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UNIVERSIDADE TECNOLÓGICA FEDERAL DO PARANÁ

CÂMPUS PATO BRANCO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DESENVOLVIMENTO REGIONAL

GISELE CRISTINA VOSS

HISTÓRIAS DE VIDA FEITAS À MÃO: DAS COLONIALIDADES AO


TRANSBORDAR DAS RE-EXISTÊNCIAS

DISSERTAÇÃO

PATO BRANCO-PR
2021
GISELE CRISTINA VOSS

HISTÓRIAS DE VIDA FEITAS À MÃO: DAS COLONIALIDADES AO


TRANSBORDAR DAS RE-EXISTÊNCIAS

Handmade life stories: from colonialities to the overflow of re-existences

Dissertação apresentada como requisito para obtenção


do título de Mestre em Desenvolvimento Regional da
Universidade Tecnológica Federal do Paraná
(UTFPR).
Orientadora: Profª. Drª. Franciele Clara Peloso

PATO BRANCO - PR
2021

Atribuição – Uso Não Comercial (CC BY-NC) - Permite que outros remixem, adaptem e criem
obras derivadas sobre a obra licenciada, sendo vedado o uso com fins comerciais. As novas
obras devem conter menção ao autor nos créditos e também não podem ser usadas com
fins comerciais. Porém as obras derivadas não precisam ser licenciadas sob os mesmos
4.0 Internacional termos desta licença.
À vó Maria e ao vô Manfredo, pelas
histórias que me contaram e que lembro
com saudade.
AGRADECIMENTOS

Desde o início desta pesquisa, fui agraciada com a presença de pessoas que me
acompanharam, indicando direções, auxiliando nos tropeços, celebrando os saltos ou
suavizando os passos. Por fazerem parte desta história, sou grata.

Professora Dr.ª Franciele Clara Peloso, por me conduzir com sua amorosidade
rigorosa, que via antes de mim o que eu nem sabia que seria capaz de realizar. Para a
construção de uma dissertação sensível e crítica, busquei por uma luz Clara, e encontrei
em forma de orientadora e amiga. Grata por inspirar e transformar.

Professoras Drª Ercília de Paula, Drª Hieda Corona, e professor Dr. João da Mota
Neto, por aceitarem compor minha banca examinadora e por lerem mais do que as palavras
escritas, provocando meu fazer e meu pensar além das bordas.

À Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) - Câmpus Pato Branco,


meu local de trabalho e também de estudo, pela educação pública, gratuita e de qualidade
que recebi, e da qual me sinto honrada de fazer parte. Professoras e professores do
Programa de Pós-graduação em Desenvolvimento Regional (PPGDR), por serem faróis
nesta caminhada e exemplos na educação, e às colegas técnico-administrativas do
Programa pelo suporte de sempre.

À Jurema Edy Pereira e Sinésio Pereira Chueiri (Kalu), minha especial gratidão,
por aceitarem confiar a mim a escrita do rememorar destas vidas repletas de cores,
possibilitando que esta pesquisa acontecesse de forma tão bela e intensa.

Meus queridos pais Fátima e Márcio, grandes e inspiradores, grata pela vida, pelo
amor, por acreditar em mim sempre. À minha mãe, por suas sábias palavras e por me
amparar tanto. À meu pai, por suas observações e revisões sinceras, e pelo exemplo de
pesquisador que és.

Meu amado esposo Diogo Rossetto, que representa, nos seus atos, a força da nossa
união, sendo um dos alicerces para essa pesquisa acontecer. Um apoio constante, paciente,
ativo e amoroso.

Às nossas filhas Serena e Natália, sou grata por vocês existirem e me motivarem a
olhar, ainda mais, para a arte de viver.

Minha irmã Ligia e meu irmão Douglas, e seus pares Juliano e Vanessa pelo apoio
e exemplos que são para mim. E ao Lucas, Fernanda e Alice, pela alegria brincante.

Sueli e Idemar, meus queridos sogros, pela compreensão e incentivo constante, e às


minhas cunhadas Raquel e Suelen, pelo apoio e carinho de sempre.

Priscila, minha colega, amiga e comadre, por sua parceria ímpar, trazendo aromas
e sabores nesses dias de mestrandas, sempre com palavras que elevaram meu ânimo.

Geneci Patriarcha (Chica), Patrícia Rech e Patrícia Pagnoncelli, pela amizade,


profissionalismo e por auxiliarem a me resgatar em corpo e alma, nos momentos certos.
Daiane, Débora, Elenice, Graziele, Lucimar, Luizane e Priscila, colegas na
Coordenadoria de Gestão de Recursos Humanos da UTFPR, pelo apoio, compreensão e
paciência, (e por me darem uma dissertação criativa de presente de aniversário).

Danieli e Gabriella, por me estimularem constantemente a continuar, para


crescermos juntas na psicologia do trabalho da UTFPR.

Ana Paula, Elisangela, Antonio, Égide, Nathana e Samoara, colegas da UTFPR, por
sempre trazerem aqueles empurrõezinhos necessários nessa empreitada.

Analice, Anne, Patrícia Maciel, Nathalia, Aline, Abelha (Fábio) e David, que,
mesmo distantes fisicamente, se fizeram presentes, celebrando comigo as vitórias do
caminho.

Eliza e Tarciane, pela parceria e suporte com nossas filhas quando o relógio
encurtava as horas do dia.

Carmem e Alberto, pelos conselhos de vida e pelo apoio sempre zeloso comigo e
minha família.

Felipe de Mendonça, por ser poeta, compositor e embalar o dia da defesa desse
trabalho com uma canção inspirada nas histórias de vida de Jurema e de Kalu.

Às/aos artistas que encontrei e continuo encontrando nos palcos da vida, me


inspirando a ver e sentir o mundo das mais diversas formas.

A Deus, por me dar condições de sentir a luz, a paz e o amor em meus dias.

Às amigas, aos amigos, parentes e colegas que fazem parte de meu caminhar, e que
preenchem meus dias com alegria e inspiração, para juntos re-existirmos.

Agradeço o transbordar de afeto de todos(as) vocês nesta história.


VOSS, Gisele Cristina. Histórias de vida feitas à mão: das colonialidades ao
transbordar das re-existências. 2021, 168 f. Dissertação (Mestrado em Desenvolvimento
Regional) – Universidade Tecnológica Federal do Paraná. Pato Branco, 2021.

RESUMO

Esta dissertação teve como objetivo compreender, a partir das histórias de vida de artistas
plásticos residentes em Pato Branco - PR, como experienciam o seu fazer artístico,
considerando as colonialidades do poder, do ser e do saber e as práxis de re-existência.
Tem como fundamentação teórica as contribuições de autores de(s)coloniais latino-
americanos (QUIJANO, 1992, 2002; MIGNOLO, 2008, 2017; LANDER, 2000; WALSH,
2005, 2013; ALBÁN ACHINTE,2013, 2017; BOSI, 1986, 1992; e outros), com reflexões
sobre os temas do trabalho, do desenvolvimento, da arte e dos/das artistas. A justificativa
desta pesquisa está voltada à necessidade de ampliar as compreensões sobre a sociedade
moderno-colonial, a partir de artistas e das suas realidades locais. Neste sentido, foram
escolhidos artistas plásticos como sujeitos da pesquisa, pelo conjunto de características
presentes no fazer artístico, que envolvem tempos distintos da aceleração imposta com as
transformações do desenvolvimento econômico nos últimos séculos (BOSI, 1992; ALBÁN
ACHINTE, 2017), o que afeta suas vivências e relações com o mundo. Caracteriza-se como
uma pesquisa qualitativa de histórias de vida (BOSI, 1987, 2003), que visa a valorização
do sujeito e de sua história, como componentes importantes para a formação social. Foram
convidados dois artistas plásticos residentes em Pato Branco - PR, Jurema Edy Pereira e
Kalu Chueiri, para rememorar e contar suas vivências na relação com a sociedade. Foram
realizadas duas entrevistas em profundidade com cada participante, nos anos de 2019 e
2020, sendo registradas a partir do processo de transcriação (CALDAS, 1999). As histórias
foram trabalhadas a partir da análise narrativa (GILL e GOODSON, 2015), com base nos
conceitos das colonialidades do poder (QUIJANO, 2002), do ser (MALDONADO-
TORRES, 2007) e do saber (LANDER, 2000) e das práxis de re-existência (ALBÁN
ACHINTE, 2017). As principais considerações desta dissertação envolvem as
possibilidades de se re-pensar e re-criar a realidade, a partir de práxis de re-existência
identificadas no fazer artístico, ampliando o rol de possibilidades para transformar as
colonialidades ainda atuantes na sociedade. Foi possível identificar a ação destas três
colonialidades em episódios rememorados pelos artistas, com atos de exclusão,
invisibilização, desconhecimento e intolerância com o fazer artístico, ligados à lógica
moderno-colonial que estão presentes em seu dia a dia. Também foram identificados
exemplos de práxis de re-existência presentes no cotidiano das histórias contadas,
destacando sua relevância para inspirar e transformar formas outras de ser e estar nesta
sociedade. O trabalho, como uma das áreas constituintes do sujeito, é diretamente afetado
pelo sistema moderno-colonial, mas também, como percebido nesta pesquisa, é uma das
ferramentas de possível ação de(s)colonial a partir de lugares ocupados no mundo. Ao
conhecer partes de como se mobiliza a arte e a cultura no município de Pato Branco, a
partir das histórias rememoradas por Kalu e Jurema, vemos como tais ações movimentam
o campo do desenvolvimento regional, a partir desta área de atuação. Ainda, consideramos
ser relevante contribuir para ampliar os estudos na área das trajetórias artísticas, e de se
pensar o trabalho com artes a partir do/da artista, na de(s)colonialidade.

Palavras-chave: Decolonialidade; Trabalho; Desenvolvimento; Artista; Práxis de re-existência;


Histórias de vida.
VOSS, Gisele Cristina. Handmade life stories: from colonialities to the overflow of re-
existences. 2021. 168f. Dissertation (Master in Regional Development) – Federal
Technological University of Paraná. Pato Branco, 2021.

ABSTRACT

This dissertation aimed to understand, from the life stories of visual artists Pato Branco-
PR city residents, how they experience their artistic work, considering the colonialities of
power, being and knowledge and the praxis of re-existence. It has as theoretical basis the
contributions of latin american decolonial authors (QUIJANO, 1992, 2002; MIGNOLO,
2008, 2017; LANDER, 2000; WALSH, 2005, 2013; ALBÁN ACHINTE,2013, 2017;
BOSI, 1986, 1992; and others), with reflections on the themes of work, development, art
and artists.The justification for this research is aimed at the need to broaden understandings
about modern-colonial society from artists and their local realities. In this regard, plastic
artists were chosen as participants in the research, due to the set of characteristics present
in artistic making,that involve different times from the imposed acceleration imposed by
the transformations of economic development in the last centuries (BOSI, 1992; ALBÁN
ACHINTE, 2017), what affects their experiences and relationships with the world. It is
characterized as a qualitative research of life stories (BOSI, 1987, 2003),which aims at
valuing the person and its history, as important components for social formation. Two
artists residing in Pato Branco - PR, were invited, Jurema Edy Pereira and Kalu Chueiri,to
remember and recount their experiences in the relationship with society. Two in-depth
interviews were conducted with each participant, in the years 2019 and 2020, being written
from the transcreation process (CALDAS, 1999). The stories were examined trough
narrative analysis (GILL e GOODSON, 2015), based on the concepts of the colonialities
of power (QUIJANO, 2002), of being (MALDONADO-TORRES, 2007) and of
knowledge (LANDER, 2000) and the praxis of re-existence (ALBÁN ACHINTE, 2017).
The main considerations of this dissertation involve the possibilities of re-thinking and re-
creating reality, based on the re-existences praxis identified in artistic practice, expanding
the range of possibilities to transform the colonialities still present in society. It was
possible to identify the action of these three colonialities in episodes recalled by the
artists,with acts of exclusion, invisibility, ignorance and intolerance with the artistic doing,
linked to the modern-colonial logic that are present in their daily lives. Examples of re-
existence praxis present in the daily life of the stories told were also identified,highlighting
its relevance to inspire and transform other ways of being in this society. The work, as one
of the constituent areas of the subject, is directly affected by the modern-colonial system,
but also, as noted in this research, it is one of the possible tools of decolonial action from
its places in the world. By getting to know parts of how art and culture are mobilized in
Pato Branco city, from the stories recalled by Kalu and Jurema, we see how these actions
move the field of regional development, from this area of expertise. Still, we consider it
relevant to contribute to expand studies in the area of artistic trajectories, and to think about
the work with arts from the artist's perspective, in decoloniality.

Keywords: Decoloniality; Work; Development; Artist; Re-xistence praxis; Life stories.


LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Características das revoluções científicas e tecnológicas da modernidade.....26


LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Práxis decolonial de re-existência..................................................................... 37


Figura 2 - Jurema Edy Pereira ........................................................................................... 53
Figura 3 - Kalu Chueiri ...................................................................................................... 54
Figura 4 - Pato Branco, vista aérea. 2016 .......................................................................... 56
Figura 5 - Foto do casamento dos pais de Jurema com inscrição da letra de seu pai ........ 70
Figura 6 – Família de Origem de Jurema Edy Pereira ...................................................... 71
Figura 7 - Jurema com dois meses, no colo de sua mãe Edy e ao lado de seu irmão
Marcelino ........................................................................................................................... 73
Figura 8 - Encontro de 50 anos da Quartanistas ................................................................ 75
Figura 9 - Jurema com sua família em uma das exposições do Ateliê .............................. 75
Figura 10 - Família de Jurema Edy Pereira ...................................................................... 76
Figura 11 - Jurema com suas alunas no ateliê em sua casa ............................................... 78
Figura 12 - Jurema em frente ao seu Ateliê em março de 2006. ....................................... 79
Figura 13 - Família durante a reforma da casa para o novo Ateliê ................................... 79
Figura 14- Hall de entrada do ateliê Juart´s ....................................................................... 81
Figura 15 - Primeira exposição individual de Jurema Edy– Clube do Tiro - Pato Branco82
Figura 16 - Mostra de alunos do ateliê Juart´s, Clube Pinheiros, 11 dez. 1990 ................ 83
Figura 17 - Painel da recepção da 7ª exposição do Atelier Juart´s, com a tela de Jurema em
destaque ............................................................................................................................. 84
Figura 18 - Camafeus bordados por Jurema ...................................................................... 85
Figura 19 - Aula no ateliê Juart´s ...................................................................................... 86
Figura 20 - Obra "Reflexos", classificada no 36º Salão de Artes Plásticas para Novos
Artistas em 1995 ................................................................................................................ 87
Figura 21 - Registro da Posse da primeira Diretoria da ALAP ......................................... 89
Figura 22 - Kalu criança, ao lado de seu pai com a sobrinha no colo ............................... 92
Figura 23- Família de origem do Kalu .............................................................................. 93
Figura 24 - Kalu em um jogo de voleibol .......................................................................... 95
Figura 25 - Escultura em madeira embuia de 1989, dada de presente à uma amiga
professora de educação física ............................................................................................ 97
Figura 26 - Obra de Kalu em pedra, em processo de elaboração ...................................... 98
Figura 27- Família do Kalu ............................................................................................ 100
Figura 28 – Monumento Anjo, de autoria do Kalu na Av. Tupy em Pato Branco .......... 102
Figura 29 - Largo das Virtudes na Praça Presidente Vargas - Pato Branco - PR ............ 103
Figura 30 - Kalu em frente ao painel "Os pioneiros" ...................................................... 104
Figura 31 – Imagem do período de construção do Monumento alusivo ao operário
metalúrgico, na entrada do Distrito Novo Espero - Pato Branco - PR ............................ 105
Figura 32 - Kalu na Praça Theophilo Petrycoski ............................................................. 106
Figura 33 - Kalu trabalhando em seu ateliê em Pato Branco .......................................... 108
Figura 34 - Escultura do Prof. Sittilo, em fase de acabamento ....................................... 109
Figura 35 - Kalu em seu ateliê, ao lado de uma obra em processo de acabamento......... 111
Figura 36 - Visão do chafariz e a obra Largo das Virtudes em 2003 .............................. 115
Figura 37 - Esculturas da humildade, da generosidade e da gratidão no Largo das Virtudes
na Praça Presidente Vargas - Pato Branco - PR .............................................................. 117
Figura 38 - “Monumento ao amor”, disposta na entrada do ateliê do Kalu .................... 119
Figura 39 - Painel pintado por Jurema para o Projeto "Circo das Artes, Brasil 500 anos”
......................................................................................................................................... 122
Figura 40 - Painel “Os pioneiros” em fase de execução, ao lado do Teatro Municipal, no
Centro Cultural Raul Juglair, dez. 1997. ......................................................................... 124
Figura 41 -Doação da Obra representando a colonização de Pato Branco - Outubro 2000
......................................................................................................................................... 127
Figura 42 - Detalhes de jogo de cama de bebê bordado à mão por Jurema .................... 131
Figura 43 - Escultura do Pato, de autoria do Kalu, no Parque do Alvorecer, inaugurado em
2018 ................................................................................................................................. 140
Figura 44 -Jurema em seu ateliê, na ocasião da primeira entrevista para essa pesquisa . 162
Figura 45 - Kalu em seu ateliê na ocasião da segunda entrevista.................................... 165
Figura 46 - Kalu, Gisele e Jurema, no evento Diálogo de Saberes, 2019. ...................... 167
Figura 47 - Gisele e prof. Clara, em curso sobre Paulo Freire na APP Sindicato, 2019. 167
LISTA DE SIGLAS

PPGDR Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional


UTFPR Universidade Tecnológica Federal do Paraná
FADEP Faculdade de Pato Branco
ALAP Academia de Letras e Artes de Pato Branco
TCLE Termo de consentimento livre e esclarecido
TCUISV Termo de consentimento de uso de imagem, som e voz
SUMÁRIO

ANTES DE CHEGAR AOS ATELIÊS: DA PESQUISADORA E DOS CAMINHOS


DE PESQUISA................................................................................................................. 15
1. CONTRIBUIÇÕES DE(S)COLONIAIS: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA (E
TAMBÉM EPISTÊMICA, ÉTICA, ESTÉTICA E POLÍTICA) ................................. 23
1.1 A opção de(s)colonial: pensando a colonialidade, a modernidade e a
racionalidade hegemônica ocidental. ........................................................................ 23
1.2 Trabalho: leituras a partir das colonialidades do poder, ser e saber ......... 27
1.3 Desenvolvimento econômico e social: como parte do projeto civilizatório
moderno-ocidental eurocêntrico ................................................................................ 32
1.4 Práxis de(s)colonial de re-existência: ser, sentir, fazer, pensar e viver ...... 36

2. QUEM FAZ ARTE? A/O ARTISTA! ................................................................... 40


3. DO REMEMORAR: UM PERCURSO METODOLÓGICO COM
HISTÓRIAS DE VIDA ................................................................................................... 51
3.1 De quem são as histórias: conhecendo os sujeitos participantes ................. 52
3.2 Onde acontece essa pesquisa: da cidade de Pato Branco - PR .................... 55
3.3 Do pesquisar: acerca do método de histórias de vida .................................. 57
3.4 Da escuta: entrevistas em profundidade ....................................................... 59
3.5 Do registro: escrita e organização do texto ................................................... 61
3.6 Do recontar: sobre o procedimento de transcriação ................................... 63
3.7 Da reflexão: acerca da análise narrativa ....................................................... 64
3.8 Do retorno: sobre o tecer em conjunto .......................................................... 66

4 HISTÓRIAS DE VIDA “FEITAS À MÃO”: BORDADOS E ESCULTURAS


NO TEMPO, POR E COM JUREMA E KALU .......................................................... 67
4.1 Bordados no tempo: histórias de vida de Jurema Edy Pereira ................... 69
4.1.1 Primeiras linhas, no papel e no tecido: a infância, o trabalho manual e a arte ............ 70
4.1.2 Nas cores das flores e do enxoval: juventude, casamento e mudança ........................ 74
4.1.3 Da agulha ao pincel: escolhas, conquistas e aprendizados ......................................... 77
4.1.4 Mãos em ação: exposições, projetos e outros trabalhos .............................................. 82
4.1.5 Mais cores nas telas: união e sonhos ........................................................................... 88
4.2 Esculturas no tempo: histórias de vida de Kalu Chueiri ............................. 90
4.2.1 Couro e música: família e primeiros contatos com a arte e trabalhos manuais........... 91
4.2.2 Cavocando a madeira e o entalhe de pedras: primeiras obras ..................................... 96
4.2.3 Mãos à obra: trajetórias familiares e profissionais no encontro com a arte ................ 99
4.2.4 Formão em ação: obras na cidade e região ............................................................... 101
4.2.5 Criar, projetar e realizar: encomendas e sonhos........................................................ 108

5 DAS MÃOS AOS LUGARES NO MUNDO: ESCREVER-PENSAR A PARTIR


DE VIDAS QUE SÃO E ESTÃO SENDO .................................................................. 113
CONSIDERAÇÕES, AO FINAL ................................................................................. 141
REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 150
APÊNDICES .................................................................................................................. 157
Apêndice A: ............................................................................................................... 157
ROTEIRO DE TEMAS PARA ENTREVISTAS EM PROFUNDIDADE.......... 157
Apêndice B: ............................................................................................................... 158
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)............ 158
Apêndice C: ............................................................................................................... 161
PARA UM DIA VOLTAR, AO ATELIÊ, AO ENCONTRO: DO QUE FICA .. 161
15

ANTES DE CHEGAR AOS ATELIÊS: DA PESQUISADORA E DOS CAMINHOS


DE PESQUISA

Este estudo acontece motivado por um conjunto de temas que perpassam minhas
experiências acadêmicas e profissionais. Os interesses sobre o ser e estar no mundo, o fazer
artístico, o trabalho, as histórias de vida e a Psicologia Social, que compõe esta pesquisa,
se encontram em diferentes caminhos que venho trilhando.
A expressão artística se faz presente em minha vida desde a infância, sendo
incentivada pela minha família e por ações na escola em que estudei até o ensino médio
em Passo Fundo - RS. Aos 14 anos já trabalhava como atriz na companhia de teatro da
Universidade local, e aos 16 anos meu trabalho com teatro possibilitou o voluntariado no
Hospital da Cidade, surgindo a Palhaça Aspirina. Desde então, estudar e vivenciar a arte
da palhaçaria em diferentes áreas, inclusive na terapêutica e na social, ampliaram a minha
aproximação da arte com o humano e com o sentir-se parte no/do/com o mundo, como
sujeito ativo.
Anos depois, na graduação em Psicologia, o interesse sobre as relações e emoções
humanas foi ampliado pelas teorias e práticas propostas nas disciplinas da área de
Psicologia Humanista, que contribuem com um olhar sobre os fenômenos humanos e a
consideração do sujeito como construtor ativo em suas experiências. Na área de Psicologia
Social e Comunitária foi possível realizar o estágio semestral junto à uma comunidade de
famílias de pescadores em Guaraqueçaba – PR e também estágios profissionalizantes em
duas áreas de trabalho social, sendo o primeiro como educadora social com jovens em
vulnerabilidade na cidade de Piraquara - PR, e o segundo como agente de desenvolvimento
regional em um bairro de Curitiba - PR. Nos três estágios, a Psicologia Social, a abordagem
humanista e a arte foram fundamentos de ação. Tais experiências, somadas à participação
ativa no movimento estudantil regional de Psicologia, fizeram crescer as inquietações
perante a realidade social, aos sistemas de opressão sobre os sujeitos dessas histórias, e da
função do profissional de Psicologia frente a isso.
Como pesquisadora, o trabalho de conclusão de curso de graduação em Psicologia
promoveu um diálogo entre a Psicologia Corporal, baseada na teoria da Análise
Bioenergética (LOWEN, 1975), com a experiência de ser palhaço, registrada em
entrevistas que realizei com oito palhaços e palhaças de cinco países. O estudo possibilitou
o desenvolvimento de uma análise em três dimensões: pessoal, psicoemocional e social.
16

Conheci formas de ser, sentir e viver em sociedade através da experiência de ser palhaço
em diferentes realidades.
A vivência profissional atual também vem me possibilitando ampliar o olhar e a
compreensão sobre a complexidade e beleza dos fenômenos humanos, nas três principais
áreas que venho atuando: Psicologia Clínica, Educacional e do Trabalho. Na experiência
clínica com atendimentos na abordagem sistêmica, as histórias pessoais e a compreensão
sobre os sistemas em que o sujeito é inserido, tem sido campo vasto de aprendizagem sobre
a subjetividade das relações. Uma outra área de atuação da Psicologia, que tive a
oportunidade de vivenciar, foi como Orientadora Educacional no ensino fundamental em
uma escola de Dois Vizinhos-PR, por dois anos, com experiências intensas na área de
educação, culminando em uma pós-graduação lato-sensu em Psicopedagogia Clínica e
Institucional. Estas experiências transformaram meu olhar sobre o papel da educação na
vida dos sujeitos e seus lugares na sociedade. E desde outubro de 2017 atuo como psicóloga
do trabalho em uma instituição federal de educação superior, na cidade de Pato Branco –
PR. A Psicologia do Trabalho tomou lugar entre minhas atenções, observando como o
trabalho influencia na constituição do sujeito, além de lhe direcionar nas formas de relação
com a sociedade e construção de sentidos.
Algumas inquietações se construíram nessa caminhada de vivências, que me
motivaram a querer saber mais sobre as possíveis maneiras de estar no mundo, atenta ao
ser, sentir e viver na sociedade atual. Busquei a continuidade dos estudos através do
mestrado, me inscrevendo no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional
(PPGDR) na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), na linha de Educação
e Desenvolvimento. Um encontro essencial para a concepção desse projeto de pesquisa
ocorreu ainda antes de entrar na seleção do Mestrado, quando fui aluna externa do PPGDR
em 2018, na disciplina de Pesquisa Social ministrada pela professora Dra. Franciele Clara
Peloso. Os textos, os diálogos em círculo, o acolhimento e provocações a pensar, me
fizeram reviver os espaços de construção de sentidos que tive no caminhar acadêmico,
ampliando para novas possibilidades de caminhos em pesquisa qualitativa. A cultura, a arte
e as histórias de vida também ganharam brilho nos primeiros diálogos com a professora,
tornando-se possíveis temas para uma futura pesquisa com questões ligadas à sensibilidade,
em diálogo com o Desenvolvimento Regional. Assim se deu o encontro inicial.
Quando comecei a ouvir as narrativas coletadas na presente pesquisa, ressoou no
meu coração lembrar que vi/fiz isso na minha adolescência, quando em uma oficina de
história oral na Universidade de Passo Fundo, fiz o registro em fitas cassetes de memórias
17

relatadas pelo meu avô Manfredo Carlos Voss e minha avó Maria Gasparina Voss. E parte
dessas lembranças ali gravadas, perpassam pelas ruas de Pato Branco, por ser a região da
família de minha avó, e onde moraram em alguns períodos de suas vidas, trabalhando,
inclusive, na rádio local. A relação familiar com a região enriquece o pertencimento ao
lócus da pesquisa.
Essa bagagem de vivência pessoal constitui uma parte da motivação para a
realização dessa proposta de estudo. Somados à essa justificativa, apresento, nos próximos
parágrafos, o contexto social em que foi construída a questão desse projeto de pesquisa,
justificando sua pertinência em um Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento
Regional, na linha de Educação e Desenvolvimento.
Como pesquisadoras, voltamos nosso olhar ao sujeito artista, dando atenção às
vivências que têm no contexto social em que está inserido. A realidade social sobre a qual
nos debruçamos tem aspectos que se constituíram conforme as transformações trazidas
pelas revoluções técnico-científicas, identificadas desde a primeira revolução industrial no
século XVIII. De acordo com Libâneo, Oliveira e Toschi (2012) esse processo afeta,
continuamente, as relações de produção, de trabalho e de educação no mundo.
Transformações essas que, motivadas pela busca de crescimento econômico, também
afetaram as relações sociais, acelerando o ritmo dos processos, do trabalho, da automação,
da comunicação e do transporte. A sociedade segue, desde então, a velocidade do
capitalismo globalizado e conectado (BRUNO, 2011). Furtado (1978) destaca que os
processos criativos foram também afetados e direcionados para a ciência e tecnologia,
visando o lucro e resultados para o mercado.
Os trabalhos que passaram a ser cada vez mais valorizados, segundo Heidemann
(2009) envolveram a tecnologia, a velocidade, a padronização e automação, sendo
intensificados nos projetos de desenvolvimento do século XX, pautados no crescimento
econômico. O desenvolvimento econômico, com a implantação do capitalismo no mundo,
está relacionado a outros impactos sociais, não somente na área de trabalho e produção,
sendo percebido em outras instâncias da sociedade e da constituição da subjetividade.
Alguns movimentos de crítica ao desenvolvimentismo, a partir dos anos 1960, apresentam
alguns resultados da corrida econômica que vem ampliando a desigualdade social e
impactos ambientais globais (PORTO-GONÇALVES, 2016; RESTREPO, 2017).
A partir dessa contextualização, pensamos sobre como esse conjunto de
transformações ligado ao desenvolvimento, às revoluções técnico-científicas e ao
capitalismo, afeta o/a artista e seu trabalho. Essa reflexão toma lugar, ao observar
18

características nesse fazer que envolvem tempos distintos, como da sensibilidade e


