a imagem, uma vez que tais representações eram criações imagéticas e
fixadoras do olhar do homem cis heteronormativo supremacista branco, hooks
vai nos apontar que a resposta para esses ataques, muitas vezes, era “dar as
costas” para as telas, olhar para o outro lado, em outras palavras, o cinema não
se tornava atraente para esse público; não era importante em suas vidas. Por
outro lado, havia (e ainda não há?) as “espectadoras cujo olhar era de desejo e
cumplicidade. Assumindo uma postura de subordinação, elas se rendiam à
capacidade do cinema de seduzir e trair.” (hooks, 2019, p. 223). É certo que,
para uma análise crítica, esta da qual pretendemos assumir neste trabalho, é
necessário uma separação; um distanciamento do analista para com o objeto a
ser analisado, não se deixando, portanto, levar pela sutileza de uma sedução
que a imagem é capaz de criar.
Como afirma bell hooks, é somente através de um olhar opositor que
seremos capazes de avaliar criticamente um discurso — e aqui entendemos
discurso não apenas como um monólogo, mas também como um constructo
social qualificado para enunciar textos, dado que estamos falando de relações
de poder (vide Foucault) — hegemônico. É a partir deste olhar que podemos
observar as imagens de um lugar disruptivo. Assim hooks declara citando
Annette Kuhn em seu livro O Poder da Imagem que:
“os atos de análise, de desconstrução e de leitura “contra a maré” despertam
um prazer adicional — o prazer da resistência, de dizer “não”: não a uma
apreciação “sem sofisticação”, de nossa parte e dos outros, de imagens
culturalmente dominantes, [não] a estruturas de poder que nos pedem para
consumi-las acriticamente de formas altamente restritas.” (hooks apud KUHN,
2019, p. 227)
77
É neste sentido que o nosso olhar se volta para uma não-identificação, deixando
de lado os estigmas que as imagens podem representar.
Frisamos: a habilidade de ser uma espectadora ou espectador crítico
emerge de um lugar de “resistência” somente quando a pessoa em questão,
individualmente, resiste aos modos impostos do lado dominante de ver e saber.
Assim acredita hooks (2019), completando o seu raciocínio e salientando que
“ainda que as mulheres negras [...] estivessem conscientes do racismo [fora das
imagens], essa consciência não correspondia automaticamente à politização, ao
desenvolvimento de um olhar opositor. (p. 236). Isso significa que, por esses
motivos, por mais que as imagens possam estar “de acordo” com um
determinado público ativista que carrega consigo os discursos e pautas sociais
vigentes, na nossa análise, por exemplo, pode fazer aparecer os elementos
hegemônicos e pontos discursivos que traduzem e evidenciam uma perspectiva
não opositora; mas sim, dominante. O nosso exercício do olhar pretende
perpassar por um amplo espectro de relações de olhar: olhar, contestar, resistir,
revisar, questionar, enfrentar. É assim que acreditamos obter um maior nível de
criticidade possível, nível esse que talvez não seja captado por esse mesmo
público.
Entendendo que o olhar opositor pressupõe um “lugar” de quem observa,
é coerente e relevante neste trabalho deixarmos nítido de qual lugar que vamos
partir para a nossa leitura. Para tal, vamos revisitar o conceito de Lugares de fala
proposto por Márcia Franz Amaral e, posteriormente, por Djamila Ribeiro.
Embora Amaral proponha o conceito como instrumento metodológico para a
análise de jornais populares, evidenciando que estes falam de lugares
diferentes, o nosso objetivo aqui é desmembrar o conceito, tal como a autora faz:
“[...] podemos dizer que a ideia de Lugar nos é bastante significativa; ‘é um
espaço ocupado, um ponto de vista relacional, uma posição determinada num
conjunto ou um ambiente. Falar é apropriar-se de estilos expressivos já
constituídos no e pelo uso, objetivamente marcados por sua posição numa
hierarquia de estilos que exprime a hierarquia dos grupos, é produzida para e
pelo mercado ao qual ela deve a sua existência e suas propriedades mais
específicas.’” (AMARAL apud BOURDIEU, 2005, p. 108, grifos da autora)
78
Compreendemos através de Amaral (2005) que a fala está necessariamente
associada a uma situação concreta, ou seja, na fala é proferido um discurso que
é oriundo de um lugar. Em outras palavras, uma fala só pode ser analisada
quando associada às condições sociais do seu falante. (p. 108). Mais uma vez,
as relações de poder vêm à tona como fenômeno presente em todo o escopo
metodológico do nosso trabalho.