imaginação, do trabalho manual e contemplativo, que em alguns momentos, como reflete
Bosi (1992), chegam a ser conflitantes com a aceleração do tempo imposto com as
transformações dos últimos séculos. Para Albán Achinte (2017), estas e outras diferenças
no fazer artístico podem, em alguns casos, promover o sentimento no/na artista de estar
“fora da norma”.
Sabe-se que essa sensação de ocupar espaços distintos através do trabalho da arte,
não pode ser generalizada a todas as produções artísticas. Esse estudo não pretende atribuir
uma visão única sobre esse tema, ciente da pluralidade que o campo da arte oferece e das
diferentes relações que cada artista promove e estabelece dentro do sistema. Outrossim,
promover reflexões pertinentes às possibilidades que envolvem as vivências de sua relação
com o mundo, nas suas histórias de vida em sociedade, a partir de um olhar acadêmico
sobre as relações sociais, culturais e políticas do/a artista no sistema moderno-colonial e
suas potencialidades de re-existência.
Assim se constituiu a justificativa desta pesquisa, e a partir dela e da fase
exploratória inicial, foi feita a escolha da fundamentação teórica, que dialoga com os
movimentos de reflexão crítica sobre o sujeito na realidade social, permeada pelas
transformações do desenvolvimento econômico, na noção de tempo e nas relações sociais.
Escolhemos como fundamentação teórica a de(s)colonialidade, a partir de contribuições de
autores de(s)coloniais latino americanos, pelos motivos descritos a seguir:
a) Pela concepção sobre o processo de desenvolvimento, em especial nos países
latino-americanos, em que propõe uma historicização desde os processos de colonização
para compreender a formação da sociedade, das relações de poder e as consequências na
divisão social do trabalho (ESCOBAR, 2007, MIGNOLO, 2008; RESTREPO, 2017.); b)
Por ser uma opção epistêmica que tem o sujeito como foco, e bases teóricas sobre a
opressão, que se dá também de forma subjetiva, decorrente do sistema moderno-colonial,
visando contribuir também com possibilidades de ação frente a essas realidades
(QUIJANO, 1992; WALSH, 2005; ALBÁN ACHINTE, 2017.); c) Por considerar a arte
como uma das possibilidades de vivenciar e aprender a pensar ações, e formas distintas de
ser e estar no mundo (ALBÁN ACHINTE, 2017; DUSSEL, 1997); d)Pela valorização da
oralidade, tendo no registro um de seus caminhos metodológicos de produções acadêmicas
e práxis de re-existência (WALSH, 2013; ALBÁN ACHINTE, 2013).
Ao definir a fundamentação teórica, procedemos à segunda fase da pesquisa
exploratória, quando foi realizado um levantamento de pesquisas sobre a
19

de(s)colonialidade, arte e artista. A produção acadêmica com esses temas em diálogo no


movimento de(s)colonial é recente, concentrada nas últimas décadas.
Mignolo (2018) aponta que o tema da arte e da estética de(s)colonial começou a ser
incluído nas discussões do grupo Modernidade/Colonialidade no ano de 2003, com a
entrada no grupo do intelectual e artista afro-colombiano Adolfo Albán Achinte,
doutorando de Catherine Walsh na época. Em seus trabalhos encontramos importantes
reflexões sobre artistas indígenas e afro-colombianos, o resgate e valorização das artes
latino-americanas, das sensibilidade, em suas mais diversas manifestações. As produções
desse autor serão exploradas no decorrer do texto, e em especial no segundo capítulo.
Este tema, então, vem galgando diferentes caminhos de pesquisa, que contribuem
para as contribuições de(s)coloniais, somando a seus alcances no campo acadêmico,
político e epistêmico, também o campo estético. Nesse sentido, Zulma Palermo (2009,
2014) organizou duas obras intituladas “Arte y estética en la encrucijada decolonial
(TOMO I e II)” onde reuniu textos que se propõe a pensar o que é a arte na América Latina,
buscando um desprendimento que o projeto eurocentrado tem imposto. Os autores que
contribuíram nessas edições foram: Irene Lopez, Justo Pastor Mellado, Adolfo Albán
Achinte, Madlina Tlostanova, Pedro Pablo Gómez e Walter Mignolo. Esses dois últimos
autores versam sobre a estética de(s)colonial (ou aesthesis de(s)colonial), se referindo à
colonialidade estética presente na história latino-americana, e as ações de(s)coloniais nesse
ramo do sentir, pensar e fazer.
Dentre as pesquisas recentes sobre arte e de(s)colonialidade, duas frentes de estudo
tem predominado nas produções acadêmicas: do registro e reflexão sobre manifestações
artísticas consideradas de(s)coloniais na contemporaneidade, com exposições de
expressões artísticas que se apoiam neste conceito, e sobre artistas com viés de(s)colonial,
coletivo ou radical (MIGNOLO, 2010; GÓMEZ, 2019; QUINTERO, FIGUEIRA e
ELIZALDE, 2019; MOURA, 2016; VÀZQUEZ, 2016; SIMÃO E SAMPAIO, 2018; entre
outros); e os estudos sobre o papel da arte na contribuição do pensamento de(s)colonial e
no campo da educação, a história da arte vinculada à colonialidade/modernidade e
reconhecimento dos saberes artísticos latino-americanos (ACHINTE, 2009; WALSH,
2009; MALDONADO-TORRES, 2017; AMARAL, 2017; GORJON, 2018;
BERGAMASCHI E MELO, 2018; entre outros).
Reconhece-se um avanço de pesquisas e problematizações neste tema, e ao mesmo
tempo, perante o atual panorama acadêmico de publicações, percebe-se uma lacuna de
20

pesquisas que versem sobre o/a artista, sua história e sua vivência pessoal na
colonialidade/modernidade.
Esta pesquisa propõe, também, uma contribuição de caráter político, de reflexão,
provocação e sensibilidade. Nesse sentido, os teóricos da de(s)colonialidade utilizados por
nós, reconhecem nas contribuições do/da artista, pelas especificidades ligadas ao seu
trabalho, dentre as possíveis práxis de re-existência ao processo de opressão, característico
do sistema moderno-colonial. Em um sentido de construção crítica e criativa perante a
realidade, o ato criador também pode ser visto como ato político. O/a artista, ao re-criar a
realidade e transformá-la pelo seu olhar, também é afetado pelo seu exercício de ação, e
consequentemente, afeta seu entorno sociocultural (ALBÁN ACHINTE, 2017). Soma-se
a isso o fato de muitas ações artísticas se configurarem como uma ação de registro,
marcando as raízes de um povo por mediações simbólicas, ao produzirem obras que contém
em si memórias de um tempo (BOSI, 1992).
Vale registrar que uma das justificativas que permeiam esta dissertação, é que nós
pesquisadoras (pesquisadora principal e orientadora) também temos na arte uma escolha
de expressão, mesmo que não como a principal atividade laboral no momento. Mas ao
perpassar por nossos corpos a sensibilidade artística de forma intensa, sentimos também os
reflexos da sociedade sobre a classe, o que nos levou a realizar um estudo com artistas
plásticos em uma pesquisa na linha de Educação e Desenvolvimento.
Esse desenho nos provocou ainda mais a querer aumentar a compreensão sobre
sujeitos que vivenciam essa realidade e re-pensar a sociedade a partir de suas memórias e
reflexões. Para conhecer uma das formas de vivenciar seu lugar no mundo, optamos por
estudar sujeitos que escolheram as artes plásticas como sua forma de expressão laboral, por
dois motivos centrais: 1) pelas características do trabalho artístico vinculados à
sensibilidade, possibilidade de resistência e de tempo distinto do ritmo da sociedade
moderno-colonial; 2) as artes plásticas se justificam pelo trabalho manual requerido no
desenvolvimento das obras, é uma das formas laborais descritas dentre as afetadas pelas
transformações ocorridas nas revoluções técnico-científicas.
Delineadas as motivações, contexto sócio-histórico, fundamentação teórica e
justificativas desse projeto de pesquisa, chegamos às nossas questões de pesquisa: Como
artistas plásticos vivenciam seu lugar no mundo? Como foram construídos seus modos de
ser, fazer e sentir, através dos lugares que ocupam nessa sociedade moderno-colonial?
Para responder a essas questões, nos propomos a trabalhar com os seguintes
objetivos:
21

Objetivo geral:
Compreender, a partir das histórias de vida de artistas plásticos residentes em Pato
Branco - PR, como experienciam o seu fazer artístico, considerando as colonialidades do
poder, do ser e do saber e as práxis de re-existência.

Objetivos específicos:
Refletir sobre a sociedade moderno-colonial e o papel da arte e do/a artista, a partir
das contribuições de autores de(s)coloniais latino-americanos.
Registrar as memórias das vivências de dois artistas plásticos, na sua relação com
a sociedade;
Identificar nas histórias de vida de dois artistas plásticos como vivenciam ser e estar
no mundo e como foram construídos seus modos de ser, fazer e sentir através das
experiências vivenciadas no contexto da sociedade moderno-colonial.

Na organização da escrita desta dissertação, o texto está dividido em cinco


capítulos, visando atender aos objetivos descritos anteriormente.

O primeiro capítulo “Contribuições de(s)coloniais: fundamentação teórica (e


também epistêmica, ética, estética e política)”, traz as contribuições de autores
de(s)coloniais latino-americanos sobre os temas do trabalho e do desenvolvimento, e o
conceito de práxis de re-existência. Autores como Aníbal Quijano (1992, 2002), Walter
Mignolo (2008, 2017), Catherine Walsh (2005, 2013), Adolfo Albán Achinte (2013, 2017),
compõem a base do debate a que nos propomos.
No segundo capítulo “Quem faz arte? A/o artista!” são descritas características
vinculadas à arte e aos/às artistas a partir da de(s)colonialidade. Os autores que
contribuíram nessa descrição foram Adolfo Albán Achinte (2006, 2009, 2017), Alfredo
Bosi (1986 e 1992) e Enrique Dussel (1997), descrevendo especificidades e contribuições
da arte no sistema moderno-colonial, pelos sujeitos que as têm como via de expressão, vida
e/ou trabalho. Nesta pesquisa optamos por esses três, que são autores que lançam seu olhar
sobre o/a artista dentro da fundamentação teórica de(s)colonial, em sua perspectiva latino-
americana. Estes dois primeiros capítulos visam atender ao primeiro objetivo específico:
Refletir sobre a sociedade moderno-colonial e o papel da arte e do/a artista, a partir das
contribuições de autores de(s)coloniais latino-americanos.
22

O terceiro capítulo “Do rememorar: um percurso metodológico com histórias de


vida” apresenta as fases da metodologia da presente pesquisa. O método é apontado a partir
de autores de pesquisa social qualitativa, tendo a psicóloga social Ecléa Bosi (1987, 2003)
como referência principal em histórias de vida. É caracterizada como uma pesquisa
qualitativa de história de vida (BOSI, 1987, 2003; GILL e GOODSON, 2015). Foram
realizadas entrevistas em profundidade no final do ano de 2019 e no primeiro semestre de
2020, registrando as histórias de vida da artista e do artista participantes, (re)escritas através
do processo de transcriação (CALDAS, 1999). Posteriormente foram trabalhadas as
memórias registradas nas entrevistas em diálogo com a fundamentação teórica do estudo,
por meio de análise narrativa (GILL e GOODSON, 2015).
O capítulo quatro “Histórias de vida ‘feitas à mão’: dos bordados e das esculturas
no tempo, por e com Jurema e Kalu” é referente à apresentação das histórias transcriadas
a partir do material resultante das entrevistas realizadas com a e o artista, visando atender
ao segundo objetivo específico: registrar as memórias das vivências de dois artistas
plásticos, na sua relação com a sociedade.
No capítulo cinco, intitulado “Das mãos aos lugares no mundo: escrever-pensar a
partir de vidas que são e estão sendo” traz a análise narrativa, a partir de episódios vividos
por Kalu e Jurema, e que são lidos a partir dos conceitos de colonialidade do poder
(QUIJANO, 2002), colonialidade do saber (LANDER, 2000), colonialidade do ser
(MALDONADO-TORRES, 2007), e das práxis de re-existência (ALBÁN ACHINTE,
2017). Este capítulo foi elaborado para atender ao terceiro objetivo específico da presente
pesquisa: identificar nas histórias de vida de dois artistas plásticos como vivenciam ser e
estar no mundo e como foram construídos seus modos de ser, fazer e sentir através das
experiências vivenciadas no contexto da sociedade moderno-colonial.
Para finalizar, trazemos as considerações, ao final, com reflexões tecidas a partir
das contribuições da pesquisa realizada.
23

1. CONTRIBUIÇÕES DE(S)COLONIAIS: FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA (E


TAMBÉM EPISTÊMICA, ÉTICA, ESTÉTICA E POLÍTICA)

A de(s)colonialidade foi escolhida como a fundamentação teórica da presente


pesquisa, considerando sua abrangência ética, epistêmica, política e estética (GÓMEZ,
2019). Neste capítulo inicial apresentamos a opção de(s)colonial e, em seguida, suas
contribuições sobre os temas do trabalho e do desenvolvimento. Estes dois temas foram
selecionados dentro da teoria base desse estudo, por serem fenômenos sociais que
compõem dimensões importantes para a compreensão sobre o sujeito em sociedade, o que
vem contribuir para a contextualização desta pesquisa e para o diálogo que será tecido na
análise das histórias de vida coletadas.
O texto está organizado na seguinte sequência: inicialmente, é apresentada a opção
de(s)colonial de uma maneira geral; na segunda parte são trazidas contribuições sobre o
trabalho na sociedade atual, considerando as transformações das revoluções científicas e
tecnológicas da modernidade e as relações de poder estabelecidas no sistema moderno-
colonial e que afetam o sujeito que trabalha; o tópico seguinte versa sobre o
desenvolvimento econômico e social, partindo de uma breve introdução sobre o tema e
construindo a visão de(s)colonial sobre ele; o capítulo é finalizado com a apresentação das
práxis de re-existência, propondo um dos caminhos alternativos para se vivenciar a
sociedade moderno-colonial, e também com maneiras outras de trabalhar e de desenvolver
socialmente a partir dessas práxis.

1.1 A opção de(s)colonial: pensando a colonialidade, a modernidade e a


racionalidade hegemônica ocidental.

A opção de(s)colonial propõe-se a estudar os fenômenos sociais, considerando-os


dentro de um sistema social que teve seus modos de ser e trabalhar, influenciados desde o
período colonial. Considera-se que o colonialismo possibilitou a implementação de um
sistema no mundo em que sociedades exerciam dominação direta, formal, política, cultural
e social sobre outras, justificadas por as terem conquistado. Como por exemplo, no caso
dos países europeus sobre os povos e territórios da América, que se tornaram suas colônias
a partir do século XVI. Essa dominação explícita, o colonialismo, em seus aspectos formal
e político, foi finalizada na maioria dos casos, primeiramente na América e posteriormente
na África e Ásia (QUIJANO, 1992).
24

Apesar do colonialismo ter sido finalizado em seus aspectos formal e político na


maioria dos países, seus modos de dominação sobre o mundo, desde o século XVI, ainda
não cessaram. A essa dimensão de dominação que ainda ocorre, dá-se o nome de
colonialidade, a qual se mantém através de uma estrutura de poder, que se reinventa e se
re-elabora, com formas de exploração, discursos e discriminações sociais criados pela
mesma matriz do pensamento colonial. Como destaca Mignolo (2017), uma matriz de
poder moderno-colonial que tem como base os fundamentos raciais e patriarcais do
conhecimento, atuando em quatro domínios inter-relacionados de controle: autoridade;
economia; gênero e sexualidade; conhecimento e subjetividade. Essa matriz formou, assim,
um conjunto de relações de violência e controle sobre o outro, justificadas pela retórica da
modernidade.
A modernidade é reconhecida nos processos de consumo, comércio, tecnologia e
indústria, somados às relações entre razão e ciência, sujeito-cidadão e Estado Nação, e da
delimitação de espaços privados e esferas públicas. Formam um conjunto de processos
históricos distintos, que vem ocorrendo nos últimos séculos, e que são realizados e
vivenciados pelos sujeitos, não só aqueles de classes progressistas, mas também os
indígenas, campesinos e trabalhadores, cada qual a seu modo (SZURMUK e IRWIN,
2009). Muito além de somente um complexo de características ligadas à mudanças nas
formas de produção, trabalho, consumo e ciência, a modernidade também é vista como
uma retórica que justificou (e ainda justifica) ações de desumanização e inferiorização,
ocultas em suas práticas econômicas. Mignolo (2017) indica que a retórica desse discurso
se baseia nas revoluções científicas realizadas pelos europeus e no domínio sobre o
conhecimento, principalmente a partir do século XVI, gerando as relações de controle e
poder colonial. Tais ações de controle, segundo Quijano (1992), seguem sendo vivenciadas
nas categorias de diferenças raciais, étnicas, nacionais, assumidas como fenômenos
naturais, de significação a-histórica, e não como parte da história do poder.
Tal concepção crítica e histórica da modernidade e da colonialidade vem sendo
elaborada por autores latino americanos que, ao estudar as relações modernas do
conhecimento/poder, consideram as estipulações coloniais locais ainda presentes nessa
dinâmica (SZURMUK e IRWIN, 2009). Partindo desses contextos, Mignolo (2008) afirma
que o pensamento de(s)colonial propõe descolonizar o pensamento historiográfico e a
história narrada, para avançar em seus propósitos teóricos, políticos e epistêmicos, como
uma alternativa aos pensamentos totalizantes impostos pela modernidade.
25

Ao considerar a história moderna como uma continuidade e não como somente


fenômenos singulares, aleatórios e a-históricos, as produções acadêmicas de(s)coloniais
registram a importância de se reconhecer a racionalidade hegemônica presente no projeto
eurocêntrico de modernização do mundo, no desenvolvimento de uma história universal
(universalizante) (SZURMUK e IRWIN, 2009). A racionalidade ocidental se desdobra
pelas possibilidades geradas a partir da Europa como “centro”, e deixando como periféricas
as demais culturas, posicionando-se assim como uma universalidade, um modelo de
civilização. No entanto, segundo Dussel (2000), grande parte dessa posição de
superioridade se dá devido aos processos cumulativos de riqueza, conhecimentos e
experiências a partir do século XVI com o domínio do Atlântico e a conquista da América
Latina.
O modelo de racionalidade ocidental hegemônica se baseia em um pensamento
dicotômico, onde estabelece oposições definindo mais importância para somente um das
polaridades, sempre aquela que segue o padrão estabelecido pelo pensamento moderno-
colonial. Como pode ser verificado nas diferenças estabelecidas entre o que é moderno e
o que é tradicional, nas antonomias entre mito e história, racionalidade e ritual, corpo e
mente, entre outros que vem dividindo mundos sociais e históricos (SZURMUK e IRWIN,
2009).
Com a globalização, os progressos econômicos e os projetos de desenvolvimento
ligados ao capitalismo, na formação de um sistema mundial, o eurocentrismo e a
racionalidade hegemônica continuaram sendo base de modelos totalitários de civilização,
mesmo tendo outras nações fora da Europa que também vem ocupando papéis centrais de
poder mundial, como os Estados Unidos da América, com seus projetos de
desenvolvimento após a II Guerra Mundial. Gómez (2019) pontua que após o século XVI,
o mundo que era policêntrico e não capitalista, se tornou eurocêntrico e capitalista, com a
instalação da matriz colonial de poder que, durante esses cinco séculos tem estado à cargo
de países imperiais ocidentais do norte global. No entanto, há sinais de desgaste e crise
nesse sistema no modelo que vem sendo imposto, identificados por movimentos de
resistência política, econômica e cultural, que denunciam a proliferação e intensificação
das desigualdades sociais e culturais, e os limites excedidos em relação à natureza.
A de(s)colonialidade faz parte desses movimentos, e propõe-se como uma opção a
mais para se ler a realidade e não como uma via única a substituir o paradigma dominante,
se desprendendo, assim, de qualquer projeto totalitário e universal, característico da
26

racionalidade hegemônica (MIGNOLO, 2008). Ainda, assume a coexistência de diferentes


epistemes e formas de produzir, como descreve Walsh (2005):

novedosa perspectiva del pensar crítico cuya base descansa en la relación


modernidad/colonialid y los patrones del poder que esta relación ha construido.
Pero también es evidenciar la importancia de la especificidad de la historia y
lugar. Es decir, la importancia de las particularidades de modernidad y
colonialidad en la región.(...) Con relación a la diferencia de paradigmas
latinoamericanos anteriores, este pensar no se queda solo en la experiencia
latinoamericana (mestiza), sino también intenta interpelar perspectivas críticas
que provienen de distintas locaciones epistémicas subalternas, incluyendo pero
no limitado a las de indígenas y afro, como también a las de otras regiones del
globo. (WALSH, 2005, p. 16)

Dessa forma, trabalha teoricamente com as relações da modernidade e


colonialidade, partindo das especificidades da história e do lugar. O pensamento
de(s)colonial, de acordo com Ballestrin (2013), tem como principais referências autores de
países que foram colônias europeias, em sua maioria pertencentes às nações do sul global,
da América Latina, África e Ásia, que buscam contribuir para a compreensão das formas
que o sujeito atua, nos diferentes níveis da vida coletiva e da vida pessoal, em um mundo
marcado pela colonialidade.
Para a análise da realidade histórica e social, a partir da de(s)colonialidade, é preciso
reconhecer como se articula o atual padrão de poder no mundo. Quijano (2002) apresenta
quatro pontos em que o poder mundial tem se articulado nas sociedades hoje: a
colonialidade do poder através da classificação social pela ideia de raça; o capitalismo e
sua exploração social pautada em um padrão universal; o Estado como autoridade coletiva
tendo como sua variante hegemônica o moderno Estado-nação; o eurocentrismo com seu
controle da subjetividade/intersubjetividade e no modo de produzir conhecimento de forma
hegemônica (QUIJANO, 2002). O conjunto dos quatro itens citados representa a
articulação do poder no mundo moderno-colonial, e estão presentes em muitos estudos e
ações da de(s)colonialidade, o que justifica sua abrangência epistêmica, teórica, estética,
ética e política.
Esses quatro pontos se articulam em diferentes esferas da vida de um sujeito, sendo
o trabalho uma das mais afetadas. No próximo tópico, são descritas as transformações nesse
campo nos últimos séculos, e identificadas as relações de poder que ocorrem nesses
processos, a partir da matriz de poder moderno-colonial.
27

1.2 Trabalho: leituras a partir das colonialidades do poder, ser e saber

Para contextualizar o tema do trabalho dentro da matriz de poder moderno-colonial,


relacionada também ao capitalismo e ao controle hegemônico sobre a subjetividade,
iniciamos esse tópico apresentando as transformações sociais ocorridas nas revoluções
científicas e tecnológicas da modernidade.
Na base do crescimento econômico e nos processos de progresso e
desenvolvimento global, diferentes fases de revoluções técnico-científicas ocorreram,
impactando também nas relações de trabalho e de produção em cada período. Desta forma,
foram direcionando os investimentos e, também, definindo as áreas que mereceram maior
destaque na contribuição para o desenvolver dos países. Reconhece-se avanços,
transformações e impactos sociais promovidos pelas revoluções técnico-científicas
identificadas a partir do século XVIII, conforme características apresentadas no Quadro 1:

Quadro 1 - Características das revoluções científicas e tecnológicas da modernidade

Fonte: Libâneo, Oliveira e Toschi, 2012, p. 71 a 73. Adaptação: própria autora.

Observa-se no Quadro 1 as amplas modificações na produção, no trabalho, na


exploração das matérias-primas e na aceleração da velocidade dos processos, através das
revoluções da técnica e da ciência, muitas delas ainda em curso. A ciência e a tecnologia
influenciam, então, no direcionamento dos investimentos financeiros, definem também os
28

processos de formação do trabalhador, assim como a valorização ou desvalorização de


diferentes áreas de produção e de habilidades humanas. É possível identificar que, na
primeira revolução científica e tecnológica, a mudança principal se deu pela
industrialização. Segundo Libâneo, Oliveira e Toschi (2012), o trabalho passou a ter um
funcionamento distinto de ação do trabalhador, anteriormente em sua maioria rural, sendo
reduzido a somente uma das fases do processo. Enquanto como agricultor o trabalhador se
responsabilizava do começo ao fim da produção rural, como industriário passou a conhecer
somente uma das partes, e a receber um salário fixo (diferentemente da variação quando
dependia somente da colheita), e também substituindo o trabalho artesanal pelo fabril.
No segundo período indicado no Quadro 1, a partir da segunda metade do século
XIX, a divisão do trabalho foi intensificada, com a adoção de novas tecnologias para
exploração de outras matérias-primas, resultando em hierarquização e especialização de
tarefas. Os autores supracitados ressaltam que o trabalhador, neste período, foi incentivado
a se padronizar cada vez mais, surgindo então escolas industriais e profissionalizantes, para
a formação técnica do operário-padrão. Aqueles que detinham o conhecimento das
tecnologias, e o capital, foram assumindo as posições mais altas na hierarquia e no acúmulo
de riquezas. E, na terceira revolução, a partir da segunda metade do século XX, observa-se
uma aceleração nos meios de comunicação e transporte, acarretado pelo desenvolvimento
de tecnologias aplicadas, que alavancaram o alcance global do capitalismo e da divisão de
trabalho e produção entre nações. Segundo Bruno (2011), com uma gestão global do
trabalho e da produção, criou-se mais flexibilidade, mas, no entanto, reduziu-se as vagas
de emprego ao serem substituídas pela automação e robotização, gerando, com isso, novas
formas de desemprego estrutural.
Destaca-se, nas três fases apresentadas, que, à medida que houve mudanças nos
setores industriais, de transporte e de comunicação, as formas de trabalhar foram afetadas.
Ocorreu um processo de contínuo crescimento do controle e exploração do capital, sobre
as capacidades humanas e materiais, em uma constante auto valorização da produção de
riquezas (LIBÂNEO, OLIVEIRA e TOSCHI, 2012). As transformações das relações entre
produção e o trabalho a partir do século XX, principalmente com a implantação e
intensificação do capitalismo monopolista pós-segunda guerra mundial, segundo Furtado
(1978), apresentam um direcionamento do processo criativo para a ciência e tecnologia que
geram resultados cumulativos por natureza, ocupando um lugar privilegiado na civilização
industrial.
29

Esses processos de controle e exploração das capacidades humanas e materiais,


foram sendo gradativamente ampliadas a cada nova fase. No entanto, pelo viés da
de(s)colonialidade, esses processos não ocorrem por acaso, sendo parte de uma mesma
matriz de poder moderno-colonial, que ocorre em diferentes dimensões sociais
(MIGNOLO, 2017; ALBÁN ACHINTE, 2005; WALSH, 2005). Esta opção epistêmica
propõe, a partir das discussões desses e outros intelectuais latino-americanos, ampliar os
diálogos críticos sobre o tema do trabalho, além dos caminhos trilhados pelo marxismo,
apesar das contribuições marxistas na elaboração de instrumentos políticos e teórico
críticos, Lander (2007) defende que para termos condições de reformular e enriquecer
aqueles aportes, é preciso partir dos debates políticos e epistemológicos atuais. Dessa
maneira, o pensamento de(s)colonial propõe a ampliação das discussões sociais produzidas
também no pensamento marxista, mas contemplando outras dimensões, por considerá-la
uma teoria que não escapa do colonialismo e eurocentrismo, duas características ligadas
aos saberes modernos hegemônicos. Frente a essas observações, nesta pesquisa nos
propomos ir além dos apontamentos marxistas nas reflexões sobre o trabalho, como
proposto pelos autores de(s)coloniais que optamos, sem desconsiderar a relevância das
teorias marxistas neste tema.
Considerando a diversidade e as diferenças presentes nas realidades latino-
americanas, os impactos que os projetos de desenvolvimento têm causado nos espaços
laborais, e a necessidade de re-historicização, promovida pela de(s)colonialidade, alguns
conceitos chaves têm sido identificados nas relações sociais e de trabalho. Quijano (2002),
apresenta essas categorias em que a exploração e inferiorização do outro e da natureza
ocorrem, as nomeando como: a colonialidade do poder, a colonialidade do saber e a
colonialidade do ser. Serão apresentadas nos próximos parágrafos, relacionando-as à
dimensão do trabalho, uma das que vem sendo afetada nessa dinâmica.
A colonialidade do poder, segundo Quijano (2002), é identificada nas relações
baseadas no critério de raça, para justificar a distribuição desigual de direitos de ser, pensar
e existir, constituindo a maneira mais eficaz e profunda de dominar o sujeito e o material,
constituindo-se a base intersubjetiva de dominação política mais universal. O capitalismo
se configura também a partir dessa distribuição e classificação, concentrando em si todas
as formas de cultura, produção de conhecimento e subjetividade, com uma ligação à divisão
do trabalho, seu controle ou exploração (WALSH, 2005). A divisão e controle do trabalho
se deram desde as primeiras formas da escravidão e servidão na colônia, também pela
pequena produção mercantil independente, e com o tempo na forma de reciprocidade e
30

salário. Em prol da produção para o mercado mundial, o controle do trabalho se dá pelo


capital na exploração e mercantilização da força de trabalho.
Constrói-se uma estrutura de domínio, como pontua Walsh (2005), que amplia-se
em seu alcance, exercendo poder também sobre a subjetividade e o saber, pelo pensamento
hegemônico ocidental que eleva a perspectiva eurocêntrica de conhecimento em
detrimento das outras formas de produção de conhecimento que não sejam europeias,
brancas e “científicas”. A essa dinâmica se dá o nome de colonialidade do saber (LANDER,
2000). Desde os primeiros agentes coloniais, e a ascensão do pensamento científico
moderno, a racionalidade hegemônica de base dicotômica, foi indicando a superioridade
de uma categoria sobre a outra, como nos binarismos: mente/corpo, homem/natureza,
civilização/bárbaros, branco/negro, razão/emoção (WALSH, 2013). Porto-Gonçalves
(2016) identifica que essas categorizações, ressaltadas no Renascimento europeu,
influenciaram na produção do conhecimento ao colocarem o homem (e não a mulher) no
centro e com o direito de domínio sobre a natureza, como algo naturalizado e autorizado
pela ciência. Relações foram sendo construídas baseadas em tais binarismos, como a
posição dos homens brancos sobre as mulheres e as outras raças, ou na relação entre mente
e corpo, quando a cabeça e o trabalho intelectual seriam superiores às mãos e ao trabalho
manual.
A colonialidade do saber, segundo Lander (2000), tem como eixo central a ideia de
modernidade, em que o progresso é vinculado à visão universal da história que hierarquiza
os povos e continentes, à ontologização das separações dicotômicas, à naturalização do
modo de ser da sociedade liberal-capitalista e à “necessária superioridade dos
conhecimentos que essa sociedade produz (‘ciência’) em relação a todos os outros
conhecimentos.” (LANDER, 2000, p. 13).
Walsh (2005) destaca que o conhecimento científico, ao ser postulado como único
produtor válido de verdades sobre a natureza e sobre a vida humana, direcionado às linhas
de produção capitalista e acumulação de riquezas, invisibiliza e silencia as outras epistemes
que não fazem parte desses objetivos e, por sua vez, os sujeitos que as produzem,
apresentando outras forma de dominação: a colonialidade do ser. A desumanização e
invisibilização, são, para Maldonado-Torres (2007), as expressões primárias da
colonialidade do ser, manifestadas nas dinâmicas existenciais marcadas pelos discursos
moderno/colonial e racial. Dinâmicas em que os sentimentos de inferioridade e medo, a
indiferença ante o diferente, a naturalização de exclusão e a violência, são tomadas como
realidades ordinárias na sociedade.
31

Dentro desta matriz de poder moderno-colonial, Albán Achinte (2017) identifica


que os processos de inferiorização não somente invisibilizam e silenciam sujeitos e
epistemes distintos dos ocidentais, como também constroem uma visibilização negativa,
sendo uma das formas de expressão da colonialidade do ser. Nessa visibilização negativa,
ocorre um processo de desumanização, de negação de si e da sua produção cultural,
simbólica, econômica, espiritual e material. Uma relação estabelecida sobre o sujeito
colonizado e escravizado, e que continua existindo nos dias de hoje, reconhecida na
estigmatização, minorização, discriminação pela raça, marginalização pela adjetivação e
na classificação social eurocêntrica das sociedades em inferiores e superiores.
As colonialidades do poder, do saber e do ser afetam diretamente os sujeitos de
áreas de conhecimento que não são incluídas nas ciências da natureza, como as artes, letras,
ciências humanas e sociais, e também sobre formas de trabalho e de produção com
dinâmicas e tempos distintos aos valorizados nas revoluções científicas e tecnológicas
descritas acima.
Busca-se então, pelas contribuições teóricas da de(s)colonialidade, caminhos para
a descolonização do poder, saber e ser, considerando a multiplicidade de epistemes que o
patrimônio da humanidade comporta, para a superação do impedimento que o
eurocentrismo impõe. Para Porto-Gonçalves (2005), procurar compreender o mundo a
partir da experiência do sujeito e do seu coletivo, de suas epistemes próprias, é colocado
como um dos desafios da opção de(s)colonial. Ao se apresentar também como uma opção
de pensamento frente à história e a realidade social, e não como uma teoria universal, como
ressalta Mignolo (2008), se propõe como um paradigma de co-existência, de leitura
pluriversal do mundo, de diálogo.
Assim, ao se pensar sobre o trabalho, pelo viés de(s)colonial, percebe-se o quanto
esse campo vem sendo impactado pelas mudanças sociais, pelas transformações técnico-
científicas, que aceleraram os processos e impuseram uma divisão social do trabalho de
maneira desigual. No racionalidade hegemônica, as dinâmicas de dominação pelas
colonialidades do poder, do saber e do ser, tem no trabalho um dos seus principais espaços
de expressão, sendo necessário ampliar esse olhar crítico que a de(s)colonialidade promove
sobre esses processos e as relações de poder ali reconhecidas. Possibilitando, assim, outras
leituras possíveis sobre o sujeito e o trabalho no sistema moderno-colonial.
Dentro dessa leitura pluriversal do mundo, autores de(s)coloniais revisitam o tema
do desenvolvimento econômico e social, propondo diálogos sobre esse projeto de
proporções mundiais e que compõem esse arcabouço de transformações no mundo do
32

trabalho, da produção de conhecimento e subjetividade. No próximo tópico esse tema será


abordado a partir do pensamento de(s)colonial.

1.3 Desenvolvimento econômico e social: como parte do projeto civilizatório


moderno-ocidental eurocêntrico

O tema do desenvolvimento tem sido amplamente discutido por diferentes áreas


das ciências sociais e ciências humanas, tornando-o um conceito amplo e multifacetado a
ser estudado. Tem, em sua multiplicidade, uma vasta gama de adjetivações, como por
exemplo: desenvolvimento sustentável, etnodesenvolvimento, desenvolvimento humano,
desenvolvimento local, desenvolvimento regional, entre outras. De acordo com Restrepo
(2017), este é um fenômeno que tem seus efeitos e participação em diversos setores
populacionais, sendo promovido por diferentes níveis, “desde cima” e “desde fora”, por
especialistas, técnicos e classes políticas, e “desde baixo” e “desde dentro”, por setores
subalternizados: ambos movidos pela ânsia de “ser desenvolvido”.
Mesmo dentre tantas variações e ampliações do tema, os conceitos ligados ao
desenvolvimento econômico predominam por seu impacto na organização do mundo
moderno dentro dos moldes capitalistas. Segundo Heidemann (2009), desde as ideias de
progresso, que tiveram seu auge no século XIX, aos projetos desenvolvimentistas do século
XX, o crescimento econômico foi o parâmetro do que as nações e suas populações almejam
atingir. Como pode ser verificado nas fases das revoluções científicas e tecnológicas da
modernidade, apresentadas no tópico anterior, e que foram movidas, em sua maioria, pelos
interesses de crescimento econômico nos moldes capitalistas (LIBÂNEO, OLIVEIRA e
TOSCHI, 2012).
À medida que o alcance das ações em nome do crescimento econômico foram
tomando proporções globais, surgiram críticas a algumas consequências dos projetos de
desenvolvimento, à medida que impactos negativos foram sentidos e denunciados por
movimentos sociais. Porto-Gonçalves (2016) indica que tais movimentos ocorreram de
forma mais intensa nas décadas de 1960 e 1970, quando, no sistema mundo capitalista
moderno colonial passam a ter relevância outros protagonistas, em escala mundial, ao se
manifestarem contra a ordem constituída, tanto no capitalismo quanto no socialismo.
Dentre as críticas, Restrepo (2017) destaca as seguintes: a) afirmações de que as ações pró-
desenvolvimento, somente visando o lucro ou ampliação da capacidade econômica das
nações, sem considerar os limites da natureza e do humano, não são viáveis ecológica e
33

culturalmente; b) muitas ignoram as reais aspirações e particularidades das populações e


de lugares; c) tecem questionamentos às características eurocêntricas nas concepções de
desenvolvimento.
Acosta (2016) destaca que foi criada uma tolerância perante o desenvolvimento,
sendo justificado inclusive seus fracassos, em nome de uma busca por sair do
subdesenvolvimento. Como se atingir tal objetivo, de ser parecido aos “superiores”, seria
algo promissor e muito elevado. Tais (in)consequências do desenvolvimento global, são
percebidas nos limites excedidos no âmbito social, ambiental, cultural e humano, sentidos
no cotidiano em sociedade. Mesmo que o projeto de desenvolvimento econômico seja
imposto com uma lógica única do pensamento moderno universal, para todo o globo, as
consequências são vivenciadas de maneira distinta, de acordo com as especificidades
culturais, sociais, políticas e econômicas de cada região.
Na América Latina, as políticas mundiais de desenvolvimento influenciaram os
modos de produzir e consumir, oferecendo modelos (europeus e norte-americanos) a serem
seguidos, para garantir os avanços dentro do que apresentam como ideal de crescimento de
uma nação desenvolvida. Historicamente, os projetos desenvolvimentistas da maioria dos
países latino-americanos, seguiram a busca por soluções transplantadas, sem a adequar ao
seu meio, e às características de suas populações. Freire (1967), relata que a implementação
desses projetos em muitos países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, geraram o
desânimo e a reprodução de atitudes de inferioridade, em consequência do aumento de
relações de exploração, dominação e opressão dos países mais desenvolvidos sobre eles.
Apesar dos movimentos sociais e políticos de enfrentamento e resistência a essas dinâmicas
de opressão, ela ainda está presente. O desenvolvimento, de acordo com Restrepo (2015),
é entendido neste contexto, como um dispositivo que além de constituir a maneira como se
pensa o mundo, também afeta como são constituídos os sujeitos.
O tema do desenvolvimento é lido e dialogado pelos autores de(s)coloniais como
parte do projeto civilizatório moderno-ocidental eurocêntrico (ALBÁN ACHINTE &
ROSERO, 2016), com a produção e o desenvolvimento seguindo o modelo capitalista e de
expansão dos países dominantes. De acordo com Albán Achinte (2005), a sustentação
desse projeto civilizatório moderno se dá em dois pilares principais: a expansão dos
impérios, “a sangue e fogo” e a imposição do modelo capitalista para a produção e o
desenvolvimento. Re-visitar de forma crítica e atenta às relações de poder na história do
desenvolvimento econômico em países colonizados, se torna uma opção vital para que as
34

sociedades dependentes resgatem sua autonomia e a valorização da sua cultura, afirma Fals
Borda (2007).
No modelo capitalista de desenvolvimento são identificadas ações que promovem
a manutenção da lógica da colonização, porém em outros formatos e com novas
nomenclaturas. Ao descrever o processo brasileiro de desenvolvimento, Bosi (1992)
compara as consequências dos períodos das marchas colonizadoras com as frentes de
produção da atualidade:

A barbarização ecológica e populacional acompanhou as marchas colonizadoras


entre nós, tanto na zona canavieira quanto no sertão bandeirante; daí as
queimadas, a morte ou a pregação dos nativos. Diz Gilberto Freyre, insuspeito
no caso porque apologista da colonização portuguesa no Brasil e no Mundo: “O
açúcar eliminou o índio”. Hoje poderíamos dizer: o gado expulsa o posseiro, a
soja, o sitiante; a cana, o morador. O projeto expansionista dos anos 70 e 80 foi
e continua sendo uma reatualização em nada menos cruenta do que foram as
incursões militares e econômicas dos tempos coloniais (BOSI, 1992, p. 22).

Culturalmente enraizada, a lógica da exploração, exclusão e negação do povo e do


direito local de cada nação, com objetivo de concentrar as riquezas nas elites (externas e
internas), manteve os países latino-americanos em posições subalternizadas, mesmo com
os investimentos na ampliação da capacidade produtiva, industrial e urbana inspirados nos
países da Europa e da América do Norte. Segundo Escobar (2007), as teorias econômicas
do desenvolvimento sobre as economias subdesenvolvidas descrevem um quadro de ciclo
vicioso de baixa produtividade e industrialização inadequada, baseado em índices como
quantidade de investimento de capital estrangeiro, taxas de crescimento e capacidade
industrial. Na década de 1940, como produto do projeto mundial de desenvolvimento,
criaram-se categorizações dos países que não seguiam as normas implícitas dos países
prósperos e desenvolvidos, sendo descritos como subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento. Um espaço discursivo de manutenção das diferenças e imposições de
inferioridade - antes definidas entre civilizados/selvagens -, impedindo que outros
discursos, alternativos aos modelos apresentados, fossem criados e reconhecidos. A
possibilidade de articulação de projetos globais de vida que seguiam outras lógicas, além
de termos econômicos, foi excluída desde o início.
Uma das bases da crítica ao desenvolvimento, não se refere a identificar o que não
funcionou e sugerir no que deveria melhorar, e sim produzir uma historicização do seu
surgimento, para evidenciar como somos produzidos pelo discurso do desenvolvimento,
Restrepo (2017) nos explica que:
35

[...] a estratégia política e analítica não é melhorar e aprofundar o


desenvolvimento (como se isso fosse possível), mas sim interromper a
naturalização com a que geralmente somos pensados a partir do
desenvolvimento, evidenciando as narrativas e práticas a partir das quais se
desdobrou toda uma orientação dos outros e de si em nome do desenvolvimento.
(RESTREPO, 2017, p. 211 e 212)

A orientação dos outros e de si, em nome do desenvolvimento, é o dispositivo que


vem condicionando como deve se ver o mundo e como se viver nele, impactando na
constituição do sujeito e das relações. O desenvolvimento assume assim uma centralidade
no imaginário político, econômico e social, uma forma de dominação subjetiva
naturalizada. Porto-Gonçalves (2005) ressalta que tal naturalização torna a dominação
ainda mais efetiva ao ser aceita como parte do funcionamento da sociedade.
Um dos aspectos de dominação do projeto de desenvolvimento, segundo Quijano
(1992), se deu com a apresentação de um modelo cultural universal de desenvolvimento
que foi seguido pelas nações latino-americanas, com a esperança de conquistar a natureza
e de alcançar os mesmos benefícios materiais e o poder que os países europeus tinham.
Este movimento de mimetismo cultural tem impossibilitado, em muitos lugares, que o
imaginário das culturas não-europeias possa existir e reproduzir-se. No entanto, a partir de
1960, com os questionamentos, críticas e buscas de soluções para as consequências
negativas sobre a natureza, sociedade e cultura, associadas ao capitalismo e seu
desenvolvimento tecnológico, apontaram uma crise no sistema. Albán Achinte e Rosero
(2016), indicam que dentre algumas das opções para a superação da crise produtiva desse
sistema, estão os recursos disponíveis em outras lógicas de produção, justamente aquelas
que a proposta desenvolvimentista tanto tem desqualificado e combatido.
Os autores supracitados se referem às lógicas “outras”, a outras epistemes, a
conhecimentos negados ou desvalorizados no processo de expansão do colonialismo
eurocêntrico e do capitalismo. No pensamento de(s)colonial, são encontradas reflexões
sobre possíveis opções para o desenvolvimento, ao desenvolvimento, ou para outros
desenvolvimentos. São caminhos diversos, na busca de soluções e condições de
sobrevivência de todos dentro do projeto civilizatório moderno-ocidental eurocêntrico,
independente de cor, raça, língua ou religião.
Frente ao exposto pode-se observar que o sujeito tem um papel ativo na sociedade,
atuando nas transformações e ao mesmo tempo sendo afetado por elas. Como observado
nos processos de desenvolvimento que, apesar do discurso priorizar a questão material e
36

econômica, são feitos pelos e para os sujeitos, o que se reflete na constituição de sua
subjetividade.
Apresentamos, no próximo tópico, uma das vias propostas por autores
de(s)coloniais para outras formas de se pensar a sociedade e o sujeito, visto como ser ativo
e com potenciais distintos, o que visa contribuir na proposição de formas outras de se
relacionar com o trabalho e de promover e de se desenvolver nessa sociedade moderno-
colonial.

1.4 Práxis de(s)colonial de re-existência: ser, sentir, fazer, pensar e viver

Buscar conhecer, re-conhecer e registrar o potencial de lógicas “outras”, é uma das


frentes de teoria e de ação no pensamento de(s)colonial, no qual procuram-se estratégias
para o se pensar dentro de propostas críticas e transformadoras. Um dos caminhos, de
acordo com Walsh (2013), está em se buscar, re-conhecer, resgatar e aprender práticas e
metodologias já existentes. Essas ações são descritas como as pedagogias de organização,
insurgência, ação e também de luta e rebeldia, primeiramente dos povos originais, e depois
das africanas e africanos escravizados. Se referem às maneiras que eles encontraram para
subverter, transgredir e resistir à dominação. Tais pedagogias, de acordo com a autora,
foram uma das formas que possibilitaram a esses sujeitos seguirem:

(...) siendo, sintiendo, haciendo, pensando y viviendo - decolonialmente - a pesar


del poder colonial. Es a partir de este horizonte histórico de larga duración, que
lo pedagógico y lo decolonial adquieren su razón y sentido político, social,
cultural y existencial, como apuestas accionales fuertemente arraigadas a la
vida misma y, por onde a las memorias colectivas de los pueblos indígenas y
afrodescendientes han venido manteniendo como parte de su existencia y ser.
(WALSH, 2013, p. 25)

O conceito de pedagogia descrito é concebido, segundo Albán Achinte (2013),


como prática reflexiva do sentido de ser humano, e defende que a escola e o sistema
educacional não são os únicos lugares para se educar, aprender e formar, reconhecendo
como espaços de educação as comunidades, as memórias coletivas e expressões artístico-
culturais. Inicialmente tendo seu lócus de ação e investigação nas ações e memórias de
resistência e sobrevivência de povos originários - indígenas e afrodescendentes - os estudos
têm ampliado sua abrangência de reflexão, fornecendo subsídios para a construção de
novas formas de superação das colonialidades do ser e do saber que produz o não-ser e o
sentimento de não-existência. Albán Achinte (2013, 2017) propõe a categoria de re-
37

existência, que em sua produção acadêmica, apresenta-a junto a categorias relacionadas:


pedagogias de re-existência, práxis de re-existência e estéticas de re-existência. Para o
autor, a sua proposta de categoria de re-existência pode ser entendida como:

(...)los dispositivos que grupos humanos implementam como estrategia de


visivilización y de interpelación a las prácticas de racialización, exclusión y
marginalización en procura de re-definir y re-significar la vida en condiciones
de dignidad y autodeterminación, enfrentando la biopolítica que controla,
domina y mercantiliza a los sujetos y la naturaleza (ALBÁN ACHINTE, 2017,
p. 20).

Essas estratégias e práticas criativas de re-existência apontam a necessidade de


avançar além do que vem sendo imposto na racionalidade hegemônica e sua
universalização de um só conhecimento, de uma só forma de aprender e pensar, de uma só
religião, língua e cor, de um só modo de ser “adequado” às normas modernas. A práxis de
re-existência é vista como ação cotidiana de liberdade, em enfrentamento às colonialidades,
como descreve Albán Achinte (2017, p. 76): “La praxis de la re-existencia es un hacer
libertario que debe conducir a la reconstitución del ser em su integralidade como sujeto
de su próprio acontecer individual y colectivo(...).”. Ainda, segundo o autor, é necessário
apoiar a construção de sujeitos capazes de reconhecer a colonialidade que subestima e
minimiza as formas de ser, de conhecer e de saber não ocidentais. A práxis de(s)colonial
de re-existência objetiva incentivar e apoiar a construção desse sujeito capacitado perante
a realidade e suas relações produzidas no sistema moderno-colonial, com a proposição de
práticas e discursos próprios e mobilizadores (ver figura 1):~

Figura 1 - Práxis decolonial de re-existência


38

Fonte: Própria autora - com base em Albán Achinte, 2017, p. 22

Os discursos e práticas próprias e mobilizadoras dessas práxis são, como descritos


na Figura 1, um conjunto de ações que perpassam as relações de poder visando transformá-
las, para a restituição do ser, em um processo de humanização e re-conhecimento de si e
do seu entorno (Albán Achinte, 2017). As proposições da práxis de(s)colonial de re-
existência exigem uma postura do sujeito perante seu lugar no mundo, partindo da
concepção de práxis como a “reflexão e ação dos homens sobre o mundo para transformá-
lo” (FREIRE, 2019, p. 52). Por isso incluem o perceber-se, criticamente a si mesmo e a
suas relações no mundo. O reconhecimento das limitações também é necessário, pois a
partir da noção do que oprime, do que impede o sujeito de ser em sua integralidade,
constrói-se a necessidade de promover a transformação das relações de poder, objetivando
a libertação. Para que no reconhecimento do limite que a realidade opressora impõe, o
sujeito tenha “o motor de sua ação libertadora”, como indica Freire (2019, p. 48). Nesse
sentido, Walsh (2005) e Albán Achinte (2013, 2017) trazem, entre as bases de seus estudos,
a teoria freiriana, reiterando a visibilização das desigualdades em todas as suas formas.
Desatar as relações de inferiorização, da pobreza e da resignação depende de o sujeito
também tomar conhecimento de sua potência.
A re-existência, então, é vista como uma das ferramentas para o enfrentamento da
manifestação das colonialidades do ser, do poder e do saber no cotidiano pessoal e do
trabalho, nas dinâmicas e “armadilhas” envoltas na promessa moderna de estabilidade.
Estabilidade essa que é apresentada como a garantia de sucesso e segurança: a ilusão de
um mundo feliz, racional, sem contradições e previsível. Albán Achinte (2017) destaca que
tais imposições fazem parte da narrativa colonizadora das existências - colonialidade do
ser - inclusive no sistema educativo que visa acomodar os preceitos de estabilidade da
modernidade, ensinando os passos para construir uma vida ideal, planejada e sem
oscilações, desconsiderando a instabilidade e contradições naturais do ser e estar no
mundo. No entanto, ao mesmo tempo em que se é educado para sentir a segurança na
certeza, na razão, o medo cresce ao sentir as incertezas da vida real, de não alcançar o
emprego estável, o sucesso profissional, a família idealizada, muito dinheiro e a saúde
emocional equilibrada. Desejos que convivem, respectivamente, com o medo do
desemprego, de não atender às metas impostas e auto impostas, de ficar na solidão, da
precariedade econômica e de perder a razão. É o cotidiano do ser, que compõem a vida
regida pela ilusão da estabilidade moderna e os medos criados por ela e seu sistema.
39

As propostas de descolonizar esta condição aparece nas pedagogias e estéticas de


re-existência, que buscam alternativas inspiradas em práxis que, de alguma maneira, não
estão totalmente apagadas neste sistema moderno-colonial. Buscam exemplos de teoria
combinadas com ação, que ainda resistem fora da “norma” imposta pela racionalidade
hegemônica ocidental, e funcionam no incerto e no contraditório, tão combatidos pelo
pensamento moderno-colonial contemporâneo. Ações de(s)coloniais que vem como uma
das vias para o intercâmbio de significações e experiências, uma nova comunicação
intercultural em prol da “descolonização epistemológica” (QUIJANO, 1992). Esse termo
é trazido por Quijano (1992) como uma maneira de promover conhecimento crítico em
relação ao eurocentrismo e sua evolução unilinear e unidimensional na América Latina.
Critica de forma explícita os desmanches causados na ascensão do capitalismo neoliberal
e sociedades burocráticas, apontando uma crise categorial do conhecimento (RUBBO,
2018).
Pensar a partir dessas práxis se coloca como uma das vias de(s)coloniais perante as
influências da modernidade/colonialidade nas ações do cotidiano do sujeito em sociedade.
Além de auxiliar a pensar formas alternativas de trabalhar e se desenvolver no sistema
moderno-colonial, a práxis de re-existência está na composição da fundamentação teórica
deste projeto de pesquisa por outros dois motivos, que nos conduzem para os próximos
capítulos: a) as ações artísticas são descritas como uma das formas de práxis de re-
existência, e dessa maneira nos auxiliam a pensar os/as artistas na sociedade moderno-
colonial. Este item será abordado no segundo capítulo; b) pelo reconhecimento da memória
oral como ferramenta de(s)colonial e de força de ação e conhecimento para os sujeitos, ao
terem sua experiência registrada e para quem tem contato com elas através desse registro,
o que fortalece a nossa escolha metodológica pelas histórias de vida, que serão
apresentadas no capítulo de metodologia.
40

2. QUEM FAZ ARTE? A/O ARTISTA!

Ao adentrar no tema das artes, de artistas, encontram-se diversas vertentes de


produção literária sobre, desde a parte mais técnica da elaboração das obras, até as mais
filosóficas sobre o simbólico criativo, perpassando uma diversidade de olhares entre esses
dois extremos, para citar algumas. Neste capítulo, escolhemos versar sobre a arte e o/a
artista, a partir das contribuições de intelectuais latino-americanos que, ao tecer reflexões
de(s)coloniais dentro deste assunto, ampliam as possibilidades de compreensão sobre o
sujeito artista e a arte, a partir da América Latina.
Para compor nosso estudo, apresentamos neste capítulo as reflexões de três autores
de(s)coloniais latino-americanos que lançam seu olhar sobre os/as artistas e as artes. São
eles: o antropólogo, pintor e investigador afro-colombiano Adolfo Albán Achinte (2009,
2017); o historiador literário brasileiro Alfredo Bosi (1986; 1992); e o filósofo argentino
Enrique Dussel (1997).
Observamos que os intelectuais supracitados apresentam várias características para
pensar as possibilidades da arte, do fazer artístico e dos/as artistas como re-existência. Para
esse capítulo, destacamos as seguintes: a criatividade, a construção simbólica da realidade,
a relação com o tempo, a sensibilidade, o lugar de reflexão crítica, a mediação social, a
inteligência e dedicação no fazer, o movimento de libertação, e o registro das memórias de
um povo. Assim, essas características são trabalhadas, no decorrer deste texto, de acordo
com as perspectivas de cada autor, algumas vezes consonantes entre si, outras mais
específicas do olhar de cada um deles.
A sociedade industrial acelerou o tempo ao seu ritmo, subjugando os ritmos
temporais naturais do sujeito, sendo substituído, na consciência humana, pelo tempo da
mercadoria. Para Ecléa Bosi (2003), a prioridade dada à manutenção da produção e do
consumo, faz com que os tempos de cultivar outras relações sejam “esmagados”. Os
registros das memórias, das vivências, o resgate dos tempos vividos em meio a esta
vertigem mercantil, são formas de tocar a essência, o que fica. Albán Achinte (2017)
registra que, em meio às lógicas culturais hegemônicas, algumas características da arte
nutrem a possibilidade da submersão dos sujeitos dessas "profundezas sociais", o que vem
ao encontro com a proposta do criar e do construir de(s)colonial.
A ação artística é vista em sua potência de construção de um espaço de vida distinto,
“fora da norma” moderna, estável e racional, e que oferece ferramentas para manter o que
41

não é negociável com o sistema: a dignidade. Para Albán Achinte (2017), este fazer
diverso, dentro e fora das instituições, com outros ritmos, inclui o artista, através do seu
trabalho, como parte das pedagogias, práxis e estéticas de re-existência pela visão
de(s)colonial, para alcançar novos lugares e lógicas “outras” para o ser e estar no mundo.
Em um movimento para humanizar a si e ao coletivo, e não deixar seu corpo e subjetividade
serem coisificados. O autor direciona suas contribuições partindo de uma visão sobre a arte
que vai além da produção de objetos artísticos, descrevendo-a como um espaço de reflexão
permanente em torno das desigualdades sociais, dilatando os cenários de discussão em
torno das violências e autoritarismo do sistema moderno-colonial.
Isto posto, percebe-se que o/a artista tem a opção de ocupar um lugar de reflexão
dentro do sistema, onde reconhece-se alguns traços formadores da cultura moderna que, de
acordo com Bosi (1992), conferem à arte, à filosofia e à ciência, a possibilidade de resistir
às pressões da estrutura dominante, em diferente contextos. Sendo uma possibilidade, não
se refere a todos os tipos de produções artísticas.
Nesse sentido, Camintzer (2011) considera que o lugar do artista, pode promover
distintas interpretações sobre sua ação perante a sociedade. E para isso também é preciso
refletir que lugar ocupa, e como sente que esse lugar é interpretado pelos outros à sua volta.
Como um trabalho de comunicação constante, a responsabilidade social do artista como
comunicador, está também vinculado ao público a que se destina. Com responsabilidade
sobre seu trabalho, e sobre a mensagem que constrói, o artista tem condições de especular
e produzir obras sobre relações e temas que não são possíveis noutras áreas do
conhecimento.
O ato de re-criação da realidade, na transformação que o olhar do artista produz,
afeta o seu entorno e a si (ALBÁN ACHINTE 2017), aproximando a construção criativa e
crítica do ato criador a um ato político e de registro das memórias de um tempo (BOSI,
1992). Considerar a potência da arte para a de(s)colonialidade, e as características do
trabalho artístico vistos em sua sensibilidade para a crítica e transformação, demonstra que,
de certa forma, o lugar do artista no sistema moderno-colonial ocorre por vias distintas, em
muitos casos. Bosi (1992) ressalta que a divisão social do trabalho tem um tempo social
específico, acelerado e com ênfase no tecnicismo, enquanto o fazer artístico está numa
outra dinâmica de tempo, fazendo parte do rol dos conhecimentos que não são tão
valorizados na racionalidade hegemônica. A contribuição ofertada nesse tipo de trabalho
não representa a mesma velocidade de técnicas e tecnologias exaltadas nesse sistema,
42

sendo uma contribuição distinta, por estar na dimensão dos tempos corporais da
imaginação e da sensibilidade.
Refletindo sobre o tempo distinto nessa sociedade atual, Albán Achinte (2017,
p.139) apresenta uma opção, que nomeia como “a decolonialidade do tempo ou a estética
da lentidão”. Um conceito que evidencia a narrativa sobre o tempo que também foi
colonizada pelo projeto civilizatório moderno-colonial do desenvolvimento, e que ocorre
em três dimensões: a negação do passado, a rentabilidade do tempo no processo produtivo
e a concepção ilimitada de desenvolvimento de exploração da natureza. A dinâmica destas
três dimensões altera a memória do sujeito, disciplina seu corpo pelo horário laboral, refém
de uma constante atividade produtiva do tempo presente e de um passado suprimido: a
produtividade se torna o sentido de sua existência. O paradoxo se instala no momento em
que o tempo é vendido ao desenvolvimento do capitalismo e ao sujeito não resta tempo
para ele mesmo, numa dinâmica onde “o tempo é ouro” para o sistema mas, para si mesmo,
“não tenho tempo”.
A lentidão apresenta-se como uma estética de(s)colonial, um contra-sentido do
aceleramento do projeto globalizador, ao questionar os ritmos impostos e de lembrar que
o ato de in-surgir se alarga quando se dá tempo para o pensar. De acordo com Albán
Achinte (2017), o ato reflexivo da lentidão pode ser ilustrado na geração de espaços de
ócio produtivo, de um tempo dedicado para a análise da realidade, na organização de
processos que demandam tempo, atos nos quais a arte desempenha um papel fundamental.
Essa dinâmica da lentidão atua como uma forma da memória ser re-configurada, através
do tempo necessário para conceber um pensamento crítico, um repensar-se sujeito nesse
tempo e nessas sociedades, com tempo para relembrar o que se passou e a imaginar como
quer ser.
Nessa dinâmica temporal, ocorre o ato criador, característico no trabalho do artista,
conectado com o existir, com o re-aprender a viver, a retomar o lugar de sujeito perante a
lógica instaurada na narrativa ocidental, como explicita Albán Achinte (2009):

El acto creador es pedagogía de la existencia, en tanto y en cuanto debe desatar


los nudos que la narrativa occidental afincó en cada uno y cada una de
nosotros/nosotras, y quizá reproducimos con la inconsciencia de no saber que
cuando el na escuela, el hogar o cualesquiera otro espacio sociocultural
abogamos por la certeza, no estamos más que construyendo miedos que nos
atrapan en la maravillosa jaula de sus propias imágenes fantasmales. Enfrentar
los miedos es trabajar del lado oculto de la presunción de estabilidad y
equilibrio, es adentrarnos en las aguas tormentosas de la auto-negación que
impuso el discurso de la lógica, que nos privó de la experiencia de vida
(ALBÁN ACHINTE, 2009 p. 450).
43

Os medos dos fantasmas criados na presunção da estabilidade econômica e


emocional, do discurso da racionalidade e do capitalismo, se multiplicam a cada passo que
o sistema distancia o sujeito da vida. Nesse sentido, uma das características vinculadas ao
fazer artístico, a criatividade, se apresenta como ferramenta de(s)colonial, como pedagogia
para desaprender e reaprender, sem restrições nem humilhações, e permitir a imaginação
se expressar, ao deixar descansar a rotina, como descreve Albán Achinte:

Crear o ser creativos no es más que hurgar en las profundidades de nuestro


propio ser desde donde afloran realidades que nos interpelan e interpelan
nuestras propias realidades; es darnos la oportunidad de dejar descansar la
rutina para enfrentar el echo de permitirle a la imaginación que se pronuncie a
favor de nuestra propia subjetividad (ALBÁN ACHINTE, 2017, p. 36).