Djamila Ribeiro, apesar de ilustrar em seu livro o conceito cunhado por
Márcia Amaral, traz outras perspectivas — que não essa da Comunicação — na
tentativa de definir “Lugar de fala”. Ancorada na pensadora Patricia Hill Collins,
que vai discutir o standpoint theory (teoria do ponto de vista), Ribeiro (2019) vai
dizer que o lugar de fala não é sobre as experiências individuais de um
determinado grupo social; mas, sim, sobre as condições sociais que vão permitir
que esses grupos acessem (ou não) lugares de cidadania. Para ela, o debate se
estabelece no plano estrutural, ou seja, lugar de fala é sobre entender o lugar
social do sujeito. (p. 42).
“O lugar social não determina uma consciência discursiva sobre esse lugar.
Porém, o lugar que ocupamos socialmente nos faz ter experiências distintas
e outras perspectivas. [...] Ao promover uma multiplicidade de vozes o que se
quer, acima de tudo, é quebrar com o discurso autorizado e único, que se
pretende universal. Busca-se aqui, sobretudo, lutar para romper com o regime
de autorização discursiva.” (RIBEIRO, 2019, p. 46)
79
gestualidade; 2) oralidade e 3) cenário. Vale ressaltar que corroboramos com
Soares na ideia de que o videoclipe é um
“[...] desdobramento da performance da canção popular massiva uma vez que
integra a cadeia de produção de sentido que articula o sonoro e o visual,
sendo “regido” por uma sistemática de construção de imagens que opera com
signos visuais “inseridos” na canção e que operam segundo pressupostos
das próprias performances apresentadas. Nesta lógica, podemos entender o
videoclipe como uma nova camada de mediação sobre a canção popular
massiva, sendo esta nova camada de mediação articulada à construção de
um objeto (o videoclipe) que seja o mais próximo ao universo do objeto que
sintetiza (a canção) e, portanto, estando articulado ao gênero musical e à
narrativa particular do artista que performatiza a canção.” (SOARES, 2013, p.
152-153)
80
idade, de um gênero natural, de um sotaque, de um acento.” (SOARES, 2013,
p. 165).
Segundo Soares, discutir a construção de cenários no videoclipe a partir
da música é inserir o ouvinte nesta dinâmica entendendo que é preciso localizá-
lo (o cenário) no contexto histórico-sócio-cultural. A música evoca uma sensação
que consequentemente evoca uma atmosfera; um cenário no imaginário do
ouvinte. Além disso, é preciso entender também que as especificidades da
música (a forma, os instrumentos, o bpm) podem estar associadas
sinestesicamente à imagem do vídeo. (SOARES, 2013). Ou seja, uma
introdução de uma bossa nova com um dedilhado no violão pode evocar uma
paisagem campestre esverdeada, calma, com movimentos de câmeras leves,
suavizados. Do outro lado, um riff14 de heavy metal pode evocar um ambiente
poluído, uma estética mais urbana, obscurecida, etc. A articulação vocal do
artista também está associada a uma dicção capaz de convocar um determinado
cenário na mesma medida em que se encaixa em um gênero musical. A
valorização da palavra falada está para o Rap, assim como os feats15 estão para
o brega-funk.
Ainda para Soares (2013), a configuração biográfica do artista constitui a
formação de diferentes cenários quando vista em uma linha temporal. Isso
implica dizer que o artista está submetido às configurações e estratégias criadas
pelo “star system”, que vai se alterando na medida em que também se altera as
suas produções e o público que deseja alcançar. Cria-se novos aparatos
conceituais a partir do momento em que os vigentes vão se tornando defasados.
Por outras palavras, é possível identificar no videoclipe os diferentes cenários
que um artista ou banda perpassa durante a carreira. Isto acontece, por exemplo,
quando se assume posicionamento político ou transita pelos gêneros. Para além
disso, as geografias reais e imaginárias também se articulam aos cenários
muitas vezes como estratégia de endereçamento, de pertencimento e de
identidade. Geralmente estão relacionadas diretamente às referências textuais
da canção.
14
Progressão de acordes geralmente composta para guitarras elétricas.
15
Abreviação do termo “featuring” que significa “participação de”.
81
Essas três noções de performance elencadas por Soares tem o objetivo
de tentar apreender esteticamente o fenômeno do videoclipe associado às
dinâmicas da música popular massiva. No entanto, este não é o nosso objetivo
neste capítulo. Em contrapartida, consideramos indispensável trazer essas
questões para tentarmos compreender como essas concepções estéticas estão
voltadas para a construção de um ícone (no sentido mais literal da palavra) que
vai posicionar o artista no mercado fonográfico. Esse posicionamento projetado
no videoclipe nos parece ser estrategicamente pensado para, não somente
tentar se destacar diante de um vasto número de outros artistas (concorrência),
como também para construir uma identidade (de marca) que vai projetar uma
imagem, ou seja, um conjunto de impressões que o telespectador-ouvinte vai
criar sobre o artista. Torna-se ainda mais necessário interpretar um artista
também pelo viés do marketing a partir do momento em que “A relevância da
imagem no campo da música é proporcional ao fortalecimento do star system no
terreno da música popular massiva.” (SOARES, 2013, p. 66).
82
5 UMA ANÁLISE DOS VIDEOCLIPES DO @DJONGADOR
83
relação com o mundo que o cerca, sempre debatendo temas como racismo e
masculinidades. Para tal, optamos por fazer um recorte temático e temporal
(histórico), para extrairmos algumas possibilidades e caminhos possíveis de
construção de um sujeito racializado e também compreender como essa
estética/discurso evolui durante o seu percurso artístico, o que ela/ele tensiona,
quais são as suas problemáticas e soluções e como essas práticas reverberam
imageticamente nos seus videoclipes. Portanto, nosso objeto é composto por
três videoclipes do Djonga: 1. Olho do Tigre; 2. Junho de 94; 3. Nós.
“Olho de Tigre” foi uma canção escrita por Djonga em 2017 com a
produção do beat de Malive e Slim com o objetivo de compor o Projeto “Perfil”
da Pineapple Supply e Brainstorm Estúdio. A Pineapple é uma gravadora
independente da cidade do Rio de Janeiro do ramo do hip hop que busca lançar
MC’s de todo o Brasil que estão em ascensão em suas carreiras. Além desse
projeto, a gravadora também assina projetos como o “Poetas no Topo”, “Poetisas
no Topo” e “Poesia Acústica”, todos eles de grande sucesso e alcance a nível
nacional. “Perfil” é um projeto no qual beatmakers deixam seus beats livres à
escolha e um MC convidado escolhe um beat de sua preferência para cantar
uma letra que traduza o seu “perfil”. Essa letra é gravada em cima do beat já
criado e lançada em forma de videoclipe no canal da Pineapple do YouTube.
Artistas como Diomedes Chinaski, Drika Barbosa, Baco Exu do Blues, Clara
Lima, Sant, Luiz Lins e tantos outros nomes do Rap também fizeram parte desse
projeto e cada uma/um tem o videoclipe do seu perfil neste canal. Portanto, o
videoclipe da canção “Olho de Tigre” não é bem um videoclipe oficial do Djonga,
afinal, ele está hospedado no canal do YouTube da gravadora como todos os
outros. No entanto, como o nome do próprio projeto sugere, essa é uma canção
que traduz o artista que é Djonga e é, também, o seu hit mais famoso,
responsável por divulgar o seu nome em território nacional.
Diferentemente dos restantes do artistas que participam do projeto, o
videoclipe de Djonga, lançado no dia 25 de julho de 2017, tem um número
expressivo de visualizações e comentários, alcançando a marca de mais de 22
84
milhões de views e 11 mil comentários, isto é, não é somente Djonga que ganha
notoriedade com o lançamento desta canção, mas também, como em um
processo dialógico, o projeto “Perfil” e a própria Pineapple ganha repercussão e
credibilidade, abrindo portas para gestar futuros projetos que igualmente farão
sucesso. A comprovação da nossa hipótese de sucesso mútuo entre artista e
gravadora se dá ao notarmos que, o primeiro comentário do videoclipe no
YouTube é um comentário fixado da própria gravadora (ou seja, que permanece
no topo dos comentários) divulgando o site de sua nova loja online com destaque
para produtos em promoção. Por mais antigo que o vídeo seja, o que não é o
caso do nosso objeto em questão, a sessão de comentários na plataforma do
YouTube é sempre uma parte viva do vídeo, constantemente alimentada por
usuários, que interagem entre si e com o produto. O comentário fixado, neste
caso, torna-se uma eterna vitrine, que pode ser alterada a qualquer momento a
partir dos novos produtos ou da temporada de consumo.