O ato criador, ao permitir a expressão da imaginação em favor de nossa


subjetividade, se coloca como força de movimento na arte de re-criar e re-pensar,
criticametne, a realidade. O autor supracitado destaca, ainda, que o trabalho criativo a
partir do nosso imaginário de emoções sem limites pré-estabelecidos, se converte em “una
posibilidad de asomarmos a otras formas de existir” (ALBÁN ACHINTE, 2017, p. 35).
Uma provocação, a partir da potência da criatividade como uma pedagogia emancipatória,
um exercício de existência. Em um sistema em que a dominação colonial teve como base
a imposição de culturas, línguas e modos de se expressar dos colonizadores, negando e
silenciando os povos locais, esta ferramenta é de grande valia para o enfrentamento das
dinâmica de dominação e exploração ainda presentes nas colonialidades do poder, ser e
saber (QUIJANO, 2002; LANDER, 2000; MALDONADO-TORRES, 2007).
Na maneira em que o sujeito artista se relaciona com o mundo nessa prática
reflexiva, se constrói o sentido do artístico, pela sua rede complexa de significações, de
distintos sistemas simbólicos, das relações sociais, das relações econômicas e culturais,
somadas às vivências pessoais de quem realiza o trabalho (CAMNITZER, 2000 in
ACHINTE, 2017).
O sujeito artista, ao sentir o seu entorno de diferentes maneiras, como um mundo
dentro e fora de si, produz atos perceptivos diferenciados sobre si, sobre a sociedade e
sobre o mundo, expressos na pluralidade de linguagens artísticas possíveis. A expressão da
consciência poética é uma construção, como afirma Bosi (1986):

O papel da linguagem não é exteriorizar um conteúdo ideológico prévio, uno, já


pronto, feito e perfeito. Não. A consciência poética constrói uma objeto
44

semântico, o poema, a partir de uma situação já interiorizada, sempre complexa,


e dotada, em geral, de uma “atmosfera” (afetiva, tonal); mas os seus perfis, os
seus aspectos particulares, irão se diferenciando à medida que o artista sondar a
própria memória e der contorno e relevo à sua intuição (BOSI, 1986, p. 60).

As escolhas, afetos e memórias do/da artista compõem sua expressão. Isso perpassa
as sensações que experiencia. No entanto, para Bosi (1992), o mundo das sensações, tão
próprio da arte, nem sempre tem sido compatível com o modus operandi da sociedade
moderna ocidental. O presente, nesse sistema, é visto como a potencialidade de futuro, e a
função da produtividade é acentuada, exercendo um domínio sobre as pessoas e sobre a
matéria.
É possível observar reflexos das tensões e contradições do projeto moderno-
colonial, que converteu o não-ocidental em o “outro”, o diferente e exótico, e assim implica
na existência de uma arte que corresponda ao moderno, seguindo as ações em prol da
racionalidade hegemônica estabelecida geopoliticamente. Esse processo converteu a
América Latina, segundo Albán Achinte (2017), em um receptáculo de tendências
universalizantes da arte, seguindo os modelos de “países desenvolvidos” europeus e norte-
americanos. Um contexto que impede a valorização e reconhecimento da arte latino-
americana em seu universo próprio de produção e criação.
Frente ao exposto podemos afirmar que esse contexto, protagonizado pelo projeto
moderno colonial, dificulta a valorização e o reconhecimento da arte latino-americana e,
por consequência da/do artista, em seu universo próprio de produção e criação. Gómez
(2019) destaca que houve um “branqueamento” da estética, do mundo do sensível, criando
uma “geo-estética” privilegiando somente representações consideradas e reconhecidas
como da “alta cultura”, da etno-classe branca, em sua construção do projeto civilizador. A
relação com as expressões dos colonizados historicamente foi relacionada ao não-humano,
de bárbaros, de artesanatos, de utensílios, de mitos, não-originais, feios ou de mau gosto.
De acordo com Albán Achinte (2009), na dinâmica do sistema mundo moderno-colonial
artistas que têm em seu fazer o trabalho artístico, mas com histórias e trajetórias distintas
da racionalidade hegemônica – como por exemplo os indígenas, afrodescendentes e
campesinos - tiveram sua arte transformada em artesanato para turistas, expressões
folclóricas ou exóticas, tornando-as manifestações do passado ou de baixo valor estético.
Ao compreendermos que a arte se faz, como um sistema de representar, interpretar,
simbolizar, imaginar, compreender e problematizar o mundo, Albán Achinte (2009) afirma
que todas as expressões artísticas teriam que estar ocupando o mesmo espaço. Nesse
45

sentido, as tensões existentes em relação a real valorização da arte latino-americana, que


vem ocorrendo de diferente maneiras (desde o campo filosófico ao mercadológico), nesses
cinco séculos de sociedade moderno-colonial, tem tomado outras formas, com movimentos
populares, sociais e culturais, onde a força da arte local, desde as expressões de povos
originários até os artistas latinos contemporâneos, têm contribuído no giro de(s)colonial e
na busca de superação dessa relação. Um dos exemplos dessas conquistas são as exposições
de artes desses povos, em grandes museus nos últimos anos. Tal como vem ocorrendo no
Museu de Arte de São Paulo Assis Chateubriand (MASP), que em 2017 iniciou um projeto
de longo prazo intitulado “Histórias indígenas”, com uma sequência de atividades e
seminários com o objetivo de “apresentar e discutir a riqueza e a complexidade de materiais
indígenas e culturas imateriais, suas filosofias e cosmologias, além dos desafios e das
possibilidades de trabalhar com esses campos, sobretudo no contexto de um museu.”
(MASP, 2020, p. 1) O projeto contempla outras ações, sempre com a participação de
artistas, teóricos e curadores de diferentes cenários e perspectivas, com encerramento
previsto em 2023. É importante destacar que esse é apenas um dos exemplos perante um
cenário de crescimento do alcance desse reconhecimento e valorização.
O pensamento de(s)colonial reclama pela valorização justa e real destes
conhecimentos, e o faz através do resgate das histórias, memórias e culturas dos sujeitos
que foram silenciados e negativamente visualizados neste processo de inferiorização
moderno-colonial. Albán Achinte (2009, 2017) reconhece nas expressões artísticas latinas
o seu papel decolonizador, como parte das estéticas e pedagogias de re-existência,
indicando a necessidade de validação dos conhecimentos produzidos fora da lógica
hegemônica, da importância do lugar na produção destes saberes que envolvem a
sensibilidade, a criatividade, o coletivo, o tempo e o pensar subalterno. A pluralidade em
que os artistas estão inseridos, contribui para o movimento de ir além da “razão moderna”,
e isto não é exclusivo somente sobre o fazer de povos originários, pois afeta a todos os
sujeitos que estão sob as colonialidades do ser e do saber, que se reproduzem na
subjetividade e intersubjetividade da sociedade. Para Albán Achinte (2006), é preciso
lembrar que há um mundo de cores e sensações, além da razão e do entendimento.
Essas desvalorizações ocorrem inclusive por categorizações de tipos de expressão
artística, dentro da lógica moderno-colonial, afetando várias áreas do trabalho com artes.
Bosi (1992) descreve que para isso, são usadas formas de nomear os trabalhadores dessa
área, como em uma definição de “níveis” de importância, onde alguns são considerados
“artistas” (de cultura erudita, belas artes…), outros como “folclóricos”, “primitivos”,
46

“populares”, “artesanais”. Da mesma forma, o autor indica que a cor da pele, as etnias, as
descendências e as religiões são indicativos de inferioridade. Por isso o espaço do/da artista
que não é “enquadrado” nas categorias dita superiores, tem sua identificação com práticas
de resistência (cuidar, as vezes é resistência, às vezes re-existência - padronizar ou explicar
porque usa das duas formas), como reflete Bosi (2007), analisando algumas produções
poéticas brasileiras:

Continuo pensando que a ideologia dominante reduz os signos dos seus vários
discursos a um grau alto de abstração retórica, cujo fim é persuadir o interlocutor
a aceitar os princípios que regem o status quo, maquiando, por exemplo, as
iniqüidades do capitalismo ou a opressão de um determinado tipo de estado
tecnoburocrático. A poesia responde, de formas diversas, a esse rolo compressor,
contemplando momentos singulares e irredutíveis do cotidiano, revivendo
instantes epifânicos do passado tornado presente, reelaborando generosamente
mitos de liberdade ou, por via da negação, exercendo o poder de sátira ou de
humor com que desmitifica os pseudo-argumentos da ideologia. Os exemplos
felizmente não são poucos, e cito apenas aqueles poetas maiores a que dediquei
alguns escritos: Leopardi, Ungaretti, Montale, Drummond, Cabral, José Paulo
Paes e Ferreira Gullar (BOSI, 2007, p. 286).

Os exemplos citados da poesia brasileira, são uma parte da vasta diversidade de


linguagens artísticas latino-americanas, que encontram as brechas no sistema imposto e
inferiorizante, e expõe aquilo que está “maquiado” e oculto na naturalização das relações
desiguais de poder. Bosi (1992) considera que a arte compartilha esta possibilidade de
reelaboração e resistência com a ciência e com a filosofia, nas perspectivas que se colocam
como ferramentas de enfrentamento às pressões estruturais dominantes, de acordo com o
contexto que vivenciam. O autor reflete que, pelo artista, as vivências da realidade social
têm condição de serem registradas, marcando as raízes de um povo que resiste pelo registro
das mediações simbólicas, pelo gesto, rito, dança, traço, canto, pela fala que invoca e a fala
que evoca. São atos que sustém a identidade de comunidades, e que tem como um dos seus
principais meios de manutenção e difusão a cultura popular. Estar na posição de mediação
artística e simbólica, dá ao artista um lugar que é afetado pela sociedade e o afeta
concomitantemente, e por ser um trabalho de registro de memória, suas obras podem
continuar afetando dentro do tempo, independente da forma: seja por uma música sacra,
uma pintura surrealista ou uma dança afro-brasileira, por exemplo.
Dussel (1997) identifica exemplos de ação das estéticas e pedagogias de re-
existência, dentro do processo de inferiorização promovidos pela colonização, que podem
ser encontradas na resistência da arte local, através de expressões registradas em obras
religiosas. O autor as denomina de estética teológica de libertação ou como arte do
47

oprimido. As artes sacras com base ibérica e presentes na América Latina têm em sua
construção, em muitos casos, mãos de artistas locais, indígenas evangelizados, mestiços,
escravos, o que promoveu algumas adaptações nas imagens de santos, na arquitetura e na
música. Ainda segundo o mesmo autor, nas obras dos “opressores cristãos” (p.166), estão
presentes as expressões artísticas dos oprimidos. Observa-se em músicas e canções
populares religiosas, de como a realidade das classes oprimidas era apresentada de forma
triste e chorosa, tal como sentiam-na. Podendo ser reconhecidas como uma expressão
artística religiosa da realidade, ou, para alguns, representam uma trágica resignação à
opressão.
Mais uma vez, como também observado nos estudos de Albán Achinte (2009, 2017)
e de Bosi (1986, 1992), há a expressão artística reconhecida pelo seu papel de resistência
cultural, dos povos colonizados e oprimidos pelas ações constantes de aculturação e
exploração. Mesmo que no caso exemplificado sejam feitas de forma velada, como
descreve Dussel:

Esta arte dos oprimidos é expressão da miséria, e muito mais, é manifestação de


protesto e de esperança de libertação. No fundo do messianismo popular latino-
americano (tão característico no sertão brasileiro com seus santos, profetas e
messias, perseguidos e assassinados por policiais e até por párocos, em outros
tempos), existe uma autêntica potência produtiva, criativa, também artística, que
nos revela o potencial libertador histórico dos pobres (DUSSEL, 1997, p. 168).

É com essa potência produtiva, criativa e artística que o sujeito artista mantém
constante diálogo com a realidade cotidiana, e assim vivencia seu lugar na sociedade, junto
a seu povo. Muitas das expressões que o autor relaciona ao movimento para libertação,
estão reunidas no arcabouço artístico da cultura popular, onde valorizam os aspectos de
criatividade, inteligência e produção do artista, contribuindo no resgate e manutenção da
memória artístico-cultural de cada região.
Dussel (1997), ao se referir à produção artística, ele confere à ela um perfil próprio,
dentro do rol de atos humanos produtivos, onde reconhece-se (em sua maioria) a ligação
da classe social do artista com o ato que efetua. Partindo dessa concepção, o autor expõe,
na história latino-americana, a exclusão dos artistas que não eram da burguesia, de estética
europeia, dos estilos impostos trazidos pelos colonizadores, ou simplesmente por serem
expressões locais e próprias dos povos originários ou escravos. Tal distinção tem sofrido
algumas alterações nas últimas décadas, porém ainda é possível encontrar os indícios da
permanência dessa relação de poder e de desprezo em certas áreas de estudo e crítica
48

relacionados à arte e estética, no entanto, há um crescimento de movimentos que


promovem mais abertura, problematizando o tema. Um desses movimentos está no
pensamento de(s)colonial, como afirma Albán Achinte (2017), no qual é invocada a
necessidade de valorização do que foi feito pelos nossos povos, como parte da nossa
história e presente. Propõe-se, assim, um olhar de reconhecimento das práxis sensíveis de
representação e significação do que se é e do que se quer ser, recuperando o direito do
sujeito ser em seu próprio conhecer - do entorno e de si -, dentro do sistema moderno-
colonial.
As obras artísticas perpassam a relação estreita que o sujeito artista tem com o
mundo e com seus movimentos internos, em um constante sentir, pensar e figurar o que
vivencia ou observa. Todavia, para Bosi (1986), tais registros não são no sentido literal, de
“contar a história”, e sim representações a partir das vivências e ideologias de quem as
registrou artisticamente (mesmo que de vivências oníricas). A sua ótica expressa nas telas,
letras, ritmos, formas, melodias, denuncia a presença historicizada de quem a faz, de algo
que encontra no mundo (interno e externo) que o transcende e o fascina. A história, de certa
forma, penetra na mente do artista, e os conceitos de “fator interno” e “fator externo” se
misturam na composição da obra. O que se vê é a perspectiva do autor, culturalmente
qualificada.
E a partir deste motor criativo, a de(s)colonialidade vê a possibilidade de que o
sujeito tenha condições de confrontar-se com o contexto em que se encontra envolvido, e
consigo mesmo, como afirma Albán Achinte:

Si bien el arte permite que el sujeto se desarrolle plenamente en sus capacidades


perceptivas, reflexivas y productivas, es necesario construir un sentido del arte
capaz de generar un pensamiento crítico frente a nuestras realidades
contemporáneas, pero igualmente frente a nuestros pasados posibles de ser re-
visitados y resignificado. (ALBÁN ACHINTE, 2017, p. 84).

O desenvolvimento de capacidades produtivas, reflexivas e perceptivas no artista,


lhe conferem condições de re-criar a realidade, num sentido de construção crítica e criativa
perante a realidade, o favorecendo a re-pensar o cotidiano. Essa ação o afeta e afeta o seu
entorno sociocultural. É neste processo, ainda de acordo com Albán Achinte (2017), que
se identifica um dos movimentos de emancipação da arte, através do desenvolvimento das
capacidades reflexivas, produtivas e perceptivas, constituintes de um pensamento crítico
frente à sociedade contemporânea, à memória do passado a ser re-visitado e re-significado.
49

A realidade social de cada época, com seu conjunto de valores e significações, e


seus complexos superestruturais, são universos de valores ativos e presentes no momento
da criação do artista. Partindo desse contexto, Bosi (1986) evidencia que, para acontecer o
ato artístico, há a constante presença da razão e da inteligência na sua elaboração. Cabe ao
sujeito utilizar a inteligência, as técnicas que domina e a sensibilidade, para realizar seu
trabalho, como alguém que habita e está presente no mundo percebido, uma presença ativa.
Resolvida de mil formas, a tensão entre a percepção de estruturas profundas e o espetáculo
do mundo, está na gênese das obras individuais, além de somente o estilo da época. Cabe
ao artista a reflexão e subjetivação coerentes dos dados da sua visão sobre a vida social e a
natureza, visão fecunda e construída em contemplação de si e do mundo.
Bosi (1986), reforça o papel de dedicação do artista na elaboração e criação do seu
trabalho, e da sua inteligência para realizá-lo. Reitera esta especificidade inclusive para
superar o reducionismo em que comumente os artistas são vistos e descritos, como seres
de somente inspiração, transcendência ou de simples imitação do natural. Ao observar um
trabalho artístico é possível perceber que as formas ali presentes não se dão de forma
mecânica, seja nas alterações e cuidados nos versos e falas, nas nuances de cores e sombras,
nas pequenas alterações de uma melodia, e outros exemplos similares das demais áreas
artísticas. O autor observa que, independentemente dos períodos da arte que são estudados
na história da arte no mundo, percebe-se um denominador comum relacionado ao princípio
de ser obra de uma percepção do real histórico, psicológico, mímesis e forma cognitiva.
Além da inteligência e da aplicação de técnicas, dos aspectos culturais, históricos e
políticos do fazer artístico, há a relação sensível do artista com o mundo. A presença e uso
da sensibilidade é uma constante para esses sujeitos, como visto anteriormente, o que o
afeta na sua vivência, que, em muitos casos, se dá de forma distinta de outros profissionais.
Dussel (1997) afirma o espaço entre fazer parte do mundo, mas conseguir também olhar
para ele, intuir e expressar através do que sente, está na base de muitas produções artísticas.
Segundo Albán Achinte (2017), a possibilidade do artista e dos atos criativos
trazerem novos ângulos sobre o mundo e sua história, sobre a memória, o tempo e a
sensibilidade na sociedade urbana, desvela as estéticas que se conectam com a vida. Se a
inversão do tempo proporciona a elaboração da criatividade, a arte pode ser cogitada para
contribuir como processo de compreensão e investigação nas dinâmicas sociais.
Concentrando-se no criar a possibilidade de representar e inventar a si, nas condições
produzidas a cada instante da vida, ao mesmo tempo que descentraliza o olhar para ver
também o que tem sido ocultado sistematicamente em nossas sociedades.
50

No mesmo sentido, Bosi (1986), fala sobre o caráter plural presente no trabalho do
artista:
Hoje, a fusão, tantas vezes dissonante, de grito e maneira poderá levar a uma
reconsideração do caráter plural do trabalho artístico, que passa pela mente, pelo
coração, pelos olhos, pela garganta, pelas mãos; e pensa e recorda e sente e
observa e escuta e fala e experimenta e não recusa nenhum momento essencial
do processo poético (BOSI, 1986, p. 71).

A sensibilidade poética e crítica nos estudos dessa pluralidade ligada ao fazer


artístico, conduz à valorização e respeito às potencialidades universais da arte, sem deixar
de delinear o caráter único de cada obra, e do papel do artista em sua historicidade local.
As potências no fazer artístico e nas características e possibilidades do artista
identificadas pelos autores presentes neste capítulo, delineiam uma presença ativa desses
sujeitos em sociedade. Perante o projeto civilizatório moderno do desenvolvimento, que
minoriza áreas do saber que funcionam em outras lógicas, aqueles que trabalham com a
arte também sentiram os efeitos. No entanto, percebe-se no trabalho do artista, ainda,
condições de re-existência, pela expressão, registro sócio-histórico da memória e
sensibilidade na forma de acessar e difundir conhecimentos. A criatividade e inspiração do
sujeito artista lhe dá ferramentas para pensar e refletir o desenvolvimento, e sua relação
com o tempo convida a um repensar as velocidades impostas no sistema moderno-colonial
e no relacionar-se em sociedade. Ao considerar a arte como potencial pedagogia
de(s)colonial, como práxis de re-existência, propõe-se como um caminho possível para
contribuir com outras maneiras de desenvolver que, em muitos casos, podem diferir da
racionalidade hegemônica moderna.
A partir desse conjunto de descrições sobre algumas das características vinculadas
ao sujeito artista pelas contribuições destes três autores de(s)coloniais, teremos condições
iniciais de transcriar, escrever-pensar as histórias de vida dos dois artistas convidados nesta
pesquisa.
51

3. DO REMEMORAR: UM PERCURSO METODOLÓGICO COM HISTÓRIAS


DE VIDA

O percurso metodológico desta pesquisa, é apresentado neste capítulo na seguinte


organização. A primeira parte apresenta um panorama geral da pesquisa e das escolhas
metodológicas vinculadas aos objetivos específicos propostos. Na sequência, são
apresentados os sujeitos da pesquisa, o lócus e as características de cada etapa da pesquisa
realizada.
Este trabalho é caracterizado como uma pesquisa qualitativa de história de vida
(BOSI, 1987, 2003; GILL E GOODSON, 2015), que reconhece a complexidade presente
nos encontros humanos e incorpora, ao processo de pesquisa, a subjetividade humana.
Considerando que esse estudo orienta-se teoricamente a partir do pensamento
de(s)colonial, que versa sobre a valorização do sujeito e de sua participação ativa na
sociedade, a metodologia escolhida preza por estratégias que favoreçam esse campo de
significação, com procedimentos que dialoguem com essa proposta de construção
epistêmica.
Este percurso metodológico foi construído para atender ao objetivo geral de
compreender, a partir das histórias de vida de artistas plásticos residentes em Pato Branco
- PR, como experienciam o seu fazer artístico, considerando as colonialidades do poder, do
ser e do saber e as práxis de re-existência. Nesse sentido, as fases da pesquisa se dão em
uma sequência que dê condições para atender esse objetivo.
Iniciou-se com a fase exploratória de pesquisa bibliográfica, quando foi delimitado
o problema, o objeto e objetivos, assim como a escolha do marco teórico e dos instrumentos
metodológicos de coleta e análise (MINAYO, 2002). Esse momento inicial possibilitou
fundamentar a de(s)colonialidade e suas contribuições sobre o tema do trabalho e do
desenvolvimento presentes no primeiro capítulo, e na construção do segundo capítulo
teórico, onde buscamos descrever características vinculadas ao sujeito artista a partir de
intelectuais latino-americanos (ALBÁN ACHINTE, 2009, 2017; BOSI, 1986; 1992;
DUSSEL, 1997). Nessa etapa foram pesquisadas as produções acadêmicas do pensamento
de(s)colonial latino-americana que estabelecem um diálogo atualizado entre a teoria e a
temática proposta, atendendo ao primeiro objetivo específico: refletir sobre a sociedade
moderno-colonial e o papel da arte e do/a artista, a partir das contribuições de autores
de(s)coloniais latino-americanos.
52

Após essa fase inicial, procedeu-se para a etapa proposta no segundo objetivo
específico: registrar as memórias das vivências de dois artistas plásticos, na sua relação
com a sociedade. Para o registro das histórias de vida, descritas no capítulo quatro, foram
realizadas entrevistas em profundidade com os sujeitos participantes (MINAYO, 2002;
RICHARDSON, 2014).
As histórias foram trabalhadas a partir da análise narrativa, técnica indicada para
pesquisas de histórias de vida (NOGUEIRA et al., 2017; GILL e GOODSON, 2015). Essa
parte é destinada para atender ao terceiro objetivo específico: Identificar nas histórias de
vida de dois artistas plásticos como vivenciam ser e estar no mundo e como foram
construídos seus modos de ser, fazer e sentir através das experiências vivenciadas no
contexto da sociedade moderno-colonial. A análise narrativa compõe o capítulo cinco,
onde foi promovida uma leitura dos episódios rememorados e reflexões trazidas pelos
artistas, a partir das contribuições de autores de(s)coloniais sobre o sistema moderno-
colonial e sobre os/as artistas.
Nas próximas páginas serão descritas cada uma dessas etapas do percurso
metodológico proposto.

3.1 De quem são as histórias: conhecendo os sujeitos participantes

Quando o estudo tem como método histórias de vida, que se propõe a captar a
interpretação que a pessoa faz da sua própria vida, o número de sujeitos na amostra
geralmente é pequeno, como apontam Bogdan e Biklen (1994), dado o debate e a análise a
que se propõe. Dessa forma, o recorte metodológico proposto nesta pesquisa foi o de dois
participantes.
Os narradores desta pesquisa são duas pessoas idosas, uma mulher e um homem,
reconhecidos na sociedade patobranquense pelas suas mãos artísticas, olhares sensíveis e
mente conectada com a arte e a cultura na região. Ambos são aposentados, no entanto
continuam trabalhando diariamente com artes plásticas em seus ateliês na cidade. A seguir
apresentamos uma breve descrição desses participantes.
Jurema Edy Pereira, 71 anos, natural de São Carlos – SC, reside em Pato Branco
desde 1960, quando se mudou para a cidade com seu marido, recém-casada. Os trabalhos
manuais fazem parte da sua história desde a infância, quando iniciou a aprender bordados
e outras habilidades manuais no colégio de freiras que estudou. E também relata a herança
dos traços bem delineados de seu pai, registrados em seus trabalhos como agrimensor. A
53

pintura e outras aprendizagens artísticas foram aprendidas em cursos e aprimoradas na


prática e no ensino, como professora de artes em seu ateliê (figura 2). Trabalha com pintura
em tela, tecido, acrílico, porcelana e mdf, e também com mosaico, bordados, costura e
patchwork. Foi professora municipal de magistério e concursada pela COPEL por poucos
anos. Foi uma das fundadoras da Câmara Júnior de Pato Branco e da Academia de Letras
e Artes de Pato Branco (ALAP). Recebeu moção de aplauso na Câmara de vereadores em
2001, pelo trabalho junto à Câmara Junior. Organizadora e apoiadora de eventos de arte e
cultura na cidade e região. É casada, mãe de três filhas, avó de três netos e uma neta.

Figura 2 - Jurema Edy Pereira

Fonte: Retirada do perfil da artista no Facebook 1

Sinésio Pereira Chueiri, conhecido como Kalu Chueiri, 70 anos, natural de Ibaiti -
PR, reside em Pato Branco desde 1974. Morou também em outras cidades, algumas na
região do sudoeste paranaense. Os trabalhos manuais e a arte fazem parte da sua família,
sendo filho de pai artesão, fabricante de sapatos, e irmãs musicistas. Considera-se escultor
autodidata, e tem em sua trajetória de aprendizagem, mestres que encontrou em pequenas

1
Disponível em: <https://www.facebook.com/JuremaEdy>. Acesso em 10 ago. 2020.
54

oficinas de marcenaria ou em cursos que buscou no decorrer do tempo. Professor de


educação física aposentado, da rede estadual, fez pós-graduação lato sensu na área de arte
educação e docência no ensino superior, atuando por um período curto na área. Na sua
carreira artística é autor de numerosas esculturas e monumentos (figura 3), na região
sudoeste e norte paranaense. Grande parte no município de Pato Branco. Os principais
materiais que utiliza são resina, madeira, ferro, mármore, outros tipos de pedra e bronze.
Trabalha em seu ateliê na cidade, na elaboração de suas obras. É membro da ALAP desde
a sua fundação, participa de eventos, de oficinas e cursos como ministrante. Recebeu
diversos prêmios pelos seus trabalhos artísticos e em 2009 recebeu o título de cidadão
honorário pela Câmara de vereadores da cidade de Pato Branco. É divorciado, pai de duas
filhas e dois filhos, avô de três netos e uma neta.

Figura 3 - Kalu Chueiri

Fonte: Retirada do blog Impressões2

Estes artistas foram escolhidos quando pensadas as referências na/da cidade, e


depois a aproximação foi feita via contato telefônico, por intermédio de pessoas de
convívio próximas dos artistas. O primeiro encontro presencial ocorreu em um evento

2
Disponível em: <https://silvinhabl.blogspot.com/2013/03/a-arte-de-transformar-conceitos-em.html>.
Acesso em 10 ago. 2020.
55

relacionado às artes no final do ano de 2019, sendo que nessa oportunidade, os dois
puderam esclarecer mais informações sobre o convite feito anteriormente pelo telefone, e
confirmaram o aceite em participar dessa pesquisa.

3.2 Onde acontece essa pesquisa: da cidade de Pato Branco - PR

Esta pesquisa foi realizada em Pato Branco, cidade onde residem Jurema e Kalu.
Está situada na região sudoeste do Paraná, e atualmente tem uma população de
aproximadamente 84 mil habitantes conforme página da Prefeitura Municipal (2021).
Sittilo Voltolini (1966), ao contar sobre as origens da cidade, diz que ela recebeu esse nome
por uma cena vivida por João Arruda, que veio morar com sua família “na margem do Rio
Chopim junto ao barranco de um rio a que deu o nome de Rio do Pato Branco, por ter nele
abatido um pato selvagem em cuja plumagem predominava a cor branca.” (VOLTOLINI,
1966, p. 30).
Muitos “causos” e memórias guardam essas terras, nas margens do Rio Pato Branco
e do Rio Ligeiro, vividos por pessoas de diversas origens, como conta Neri Bocchese (in
FREIRE, CAMPESTRINI e BOCCHESE, 2003):

Assim como a ave da qual a cidade carinhosamente herdou o nome, que sabe
nadar, que sabe caminhar e que sabe também voar, somos um povo que
vencemos as dificuldades das distâncias, do isolamento, no meio dos pinheirais,
dos problemas sociais principalmente os de convívio, dos primeiros tempos da
Colônia Bom Retiro e do alvorecer de Villa Nova.

Somos o índio, que na visão de estadistas do cacique Vitorino Condá e do


Cacique Viri, defendeu estas terras, colaborando para que elas pertencessem ao
Brasil.