De volta para a canção, Djonga revela em uma entrevista para o site
genius.com a origem do nome deste single. “Olho de Tigre” faz referência à “Eye
of the Tiger”, uma clássica música da banda norte-americana Survivor, que,
inclusive, recebeu indicação ao Oscar de Melhor Canção Original compondo a
trilha sonora do filme Rocky III, escrito, dirigido e estrelado por Sylvester Stallone
em 1982. A trama do filme é a continuação da franquia que conta a história do
personagem Rocky Balboa, um pugilista que vive aventuras épicas dentro de um
ringue. A partir da escolha do título da canção, Djonga parece querer reviver o
personagem de Stallone, pois os versos escritos e cantados por ele
ultrapassarão os limites da mera denúncia social e virão como uma sequência
de golpes com duras críticas sociais, escancarando a realidade do que é ser
negro/negra no Brasil contemporâneo. Com o objetivo de ser escutado a
qualquer custo, Djonga não poderia performar a sua voz de maneira diferente
senão através do grito: cada verso é entoado como um apelo, mas não como um
grito de socorro, ou um clamor para que nos atentemos às suas dores - que são
as dores da sociedade -, e sim como um protesto de alguém que veio mais do
que denunciar um fato, mas revelar as feridas abertas de um povo que sofre o
racismo e o machismo nas camadas mais profundas da pele e da alma.
85
Embora o processo criativo do beat tenha sido independente do processo
da letra, afinal, é assim que o Projeto “Perfil” se configura, o produto final é tão
coeso a ponto de identificarmos como o beat complementa a letra/voz
mutuamente. O arranjo é composto de algumas poucas notas agudas de piano
clássico, criando uma atmosfera de uma certa serenidade. É como se o próprio
beat, já na introdução da canção, trouxesse o equilíbrio e leveza necessários
para as rimas que o procedem, que virão nos mais explícitos berros de quem
não se preocupa com a afinação da voz ou mesmo com as pausas necessárias
para respirar. A falta de ar, inclusive, que percorre a voz durante toda a canção,
invoca, no campo mais sensível da escuta atenta, a constante sensação de
sufoco, o que justifica a sensibilidade do artista perante a performance da
canção. Essa expressividade do grito e da falta de ar, característicos do gênero
do Rap, geralmente é combinada com uma gestualidade tão enérgica quanto.
No entanto, Djonga consegue elevar essa referência estética a um outro
patamar: o de uma autenticidade de quem sofreu/sofre uma violência, grita o
sofrimento e se esgota com o próprio grito.
Um elemento extraoficial que nos chama atenção no videoclipe e que
demonstra um dos aspectos da personalidade de Djonga, são os
agradecimentos que estão presente nos primeiros 30 segundos do vídeo (após
a marca da PineApple e o título “Perfil #22”). Em preto e branco, Djonga “manda
um salve” para todos e todas aqueles e aquelas que construiram junto com ele
a sua carreira até ali. Na lista, estão os pais, os amigos, os produtores, outros
rappers, a sua ex-companheira e uma série de outras pessoas que ele prefere
não citar pois levaria tempo demais. Esse detalhe nos parece de extrema
relevância para a compreensão do videoclipe (e do artista) de uma maneira geral
porque ele nos revela alguns dos valores como respeito, humildade e gratidão.
Djonga, sendo assim, explicita suas origens, mostrando o lugar de onde veio, da
assistência que teve e, sobretudo, para onde está indo na construção da sua
carreira artística. Acreditamos que esse movimento inconsciente, de colocar
sobre a tela os seus valores e virtudes através de agradecimentos, é um
movimento que busca se humanizar. De maneira sucinta, o que vemos é um
corpo negro que engrandece as parcerias e as amizades, que assume sua
fragilidade, que reconhece a necessidade de suporte técnico-musical, afetivo, e,
86
por que não? psicológico, buscando, nesse reconhecimento e agradecimento, o
resgate da sua humanidade outrora negada.
87
Como dissemos, a gestualidade neste videoclipe é o ponto-chave para se
decifrar alguns de seus significados. Portanto, evidenciamos neste texto os
gestos que mais traduzem sentidos e noções que chegam até nós. Ao
escutarmos as primeiras notas do arranjo musical, vemos Djonga fazendo um
movimento muito peculiar: ele parece se alongar, como quem está se
preparando para realizar um esforço físico. O alongamento antes de uma
atividade física tem o objetivo de preparar o músculo aquecendo-o e eliminando
a tensão. Esse movimento, mais uma vez, nos convoca para a reflexão do quão
real e espontânea é essa performance de Djonga. Acreditamos que essa noção
de espontaneidade, aliada à cena de agradecimentos, traz ainda mais
proximidade com o seu público. A câmera faz um movimento de 360º, sempre
acompanhando o artista, que gira em torno dela. Djonga se movimenta para
ambos os lados, ora olha para a câmera e encara o seu espectador, ora olha
para os laterais, sugerindo uma dança improvisada, dança esta que performa
uma masculinidade pautada, muitas vezes, na negação de movimentos mais
redondos e flexíveis, culturalmente associados ao feminino. Esses movimentos
corporais — mais retos e mais sólidos — são parte de uma performance já
inscrita no gênero musical do Rap. Eles sugerem virilidade e emasculação.
Mas é no refrão que está localizado o ímpeto da canção “Olho de Tigre”.
Embalado pela “sensação sensacional” que uma prática pode provocar, Djonga
foi responsável por criar uma sentença que é a maior representação dos
movimentos antirracistas contemporâneos no Brasil. Mas não só, ele cria, a partir
desta frase, um resgate da identidade negra que traduz um certo ódio/rancor
88
pelo cotidiano racista que essa juventude vive. “Fogo nos racista”, dito assim,
dessa maneira, crua, violenta e em alto e bom som, é a expressão máxima de
um grito de protesto, muito mais do que mera expressão poética, afinal, a mesma
espontaneidade que Djonga traz para a sua coreografia, traz também para a sua
canção e tudo o que ela representa. Evocar a violência, neste contexto, nada
mais é do que devolver violentamente o tratamento recebido por diversas
instituições racistas: a política, a polícia, a economia, a educação, a saúde e
todas as outras. Não é à toa que a coreografia feita por Djonga neste trecho da
música viralizou, sendo replicada, por exemplo, em shows e apresentações ao
vivo. É, então, no refrão onde mora o êxtase da música, que é embalado também
pelas “rodas-punks”, manifestações “dançantes” geralmente associadas a
gêneros como o punk rock e o thrash metal.
90
5.2 JUNHO DE 94
“Junho de 94” é uma das canções que compõem o disco “O Menino Que
Queria Ser Deus”, lançado em 13 de março de 2018 pela gravadora Ceia. O
álbum conta com 10 faixas e tem a produção de CoyoteBeatz. Foi eleito o 6º
melhor disco brasileiro de 2018 pela Revista Rolling Stones Brasil e um dos 25
melhores álbuns brasileiros do primeiro semestre de 2018 pela Associação
Paulista de Críticos de Arte. O encarte do álbum, assinado pelo fotógrafo,
modelo, diretor de arte e produtor musical Marcelo Moraes, conhecido pelo
pseudônimo 1993Agosto, que inclusive veio a falecer em fevereiro de 2021,
mostra o quanto esse álbum representa o anseio do artista em tornar-se uma
divindade. Na imagem, vemos Djonga sem camisa sentado no colo de uma
mulher preta e gorda e pisando em um homem branco de terno e gravata que
está deitado no chão. Ao fundo, vemos um céu bem azulado com nuvens. Assim
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como no primeiro álbum, “Heresia”, e durante toda a sua carreira, Djonga parece
querer trazer algumas metáforas para tensionar e subverter o imaginário social
a partir da capa do álbum: a mulher, que usa um vestido longo branco e tranças,
nos parece representar a imagem de Deus. A imagem de Deus enquanto uma
mulher preta não é novidade na cena do Rap. Na canção que leva o nome de
“Mãe” lançada em 2015, o rapper Emicida fala: “[...] Desafia, vai dar mó treta /
Quando disser que vi Deus / Ele era uma mulher preta”.