Somos o caboclo, como disse Darcy Ribeiro, o primeiro brasileiro, filho de mãe
índia e de pai português. Somos o caboclo defensor da sua terra e da sua família
que aqui precisou de refúgio depois do Contestado. O caboclo que com os seus
ranchos e desejo de vizinhança, foi o primeiro morador de Pato Branco e
responsável pelo primeiro ciclo econômico, o da erva-mate, trabalhou nos
barbaquás dos argentinos.

Somos os gringos, os italianos assim chamados os italianos pelo caboclo, um


povo alegre e trabalhador. Descendentes dos imigrantes italianos do Rio Grande
do Sul, que com pouca terra e terra não muito fértil das regiões acidentadas, outra
vez aventuraram-se e vieram para o Paraná, em busca de dias melhores.

Somos um pouquinho alemães, os imigrantes que com duas paróquias


protestantes, marcam a sua presença de um povo decidido, no cenário cultural e
econômico de Pato Branco.

Somos ucranianos, com presença significativa cultural, econômica, uma


paróquia católica com rito ucraniano. Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, o
56

padre, o bispo e os fiéis da própria etnia. As irmãs ucranianas cuidam do Lar dos
Idosos, mantém a tradição, a língua e a escola Sant´Ana.

Somos poloneses, com famílias tradicionais desde 1910, destacando-se tanto no


campo cultural, bem como no econômico de Pato Branco, levando não só o nome
da cidade, mas o progresso aqui elaborado e produzido para inúmeros países.

Somos também um pouco negros, com a família de Lemes do Amaral,


conhecidos como Pimpão, que, deixando os campos de Palmas, foram
proprietários das terras da Fazenda da Barra. Somos os Pimpão, representantes
do povo que foi pioneiro da humanidade.

Pato Branco não é só um povo. Não traz uma realidade cultural única. Aqui está
a sua grandeza, sabendo conviver e somando as diferenças fizeram da Colônia
Bom Retiro, crescendo com Villa Nova e chegando à cidade de Pato Branco.

Nasceu cristã e franciscana, usando as sandálias de Francisco de Assis, buscando


e acolhendo, sabia unir a todos, que na primeira igreja, com a igreja de São Pedro
Apóstolo, conseguiam esquecer as suas diferenças políticas, sociais e
futebolísticas e serem patobranquenses (2003, p. 153).

Existe uma história de desenvolvimento que é marcada por raízes culturais distintas,
que se encontram em um território comum, permeadas, como observado na descrição
acima, com diferenças raciais demarcadas e com influências culturais religiosas.
Atualmente somam-se outras culturas de diferentes países e regiões do Brasil, formando a
população dessa cidade (figura 4) sudoestina. Com misturas, encontros e desencontros,
essa cultura é construída com marcas de colonialidade e resistência.3

Figura 4 - Pato Branco – PR em 2016

Fonte: Rudi Bodanese / Acervo do Departamento de Imprensa da Prefeitura de Pato Branco 4

3
Sabemos que a história de Pato Branco é fortemente marcada por aspectos coloniais ao que tange a religião,
política e cultura. Acreditamos que essa temática possa ser problematizada por nós em trabalhos futuros.
4
Disponível em: http://patobranco.pr.gov.br/galerias/patobranco/attachment/aereas_credito_rudi_bodanese-
4/. Acesso em 10 dez. 2020.
57

3.3 Do pesquisar: acerca do método de histórias de vida

O método de histórias de vida, originado na década de 1930 na Escola de Sociologia


de Chicago, vem sendo utilizado desde então em pesquisas nas áreas de Antropologia,
Sociologia, Psicologia e áreas afins. O enfoque trazido pelas histórias de vida promove o
reconhecimento da construção social dos significados, pelas influências históricas,
políticas e socioculturais sobre as ações e atividade humana. Esses significados implícitos
nas vidas dos sujeitos, se tornam explícitos quando são narrados (GILL e GOODSON,
2015). Possibilita reconhecer e transformar o contexto vivido em relação aos fatos sócio-
históricos em que os sujeitos estão inseridos, nos quais vivenciam os afetos, poderes e
ideologias. Maria Nogueira (et al., 2017) destacam que a Psicologia contribui ao observar
os atravessamentos sociais presentes na esfera psicológica, registrando-os em sua produção
sócio-histórica.
O rememorar das histórias que tomam forma no ato de narrar, de acordo com
Franciele Clara Peloso (2009) o que contribui na construção de compreensão sobre as
vivências dos sujeitos artistas em sociedade, ao se considerar que no passado há muitas
coisas para serem contadas ao presente. Ao olhar para seu passado, o narrador revisita suas
experiências dos lugares que ocupou no mundo e ocupa agora. A experiência e a memória
se relacionam diretamente com o lugar, onde os sentidos se inscrevem e a vida acontece,
sendo registrados na lembrança (NOGUEIRA et al., 2017). Esse método trabalha com
essas lembranças registradas na memória, e que se inscrevem nos trajetos pessoais de cada
sujeito em meio às relações sociais, como descreve Antonio Chizzotti (2001):

(...) a história de vida procura superar o subjetivismo impressionista e formular


o estatuto epistemológico, estabelecer as estratégias de análise do vivido e
construir-se em método de coleta de dados do homem concreto. No contexto da
pesquisa, tende a romper com a ideologia da biografia modelar de outras vidas,
para trabalhar os trajetos pessoais no contexto das relações sociais e definir-se
como relatos práticos das relações sociais (CHIZZOTTI, 2001, p. 97).

Por esta vertente social das histórias de vida se justifica sua escolha para o presente
estudo das histórias de artistas e suas relações com os lugares que ocupam no mundo
moderno-colonial. A valorização da oralidade, a evocação da memória e seu registro como
metodologia, dialogam com as contribuições de(s)coloniais (ALBÁN ACHINTE (2013),
WALSH (2013), sendo que as pesquisas com história oral têm ganhado cada vez mais
espaço nas produções acadêmicas latino-americanas, em seu potencial teórico e
epistemológico (RIVERA CUSICANQUI, 1987). Como descrito nos capítulos anteriores,
58

a sociedade moderna impõe ritmos acelerados que tornam o tempo de guardar e sentir como
não sendo parte do modo de existir atual. Bosi (2003) registra seu olhar sobre estes tempos
que são subjugados pela sociedade industrial, e se refere à importância de recompor as
histórias, e as possibilidades dos/das artistas em contribuir neste registro.
Assim, para esta pesquisa, julgou-se a escolha do sujeito artista como a mais
adequada, contribuindo com suas vivências e com o recontar delas, para se refletir sobre
ser e existir em sociedade, sobre os lugares neste mundo da velocidade e do presente
contínuo. A aceleração dos tempos, a repetição das máquinas, a competição pelos lucros,
sufocam, de certa forma, a lembrança. Chauí (1987) ressalta que muitas histórias são
oprimidas, desvalorizadas, para dar lugar à vitória contada pelo vencedor, enquanto a
tradição dos vencidos é pisoteada. Esta reflexão dialoga e se aproxima da
de(s)colonialidade do tempo, em contraponto com a velocidade acelerada do processo
produtivo e da concepção de desenvolvimento de progresso ilimitado. O tempo laboral, a
velocidade das máquinas, o projeto de desenvolvimento, enlaçam as lembranças em um
silenciamento, que são atingidas diretamente pelas colonialidades do ser e do saber. De
acordo com Albán Achinte (2017), o recordar dá sentido ao sujeito, ao ser, e os
aprendizados contados do passado constroem as formas de conhecer, saber e aprender.
Para a psicologia social que Bosi (2003) apresenta, o trabalho da memória é sobre
o tempo vivido, significado pelo indivíduo e pela cultura, e isso também é afetado pelo
tempo que se experiencia. Em cada sociedade, cada classe, assim como para cada pessoa,
o tempo flui diferentemente. Neste contexto, a arte de contar histórias também sofre com
os impactos do pensamento moderno colonial no trabalho e nas relações sociais. Como
reflete a autora: “A arte da narração não está confinada nos livros, seu veio épico é oral. O
narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que o
escutam.” (BOSI, 1987, p. 43). Com a memória oral recebendo mais atenção de
pesquisadores, a valorização do sujeito e de sua história toma forma na academia e no
mundo.
As vivências que são compartilhadas pelos narradores, contribuem para a
compreensão de algumas realidades sociais, no entanto, a história de vida coletada não
substitui uma teoria ou conceito da História. Os depoimentos são itens da memória social,
registrados na memória pela experiência individual e, ao evocá-la, se conecta com a
dimensão temporal e com o momento psicossocial da lembrança (BOSI, 2003). No
conceito de Bosi (1987), memória é trabalho:
59

Não há evocação sem uma inteligência do presente, um homem não sabe o que
ele é se não for capaz de sair das determinações atuais. Aturada reflexão pode
preceder e acompanhar a evocação. Uma lembrança é diamante bruto que precisa
ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma
imagem fugidia. O sentimento também precisa acompanhá-la para que ela não
seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição (BOSI, 1987, p. 39).

Para trabalhar com a memória, uma dedicação meticulosa e persistente é requerida,


e os sujeitos participantes de uma pesquisa em história de vida são convidados a realizar
esse esforço cuidadoso de reflexão e localização quando da evocação da memória.
Reconhece-se a função social da memória registrada nas histórias de vida e, como registra
Bosi (2003), é nessa potência que se baseia o método.
Proporcionando um olhar para o subjetivo nas relações, a memória social foi
ganhando espaço no âmbito acadêmico, desde 1970 tendo nas histórias de vida sua
principal aplicação. Na Psicologia, os métodos biográficos vem favorecendo sua inserção
nos campos da teoria social crítica (NOGUEIRA et al., 2017).
Narrar é algo inerente do humano, que permite relatar e refletir sobre as ações
vividas e dar sentido a elas. Uma dimensão que, pelo trabalho da memória, possibilita ao
sujeito a reapropriação de sua história mobilizando-a com a esfera social e se situando no
presente (NOGUEIRA et al., 2017). Segundo Freire (2015), o ato de voltar-se sobre o
passado permite ao sujeito tomar distância do que ocorreu em suas experiências, lhe dando
a oportunidade de procurar as relações com a realidade social e a razão de ser dos
acontecimentos que participou, um ato de curiosidade necessária.
E os participantes da pesquisa, ao revisitarem outras épocas, têm condições de
compreender momentos de sua história, vínculos e a consciência de como suportou
passagens vivenciadas. Esse movimento “traz ao ancião alegria e uma ocasião de mostrar
sua competência. Sua vida ganha uma finalidade se encontrar ouvidos atentos, ressonância”
(BOSI, 1987, p. 40).

3.4 Da escuta: entrevistas em profundidade

Como procedimento de coleta de informações, foram realizadas entrevistas em


profundidade. De acordo com Minayo (2002), esse formato de entrevista visa atender a
função do método de registro das vivências a partir das definições que as pessoas ou grupos
que as experienciaram, lhes conferem. Tem como objetivo favorecer um diálogo que tenha
intensa correspondência entre o participante e o pesquisador, para permitir que
60

pensamentos críticos sejam liberados, o que acontece muitas vezes em tom de confidência,
por isso exige-se um olhar cuidadoso sobre a vivência relatada. Ainda segundo a autora,
nas histórias de vida encontram-se materiais ricos para a análise do vivido e para, a partir
da visão individual, promover uma reflexão da dimensão social.
São características do procedimento de entrevistas em profundidade: um caráter
colaborativo, processual, que presume confiança e um relacionamento mais estreito entre
o entrevistado e o pesquisador. O direcionamento de fala é mínimo, priorizando o fluxo da
entrevista na ordem e sequência construída pelo participante, como descrito por Gill e
Goodson (2015). Nesse sentido, Richardson (2014) afirma que a entrevista em
profundidade também é qualificada do tipo não diretiva, na qual o pesquisador sugere o
tema geral em estudo, não formulando perguntas prévias, e proporcionando tempo e
condições para o sujeito passar pelo processo de reflexão sobre o tema. Para embasar os
encontros desta pesquisa, a pesquisadora utilizou um Roteiro de Temas (Apêndice A) com
alguns pontos considerados importantes para os objetivos propostos.
A entrevista se dá no movimento de um encontro, como reflete André Levy (2001
in NOGUEIRA et al., 2017), quando afirma que o encontro na pesquisa tem uma história
própria, quando uma pessoa aceita confiar sua história ao pesquisador. Esse encontro
envolve interação e afeto, favorecendo a abertura do sujeito para narrar sua história de vida.
Como um método científico que considera a dimensão do vínculo entre pesquisador e
sujeito, é reforçada a necessidade de cuidado nessa relação e se ressalta a importância do
compromisso do pesquisador com a realidade a ser compreendida (SILVA et al., 2007).
Neste tipo de procedimento de pesquisa, Nogueira (et al., 2017) ressalta que a atenção é
direcionada à forma em que a situação foi vivida, e como os fatos e os elementos afetivos
atuais são compostos a partir dessa vivência.
A responsabilidade da pesquisadora também perpassa a dimensão ética perante um
estudo que registra histórias pessoais, tendo como um passo indispensável para a realização
dessa pesquisa a adequação e aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo
seres humanos, para assegurar a segurança dos participantes, como previsto pelo Ministério
da Saúde (BRASIL, 2012). O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em
Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, sendo
aprovado sob número do CAAE: 24196719.3.0000.5547. Seguindo as orientações éticas
previstas neste projeto, os participantes receberam, antes de iniciar as gravações, o Termo
de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e Termo de consentimento de uso de imagem,
61

som e voz (TCUISV) (Apêndice B). Os termos foram assinados pelo participante e pela
pesquisadora, em duas cópias, para então dar início ao registro dos depoimentos.
Foram realizadas duas entrevistas em profundidade com cada participante, que
tiveram duração média de uma hora e meia cada encontro. As entrevistas com o Kalu foram
realizadas em dois momentos distintos. A primeira ocorreu após um evento promovido
pela ALAP no final do ano de 2019, em Pato branco, onde o artista era convidado de uma
mesa redonda. Nesse período ele estava residindo em Curitiba, por isso a entrevista foi
gravada naquele mesmo dia, no local do evento. O segundo encontro foi realizado em seu
ateliê, em junho de 2020, quando já estava residindo novamente na cidade de Pato Branco,
e readquiriu seu ateliê para dar continuidade no seu trabalho. A coleta das histórias de vida
da Jurema ocorreram em seu ateliê, mesmo local onde realiza suas aulas de pintura e
bordado. Foram realizadas no mês de junho de 2020, com 15 dias de intervalo entre uma e
outra.
Nas entrevistas em junho de 2020, devido ao período da pandemia do Covid-19,
foram tomadas as medidas de segurança e higiene apropriadas, conforme orientações das
autoridades e do decreto vigente no município. Foi oferecida a opção de entrevista on-line,
mas ambos os participantes preferiram o encontro presencial, realizados com os cuidados
necessários.
As entrevistas foram gravadas em áudio, acompanhadas de fotografias. A
necessidade de captar imagens se dá pelo fato que o tema, ao envolver a esfera artística, as
falas incluem referências a acontecimentos, obras ou lugares, que, com o registro
fotográfico, compõem o texto da dissertação. As imagens são de diferentes fontes: captadas
por câmera da pesquisadora, enviadas pelos artistas com imagens de seu arquivo pessoal,
ou retiradas de páginas e sites públicos. Além da gravação das entrevistas e captação de
imagens, foi utilizado um diário de campo, para o registro dos achados, das dúvidas, dos
encantamentos e, também, das dificuldades no percurso (BOSI, 2003), assim como para
anotações da pesquisadora pós encontro.
A gravação das entrevistas foi transcrita, e posteriormente organizada nos capítulos
destinados à apresentação das narrativas coletadas, onde são descritas as histórias de vida
dos participantes e análise.

3.5 Do registro: escrita e organização do texto


62

Quando se escolhe trabalhar com pesquisa de histórias de vida, é preciso incluir nos
“materiais” da pesquisadora alguns itens: tempo, atenção e respeito. Esses pontos são
essenciais, desde o início, intensificados no momento da escuta e da construção da
atmosfera adequada para o encontro com os narradores. Como ressalta Bosi (1987, p.46),
“a narração é uma forma artesanal de comunicação”, onde a pessoa que reconta tece o
acontecido, sem a intenção de transmití-lo “em si”, sendo que ela investe sobre o objeto e
o transforma ao narrar. E esta forma de comunicar-se têm sofrido distorções com o tempo,
perdendo-se a faculdade de escutar e o espaço para contar. Pesquisas como esta aqui
proposta, estão sendo algumas das maneiras dessa “forma artesanal” de re-existir, e de ser
re-conhecida também no âmbito acadêmico.
Nesse sentido, também é com um bom tempo de dedicação, atenção com as
informações e respeito com as memórias compartilhadas, que se dá o processo de registro
escrito das histórias de vida e da análise narrativa. As entrevistas em profundidade
realizadas somaram aproximadamente 5 horas de áudio e 86 páginas de transcrição. Relatos
que envolveram cenas da infância em família, caminhos de aprendizagem, experiências
juvenis, escolhas profissionais, formação da família, vivências em Pato Branco e outras
mais, cada um narrando de sua maneira. Além das recordações de etapas da vida, os artistas
também expuseram suas opiniões, sentimentos e reflexões sobre ser e estar no mundo, das
cidades que moraram, das relações sociais, dos sonhos que aos poucos vêm sendo
realizados.
Nos capítulos 4 e 5, estas narrativas são apresentadas em dois momentos: o quarto
capítulo tem como objetivo apresentar quem são Jurema e Kalu e o que contam de suas
lembranças, formando os textos de suas histórias de vida, escritos aplicando a técnica de
transcriação. No quinto capítulo é construída a análise narrativa e, para isso, trazemos
também outros trechos das entrevistas que ainda não apareceram no capítulo das histórias
de vida, mas que envolvem os conceitos de análise propostos, somando-se às vivências já
apresentadas. Neste capítulo o conjunto das informações narradas é apresentado a partir da
leitura feita baseada na fundamentação teórica do trabalho.
Esta foi a maneira que encontramos de trazer o máximo das lembranças que Jurema
e Kalu, gentilmente, nos concederam nos encontros. O convite é para pensarmos,
sentirmos, imaginarmos e refletirmos junto com cada artista as histórias rememoradas.
Como escrevemos acima, o tempo, a atenção e o respeito são essenciais nesse processo,
incluindo o momento da realização da leitura.
63

3.6 Do recontar: sobre o procedimento de transcriação

A escrita das histórias de vida foi feita a partir do processo de transcriação, que de
acordo com CALDAS (1999) é um conceito aplicado aos estudos de indivíduos,
comunidade ou grupos, buscando uma forma possível de tradução da fala para a
textualização, envolvendo a memória, transcrição e interpretação. Indicando uma trajetória
de “procedimentos e o espírito da transformação da fala do interlocutor” (CALDAS, 1999,
p. 01), para a construção do texto.
Nesse formato, buscamos dar cadência à escrita, mantendo-a próxima de uma
história contada pelo(a) narrador(a). Para isso, foram suprimidas as perguntas feotas ao
longo das entrevistas, buscando conservar o ritmo da fala, em um formato adequado à
leitura. Nesse caso vale ressaltar, como o faz Caldas (1999), de que não se trata de um
monólogo, apesar de às vezes parecer por terem sido retirados os elementos do diálogo
travado durante as entrevistas. Seguimos algumas ideias centrais da transcriação presentes
nesse formato de registro, apresentadas por Paiva (1987 in CALDAS, 1999): a) ao
entrevistar, permitir que o(a) narrador(a) fale livremente de sua vida, e deixar que
interprete da sua maneira todas as suas recordações; b) ao escrever, manter o tom coloquial
das falas e uma pontuação que mantenha a entonação, para que o(a) leitor(a) tenha a
impressão de estar ouvindo quem narra; c) retirar as perguntas para que o texto seja mais
fácil de ser lido, de forma corrida, sem pausas do diálogo; d) unir os temas que se separem
no vaivém das respostas e perguntas.
Nesse sentido, no processo das entrevistas, não havia um questionário fechado, e
sim um roteiro de temas (apêndice A) somente para a pesquisadora, que serviu como uma
referência de temas que pensamos importantes de serem abordados para que pudéssemos
atingir o objetivo da pesquisa. As perguntas aconteciam de acordo com o que estava sendo
trazido por ela e ele, então alguns assuntos apareceram em mais de um momento, e na
transcriação foram unidos e organizados seguindo critérios como temporalidade ou temas
afins. Como afirma Caldas (1999), ao reordenar, cortar e remontar, há uma força de
modificação que atua, e que também permite o resultado de um texto em colaboração, um
processo que une as entrevistas, os momentos, as imagens e as histórias registradas nas
páginas das histórias de vida.
64

A opção por essa metodologia foi por sua coesão com a proposta dessa pesquisa,
como identificado na descrição de Caldas (1999, p. 3):

O conceito de transcriação traduz uma ação criativa e uma relação viva entre as
clássicas dicotomias (sujeito-objeto, eu-tu, oral-escrito, documento-
pesquisador) superando-as sem fazer-lhes concessões. No processo transcriativo
as dicotomias lógicas, necessárias a qualquer instauração científica, cedem lugar
a uma ficcionalidade viva, a um sujeito e um mundo sem os limites que lhe são
normalmente impostos, bem longe dos limites científicos de uma metafísica
caduca e perigosa, vivendo o indefinido como condição de existência
(CALDAS, 1999, p. 3).

Respeitar os sujeitos além das dicotomias e limites impostos, através de uma


relação viva e ação criativa, são características que se mantêm alinhadas à opção teórica
de(s)colonial da presente pesquisa. Seguindo os procedimentos aqui explicitados, as
histórias de vida foram transcriadas e estão presentes no capítulo 4 e, também, aplicada em
alguns trechos apresentados no capítulo de análise.

3.7 Da reflexão: acerca da análise narrativa

No capítulo cinco é apresentada a análise narrativa, a partir das histórias de vida de


dois artistas plásticos de Pato Branco, em diálogo com as contribuições dos autores
de(s)coloniais, possibilitando a reflexão sobre vivências dos narradores nesse sistema
moderno-colonial, buscando atender às questões de pesquisa: Como artistas plásticos
vivenciam seu lugar no mundo? Como foram construídos seus modos de ser, fazer e sentir,
através dos lugares que ocupam nessa sociedade moderno-colonial?
Como uma pesquisa qualitativa, segundo Minayo (2002) a análise tende a começar
a ocorrer na fase da coleta, não sendo necessariamente uma fase distinta, e objetiva ampliar
o conhecimento sobre o tema da pesquisa ao articulá-lo com seu contexto pela
compreensão do que foi coletado nas entrevistas. Na interlocução entre o sujeito, a
memória e a vida social, que se constrói a fase de análise. De acordo com Nogueira (et al.,
2017), no método de história de vida é indicada a análise narrativa, que se concentra no
sentido do relato, dentro de uma abordagem qualitativa, não tendo como intenção a
verificação ou qualificação dos fatos.
A análise narrativa, segundo Gill e Goodson (2015), tem como objetivo mostrar a
compreensão do sujeito perante suas vivências e de que forma, ao narrar esta experiência,
tem condições para interpretar a sociedade e sua atuação no mundo social. Os relatos
coletados, destaca Bosi (2003, p. 52), são lidos considerando a relação estabelecida entre
65

o sujeito com o mundo e a consciência, “sendo um traço de união entre o que foi e o que
será, é antes de tudo memória.”
A maneira como são narradas as experiências e as condições dos acontecimentos,
estão dentro da imaterialidade do tempo e da imprevisibilidade do movimento da vida,
características presentes no trabalho de recordar. Essa imaterialidade do tempo e o recontar
de cenas temporais da existência tornam mais complexo o tratamento analítico do discurso
biográfico, estando num plano que não é verificável. Mesmo estando tramado com a
história coletiva, envolve a subjetividade, com seus jogos de linguagem, poder e
imaginação de cada sujeito, como ressalta NOGUEIRA (et al., 2017). É preciso ter
consciência dos limites do humano, como o esquecimento e as perdas de algumas
lembranças, sendo que o narrador conta a sua verdade, da maneira que consegue recordar
de si no seu tempo, como descreve Bosi (2003):

Ser inexato não invalida o testemunho, diferentemente da mentira, muitas vezes


exata e detalhista. Vivemos numa sociedade a quem foi roubado o domínio do
tempo, marcada pela descontinuidade. A narrativa é sempre uma escavação
original do indivíduo, em tensão constante contra o tempo organizado pelo
sistema. Esse tempo original e interior é a maior riqueza de que dispomos (BOSI,
2003, p. 66).

Para quem pesquisa é preciso situar a análise narrativa respeitando esse tempo
próprio do relatar, em consideração aos aspectos subjetivos e a tessitura simbólica inerente
da narrativa (NOGUEIRA et al., 2017). Na pesquisa com histórias de vida é necessário
refletir sobre a relação que está sendo construída entre o sujeito contemporâneo e o tempo,
que foi acelerado. É importante observar este movimento na experiência do encontro, para
ampliar o cuidado na realização da pesquisa, preservando uma atmosfera para que a
narrativa tenha seu tempo preservado, sem obstáculos.
Para a construção deste capítulo, foram considerados os referenciais sobre histórias
de vida, do tratamento de narrativas e memórias de pessoas idosas, a partir da sua narração,
para então proceder a análise em diálogo com as contribuições dos autores de(s)coloniais.
Os conceitos que foram trabalhados nesse processo de análise narrativa foram a
colonialidade do poder (QUIJANO, 2002), a colonialidade do saber (WALSH, 2005;
LANDER, 2000), a colonialidade do ser (WALSH, 2005; ALBÁN ACHINTE, 2017;
MALDONADO-TORRES, 2007) e a práxis de re-existência (ALBÁN ACHINTE, 2017).
Após essa fase, e da escrita do texto, os capítulos quatro e cinco, contendo as
histórias, a análise narrativa e as imagens, foram enviados para os participantes, para a fase
de devolutiva, que é descrita a seguir.
66

3.8 Do retorno: sobre o tecer em conjunto

Como um trabalho tecido conjuntamente, após a escrita das histórias de vida e da


análise narrativa, elas foram entregues para a leitura e revisão dos sujeitos participantes.
Esta é uma fase prevista nas pesquisas com esta abordagem metodológica, de caráter
colaborativo. Para Bosi (2003), esta devolução do depoimento para o seu autor é uma
garantia que ele tem de verificar como sua história foi registrada pelo pesquisador, e mudar
o que narrou se sentir necessidade.
Depois de descrever nosso percurso metodológico, vamos às histórias!
67

4 HISTÓRIAS DE VIDA “FEITAS À MÃO”: BORDADOS E ESCULTURAS NO


TEMPO, POR E COM JUREMA E KALU

A expressão “feitas à mão”, do título desse capítulo (e da dissertação) possibilita


algumas interpretações:
“Feitas à mão” por se tratar de histórias de vidas de artistas plásticos, que
desenvolvem trabalhos manuais em seu fazer artístico.
“Feitas à mão” para lembrar que são histórias que perpassam por corpos, com suas
sensações, percepções e por esforços - representados aqui pela mão - mas com a intenção
de representar todo o organismo e sentidos envolvidos na experiência.
“Feitas à mão”, como pesquisadora, pois (re)afirmei no processo de estudo e
produção do texto, a necessidade de utilizar cadernos, canetas coloridas, e na maioria das
vezes, lápis, apontador e - muita - borracha. Ou seja, escritas à mão, literalmente. E depois
digitadas por mim, e corrigidas pela orientadora, à mão e teclado.
“Feitas à mão”, pois nas entrevistas as mãos mostraram as cenas, desenharam os
lugares no ar, apoiaram o rosto ou auxiliavam a representar aquilo que as palavras não
conseguiam. (Como optamos pela gravação somente em áudio, as cenas ficarão na
memória de quem esteve naqueles encontros)
Escolhemos convidar duas pessoas de Pato Branco, reconhecidas pelo seu trabalho
no campo artístico, uma mulher e um homem, e que gentilmente aceitaram dividir conosco
suas histórias. Aqui trazemos os “Bordados no tempo: história de vida de Jurema Edy
Pereira”, e as “Esculturas no tempo: história de vida de Kalu Pereira Chueiri”, que nos
títulos trazem fazeres significativos em suas trajetórias, do aprender, do criar e do trabalhar,
à mão.
Como pesquisadora, eu fui convidada a percorrer lembranças, que traziam em sua
voz a emoção vividas com elas. Para escrever esse texto, me baseei nas transcrições diretas
das entrevistas e nas sensações compartilhadas nos encontros, para criar condições para
o(a) leitor(a) acompanhar essas histórias de vida. Considerando que as entrevistas não-
diretivas utilizadas no método de histórias de vida objetivam permitir o fluxo do relato com
o mínimo de intervenção, sem exigir uma linearidade temporal na fala, o conteúdo que
resultou desses encontros, se conecta com essa característica. Apesar de ser possível
identificar os marcos dos tempos que perpassam as fases da vida, como a infância, a
juventude, as mudanças e os ciclos da fase adulta, não houve uma fixação de ordem
cronológica dos fatos relatados. Como explica Bosi (2003):
68

O pesquisador muitas vezes encontrará, nessa divisão subjetiva do tecido da


lembrança, constantes universais: são os marcos em que os signos sociais se
concentram apoiando a memória individual. (...) Veremos que a mobilidade
espacial tem relação com a afetiva, e que há defasagens entre a ordenação interna
do relato e a sequência de acontecimentos. E há passagens borradas de difícil
restauração (BOSI, 2003, p. 63).

Para o registro do relato, é preciso considerar essa relação afetiva com os


acontecimentos, e dos limites que existem na evocação da memória. No presente texto, os
relatos são apresentados contando as vivências que perpassam seus lugares no mundo.
Neste capítulo apresentamos as duas histórias, inicialmente a da Jurema e em
seguida a do Kalu. Foram transcriadas, como explicado no capítulo de metodologia,
buscando manter o máximo das palavras e expressões transcritas do original, e costurando
como texto, organizado pelos períodos ou marcos da vida de cada um. As histórias, depois
de escritas em sua primeira versão, foram lidas por eles e feitas as alterações necessárias,
assim como autorizadas a escolha das fotos. Como uma construção coletiva feita de
encontros, vocês encontrarão aqui duas histórias costuradas por várias mãos.
Neste capítulo são apresentadas partes das recordações gravadas, apresentando
nossos convidados, e suas histórias, sem análises ou observações das autoras. No capítulo
seguinte, onde teceremos a análise narrativa, são incluídos mais trechos das entrevistas,
ampliando partes das histórias registradas aqui, e apresentando o resultado do diálogo
teórico proposto nesse estudo.
69

4.1 Bordados no tempo: histórias de vida de


Jurema Edy Pereira

O dia abriu seu pára-sol bordado

O dia abriu seu pára-sol bordado


de nuvens e de verde ramaria.
E estava até um fumo, que subia,
mi-nu-ci-o-sa-men-te desenhado.