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tampouco há requinte nos móveis e decoração; o segundo é o inverso: uma
mesa de jantar de uma família tipicamente branca classe média-alta, esbanjando
uma mesa farta. É válido ressaltar, inclusive, que Djonga aparenta ser ignorado
por ambas as famílias. É como se houvesse um esforço de sua parte para se
fazer ouvido, mas que não obtém sucesso. A discrepância que há entre esses
dois cenários, para nós, se apresenta como as duas realidades antagônicas já
vividas pelo artista cuja fama é a linha que divide e separa essas realidades. No
entanto, a “corda no pescoço”, que também é uma expressão que simboliza a
ideia de “estar em uma situação desesperada", está presente em ambos os
cenários. Rico ou pobre, não importa, para Djonga a realidade em que se
encontra é sempre, no mínimo, sufocante. É o que mostra também as
expressões faciais, que, não por acaso, ganham muito mais relevância neste
clipe, uma vez que ele se encontra “preso” pela corda e com os movimentos
corporais limitados.
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Um elemento chave (porém muito sutil) que nos deparamos no vídeo é a
bandeira do Brasil, um elemento que hoje, 2021, se tornou um emblema dos
apoiadores do atual presidente, Jair Bolsonaro, a partir de um movimento
conservador de reivindicação de alguns dos símbolos nacionais (assim como
aconteceu também com a camisa oficial da seleção brasileira de futebol). O
primeiro aparecimento da bandeira acontece no cenário da família pobre, ao
fundo, em uma máquina de costura. Em seguida, mais a frente, a bandeira
aparece dobrada na cadeira de quem imaginamos ser a figura do “pai” da família
rica. Nesse jogo de simbolismos se revela mais uma crítica social: a de que o
Brasil não só foi tecido-construído pelas mãos das mulheres e homens negros
que compõem o país, mas que ainda permanece sendo, sugerindo que vivemos
uma atualização do sistema escravocrata de alguns poucos séculos atrás, ideia
presente também em como se distribuem as mobílias, os alimentos, as roupas,
e até os aparatos técnicos do vídeo com a iluminação presente. Como vimos
anteriormente, essa seria a concretização da metáfora criada por Cleaver e
trazida por Nkosi (2014). E a consequência disso tudo é proposta
imageticamente próximo ao fim do vídeo: no cenário da família rica, Djonga é
morto enforcado pelas mãos de um outro homem preto, que estava servindo à
família branca.
Morrer pelas mãos de um outro homem preto mostra a complexidade do
que é ser um homem, negro e periférico neste país. A sociabilização violenta,
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como vimos em Nkosi (2014) anteriormente, é uma realidade que atravessa uma
grande parte da juventude negra e, ao que tudo indica, Djonga não fugiu a esta
realidade, pelo contrário: foi vítima dela. Esses atravessamentos, sejam no
presente ou no passado, parecem ter levado Djonga a um lugar de acesso à sua
memória de infância. Repetidamente, no refrão, ele canta: “Porque o menino
queria ser Deus.” Esse desejo por se tornar uma divindade é, na verdade, para
nós, o trecho que melhor traduz o processo de sua humanização. Querer ser
Deus pode ter diversas interpretações: é querer ter poder, ter voz, estar presente,
ter condições de realizar vontades; é, por outro lado, querer ser imortalizado,
endeusado, adorado, ovacionado. Todas ou pelo menos algumas delas são
questões que perpassam a humanidade de uma maneira geral. No videoclipe,
esse conceito é traduzido esteticamente na segunda parte da canção, já com
outro beat, outro ritmo, outra interpretação vocal e até outra lírica. Na parte II da
música, Djonga traz versos que se assemelham a “linhas de soco” cantados por
uma língua que “é uma bazuca”. Mas nas imagens o que vemos é a metáfora de
sua mais sincera e egocêntrica ideia: a de querer ser Deus.
5.3 NÓS
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e outras figuras como resposta a um comportamento lido como condenável,
injusto, preconceituoso e/ou ofensivo.
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escolha parte de um critério estético “ainda não amadurecido”, o que é
completamente comum na carreira de diferentes artistas.
Apesar disso, não podemos negar um fato por nós observado: a presença
de uma marca esportiva, a Nike, em parte do figurino do rapper e do elenco, o
que indica uma parceria e/ou patrocínio, parece ter sido um fator relevante para
definir a estética que somente alguns aparelhos técnicos e outros profissionais
são capazes de realizar, o que é o caso deste objeto em questão. Com 5,6
milhões de visualizações no YouTube, o clipe evoca primeiramente um cenário
periférico que gera um determinado pertencimento ao artista. A iluminação e as
cores presentes em todo o filme dão um ar sombrio, e quando combinados com
os ruídos de armas sendo disparadas, o que vemos é opaco, sem vida e
aparentemente, hostil. Para traduzir esse processo de contradição,
autoconhecimento e redescobertas, mencionados no início desta análise,
Djonga utiliza uma metáfora na qual ele mesmo “se assassina” com uma arma
de fogo. Para nós, esta cena chega não como um atentado ao próprio corpo,
mas sim um constante renascer, como se aquele corpo e principalmente,
aquelas ideias e comportamentos que o acompanharam não fizessem mais
sentido e, por isso mesmo, deverão ser eliminados.
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Um outro fato relevante se trata da falta do refrão. Essa ausência do refrão
não é interessante do ponto de vista estratégico para a popularização da canção,
uma vez que, como já vimos, o refrão funcionaria como um “mantra de marca”
(KOTLER; KELLER, 2012), um conceito do marketing que, neste nosso trabalho,
combinamos com o de “verso gancho” (SOARES, 2012). O verso gancho da
canção, que origina o gancho visual do videoclipe, é exatamente aquele trecho
da música que “convida” o ouvinte a se envolver, a cantar junto, e geralmente
está localizado no refrão e galgado na repetição. A repetição funcionaria como
um mantra cujo objetivo é articular de maneira sucinta a essência da música,
além de ser também uma ferramenta para memorizar a canção. Portanto, a
ausência de um refrão na canção (e consequentemente de um gancho visual)
pode — mas não necessariamente deve — torná-la menos popular que outras
com refrões bem definidos e articulados, assim como acontece em “Olho de
Tigre”. Uma evidência desta nossa tese, por exemplo, poderá ser observada no
lançamento do videoclipe de “Ea$y Money” que acontece em menos de 3 meses
após o lançamento de “Nós”. Também produzida por CoyoteBeatz e dirigida por
Túlio Cipó, o single já inicia com um refrão que convida o ouvinte a não somente
cantar, como dançar junto e, assim, acumula mais de 3,3 milhões de
visualizações de diferença entre um videoclipe e outro.
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No terceiro cenário do videoclipe, Djonga parece querer subverter o
imaginário social criando outras representações de pessoas faveladas,
associando-as à riqueza, poder e beleza. O conflito representado pelo
assassinato de si mesmo, que antecede a esta cena, dá lugar a um momento de
ostentação. No quadro, vemos o artista e outras pessoas usando roupas da Nike,
todas em volta do seu carro, um Mercedes-Benz G63 AMG — avaliado em R$ 2
MI —, “estourando” garrafas de espumante, um comportamento tradicionalmente
atrelado ao esporte da Fórmula 1, na qual o piloto vencedor em comemoração a
sua vitória derrama a bebida. A simbologia da ostentação dos sujeitos
periféricos, comum em videoclipes dos gêneros do funk e do Rap, para nós,
surge como uma tentativa de descaracterizar as imagens estereotipadas de
pessoas pretas enquanto pobres, imagens essas, inclusive, reforçadas por muito
tempo na mídia. Como já visto, o videoclipe, assim como toda obra audiovisual,
também é uma fonte de representações (ZANETTI, 2008) que dialoga de
maneira complexa com o mundo real e que pode ou não tensionar símbolos,
criar efeitos e, sobretudo, provocar sentimentos e sensações. Não entraremos,
portanto, na discussão que envolve racismo e consumo. O nosso objetivo aqui é
tentar compreender como a autorrepresentação de Djonga no seu videoclipe
reverbera imageticamente no imaginário social.
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6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
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sua autorrepresentação. Nele, o que captamos foi um discurso iconográfico que
tenta, de certa forma, denunciar/protestar contra uma violência que lhe é
atribuída nos diferentes espaços em que o artista já circulou. A violência, embora
se dê no âmbito do simbólico, é metaforizada através de uma corda no pescoço,
simulando um enforcamento. Observamos que o protesto se dá para além da
letra cantada na canção: o artista escolheu denunciar o racismo utilizando a
própria ótica racista de fixar os atributos biológicos a um corpo negro (NKOSI,
2014), como visto na cena final no qual a imagem de Deus é representada por
uma mulher negra e gorda. Sem camisa e com uma corda no pescoço, Djonga
faz questão de exibir sua melanina, que não é pouca, marcando presença e
saindo de um campo de invisibilização, comum no processo de masculinização
do homem negro (NKOSI, 2014). Porém, de outra forma, a agressividade
constitutiva da linguagem e do posicionamento dos seus videoclipes, vem sim
como uma resposta a uma dura realidade de violentação, mas sobretudo, acaba
se limitando ao seu “mundinho de macho” (SAFFIOTI apud NKOSI, 2014, p. 77)
no qual, muitas vezes, o único agenciamento possível é através de uma
gesticulação e performance agressivas.