Depois surgiu, no céu azul arqueado,


a Lua – a Lua! – em pleno meio-dia.
Na rua, um menininho que seguia
parou, ficou a olhá-la admirado...

Pus meus sapatos na janela alta,


sobre o rebordo... Céu é que lhes falta
pra suportarem a existência rude!

E eles sonham, imóveis, deslumbrados,


Que são dois velhos barcos, encalhados
Sobre a margem tranquila de um açude.

Mario Quintana (1940)


70

4.1.1 Primeiras linhas, no papel e no tecido: a infância, o trabalho manual e a arte

Mudanças em família: infância em Santa Catarina

Eu nasci em São Carlos, Santa Catarina, em 21 de outubro de 1949. A minha mãe


se chama Edy Maria Ruas e meu pai Muritiba Pedrini Ruas, eles se casaram em 27 de julho
de 1946. Essa foto (figura 5) é a letra do meu pai, mandando para os pais da minha mãe a
lembrança do casamento, a letra dele é maravilhosa. Acho que foi escrito à pena...

Figura 5 - Foto do casamento dos pais de Jurema com inscrição da letra de seu pai

Fonte: arquivo pessoal Jurema Edy Pereira

A minha mãe era Da Silva, mas não sei a origem dos sobrenomes, a gente sabe
pouco da história. Eu sei que eram de Santa Catarina, o vô João faleceu quando eu era
pequeninha e então a única vó que eu conheci foi a Maria Rita, mãe da minha mãe. Da
parte do meu pai não cheguei a conhecer os avós, a mãe do meu pai era, na verdade, mãe
solteira, e morava no Rio Grande do Sul, e um dia meu vô Marcelino foi visitá-los e levou
o filho Muritiba embora para Joaçaba. Ele o levou para Santa Catarina e a mãe ficou sem
71

o filho, sem notícias. Ele ainda era pequenininho. Lá ele tinha uma esposa, a dona Elvira
Pedrini, que foi a madrasta do meu pai, ela o assumiu como filho, tanto que ele tem o
sobrenome Pedrini.
Quando eu ainda era pequena, nossa família se mudou para Joaçaba - SC, onde vivi
até meus seis anos, mais ou menos. Depois fomos morar em Xanxerê – SC, porque meu
pai foi contratado como agrimensor pela prefeitura de lá. Ele que fez todo o traçado da
cidade, das ruas, fez todo aquele trabalho de organização da cidade. Eles foram nos buscar
lá em Joaçaba para ele trabalhar em Xanxerê. Porém, quando eu tinha oito anos, meu pai
faleceu...
Como ele faleceu jovem, eu bem jovenzinha tive que assumir e cuidar dos irmãos,
para a mãe trabalhar. E eu fiquei fazendo o que podia fazer... naquele tempo eu ficava com
os três menores: o Tubo, que era bebê, o Maragiba e a Yara, que tinha 6 anos. Na nossa
família, eu sou a segunda filha de cinco (figura 6), o mais velho é o Marcelino Muritiba,
que tem o nome do meu avô e o nome do meu pai. Depois vem eu, Jurema Edy, depois
minha irmã Yara Maria, cada uma com um pedacinho do nome da mãe. Depois vem os
dois mais novos: o Maragiba Miguel, que nasceu no dia de São Miguel, e o Maracituba
Francisco. Esses nomes assim, a mãe dizia que foi porque o meu pai ele era bem estudioso,
ele lia muito, são todos nomes indígenas.

Figura 6 – Família de Origem de Jurema Edy Pereira

Fonte: elaborado pela autora. Arte: Franciele Clara Peloso.


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Linhas no papel: heranças paternas

Eu sinto que herdei de meu pai o gosto pela arte, mesmo sem ter visto ele trabalhar.
Eu sempre gostei de trabalhos manuais, fui a única que me dediquei a aprender mais. Ele
fazia caricatura, planta de casa, essas coisas assim. A rotina da vida… minha mãe, com
cinco filhos, fez com que os desenhos do pai acabassem se perdendo. E a gente, naquela
época, não tinha como ver ele trabalhando e desenhando, como hoje, você quer fazer uma
coisa, você traz seu filho para olhar, para participar, é diferente. Ele fazia as coisas dele, e
a gente não... meu Deus, não podia nem entrar naquele escritório!
No nosso tempo de criança era diferente, não tinha muito acesso. Por exemplo, um
dos meus tios, que a gente conviveu um período com ele bem legal, era sanfoneiro, era
músico. Era um dos tios mais presentes, e a esposa dele era bem bacana, tem muitas
lembranças boas. Mas da música, ele tocava gaita, tocava piano, tocava sax, tocava
violoncelo, tocava tudo, nessa parte a gente não tinha essa convivência. A gente sabia que
ele tinha um conjunto, mas nunca vi, não lembro de ter visto ele tocar, só lembrava que
tinha uma sala onde tinha todos os instrumentos onde ele ensaiava. A gente tinha pouco
acesso, quando muito conversar, assim, pouca coisa.

Linhas no tecido: das mãos maternas às aulas de bordado

A minha mãe (figura 7) costurava, ela fazia nhandoti. É uma técnica de fazer que
tem um tabuleiro... vamos dizer que vai fazer uma flor, então é cortado no compensado o
formato da flor vazada no meio, e em volta tudo é feito tipo uns dentinhos, você passa o
fio naquilo e por trás outro barbante e depois você faz toda a trama e reborda. Eu não
aprendi, mas eu tenho na minha mente, porque eu ajudava a mãe a fazer, eu ajudava a
montar os fios. Então eu acho que se eu for fazer agora, acho que eu consigo, de tanto ver
ela fazer.
E quando minha mãe ficou viúva, era jovem, tinha 34 anos e cinco filhos, e não
recebeu aposentadoria do meu pai, porque ele trabalhava na prefeitura de Xanxerê mas não
era registrado. Nossa, a gente passou um período bem difícil, mas aí, cidade pequena, todo
mundo ajudou. As mulheres faziam pão e levavam para a mãe, a do restaurante dava
comida, era assim. Porque no início, amamentando e com cinco crianças para cuidar em
casa, não podia nem sair, só um tempo depois ela começou a fazer faxina e meu irmão foi
engraxar sapatos.
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Figura 7 - Jurema com dois meses, no colo de sua mãe Edy e ao lado de seu irmão Marcelino

Fonte: arquivo pessoal Jurema Edy Pereira

E o grande, a coisa ainda que foi nossa salvação, é que nós morávamos numa casa
da prefeitura, então nós tínhamos casa! Às vezes minha mãe, querida ela, ficava queixosa
porque não tinha a aposentadoria do pai. E eu disse: “Mãe, não se queixe, com a
aposentadoria do pai jamais tínhamos construído uma casa!” E nossa casinha era ótima, de
madeira bruta que nem essa do ateliê, tabuinha e tudo. E ainda era coberta de telha, tinha
chiqueirinho, forno a lenha... até um galinheiro, tudo!
E aí fomos vivendo, ela trabalhando, os meninos estudando, eu estudando, e foi
assim, a gente sempre muito abençoado. Teve até uma senhora rica da cidade, olha bem!
História... que dá uma novela! Essa senhora colocou eu e minha irmã no Internato, na
própria cidade de Xanxerê. Ela nos deu todo o enxoval de roupa, cama e banho que tinha
que levar! E ela pagou pro meu irmãozinho o Jardim, e pro outro meu irmão a Escola
Agrícola. Olha só gente! Uma benfeitora, não sei… depois de um tempo eu até tentei achar
essa família, em Curitiba, mas eu não consegui mais encontrar, eu queria encontrar com
ela, sabe?
E nesse colégio de freiras a gente tinha os trabalhos manuais. Eu tenho toalhas,
tenho vários objetos que uso em casa, ainda do bordado que fiz durante a escola! Os
trabalhos manuais eram bem cobrados, era nota, mas eu sempre gostei, e fazia não como
uma obrigação, fazia com gosto. Nesse período ficamos dois anos no Internato, e isso deu
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um direcionamento muito grande pra vida da gente, de educação, de ordem, de disciplina,


de tudo. Pra você ver, a gente teve uns desacertos mas teve muitos acertos... imagina ganhar
isso! Então, a gente teve uma vida bem cheia de histórias.

4.1.2 Nas cores das flores e do enxoval: juventude, casamento e mudança

Cestas de camélias: criatividade e empreendedorismo no desabrochar da juventude

Quando eu terminei o ginásio, nós fomos fazer uma excursão da escola. Naquela
época não tinha excursão, mas o nosso grupo de quartanistas era bem empreendedor, então
a gente trabalhou um período grande, juntamos dinheiro e pudemos fazer uma excursão!
Imagine! Saímos de Xanxerê de ônibus, pagamos tudo, com o nosso trabalho, e fomos
conhecer a praia, que ninguém conhecia. Nós fomos para Caiobá, ai Jesus! Muito bacana!
Então, para juntar o dinheiro quando éramos quartanistas, fazíamos promoções,e
para fazermos as festas, a gente saía coletando flores. E nós saímos e conseguimos
camélias, penduramos cestas de camélias em todo salão, e nós fazíamos o baile. E todas as
promoções que fizemos sempre eram boas, então todo mundo ia! Fizemos até um baile de
debutantes que virou tradição na cidade, tanto que quando paramos, o clube deu
continuidade. Coisa que, imagine gente, em 1969, 1968, foi inédito!
Quando normalistas, também pagávamos uma mensalidadezinha mínima por mês,
então fizemos menos promoções. Quando chegou perto de viajar, uma tinha namorado, a
outra tava noiva, outra tava assim, outra tava assado... ficou difícil de ir! Aí o que nós
fizemos? Repartimos o dinheiro em partes iguais para todas. Pra mim foi maravilhoso,
comprei todo meu enxoval... O enxoval para casar, e o vestido e o sapato da formatura,
porque o dinheiro era muito curto.
E é bem gostoso esse grupo, um grupo grande, tanto que até hoje a gente se conversa
e se encontra (figura 8). Mas, das que bordam e fazem assim, é só eu da nossa turma... bem
interessante... Umas foram para área técnica, tem umas que trabalharam no Banco do
Brasil, outras se aposentaram como professoras, e assim por diante. Cada uma foi levando
o seu caminho.
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Figura 8 - Encontro de 50 anos da Quartanistas

Fonte: Retirada do perfil da artista no facebook5

Primeiros trabalhos e família: de Xanxerê-SC a Pato Branco – PR

Minha juventude dos 8 ao 21 anos foi em Xanxerê, onde eu fiz toda minha formação
primária, ginásio e a escola normal. Ali estudei, fiz concurso, e antes mesmo de formada,
eu trabalhei muito como professora, trabalhava meio na Escola e meio período no Cartório
de Registro. E depois eu saí dos dois trabalhos para casar, que o mais importante era casar!
E foi legal, estamos há 50 anos casados (figura 9).

Figura 9 - Jurema com sua família em uma das exposições do Ateliê

Fonte: Arquivo pessoal Jurema Edy Pereira

5
Disponível em: <https://www.facebook.com/JuremaEdy>. Acesso em 10 ago. 2020.
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Casei com 21 anos com o Bira, o Pedro Ubiratan Pereira, e logo viemos para Pato
Branco - PR. Assim que consegui, fui professora municipal e dava aula no bairro Industrial.
No ano de 1972 fiz concurso pra Copel, fui lotada como secretária, trabalhei até a primeira
filha nascer, e então eu pedi demissão. Mas assim, foi muito gostoso, eu curti a maternidade
e de poder cuidar das crianças. Tivemos três filhas, a Adelyne, a Karyne e a Anne
Chrystine.
E já temos três netos e uma neta: o Murilo Francisco, o Lorenzo, o Bernardo e a
Alice. É uma história (figura 10)! E assim passamos os períodos da vida…

Figura 10 - Família de Jurema Edy Pereira

Fonte: elaborado pela autora. Arte: Franciele Clara Peloso.

Quando parei de trabalhar fora para cuidar das filhas, eram tempos diferentes, não
tinha tanto essa preocupação com esse financeiro e funcionava! Nós casamos quase sem
nada e conseguimos comprar, construir nossa casa, fazer nossa vidinha, dava para fazer, é
muito interessante.
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4.1.3 Da agulha ao pincel: escolhas, conquistas e aprendizados

Primeiras tintas: apoio da vizinha

Logo nos primeiros anos aqui em Pato Branco, em 1971, eu participei de um


cursinho de pintura, era daqueles promocional de uma revenda de tintas que veio para a
cidade. Mas foi um monte de gente no curso, não havia possibilidade de você conseguir
fazer lá na hora direito, então fiquei só observando, onde a professora ia eu ia olhando,
olhando. Inclusive o primeiro material que eu pude comprar era pra pintura em porcelana
fria, mas não funcionou, era grudenta, larguei e só observei mesmo.
Depois que passou o curso, eu pedi pra uma vizinha que também tinha feito, para
me emprestar as tintas dela. Como tinha recém-casado, não tinha meu dinheiro, então era
complicado. Porque assim, nesse período os homens tinham outra visão da coisa, não
davam esse apoio. Aí quando eu pedi para a minha vizinha e ela me emprestou, eu pintei,
inclusive em panos que eu já tinha. Daí ela disse: “Nossa, como é que tu consegue!?”
Resultado, eu até hoje pinto e ela praticamente não pinta mais nada.
Mas a parte que me dediquei mais à arte foi em função do nascimento das filhas,
que fiquei em casa e com isso tive a oportunidade de entrar nessa área que eu sempre gostei.
Sempre fui muito bem nos trabalhos manuais, tanto na pintura... quer dizer, na pintura não,
na nossa época de infância não havia pintura, nós não tínhamos acessos, à tintas e pincéis,
nem na adolescência. Era lápis de cor e bordado, e no interior até as linhas às vezes era
difícil ter.
E também me dediquei a costurar, que também podia trabalhar de casa. Eu já
pintava bastante, as pessoas encomendavam, pintava panos, jogos, que estava muito na
época daqueles jogos de cozinha com cortina pintada. E então também costurava um
vestidinho pra uma, um vestidinho pra outra, e aí eu digo: “Ai, mas bah! Como cansa fazer
dois vestidos!”. Eu comecei a analisar: “Bom, mas eu pinto um jogo de cozinha, que são
trocentas peças, e eu não enjoo? Eu vou pintar!” Larguei a costura! Sinto que pintar pra
mim é mais prazeroso.
E com o tempo, minhas amigas, as vizinhas pediram para eu dar aulas para elas, e
eu: “Ah não, não... mas... vamos lá!”. Comecei a dar aulas na minha casa mesmo, a gente
pegava uma tarde por semana, uma trazia um bolinho, eu fazia um chá e ficávamos lá
pintando, de comadre. Foi quando eu tinha a Anne pequenininha, e agora ela tá com 37
anos, tanto que eu dava aula na minha salinha da frente de casa, ela levantava, ia lá espiar
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na porta, aí eu dava um trabalho pra elas, saía de lá e ia lá na cozinha servir um cafezinho


pra filha e voltava. E a Anne sempre gostou muito, quando eu tava pintando ela ficava
comigo. Às vezes ficava fora de hora... fazendo as coisas... porque a pintura leva tempo….
Lá pelas tantas, minhas amigas disseram assim: “Ó Jurema, se você não cobrar a
gente, fica chato, tu tira uma tarde inteira só pra nós aqui.” Eram umas três, quatro amigas.
E assim foi começando, começando, e outros vinham porque vinham, e foi engrenando a
história de dar aula (figura 11). Como a minha formação já era professora, eu já tinha essa
facilidade de ensinar, e é uma coisa que sinto prazer em fazer. Não me cansa, às vezes a
aula é para acabar quatro e meia (16h30min), mas antes das cinco (17h), ninguém sai, sabe?
E nem fico querendo que vão, eu sinto prazer de estar ali com eles.

Figura 11 - Jurema com suas alunas no ateliê em sua casa

Fonte: Arquivo pessoal Jurema Edy Pereira

Mãos nos pincéis e no serrote: reformando e construindo vivências no novo ateliê

Por um tempo eu dei aula no meu ateliê antigo, na minha casa, e para vir para esse
espaço aqui a principal incentivadora foi a minha filha Karyne. Ela incentivou virmos pra
cá porque ela já trabalhava como terapeuta artística, e precisava de um espaço maior e
exclusivo, com privacidade. A gente já tinha essa casa aqui, mas estava alugada, e quando
decidimos vir pra cá, trabalhamos juntos em família (figura 12) para montar o espaço como
ateliê.
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Figura 12 - Jurema em frente ao seu Ateliê em março de 2006.

Fonte: arquivo pessoal Jurema Edy Pereira

Trabalhamos na restauração (figura 13) por um mês, aproveitando férias. Janeiro


de 1999 foi de muitos desafios e realizações, junto com o apoio do Bira, da Adelyne, da
Karyne e da Anne. E março do mesmo ano demos início as aulas no espaço restaurado na
rua Barão do Rio Branco. Quantos anos!

Figura 13 - Família durante a reforma da casa para o novo Ateliê

Fonte: Arquivo pessoal Jurema Edy Pereira

A Karyne foi minha parceira desde lá, trabalhamos uns quatro anos juntos e depois
ela se mudou. Agora ela mora em Curitiba com a família, ela tem uma criação bem
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interessante, é um trabalho bem diferenciado do meu. E esse período juntas aqui no ateliê
foi um tempo bem legal, fizemos várias atividades com as crianças. Foi muito bacana,
comemorávamos dia da criança, aniversários, teve bolos e surpresas que elas fizeram. E
na aula também faziam uns teatrinhos no recreio, com uns fantoches que eu tinha. Porque
criança tem muita criatividade, nossa, como criança gosta de fazer as coisas!
A Adelyne, minha filha primogênita, incentivadora e coordenadora, está sempre
presente organizando projetos. Grande parceira, com muita paciência e dedicação, colabora
com tudo e com todos. Minha mentora na tecnologia. Tem o dom de ensinar com carinho
e determinação. Mesmo morando em Caxias, está aqui.
A Anne Christine, filha caçula, designer gráfica, com sua arte colaborando, com
seus desenhos e dicas, para aprimorar o meu fazer. A Inglaterra fica perto. Está sempre
presente no apoio e no incentivo a novos desafios.
Sou grata às minhas filhas e meu esposo, estão sempre apoiando, cada um do seu
jeito, somos uma família parceira.

Outras tintas e tramas: experiências no aprender e escolhas no ensinar

A minha iniciação foi assim, bem autodidata, do nada, fazendo aqui, fazendo ali. E
quando eu comecei a dar as aulinhas de tecido, eu tive a necessidade de aprender mais,
porque as alunas também queriam outras coisas. Teve um período que fiz cursinho de tela
com a Maria Genoveva. Ela também foi uma das precursoras artistas plásticas aqui de Pato
Branco, deixou um legado bem grande. E tem outra pessoa que eu também fiz umas aulas,
foi com a Cléria Jaeger, no curso de porcelana. Fiz umas aulas com ela, depois comprei o
meu forno, foi se ampliando, se dedicando, e assim foi se montando o meu universo…
Até tive a possibilidade de fazer faculdade em Xanxerê, em 2010, que tem de
Desenho Artístico, mas daí pensei, pensei, digo “Não vou fazer, eu vou ficar numa
correria… Ah não! Eu vou passear, ver meus netos, e fazer uns cursos, quando surgir um
curso, uma oficina, faço essa oficina”. Então eu fui aprendendo, fazendo os cursos e
oficinas mesmo, de acordo com as necessidades do dia a dia e a evolução das coisas. É por
isso que tem tantas coisas aqui que a gente faz no ateliê.
Nós, no interior, temos que ter variedade (figura 14), porque numa cidade grande,
por exemplo, tem vários lugares que você vai especificamente para tela, ou para tecido, ou
para patchwork... assim, específico. Mas aqui, se eu for fazer específico, eu não tenho
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público. Aqui as coisas são mais de interior, é diferente, tanto a participação do professor
como dos alunos é diferente. Numa capital, numa cidade maior, é bem técnico.

Figura 14- Hall de entrada do ateliê Juart´s

Fonte: própria autora. Fotografado dia 11 ago. 2020

Aqui no ateliê a gente faz diferente. Eu tenho no máximo seis alunos por vez, com
uma dedicação especial, e dessa forma sinto que a pessoa se sente atendida. Vou mais
devagar, consigo acompanhar e as pessoas conseguem também pegar melhor, porque eu
não chego lá e faço o traço, eu vou construindo o traço com eles, pelo caminho deles, pela
orientação.
Acho que isso também é pelo meu jeito de ser que, por exemplo, eu tenho alunas
aqui que estão há quinze, vinte anos comigo, então não é mais professora... é uma amizade!
E tem muitos que consideram como uma terapia. Eu sinto que o pintar acalma bastante, até
para mim. Quando estou mais agitada, quando você tá muito assim... eu digo: “Vou lá pro
ateliê”. Ainda mais nesse período agora na pandemia... “Eu tenho uma coisa pra pintar!” e
me mando para cá, sabe? Daí aqui eu fico horas e horas, você foge do mundo. É incrível,
você para fazer um traço, pintar alguma coisa, ou aprender um ponto, acaba ficando tão
absorta naquilo que você esquece das outras coisas! Então é bem bacana.
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4.1.4 Mãos em ação: exposições, projetos e outros trabalhos

Telas à mostra: primeira exposição individual

A primeira vez que eu expus meus quadros sozinha (figura 15), foi a convite... acho
que foi do Rotary. A exposição foi lá no Clube de Tiro, e no dia eu vendi uma daquelas
telas. Nossa, eu fiquei assim... realizada! Foi a primeira que vendi numa exposição, porque
fora eu já havia vendido outras, mas não assim em um evento. Essa exposição fez parte de
uma festividade, de um evento em que eu fui convidada a colocar para ter mais alguma
coisa, como às vezes se faz, né? Uma oportunidade que foi dada e foi bacana.

Figura 15 - Primeira exposição individual de Jurema Edy– Clube do Tiro - Pato Branco

Fonte: arquivo pessoal Jurema Edy Pereira

Exposições de final de ano: as tradicionais Mostras das turmas do Ateliê Juart´s

Durante esse período todo depois que eu comecei a dar aulas, eu fiz com minhas
alunas quinze exposições de trabalhos. Nós começamos em 1990, e as primeiras foram no
Clube Pinheiros (figura 16), no Banco do Brasil, na Caixa Econômica Federal, que foram
os lugares fora do eixo artístico. Depois, passou a ser lá no Teatro Municipal. No final do
ano eu fazia uma coletânea dos melhores materiais, e de cada aluno eu colocava uma, duas,
no máximo três obras. E geralmente só colocava uma minha.
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Figura 16 - Mostra de alunos do ateliê Juart´s, Clube Pinheiros, 11 dez. 1990

Fonte: arquivo pessoal de Jurema Edy Pereira

Nessas exposições a gente fazia um coquetel. Tem até um ponche que até hoje eu
faço nos meus eventos e todo mundo curte, e é uma das características das nossas
exposições. E sempre convidei algum artista para participar, um violinista, um gaiteiro,
alguém para se apresentar. A gente convidava todos os familiares e amigos para prestigiar.
Mas assim, a sociedade em si não aparecia... nós temos aqui uma dificuldade muito grande.
A gente sempre procurou agregar mais cultura. Mas tudo isso aqui é um trabalho feito pelo
ateliê. A única coisa que nós tínhamos de apoio da Cultura de Pato Branco era não cobrar
o espaço, mas nem para cuidar, nem para nada. Nem divulgação... não se
responsabilizavam. Se eu queria abrir para que houvesse visitação, eu tinha que estar lá,
sabe? Se chegassem pessoas, entravam por dentro, mas eles não deixavam aberto ao
público porque ninguém se responsabilizava. Então é uma coisa que, infelizmente, nós não
temos em Pato Branco esse apoio... não é de hoje, é de muito tempo. Agora já não tenho
mais o mesmo pique para promover, a gente já vai mais na retaguarda.
Mas tiveram pessoas que sempre apoiaram, como o Victor Hugo Ribeiro, a esposa
dele é a Alba, que foi minha aluna por muitos anos, até que agora foi embora para Curitiba.
Ele quem fez a primeira exposição na praça, da qual também participei. Bem nos anos bem
idos. Ele fazia parte da diretoria do Clube Pinheiros, por isso que nossa primeira exposição
do ateliê foi lá. Total apoio dele e da esposa.
Todos os quadros, principalmente esses da mostra, são quadros inéditos, são
quadros originais. Por exemplo, na sétima exposição eu representei numa tela (figura 17),
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uma barriga, que uma das minhas filhas estava grávida. Então pintei o céu, um jardim e
uma ave vindo, chegando na barriga. Tanto que essa tela está com a médica que trouxe ao
mundo os netos Lorenzo e Bernardo, que eu doei pra ela. No total até hoje já fiz quinze
exposições, agora o que der é lucro. Meu objetivo era fazer esse ano, mas já falei com os
alunos que não vai dar, com essa pandemia, mas no próximo ano nós vamos organizar.

Figura 17 - Painel da recepção da 7ª exposição do Atelier Juart´s, com a tela de Jurema em destaque

Fonte: arquivo pessoal Jurema Edy Pereira.

Dos pincéis às agulhas: patchwork e bordados

Teve um período que foi o auge da pintura de telas, e depois aos poucos foi se
largando essa parte, diminuindo a procura. Daí comecei a me dedicar com a novidade do
patchwork, isso já faz uns 13 anos que iniciei. Eu lembro da data em que eu fiz o primeiro
curso em Curitiba quando nasceu meu neto Bernardo, que vai fazer 14 anos, então por isso
eu tenho um parâmetro de data, senão tu não tem né? Quando eu estava lá esperando o
Bernardo nascer eu fui num sábado de manhã e fiz uma manhã de curso, e aí abriu outro
caminho…
Eu fui uma das precursoras para trazer o patchwork para Pato Branco, inclusive a
gente trazia todo material de Curitiba, porque aqui não tinha nada. Foi um período muito
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bacana, de muita gente fazendo, de muitas vendas. E como tudo tem o tempo... os auges...
depois a coisa vai se acomodando, é tudo sazonal. E foi bom, valeu, muitas pessoas
aprenderam, estão fazendo, mas eu não quis entrar muito nessa área. Aí foi mais esse
período mesmo e depois eu senti a necessidade de outra coisa, que foi quando fui atrás de
começar os bordados retrôs, que também está sendo uma fase muito bacana.
Então tenho trabalhado com os bordados, como o rococó, o ponto atrás, o ponto
haste, o ponto corrente... São pontinhos simples, mas que no conjunto fazem a total
diferença e, além disso, é muito gostoso de fazer. Eu tenho ensinado, mas poucas pessoas
fazem porque ele é uma coisa com muita paciência, é delicado, muito trabalhoso... e
demora, demora. De todas as pessoas que eu ensinei aqui, quase ninguém fez. Deram
continuidade, abrindo os pontos, aplicam noutras coisas, mas não nessas peças como os
colares (figura 18) e as outras coisinhas desse estilo que eu faço.

Figura 18 - Camafeus bordados por Jurema

Fonte: Retirada do perfil da artista no facebook6

Com meu trabalho, cada dia tenho uma experiência. Semana passada mesmo veio
uma menina, inclusive ela tá indo para fora do Brasil, e ela disse assim: “Eu quero aprender
a bordar a mão, já tive máquina que fazia tudo automático, mas eu quero fazer à mão.”
Então você vê, isso pra você é uma realização. E saber que as coisas vão e voltam! E o “à
mão”, esse sempre vai ser o teu valor, ou vai ter o valor, porque qualquer máquina faz, mas
“à mão”, é uma outra mão que faz! Então foi fantástica a experiência que tive com essa

6
Disponível em: <https://www.facebook.com/JuremaEdy>. Acesso em 10 ago. 2020.
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moça semana passada, isso me traz uma satisfação muito grande, porque eu tenho prazer
em ensinar (figura 19).
Às vezes até parece chato, um clichê eu dizer isso, mas eu sempre gostei muito de
ensinar. Tanto em casa, os netos, os filhos, os alunos, e se você quiser uma orientação, o
máximo que eu puder passar até por telefone eu te passo. Tem vezes que já me aconteceu
de uma pessoa me ligar muitos anos depois: “Jurema, tu me salvou de uma crise assim,
assim, assado”, eu nem lembrava mais o que que foi! Era de quando eu fiz um curso com
um pessoal que veio de Curitiba ensinando a técnica da montagem do pano para tela para
bordar. Aí ela lá do Mato Grosso, me ligou e eu passei tudo direitinho, de como eu tinha a
receita para fazer. Daí muitos anos depois ela me ligou agradecendo, porque meu telefone
continua de 40 anos, o mesmo número. Então as pessoas têm sempre uma referência. Isso
traz uma satisfação, que não tem dinheiro que pague. Porque é um legado que fica, é um
legado muito bom. Esse legado está nas mãos de pessoas, na cabeça, na história, na
consciência. Então isso é o que vale, que tudo o resto é passageiro mesmo. Tem vezes que
tem um vento que derruba tudo, tem vezes que qualquer coisa, já acaba. Isso não, isso fica.

Figura 19 - Aula no ateliê Juart´s

Fonte: própria autora. Fotografado no dia 11 ago. 2020.

Além do ateliê: outros trabalhos, projetos e participações

Tive a oportunidade de dar aula em Vitorino – PR pela prefeitura. Era uma aula por
semana, para uma turma à tarde e uma turma à noite, foram 8 anos. E aqui em Pato Branco,
pelo ateliê, nós trabalhamos em vários projetos. Em 1995 teve o “Cidade Bela”. Fomos
com uma turminha pintar um muro no centro da cidade. Tivemos também mais um trabalho
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que participamos do “Circo das artes”. Um painel que foi pintado e que agora já não existe
mais... o problema nosso aqui é que as coisas se perdem.
Participei com uma tela também no cartão postal em homenagem aos 49 anos de
Pato Branco. Eu achei muito bacana, foi um período que todos os artistas de Pato Branco
fizeram um cartão postal da cidade, uma iniciativa da prefeitura. Teve também um trabalho
que apresentei, quando fomos pra São Paulo na Bienal, apresentei a experiência que tive
ao visitar o Museu Oscar Niemeyer de Curitiba-PR. Também apresentei alguns trabalhos
na FADEP (Faculdade de Pato Branco).
Em 1995 participei do 36º Salão de Artes Plásticas para Novos Artistas. Eu inscrevi
três obras, fui uma das classificadas (figura 20), participei da exposição, mas não fui
premiada, não fiquei entre os três primeiros. Era um grupo de todo o oeste do Paraná, mas
foi uma oportunidade bacana de participar. A exposição foi em Francisco Beltrão – PR,
pelo Governo do Estado. Foi um dos poucos Salões que teve aqui do nosso lado.

Figura 20 - Obra "Reflexos", classificada no 36º Salão de Artes Plásticas para Novos Artistas em 1995

Fonte: arquivo pessoal Jurema Edy Pereira

Criações coletivas: painel do teatro

Teve um outro trabalho que a gente participou. Esse foi premiado, um painel que
tinha no Teatro Municipal. Era de um concurso da prefeitura em que eles queriam uma
obra sobre os colonizadores, como do que era Pato Branco. A iniciativa foi do
Departamento de Cultura, inclusive nessa época era o Gilson Marcondes que estava no
Departamento. Eu e o Eloy de Lima que projetamos e o Kalu executou. Nós tínhamos que
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fazer uma maquete, que inclusive eu acredito que esteja lá ainda na biblioteca, com a
miniatura do que foi feito no painel. A gente fez o projeto no meu ateliê, o Eloy fez essa
parte mais futurista, mais moderna, e eu fiz uma peça com carroça, com pinheiro, com uma
coisa assim do que foi a colonização. Então cada um abordou um caminho.

4.1.5 Mais cores nas telas: união e sonhos

Bordando unidos: relação com artistas da cidade e região - ALAP

Nos anos 2000, 2001, teve um grupo que foi começado pela Valéria Borges aqui na
cidade. Ela era de Curitiba e veio trabalhar na FADEP como coordenadora. E quis fundar
a Academia de Letras e Artes de Pato Branco, no momento, o presidente estadual da
Academia era o Túlio Vargas, e o interesse da Valéria era interiorizar essa instituição.
Como eles eram bem conhecidos, começaram a reivindicar essa possibilidade da fundação,
para isso foram chamados professores, já mais antigos, como o professor Sittilo, a Neri, e
outros, e também artistas, escritores, poetas, artistas plásticos, pessoal que trabalhava com
dança e com o teatro.
Então foram apresentados os nomes de outros artistas para que fossem agraciados
com essa homenagem, e foi formada a Academia, da qual eu faço parte desde a fundação
que foi em 22 de junho de 2001 (figura 21). Trabalhei atuantemente durante todo esse
tempo, participando praticamente de todas as reuniões e todos os projetos que executamos.
Por muitos anos fizemos correções de trabalhos artísticos e poéticos de escolas e
instituições filantrópicas, com as nossas avaliações.
Também por trabalhar sempre, estar sempre presente e saber de toda a nossa
atuação, chegou o momento que eu também teria que dar minha contribuição como
presidente. Então para a gestão de 2019/2020 eu fui escolhida como presidente, tenho
procurado desempenhar da melhor maneira possível. Nos anos anteriores sempre participei
da diretoria, por muito tempo como tesoureira, como bibliotecária e outras atividades. E
para mim está sendo uma honra participar como presidente e desejando que a nossa
Academia tenha sempre muito sucesso.
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Figura 21 - Registro da Posse da primeira Diretoria da ALAP

Fonte: Revista da Academia de Letras e Artes de Pato Branco nº 17

Trans-bordar: dos sonhos

Um dos meus grandes sonhos é conseguir um espaço para divulgar e ter uma galeria
de arte em nossa cidade. Que isso seria muito proveitoso para todos os artistas que tem
aqui, e temos muitos valores! Promover eventos com a participação da comunidade,
sempre que a gente solicita, a comunidade participa. Elês tem sede de saber e de arte.
Inclusive eu até comentei com o pessoal da Academia (ALAP) que o meu sonho é fazer ao
menos uma Exposição, um Salão de Artes Plásticas como aquele que contei, que participei
em 1995. Queria fazer ainda na minha gestão como acadêmica, que agora sou presidente,
fazer alguma coisa a respeito das artes plásticas. Porque nós não temos tido muita
oportunidade. Só que nós precisamos dar oportunidade a todos e que tenham esse espaço
para que isso se torne uma rotina, uma referência. Isso acontecendo, com certeza terá
sucesso.
E o meu grande sonho é que eu possa, até que tenha condições, continuar dando as
minhas aulas e passando o pouco que sei, porque isso me satisfaz muito. E agradeço a Deus
por ter essa oportunidade de poder repassar o que sei e também de ter tido a tua iniciativa
de me convidar para participar dessa pesquisa. Obrigada.

7
Disponível em: FREIRE, Antonio Reginaldo Maciel; CAMPESTRINI, Cristiane; BOCCHESE, Neri França
Fornari. (org). Revista da Academia de Letras e Artes de Pato Branco. Nº 1, Pato Branco, 2003.
90

4.2 Esculturas no tempo: histórias de vida de


Kalu Chueiri

Estátua

Da abandonada estátua
partilho o mineral destino:
encherei de vazio a pedra,
e manterei os olhos polidos
pelos dejetos dos pássaros.

Da poesia
fiel discípulo serei:
abrirei a boca
apenas para morrer.

Mas se houver que proclamar


a justa lembrança, direi:

– a primeira pedra
não foi para castigar mulher.

Foi para esculpir


uma deusa
em cada futura Madalena.

Mia Couto (2018)


91

4.2.1 Couro e música: família e primeiros contatos com a arte e trabalhos manuais

Das fazendas à sapataria: origens da família

Eu nasci em Ibaiti, no norte do Paraná, em 25 de janeiro de 1951. Sou filho de


Ahyde Jorge Chueiri e Guiomar Pereira Chueiri. A família da minha mãe, a Pereira de
Souza, deve ter mais ou menos uns 300 anos de Brasil. Os meus tataravós eram mineiros e
paulistas, eles sempre foram fazendeiros. O meu avô morreu com 101 anos, nos anos 60
ou 70, por aí.
Uma passagem bem legal da história dela foi que, na Revolução Constitucionalista,
lá de São Paulo, o meu avô tinha uma fazenda do lado da estrada de ferro que ligava
Ourinhos a Curitiba, no Norte do Paraná. E ali passavam as tropas, e como o meu avô era
paulista, eles eram a favor dos paulistas, então os meus tios faziam assim: falavam para ele
se os gaúchos tinham passado, se não tinham passado. Ela contava muito essas histórias...
que escutava tiro de canhão direto, metralhadora, do tempo que estavam na guerra,
revolução de 1932. Essa é uma passagem bem legal da família da minha mãe.
Aí meu pai é filho de libaneses. Ele é o filho mais velho, já nasceu no Brasil. Minha
avó falava francês, porque era muito forte a influência cultural francesa no Líbano nesta
época. E ensinou alguma coisa de francês pro meu pai. Eu nunca tive dificuldade de francês
no ginásio, que nas tarefas ele me ajudava tranquilo. Lá em Siqueira Campos - PR, meu
pai quando era mocinho, ele contou pra mim que nos domingos à tarde, eles iam na praça
escutar o “Jáis”, a banda de Jazz. Imagina aquela época, a cultura era bem melhor do que
agora! Minha formação é bem rica. E ele era sapateiro, ele era oficial, é quem fabricava
calçados. Você ia lá e ele tirava a medida do seu pé e era só falar como queria o sapato:
fechado, aberto, com salto, sem salto, descrevia o tipo e ele fazia para você. Então meu pai
(figura 22) trabalhava com isso embaixo da minha casa, ele que fabricava, fazia par por
par. Ele não estudou, mas o sonho dele era ir pro Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo,
mas ele nunca foi. Então, essa coisa assim, dessa cultura, eu herdei tudo, isso também
ajudou muito nesse gosto por arte. Mesmo que naquela época a gente só brincava na
sapataria dele, só fazia bagunça, mas eu vivenciei ele cortando couro, costurando, isso tudo.
92

Figura 22 - Kalu criança, ao lado de seu pai com a sobrinha no colo

Fonte: arquivo pessoal de Kalu Chueiri.

Artes de berço: música, esporte e trabalhos manuais

Eu tive umas coisas bem favoráveis para eu ir para esse lado da arte, acho que é
berço. Meu pai era músico autodidata, além de ser artesão. A minha mãe era costureira e
boleira, principalmente para casamentos. E nós éramos nove irmãos (figura 23). A
primeira, a Ester, ela foi estudar em Castro, isso era nos anos 1940 ainda. Lá ela aprendeu
piano e quando voltou o papai comprou um piano pra ela. Me lembro até hoje ele
desencaixotando o piano. Eu era pré-adolescente e acordava ouvindo Chopin, música
clássica, todas essas bonitas que são as mais populares... toda manhã eu acordava com isso!
Ela deu aula de piano, e tocava o órgão na igreja, e o papai era o regente do coral da Igreja
Presbiteriana. Ele era músico autodidata, ele lia partitura e tudo. Então isso, umas veias
dele que eu herdei.
93

Figura 23- Família de origem do Kalu

Fonte: Dados da pesquisa. Elaborado pela autora.

Meu irmão ele já era assim um outro tipo de cultura, ele era um dos poucos que
tinha uma radiola, e eu escutava Nat King Cole, com 10 anos! Então tudo isso ajuda na
formação do olhar, eu escuto música 24 horas por dia. A outra minha irmã, a Eunice, se
destacou mais no esporte, era mais alta e atlética, disputava campeonatos e tudo. O meu
irmão Samuel, é o meu ídolo, ele era o melhor jogador de futebol da minha cidade, tanto é
que ele ascendeu profissionalmente em virtude de ser bom de bola. Aí todo mundo gosta
dele por causa disso.
Depois tem minha irmã Eleni, ela é o gênio, o professor pardal da família. Ela fazia
os nossos brinquedos, os carrinhos de roda de pau, as bicicletas de roda de pau, ela era
terrível. Habilidosíssima com as mãos, era música, tocava piano também. E tinha a minha
irmã Edite, a característica dela é que ela dava risada de tudo, ela era assim de um humor
espetacular, brincava e dava risada, era ela quem brincava mais conosco.
Daí então tem um irmão que é um ano só de diferença comigo, que é o Xis, o
Otoniel. Ele foi, dos professores, o mais vencedor, ele foi técnico de voleibol, ele ganhou
tudo que disputou no estado do Paraná. E uma passagem bem interessante dele comigo foi
quando a mamãe plantou pimenta, ela cresceu e deu a frutinha vermelhinha compridinha.
E ele falou pra mim: “Você já comeu tomate comprido?” Eu era mais novo, adivinha? Foi
morder e chorar! Isso é história da família da gente, tudo quanto é encontro lembram.
94

Você viu que é tudo nome judeu? Quase tudo nome bíblico, por causa do meu pai.
Apesar de que a gente é árabe, mas é quase tudo nome judeu. Eles já vieram cristãos do
Líbano pra cá, que lá tem os copta, uma variação bem próxima do catolicismo. E o meu
nome, Sinésio, era o nome de um amigo do meu pai, e ele quis fazer uma homenagem pro
amigo. Mas me chamam por Kalu mesmo. Esse apelido foi porque, quando eu nasci em
1951, era o auge das rainhas do rádio na época. As minhas irmãs ouviam a Dalva de
Oliveira no rádio e eram fãs dela, e ela tava cantando um sucesso do Luiz Gonzaga e do
Humberto Teixeira chamado Kalu: “Tira o verde desses óio de riba deu, Kalu, Kalu, não
se esqueça que você já me esqueceu...” E o meu primeiro monossílabo foi “cá”, tem uns
que é “dá”, “má”, o meu foi “cá”. De “cá” pra Kalu foi um tapa, e ainda mais com olho
verde… Então desde pequenininho eu fui Kalu.
Daí depois de mim tem a minha irmã mais nova, que o apelido dela é coisa
maravilhosa: Rica. Zenir é o nome. A Rica ela tem esse apelido de tão bonita que ela era,
uma riqueza, e ela é linda até hoje, formosa. E eu sou assim mais próximo dela hoje do que
todos os outros meus irmãos, não sei se porque a gente é os dois últimos, e eu tenho mais
isso com ela.
E daí tem o irmãozinho que morreu, que é o Ahyde Jorge Chueiri Filho. Ele nasceu
bem depois, é o último, são 9 ou 10 anos de diferença, e na época ele morreu de encefalite
com dois aninhos eu acho. Hoje tem cura, na época não tinha. Papai era uma pessoa de
posse, classe média, a gente tinha carro, tinha casa, e com a doença do meu irmão, bancou
o tratamento particular no Hospital das Clínicas de São Paulo durante 6 meses. Ele teve
que ir vendendo coisas, foi tudo. Ele desgostou, vendeu a loja, a oficina, tudo, e a gente foi
morar noutra cidade. Foi bem traumático a perda do meu irmão.

Mudanças na família: as mãos nas quadras e piscinas

Então, depois da morte do meu irmão mais novo, nós saímos de Ibaiti, onde eu
nasci e daí fomos morar em Santo Antônio da Platina que é uma cidade a 70km de lá, no
Norte Pioneiro. Pra mim foi muito importante passar a adolescência lá, porque eu encontrei
o que eu sonhava e que não tinha na minha cidade: jogar basquete, jogar voleibol (figura
24), praticar natação. E nós três últimos irmãos, todos fomos professores de educação
física.
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Figura 24 - Kalu em um jogo de voleibol

Fonte: Arquivo pessoal Kalu Chueiri

Nossa, foi o auge, e era bom porque tinha uma coisa assim mais glamurosa, a gente
discutia mais política, mais música, muito Chico Buarque, Geraldo Vandré, eu sou dessa
geração. E quando estava na época de eu alistar, fui falar com o sargento, e ele falou que
com a minha altura eu podia ir num lugar melhor para servir o exército e me mandou pro
Rio de Janeiro. Imagina que maravilha, nossa mãe do céu! Foi a coisa mais boa que
aconteceu na minha vida na época e até tive algumas regalias no exército porque sabia
jogar voleibol, o comandante sempre me chamava!
E quando eu voltei do Rio, naquela época tinha uma coisa chamado supletivo, uma
dureza. Meus pais estavam morando em Curitiba, e minha mãe vendia coxinha numa
mercearia que papai comprou, e ela pegava o dinheiro e me dava para ir fazer prova. Eu ia
fazer os exames das provas em tudo quanto é lugar, e em três meses eu terminei o supletivo,
e já fiz vestibular para Educação Física em Curitiba. Passei, comecei lá e depois transferi
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para Londrina, porque o meu irmão era diretor de esporte de Rolândia. A cidade ia sediar
os jogos abertos e estavam montando equipes, então ele me chamou para jogar para a
cidade, em troca eles me pagavam a faculdade. Era tudo que eu queria, deu tudo certo!
E quando eu tava na faculdade teve outra coisa que me transformou também,
porque eu sou muito tímido, por incrível que pareça. Eu tinha muito problema de
autoimagem, aí eu aprendi a tocar violão na marra, sozinho, pra ganhar as menina, pra elas
te verem como um cara um pouquinho mais importante do que o que não sabia tocar violão.
Essa também é uma coisa que marcou bastante na formação, para mais tarde eu partir pro
lado da escultura. E naquela época comecei a fazer algumas sacolas de couro. Eu passei
para meu pai como é que era o jeito de fazer as bolsinhas que vendia, na época vendia
muita coisa de couro, chinelão de couro, bem dos anos 1970. Bem legal, porque não
precisava costurar na máquina, era só costurar na mão. Eu tenho até hoje coisas que ele
fez. Aí eu vendia algumas coisas, dava para ajudar a pagar as coisas na faculdade em
Londrina.
E quando eu era acadêmico ainda, meu irmão Samuel era gerente da agência do
Banco Bamerindus em Coronel Vivida, e eles tinham recém construído uma quadra de
esportes e meu irmão sabia jogar voleibol. Então quando eu vim passar as férias na casa
dele, ele me chamou pra ir ensinar as outras pessoas a jogarem voleibol. Comecei a ensinar
eles, e logo no ano seguinte inauguraram um clube com piscina, e eu vim de novo nas férias
e dei aula de natação. Aí ganhei a cidade!
Nós fizemos um campeonato de natação, primeiro que teve até do Sudoeste, nunca
tinham. Foi muito legal. E tinha um outro lance que era o concurso Rainha das Piscinas,
pra ter um outro tipo de atrativo junto. Foi muito legal pra formação cultural da cidade. E
quando eu me formei na faculdade tinha 44 aulas me esperando ali. Porque o prefeito
gostava, o diretor da escola também gostava, e na época sobrava aula. E eu tinha aula lá
em Londrina também, mas daí eram 8 aulas: “Opa, eu não! Vou lá para Coronel Vivida
comprar minha motocicleta!” Primeira coisa que eu comprei foi minha motocicleta.

4.2.2 Cavocando a madeira e o entalhe de pedras: primeiras obras

Do cavocar ao tridimensional: aprendendo na serraria do vizinho

E a questão de ir pro lado da escultura também tem outro fator. Embaixo da minha
casa, lá numa outra cidade, tinha um entalhador, e esse senhor fazia uns entalhes
97

maravilhosos. Eu me encantei com os entalhes, e ele me ensinou a entalhar umas coisas e


comecei a entalhar algumas coisas junto com ele e era muito gostoso. Daí quando eu vim
pra cá pro sudoeste, a madeira que não tinha lá tinha aqui, que é a imbuia (figura 25). É
uma delícia você entalhar a imbuia. Daí eu fiz umas, tenho até alguns entalhes meus na
casa de uns amigos em Coronel, até hoje tá lá, de 1976, 1977. E eu gostei muito disso,
gostei muito! Tanto que pra passar para o tridimensional foi rapidinho.
Porque eu não me contentei só em cavocar, eu comecei a tirar, e começou a sair
algumas formas. Deu uma forma de um passarinho perfeito, eu falei: “Nossa, como eu...?”
Fui fazendo, nunca tinha visto ninguém fazer isso… pra mim era muito mais fácil fazer
essas formas tridimensionais do que cavocar um desenho, porque eu não sabia desenhar,
eu não sei desenhar até hoje. Não tinha muita técnica, mas tinha muita imaginação, então
eu fui fazendo do meu jeito... foi mais ou menos por aí.

Figura 25 - Escultura em madeira embuia de 1989, dada de presente à uma amiga professora de educação física

Fonte: arquivo pessoal Samoara Viacelli da Luz


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Entalhar em pedra: aprendendo com o pedreiro Zezinho

E teve uma época que eu fiquei em Chopinzinho e lá observei que em volta da igreja
tinha paralelepípedos enormes, bem entalhadinho, bem retinho. Fiquei intrigado com
aquilo, daí eu perguntei: “Onde é que vocês compraram essas pedras aí em volta da igreja?”
“Ah isso é o seu Zezinho que mora ali, assim, assim, que faz.” E eu fui lá no tar do seu
Zezinho. Pedreiro! Pedreiro de pedra. Ele tinha um formãozinho e um martelinho. E pra
ele cortar ele ia batendo, batendo, batendo. Pá, pá! Uma técnica que você não imagina! Aí
eu fui lá aprender com ele, eu tenho até uma escultura que fiz no ateliê dele, uma coisa bem
abstrata, que tá no estúdio de arquitetura do Nereu Ceni. E ele me ensinava ali mesmo, sabe
que essas empatias acontece assim, ele percebia meu interesse. E as pedras ainda estão nos
materiais que trabalho até hoje (figura 26).

Figura 26 - Obra de Kalu em pedra, em processo de elaboração

Fonte: Própria autora. Fotografado dia 24 jun. 2020


99

4.2.3 Mãos à obra: trajetórias familiares e profissionais no encontro com a arte

A família em Pato Branco

Depois de Coronel Vivida, eu morei em outros lugares também, eu fui pro norte do
Brasil, fiquei lá quatro anos e daí eu voltei para Pato Branco. Nas minhas idas e vindas
deve dar uns 10 anos fora, então o período que eu fiquei em Pato Branco dá uns 30 anos
mais ou menos, e tamo aqui até hoje. A família da minha ex-mulher é daqui, eu casei com
a Miriam em 1979 e eu vivi 11 anos com ela, nesse tempo tivemos três filhos: a Daniela
em 1979, e dois anos depois a Fernanda em 1981 e o Samuel em 1988 . Depois que eu me
separei, logo em seguida minha filha mais velha já foi estudar em Curitiba, e os outros dois
ficaram aqui com a Miriam. Depois a Fernanda também logo saiu, e só ficou o Samuel.
E tem meu filho Vitor Hugo, de 1996, da Rose, uma namorada que eu tive depois.
Quando ele nasceu, ficou com a mãe, até um ano e pouquinho, daí ela teve que voltar para
Foz do Iguaçu, e ele ficou comigo. Eu deixava ele numa crechezinha, ia trabalhar, voltava
de tarde. Tem até o sapatinho dele, tá ali em cima da mesa, até hoje. Depois ela foi morar
na Espanha, quando ele tinha 10 anos foi para lá e ficou até os 17, 18 mais ou menos. Então
voltou a morar comigo, aqui em cima (mostrando um mezanino de madeira dentro do
barracão do ateliê, onde moraram por um período).
Então são quatro filhos e já tenho quatro netos, Máximo, a Maria Fernanda, o Lucas
e o Mateo Samueli (figura 27).
100

Figura 27- Família do Kalu

Fonte: elaborado pela autora. Arte: Franciele Clara Peloso.

Fuga que virou encontro: tempo para a arte

Um pouco antes da minha separação, em 1989 teve os Jogos Abertos aqui em Pato
Branco, o primeiro que veio para o sudoeste. Eu tinha um cargo muito importante na
organização, eu era diretor técnico dos jogos, e técnico da equipe de vôlei feminino, que
com o trabalho anterior tinha sido duas vezes vice campeão desses Jogos. Mas nesse, a
gente não foi bem, nós saímos fora na primeira fase, e todo mundo foi bem nos jogos,
menos a minha equipe, e o crucificado fui eu. Nunca mais entrei numa quadra de vôlei! E
nesse período vai acumulando uma porção de coisas...
101

Nesse ano eu já estava tendo uma atividade bem mais pedagógica do que técnica,
fui ler mais sobre educação, menos de desporto, já mudou, e eu vi um outro mundo. E como
o destino do meu casamento foi embora, então eu precisava de alguma coisa para amparar,
uma fuga... só que a fuga foi encontro! Eu consegui algumas madeiras e comecei a fazer
algumas peças de madeira. Eu já fazia antes, mas daí eu me dediquei mesmo, fiz alguns
troféus para eventos. Fiz um troféu, uma clave de sol para um concerto de corais, uma coisa
bem legal! Daí me iluminou e eu fui atrás.
E já estava morando sozinho, então eu não tinha horas vagas, minha horas vagas
eram o mais prazeroso possível, por causa da manufatura das peças. E isso me entusiasmou
e eu saí pra procurar cursos. Fui pra São Paulo, na casa de um parente, pra dar uma fugida.
Aí... nossa... estava tendo uma exposição da Tomi Otaki, aí me encantei de vez! Já fui pra
tudo quanto é museu, ai ai... e voltei com outro olhar, com outro jeito de ver a vida.

4.2.4 Formão em ação: obras na cidade e região

Virtudes em pedra, ferro e emoção

Teve um período que eu ainda era professor de educação física, que eu pude me
dedicar à arte integralmente. Foi um projeto com o doutor Alceni Guerra, quando foi
prefeito aqui: o Estado me cedia para Prefeitura, em troca a Prefeitura cedia um professor
no meu lugar pro Estado, e eu ficava recebendo do Estado. Me deu um barracão, que era
uma massa falida, onde é o Senac hoje. Então eu fazia as obras, e ele comprava o material.
Nesse período, fiz obras pra cidade (figura 28), eu fiz escultura até para o vice-presidente
da República, que veio aqui, e ele dava de presente. Falou: “Ó Kalu, vem fulano, faça
alguma coisa.” Jaime Lerner, Dona Fani Lerner, tudo esse povo que vinha aqui levava uma
escultura minha de presente, de lembrança da cidade. Algumas eu já tinha fôrma, era um
patinho, e tinha outras que não, daí ele me dava o tempo pra fazer.
102

Figura 28 – Monumento Anjo, de autoria do Kalu na Av. Tupy em Pato Branco

Fonte: Retirada do blog Kaluesculturas8

Essa época, nossa mãe do céu, imagine como me sentia! Olha o prestígio, pelas
obras públicas que fiz na época dele. O Largo das Virtudes por exemplo, o que eu li de
livros, de livros das virtudes, coisa bem ética, moral. Nossa, melhorei muito comigo
mesmo. Porque a proposta era você provocar as pessoas a terem conceitos também, então
o que a gente estava fazendo era uma provocação. E não tem em nenhum lugar do mundo...
Não sei se você já ouviu falar que fizeram esculturas sobre conceitos éticos? Tem do
general em cima do cavalo, da moça nua na praia, do Tom Jobim com violão nas costas.
Mas sobre humildade, você já...? E a gente tinha uma, tinha de várias virtudes, no Largo
das Virtudes (figura 29). Então em termos de artístico... pra mim... nossa! Melhor época,
melhor época. Assim, porque eu não vendia nada, é uma relação diferente de criação.

8
Disponível em: <http://kaluesculturas.blogspot.com/>. Acesso em 20 jul. 2020.
103

Fizemos também o início da Rua da Cultura, que era na Rua Jaciretã desde a Av. Tupy, até
o Teatro. Essa Rua da Cultura só ficou na ideia, as próprias pessoas da rua não quiseram.

Figura 29 - Largo das Virtudes na Praça Presidente Vargas - Pato Branco - PR

Fonte: Retirado do blog Pato Branco Memória 9

Trabalho coletivo: painel do Teatro

O painel do Teatro, dos colonizadores, (figura 30) o original é da Jurema e do Eloy,


e eu reproduzi. A autoria ali é só técnica minha, porque a ideia é dos dois. Ele era na parede,
de fibra de vidro. Eu modelei ele no barro e daí botei a fibra por cima do barro. Daí joguei
o barro fora e fixei ele com parafusos na parede, inteiro.
Naquela época o Gilson Marcondes era o Diretor de Cultura aqui do município, e
foi promovido um concurso para um painel, e o Eloy ganhou. Eles fizeram aquela proposta
e ganharam, e eu fui convidado para fazer para eles essa técnica para fazer desse tamanho.

9
Disponível em: <http://patobrancomemoria.blogspot.com/2017/09/2003-monumento-ao-amor.html>.
Acesso em 20 jul. 2020.
104

Figura 30 - Kalu em frente ao painel "Os pioneiros"

Fonte: Retirada do site Kalu Esculturas10

Esculpindo com filosofia: mecenas

E teve algo que me auxiliou muito, foi o mecenas, o cara que me prestigiou, pagou
curso pra mim, comprou todas as minhas esculturas, me pagava por ano para fazer
esculturas pra ele. Que é seu Cláudio Petrycoski, ali da Atlas. É alguém que incentiva muito
a cultura, ele gosta muito de filosofia. E então quando eu me aproximei dele, a gente
começou a conversar mais sobre filosofia, e nesse intervalo, eu comecei a apresentar
minhas esculturas para ele. E ele começou a encomendar, e depois outra, outra, outra. E
bem no fim ele me bancou bem uns bons anos. Aquela esculturona grandona (figura 31) lá
do São Roque do chopim, ele me pagava por mês! Eu levei mais de ano para terminar
aquela escultura.

10
Disponível em: <http://kaluescultura.com.br/monumentos_detalhes.php?id=12>. Acesso em 10 ago. 2020.
105

Figura 31 – Imagem do período de construção do Monumento alusivo ao operário metalúrgico, na entrada do Distrito
Novo Espero - Pato Branco - PR

Fonte: Retirada do blog Kaluesculturas11

Então, ele encomendava coisas, patrocinava exposições, pagou um curso em São


Paulo, coisas assim, por isso que é mecenas mesmo. Ele bancou um filme12, sobre a praça
Theophilo Petrycoski (figura 32) lá no setor industrial: “A praça”, só para você ter uma
ideia, termina o filme com um monte de crianças vendo as esculturas e fazendo uma leitura
da escultura e falando o que que entendeu, bem legal.