Djonga, que antes estava “pendurado pelo pescoço”, em “Nós”, entrega a
sua cabeça em uma bandeja. É nítido para nós que o episódio do show durante
a pandemia do Covid-19 e as consequências que isso tomou mexeu com o
artista de uma maneira geral, tornando-se inclusive o tema-conceito do seu
álbum “Nu”. Na nossa análise, percebemos a intimidade de alguém que está em
conflito consigo mesmo. É como se Gustavo estivesse em uma batalha com a
sua própria marca, Djonga. E assim, “pessoa física” e “pessoa jurídica” são
representadas metaforicamente como Djonga assassinando Djonga. Uma leitura
diagnóstica (KELLNER, 2001) desse videoclipe nos dá uma compreensão
gigante acerca do contexto histórico, sociopolítico, ideológico e até psicológico
do artista em questão. Pudemos perceber também algo incomum em relação
aos outros videoclipes analisados: a presença de uma marca multinacional, a
Nike. Essa estratégia publicitária, conhecida como product placement, surge
como uma grande evidência de uma comunicação de marca que aposta na mídia
segmentada, uma estratégia que surge a partir da convergência midiática e da
evolução de consumo (COVALESKI, 2010).
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Por fim, constatamos um outro fenômeno, comum nos videoclipes do
gênero de Rap: a estética da ostentação. Mas, para além da estética, existe um
discurso e uma lógica de representação por trás da exibição de grifes, joias e
objetos de valor. O efeito criado por essa prática nos parece ter mais a ver com
uma reivindicação do direito à uma imagem associada ao luxo, poder e riqueza,
subvertendo as imagens estereotipadas de pessoas negras associadas à
pobreza, miséria, feiura, etc. Se há um discurso que busca legitimar a periferia e
as pessoas que nela vivem (ZANETTI, 2008), isso seria uma intervenção crítica
no mundo das imagens que confere libertação e autodefinição (hooks, 2019). No
entanto, a problemática surge quando esse discurso parte necessariamente do
consumo. Para nós, a prática da ostentação é extremamente válida nesses
aspectos, no entanto, deveríamos nos atentar a outras possibilidades de
legitimação que saiam da lógica do capitalismo. Do contrário, estaríamos apenas
servindo como totens do capital que, ao invés de tensionar discursos e imagens,
vamos reforçar antigos interesses e a manutenção do status quo.
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7 FONTES
Fontes primárias
Videoclipes
Djonga
Junho de 94 (2018)
Nós (2021)
Olho de Tigre (2017)
Fontes secundárias
Álbuns
BK
O Líder em Movimento (2020)
Djonga
Ladrão (2019)
Nu (2021)
Músicas
BK
Bloco 7 (2020)
Djonga
A Música da Mãe (2018)
Hat-trick (2019)
Videoclipe
Anitta
Vai Malandra (2017)
106
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Polén, 2019.
107
DIAS, J. F. À cabeça carrego a identidade: o orí como problema de pluralidade
teológica. In: Afro-Ásia. Salvador, nº.49, jan./jun, 2014.
______; RIBEIRO, A. A. M. Negro tema, negro vida, negro drama: estudos sobre
masculinidade negra na diáspora. In: Transversos: Revista de História. Rio de
Janeiro, n. 10, ago, 2017.
hooks, bell. Olhares negros: raça e representação. São Paulo: Elefante, 2019.
108
KELLNER, Douglas. Estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o
pós-moderno. In: A Cultura da mídia. Bauru, SP: EDUSC, 2001. p. 123 - 248.
109
RIBEIRO, Djamila. Lugar de fala. p. 38-52. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen,
2019.
110
ZUBARAN, M. A.; WORTMANN, M. L.; KIRCHOF, E. R. Stuart Hall e as questões
étnico-raciais no Brasil: cultura, representações e identidades. In: Projeto
História, São Paulo, n. 56, p. 9-38, Mai.-Ago. 2016.
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