11
Disponível em: <http://kaluesculturas.blogspot.com/>. Acesso em 20 jul. 2020.
12
Disponível em: https://www.jornaldebeltrao.com.br/noticia/194226/documentario-mostra-a-comunidade-
a-historia-da-praca-theophilo-petrycoski - acesso 02/11/2020
106

Figura 32 - Kalu na Praça Theophilo Petrycoski

Fonte: Portfolio de Kalu Chueiri

Modelando o barro: moldar para sentir e pensar

Aí no ano de 2005 me peguei com câncer, eu sou sobrevivente menina! Eu não


tenho mais a musculatura dessa perna direita, só tenho osso aqui. Eu tava lá no Norte do
Paraná, e lá tava muito difícil o tratamento. Então eu falei: “Quer saber de uma coisa? Vou
pra Pato Branco que lá eu tenho uma porção de amigos.” Vim pra Pato Branco, fiquei na
casa da Miriam, minha ex-esposa. Ela cuidou de mim, me levava pro hospital para fazer
tratamento, trazia de volta, uns três meses mais ou menos, até convalescer do câncer e tudo.
Então ela foi espetacular, a gente tem uma amizade, até agora ela tá meio doentona, eu que
tô levando as coisas para ela. Então com o câncer, me aposentaram por invalidez porque
eu não podia mais dar aula de educação física. A minha aposentadoria saiu em 2007, mas
desde 2005 já não trabalhei mais como professor.
Então eu fui fazer pós graduação em arte, fiz em “Arte Educação”. Só que isso não
habilitava tanto, aí eu fiz uma segunda, de “Didática e Estrutura e Funcionamento de ensino
de terceiro grau”. Porque se eu tivesse didática do terceiro grau, com mais a habilitação em
arte e educação, eu podia dar aula de escultura na faculdade. Como de fato eu dei ali em
Mangueirinha por um ano. Nunca mais quero dar, ninguém quer nada com nada.
Lá eu usei a minha tese, a minha tese era baseada no seguinte: a utilização da argila
nos processos de desenvolvimento cognitivo, pedagógico. E eu apliquei, ensinava eles a
preparar uma aula com argila, pras crianças entenderem o mundo um pouquinho diferente
e de se sentirem capazes de fazer alguma coisa com as próprias mãos. Por exemplo, um
107

exercício que eu fazia, que na época estava bem no forte do filme Piratas do Caribe: pega
o filme, passe o filme pra eles, depois dá argila pra eles fazerem os personagens do filme.
Aí, através disso você pode contar toda a história da colonização do caribe, você pode
localizar eles lá, tudo com um pedacinho de barro. Então eu apliquei isso numa faculdade
de licenciatura em arte. Mas ninguém queria nada com nada, eu levava até o material, aí
parei, não fui mais.
Tem uma coisa que foi bem boa, que tinha uma aluna minha, ela dá aula de artes lá
na Escola Carlos Gomes. Ela levava os alunos lá no meu ateliê, algumas turmas que fiz a
oficina com eles! Nossa… aí eu me esbaldava, era a coisa mais boa do mundo, sabe? Tinha
as esculturas lá, tinha o barro lá, tinha as fôrmas pras crianças verem como é que é o
negativo.
Tem uma oficina também que eu dei dois anos lá no CEFET, lá na UTF. Sabe o que
é que era a coisa legal lá? Vinha estudante de engenharia, de terceiro ano, e eu pedia pra
eles fazer um pé, fazer uma mão, fazendo eles observarem que a mão ela não é reta, que
ela é... sabe, essas nuances? E pra terminar eu falava: “Agora vocês inventem um carrinho
de supermercado, com o barro. Mas diferente dos que tem hoje” Saiu carrinho de tudo
quanto é jeito. E minha avaliação era assim: “Agora você vai fazer um texto sobre o
carrinho que você fez.” Nem que ele fizesse uma poesia só, mas em cima do tema,
relacionado com a forma como ele tinha feito. E eles curtiram, nossa! Bateram palma.

Esculturas em bronze: vivências com escultores em Curitiba

Em 2018 eu me mudei para Curitiba. Até vendi meu barracão, por causa disso. Foi
outra guinada na vida também, eu ter ido pra lá e conviver com mais pessoas do ramo,
tinha reciprocidade. Fui porque eu precisava aprender bronze e porque eu sempre fui muito
só eu aqui, e sentia necessidade de conviver com outros escultores para aprender outras
coisas. Aqui tem outros artistas, de outras áreas, que a questão da fundamentação até é
muito parecida, mas a forma e a técnica é muito diferente, tridimensional é bem diferente.
Então, eu venho trabalhando (figura 33) com madeira, chapas de ferro, resina, mármore e
outros tipos de pedra, esses quatro basicamente, e em Curitiba eu aprendi a fazer bronze.
Então em Curitiba eu estava no ateliê da Fundação Cultural de Curitiba. Tinha colegas
escultores, lá eu estava no paraíso, e só voltei agora pra Pato Branco por causa do corona,
porque fechou o ateliê em Curitiba e daí não tem como, porque lá é muito caro você alugar
um galpão. E eu não sei ficar sem fazer escultura.
108

Figura 33 - Kalu trabalhando em seu ateliê em Pato Branco

Fonte: Portfolio de Kalu Chueiri

Daí eu vim pra cá, porque o moço que eu vendi meu barracão ele tava muito
desanimado que os vândalos tinham arrebentado com tudo aqui, sabe? E falou para eu usar
sem pagar aluguel, que pelo menos conservava mais. Mas depois eu ofereci minha
motocicleta e mais uma parte em dinheiro, e aos poucos vou pagando o restante e ele está
me vendendo de volta.

4.2.5 Criar, projetar e realizar: encomendas e sonhos

Homenagem ao professor Sittilo

Estou fazendo essa escultura (figura 34) do professor Sittilo Voltolini, eu comecei
a fazer quando eu estava em Curitiba e agora eu trouxe para finalizar aqui. Eu ganhei um
edital, de uma sugestão que eu dei para a Academia de Letras (ALAP), para fazer uma
escultura do professor Sittilo, para homenagear ele com uma obra. Aí a ALAP fez o projeto,
109

mandou para prefeitura, a prefeitura aprovou e eles me pagaram 8 mil reais. Eu ia cobrar
16, eu fiz pela metade porque, aqui, a prefeitura não ia pagar. Só que ninguém faz uma
escultura dessas por menos de 20. Essa é tamanho natural, daí 8 mil eles pagaram. Não só
pela escultura, pagaram 8 mil para, inclusive dar uma palestra e mais algumas outras coisas.
Aí o bolo ficou tudo por esse valor.

Figura 34 - Escultura do Prof. Sittilo, em fase de acabamento

Fonte: Própria autora. Fotografado dia 24 jun. 2020.

Agora eu vou limpar ela, lixar, passar outra textura de novo e eu tenho que fazer
um banco para ele para pessoa tirar fotografia do lado do intelectual. Tem muito intelectual,
mas dos que eu conheci, ele pra mim, dos livros que ele escreveu, tá louco! Demais, demais.
Depois de pronta vai ficar do lado da Biblioteca Pública, do lado lá da onde era o Teatro.
110

Vírgulas na oração, e reticências na encomenda

Olha, do Sittilo tem uma história também. Uma vez a Tangriani me chamou na
UTF, quando era a diretora do câmpus aqui, acho que foi uns dois anos depois que ele
morreu. Ela me chamou e falou assim: “Ó Kalu, eu prometi pro professor Sittilo que eu ia
atender um pedido dele. Ele queria um local ecumênico.” Seria um lugar para que os alunos
fossem lá antes de uma prova ou algum período mais atribulado, que ficassem lá em
contemplação, meditação. E eu criei esse espaço, do jeito que ela falou.
Então eu bolei um quadrado com bancos, coberto. Na frente não tinha altar, tinha
só uma escultura do Flagelo de Deus, do Michelangelo. Só o pedaço do braço e o outro
pedaço do outro braço, assim. Um divino e um humano, só isso, quase encostando. As
paredes eram vírgulas, por que a vírgula é que separa uma oração da outra, o ponto acaba
a oração. Tá bom assim? Mandei bem pra caramba, né? Então, eu fiz a maquete da
escultura, que na época não sei, acho que sairia em torno do que... uns dez mil reais para
fazer. Que eu ia fazer tudo armação de ferro e ia fazer com resina transparente azul. Mas
não foi feito. Porque o reitor, disse que não tinha verba para decoração. Ela mostrou a
maquete para ele, tudo, mas não estava previsto... sei que não saiu...

Hélices para novos ventos: encomendas em elaboração

Agora recentemente aconteceu uma coisa muito interessante... tem um senhor que
é dono de uma empresa da área de aviação, aqui da região. Na fazenda dele tem muita
coisa, ele gosta de arte, e ele comprou duas esculturas minhas sem ver! A primeira ele viu
lá no aeroporto, que eu tinha emprestado para o prefeito usar lá na inauguração, pediu meu
contato e por telefone comprou e já levou.
E daí muito tempo depois, quase um ano depois, a gente tá no aeroclube lá em
Curitiba, eu e essa minha filha que mora na Espanha, e um amigo que estava com a gente
nos apresentou. E ele já quis sentar junto com a gente, já apresentei minha família pra ele,
aquela coisa toda, e já deu um passeio de helicóptero pro povo todo no outro dia. Nesse dia
eu mostrei a fotografia da hélice: “Ó tem uma hélice de 3 metros e pouco de altura que eu
fiz...” “Deixa eu ver. Quanto que é?” “Tanto.” “Então pode levar lá no hangar.” Assim!
E agora que retornei para Pato Branco e ele ficou sabendo por uns amigos em
comum que viram minhas esculturas lá na fazenda, me contratou para fazer umas
esculturas. E daí eu fui lá, e ele me mostrou as pedras, tem quatro pedras dessa altura, e me
111

deixou livre para sugerir o que fazer, já estou trabalhando num estudo, uma maquete, para
mostrar pra ele. E ele também quer fazer um mausoléu. Então eu tenho trabalho para um
bom tempo. Então isso que tá me deixando assim bem animado, bem motivado. Tem um
tempo que vou esperando o retorno dele, para o que for fazer, aí enquanto isso eu vou
fazendo outras coisinhas aí no ateliê (figura 35).

Figura 35 - Kalu em seu ateliê, ao lado de uma obra em processo de acabamento

Fonte: própria autora. Fotografado dia 24 jun. 2020.

Sonhos para continuar: esculpir e fazer a diferença

Para falar dos meus sonhos agora, vou responder com conceito: um dia eu dei de
presente para um amigo meu, professor de filosofia, uma biga com uma cocheira. Porque
ele contou a história das Almas, em que os gregos acreditavam que as almas quando elas
vinham pra habitar um corpo, essas almas eram colocadas numa biga e o cocheiro levava
112

elas nos confins do Universo para receberem as essências de uma pessoa. E tinha um cavalo
branco e um cavalo preto, o cavalo preto era o cavalo da sexualidade e o cavalo branco era
o cavalo da razão. Quando ele conseguia dominar os dois cavalos para chegarem certinho
lá nos confins do universo e receber, ah, essa pessoa ia ser um cidadão normal, cumpridor
dos deveres... Quando ele conseguia domar o cavalo preto e deixar o cavalo branco mais à
vontade, isso seria um filósofo, seria um artista, seria um líder da comunidade... Quando
ele não conseguia, que o cavalo preto dominava, ia ser um sofista ou um político. E daí eu
fiz, baseado nessa história dele, eu fiz a biga e os dois cavalos. Só que em vez de fazer um
cocheiro eu fiz uma cocheira, sensual, bonita, cabelo assim esvoaçando, onde que ela tava
indo, voando. E ele tava junto com a mulher dele quando eu dei esse presente, tava pertinho
do fim já. Eu falei: “Professor, eu trouxe um presente.” E ele disse assim “Kalu, você é
uma artista.” Eu falei: “Eu não, não sou não.” “Sabe porque que você é? Porque a diferença
do artista e do artesão é que o artista muda as coisas.”
Eu tô tentando mudar as coisas e meu sonho é esse. Sabe? Fazer alguma coisa para
mudar. Isso dentro da atividade de escultor. Esse é o sonho! Ainda quero... talvez nessa
empreitada aqui que eu te falei desse senhor da aviação, porque ele quer que eu faça um
túmulo também. Ele quer que eu faça o mausoléu dele, tudo em mármore. Essa é a minha
oportunidade de fazer um túmulo genuinamente do meu jeito de ser. Acho que por aí.
Talvez seja esse o sonho.

----- * -----

Esses são Kalu e Jurema que, com a força e a simplicidade presentes em suas
histórias de vida, nos permitem aproximar da grandiosidade que há no humano, em ser e
viver. As histórias aqui relatadas nos apresentaram quem são e parte do que vivenciam
esses artistas residentes em Pato Branco, e que dividem seus trabalhos artísticos com as
memórias desse povo.
No próximo capítulo, apresentaremos a análise narrativa. Para isso, continuaremos
trazendo mais vivências relatadas por eles, além daquelas contadas aqui, e mais reflexões
compartilhadas por Jurema e Kalu durante as entrevistas da pesquisa, contribuindo para a
construção do diálogo proposto neste estudo.
113

5 DAS MÃOS AOS LUGARES NO MUNDO: ESCREVER-PENSAR A PARTIR


DE VIDAS QUE SÃO E ESTÃO SENDO

Nós que passamos apressados


Pelas ruas da cidade
Merecemos ler as letras e as palavras de gentileza.
Marisa Monte

Das lembranças dos desenhos feitos pelas mãos do pai, na sala atrás daquela porta
onde as crianças nem sempre entravam…
Das recordações sonoras feitas pelas mãos das irmãs, nas teclas do piano, que viu
ser desencaixotado sobre o tapete da sala...
Dos embalos dos bailes, entre camélias colhidas por mãos amigas, recordados a
cada encontro...
Do cheiro de couro da bolsa que ainda guarda, feitas por mãos paternas na oficina
junto à casa…
Das mãos que cresceram rodeadas de amor, e agora trazem as mãozinhas animadas
dos netos e netas que chegam….
E assim as histórias foram sendo rememoradas, nas sensações e percepções que
ficaram, de cada experiência de vida.

Em um trabalho com histórias de vida, reconhece-se a individualidade presente nas


memórias registradas, e o alcance restrito que há na percepção de cada pessoa sobre a
realidade que o rodeia. Bosi (2003, p.115), compara essa característica a uma bolha de
sabão: “Se a nossa atividade essencial como sujeitos é ação e percepção, nós a executamos
dentro de um espaço de vida que nos rodeia como uma bolha de sabão e onde encontramos
nosso significado biológico e existencial.” Nesse estudo, olhamos para duas percepções
sobre suas “bolhas de sabão” e seu significado pessoal na existência de cada um e, por essa
característica, não tem a pretensão de apresentar resultados estatísticos ou universais sobre
um tema, nem comparativo entre os participantes. As vivências que são compartilhadas
pelos narradores, contribuem para a compreensão de algumas realidades sociais, como
itens da memória social que, pela experiência individual evocada nas memórias, se
conectam com a dimensão temporal e com o momento psicossocial da lembrança (BOSI,
2003). Ao se resgatar as percepções de dois artistas plásticos sobre si e sobre seu mundo,
encontramos condições de ampliar as reflexões e o conhecimento nas ciências humanas e
114

sociais, ao reconhecer formas outras para ser e estar, viver e sentir, fazer e sonhar, e assim
compreender mais as relações sociais a partir de quem as vivencia.
Nessa pesquisa, conforme fomos remontando as histórias de vida, fomos
percebendo fatos que são atravessados pela colonialidade e também aqueles permeados de
re-existências, os quais nos possibilitam ler as realidades vivenciadas através da base
teórica por nós escolhida: a de(s)colonialidade, o que faremos neste capítulo de análise
narrativa. Optamos por apresentar Jurema e Kalu no capítulo anterior, sem tecer a análise
narrativa junto aos textos de suas histórias de vida, e agora, nas próximas páginas,
destacamos episódios e memórias que nos convidam a refletir como nossa postura em
relação ao mundo também possibilita a construção de conhecimentos construídos a partir
dos significados existenciais e biológicos que encontramos no espaço de vida de nossas
“bolhas de sabão” (BOSI, 2003).
As leituras teóricas que são descritas a seguir, buscam atender ao terceiro objetivo
específico desta pesquisa: Identificar nas histórias de vida de dois artistas plásticos como
vivenciam ser e estar no mundo e como foram construídos seus modos de ser, fazer e sentir
através das experiências vivenciadas no contexto da sociedade moderno-colonial. Nesse
sentido, escolhemos os conceitos das colonialidades do poder, do saber e do ser, e da práxis
de re-existência, para conduzir o escrever-pensar desta análise narrativa.
A colonialidade do poder, entendida como forma de dominação do sujeito e do
material, produtora de desigualdades nos direitos de ser, existir e pensar do sujeitos, se
expressa atualmente no controle do capitalismo e sua exploração social pautada em um
padrão universal (QUIJANO, 2002); a colonialidade do saber, que se dá no detrimento das
formas de produção de conhecimento que não atinjam os ideais do pensamento
hegemônico ocidental (WALSH, 2005; LANDER, 2000) e; a colonialidade do ser,
reconhecida nos sentimentos de inferioridade existenciais, sendo reproduzida nas
invisibilização, visibilização negativa e silenciamento dos sujeitos que produzem
epistemes de forma distinta dos objetivos impostos pelo pensamento moderno-colonial
(WALSH, 2005; ALBÁN ACHINTE, 2017; MALDONADO-TORRES, 2007). As práxis
de re-existência, por sua vez, compreendidas como ações, modos de ser e de saber que
potencializam os sujeitos na procura por libertação e reconstituição do ser em sua
integralidade (ALBÁN ACHINTE, 2017), produzindo caminhos de descolonização do
poder, do ser e do saber.
Organizamos o texto da seguinte maneira: num primeiro momento, trazemos
episódios rememorados por Jurema e Kalu, que são atravessados pelas colonialidades do
115

poder, do ser e do saber. Na sequência, outros fatos e recordações das histórias vividas pela
artista e pelo artista participantes são lidos a partir do conceito de práxis de re-existência.
Optamos trabalhar o texto em dois blocos distintos, para assim reunir as leituras a partir
dos conceitos ligados às colonialidades e depois o conjunto daqueles relacionados à práxis
de re-existência. Finalizando o capítulo com considerações decorrente das reflexões
escritas.

5.1 Sucatas e descosturas em sociedade: das colonialidades do poder, do saber e do


ser

Os registros artísticos perpassam a relação estreita do artista com o mundo, não


exatamente no sentido literal, como aponta Bosi (1986), mas sim representações da sua
ótica, expressas nas obras, e o que vemos traz um tanto da perspectiva do autor, do seu
olhar representado em formas. Nesse sentido, iniciamos essa análise narrativa com uma
das histórias do nosso convidado Kalu. São trechos em que expõe os valores, sentimentos
e trabalhos que colocou na elaboração das obras do Largo das Virtudes, na Praça Presidente
Vargas, no centro de Pato Branco, em frente à Igreja Matriz. Nesse Largo havia um
“conjunto de esculturas com alusão às ‘virtudes humanas”, como descrito na página do
artista13, indicando que “a forma dos objetos é uma abstração do autor.” A inauguração
ocorreu no dia 07 de abril de 2000, com sete esculturas que, de acordo com Cardenal
(2018), permaneceram na praça até meados de 2008. Kalu relata:

Só que... teve uma época que ficou difícil, sabe? Não sei se você chegou a ver
uma escultura que eu tinha na praça de um casal nu abraçado (figura 36)?
Pois é, me chamaram de satânico. Foi bem ruim, porque a intenção não
tinha nada a ver com… A intenção era Largo das Virtudes, daí tinham oito
esculturas com fundamento filosófico baseado no meu entendimento da
forma que podia ser caracterizado cada virtude. O casal abraçado era a
escultura da virtude do amor.

Figura 36 - Visão do chafariz e a obra Largo das Virtudes em 2003

13
Disponível em: www.kaluesculturas.com
116

Fonte: acervo da Prefeitura de Pato Branco in Cardenal (2018)14

Então vou te dar um exemplo, tinha uma que era a humildade (figura 37).
O que que é humildade? Normalmente as pessoas pensam que a humildade
é o cara que não maltrata o pobre. Ou é o pobre que só tem um chinelinho.
Não! Isso é pobreza! E se você passa a mão na cabeça dele, não! Isso é
demagogia, não tem nada a ver com humildade! O humilde é o mais forte
de todos, porque ele não se ofende com a grandeza do outro... Como é que
eu fiz isso na forma, assim, no palpável, na escultura? Eu fiz uma barra
circular de uma roda de um caminhão, e daí eu pus uma escultura de uma
leve inclinação de cabeça (...). Porque eu reclino a minha cabeça pra você,
porque imperceptivelmente você também já se reclinou a mim, você já
reconheceu a minha grandeza também. Isso é ser humilde, é você
reconhecer! E daí eu fiz isso, com umas barras de ferro grossa... forte…
tensa. Porque o humilde é forte! O fraco é hipócrita. Então isso era uma das
esculturas... é linda a escultura, linda a escultura… arrancaram e jogaram
fora! Literalmente! O cara vendeu pro ferro velho as esculturas de ferro,
quando o prefeito saiu que entrou o outro. Então, nossa… como é que não…
isso machuca né? Machuca…

Tinha uma que era muito difícil, as pessoas, quando eu explicava assim…
Fora o nu né? Então tinha duas formas, duplicadas, as mesmas formas mas
duplicadas, duas de cada uma. Uma era a forma de um seio bem cheio, e a
outra um seio bem caidinho, mirradinho. O nome dessa virtude era

14
Em sua pesquisa de Mestrado sobre a praça Presidente Vargas, Cardenal (2018, p. 135), destaca um
depoimento coletado em relação à estátua principal do Largo das Virtudes, do casal abraçado: “O pessoal
achou que fosse uma cena de amor, então no dia 07 de setembro, quando houve o desfile, [...] colocaram uma
capa grande de plástico por cima, para cobrir aquilo. E houve protestos por causa daquilo. [...] Eu estava na
Praça e então eu vi que tinha aquela capa grande, durante a parada toda. Bem na frente do pessoal que fazia
o discurso. (ENTREVISTADO I, 2016)”
117

generosidade (figura 37). Então, quem que é generoso? Se eu te der meu


casaco eu tô sendo generoso com você? Não, não! Isso é caridade, é outra
coisa. Quem é generoso é a natureza, porque ela não pede nada em troca,
isso é você ser generoso. Mas por que? O que que tem a ver o seio com a
natureza? Se não tivesse o leite da sua mãe lá no seio dela, você não tava
vivo. Ela foi generosa com você, a natureza que providenciou que tivesse
leite ali no seio pra você tá vivo. Tá... mas e o outro, o seio mirradinho? É a
generosidade do colo da avó? Ninguém é mais aconchegante do que o colo
da avó, não importa a idade, não só na época da amamentação, pro resto da
vida! Isso é ser generoso, né? Que você dá o carinho... Jogaram fora!
Venderam pra custo de ferro sucata, dois reais o quilo. Tá bom... Dá razão
pra mim de ficar... triste? Bemmmm desanimado.

Quer mais umas virtude? Pode falar? A outra, era uma professora sentada,
assim, com um livro. Mas ela é bem altiva, bem garbosa. Essa escultura se
chamava Gratidão (figura 37)! Agora, você tem que entrar no universo, do
Largo, do contexto... Então, o que que é a gratidão? É gratidão quando você
agradece alguém por alguma coisa que te afetou, que você é agradecido.
Mas no sentido comunitário, você tem que ser agradecido ao teu professor,
porque ele que muda a cultura, que te transforma da cultura familiar pra
cultura erudita. Padre não, padre conserva. O político também é
conservador. O professor é o que te transforma, né? Então, eu fiz o
professor como, neste caso, do Largo das Virtudes, o símbolo da gratidão.
E eu não fiz, eu não fiz ela lendo. Eu fiz ela com olhar perdido, porque?
Porque quando você lê, você só introspecta. Você só aprende quando você
reflete. E fiz ela refletindo sobre o que tava lendo. (KALU)

Figura 37 - Esculturas da humildade, da generosidade e da gratidão no Largo das Virtudes na


Praça Presidente Vargas - Pato Branco - PR

Fonte: retiradas da página Kalu Esculturas15

E no relato continuou descrevendo uma a uma, e de como as esculturas das virtudes


foram retiradas repentinamente pela prefeitura, sem avisar o artista, e sem devolverem ou
informarem onde foram guardadas na época. O que se sabe é que elas foram retiradas por
causa da mudança de gestão do prefeito. “E aí as esculturas... sumiram. Teve umas que eu nem

15
Disponível em: <http://kaluescultura.com.br/monumentos_detalhes.php?id=5>. Acesso em 21 jul. 2020.
118

sei o que foi feito. E tem outras que eu sei, que tavam jogadas atrás do Teatro, duas, a da professora
que é da gratidão e a da justiça.” Essas duas esculturas de pedra foram resgatadas e recuperadas

por ele, sendo a da Gratidão doada para uma Escola em Santo Antônio da Platina, onde sua
tia foi a primeira professora, e a da Justiça está na Vara da Justiça do Trabalho de Pato
Branco. Porém, as de ferro foram vendidas a preço de sucata. Kalu relata: “Eles vendem e
jogam fora” Mas, mesmo assim, busca compreender partes desse processo: “Olha, pra ser
sincero, eu entendo perfeitamente a questão cultural da intolerância, o que eu não entendo é você não
ter mais oportunidades! Você não precisa gostar de um casal nu, mas você pode gostar de um pato,
então encomende um pato…”.
Atos e fatos, que vão além, talvez, de uma intolerância cultural, e que perpassam
por relações de poder, nesse caso, de poder político. Dentro da lógica da colonialidade do
poder, aqueles que ocupam cargos dito superiores, ou tem o controle do capital, se arrogam
do direito de dominar, explorar, mas também de limitar os acessos, dentro de um padrão
definido por poucos, como afirma Quijano (2014), num movimento gerador de conflitos
de interesses sociais.
Situações de desrespeito que, ao serem vividas na pele, nas imagens rememoradas
em palavras, ficam registrados no tom da dor sentida. Em algumas frases ditas por Kalu,
em meios às recordações sobre como elaborou suas obras, emoções ressoam na percepção
pessoal do evento: “Então, nossa… como é que não… isso machuca né? Machuca…” ou “Dá razão
pra mim de ficar... triste? Bemmmm desanimado.” Palavras, sentimentos, que falam por si.
Nesses relatos, reconhece-se a manifestações de expressões primárias da colonialidade do
ser, como descrito por Maldonado-Torres (2007): a desumanização e a invisibilização.
Dentro das ações desumanas de invisibilização e silenciamento das retiradas das
obras do Largo das Virtudes, a escultura do casal nu abraçado quase foi parar no fundo do
rio. Kalu explica que a retirada do “Monumento ao Amor” foi diferente das esculturas das
outras virtudes, e que o seu desaparecimento por completo foi evitado pela ação de um
amigo que trabalhava na prefeitura na época:

Depois de um tempo, recuperei ela, você viu que o casal tá ali na entrada do
ateliê (figura 38). Aí a história é bem legal. Tinha um amigo que era
responsável pelo setor de iluminação da cidade. E ele ouviu quando o
prefeito conversando lá com pessoal dele falou assim: ‘Você dá um jeito de
consumir com aquela, com aquele casal pelado lá. Jogue no fundo do rio,
consuma!’ Aí meu amigo pagou um caminhão do bolso, de madrugada, foi
lá e tirou a escultura e escondeu. E sumiu a escultura, e o prefeito pensou
que era o pessoal dele mesmo que tinha tirado. Ficou por isso.
Daí muito tempo depois, meu amigo me procurou e falou assim: ‘Ó, a hora
que o prefeito sair eu devolvo a escultura pra você.’ E ele trouxe aqui a
escultura! Nossa mãe do céu. Aí eu tinha trazido um vinho do casamento da
119

minha filha lá da Itália. Um Valcolichello, que eu ganhei no avião. Aí eu


ganhei e falei: ‘Olha, por favor, uma das coisas mais preciosas que eu tenho
é esse vinho, eu gostaria que você aceitasse.’ E dei o vinho de presente pra
ele, e a escultura tá aí! (KALU)

Figura 38 - “Monumento ao amor”, disposta na entrada do ateliê do Kalu

Fonte: própria autora. Fotografada dia 24 jun. 2020.

A sensação presente na lembrança de frases como “Jogue no fundo do rio, consuma!”,


refletem o tom pesado do que foi vivido. E o relato também ressalta o alívio imensurável
ao receber de volta a obra, pelas mãos de seu amigo, e que retribuiu com um presente
precioso, dado o tamanho da gratidão, um respiro frente à opressão vivida.
Exemplo que reúne três colonialidades: a colonialidade do poder pode ser
identificada pelo ato político de retirada sem informar nem devolver e do uso de religião
como argumento para a intolerância a uma escultura que representava o amor num beijo
de um casal abraçado; a colonialidade do saber se reconhece no desrespeito ao
conhecimento ali construído e com a ignorância sobre o trabalho artístico; e a colonialidade
do ser quando o tempo e o espaço comum é controlado, o corpo negado como parte do ser,
ou as virtudes humanas como merecedoras de destaque.
A retirada de obras de arte, nesse episódio, também teve seu caráter simbólico,
frente à população, no controle do que podiam ver num espaço “nobre” da cidade: a praça
central. De acordo com Maldonado-Torres (2008, p. 49), “A colonialidade do ser refere-se
120

ao processo pelo qual o senso comum e a tradição são marcados por dinâmicas de poder
de carácter preferencial: discriminam pessoas e tomam por alvo determinadas
comunidades.” O autor ainda destaca que, a partir de Quijano (2000, in MALDONADO-
TORRES, 2008, p. 49), “O carácter preferencial da violência pode traduzir-se na
colonialidade do poder, que liga o racismo, a exploração capitalista, o controlo sobre o
sexo e o monopólio do saber.” Nesta passagem da retirada das obras do Largo das Virtudes,
fica a reflexão do que a presença de corpos nus abraçados significou para provocar tal
reação? A negação do corpo, é reconhecida como um dos alvos do sistema de controle
moderno-colonial, que ocorre em diferente âmbitos, e, como fala Albán Achinte (2017), a
“corporalidade” é um nível decisivo de relações de poder, onde o corpo é depositário dos
sistemas de produção, de controle, de evangelização e do conhecimento. Nesse episódio,
fica explícita a intolerância sobre a representação do amor no abraço de corpos nus, e que
encontra as justificativas em discursos religiosos, parte dos sistemas de controle descritos
pelo autor. O que se “pode” colocar na praça central em frente à Igreja Matriz?
No entanto, ampliamos a reflexão sobre o restante das obras que foram retiradas da
praça, quais seriam então, os motivos explícitos da retirada e despejo de esculturas que
representavam as virtudes? O que elas significavam? Fica a questão do que havia na
construção subjetiva que elas provocavam, que também precisou ser invisibilizada pelo
poder público, dentro dessa mesma dinâmica de controle moderno-colonial. E o porquê de
sua “incompatibilidade” com a cultura da cidade? Ficam as questões.
Além da reflexão dos impactos sociais que envolvem esse episódio narrado por
Kalu, abaixo nos propomos a olhar pelo viés do controle subjetivo sofrido, ao (re)conhecer
as influências no seu fazer artístico após passar pela experiência relatada:

Então tem que ter muito cuidado com essas coisas. Principalmente quando
é obra pública. Aquela experiência ali da escultura da praça, foi terrível.
Porque a questão da nudez ali, ela não foi aceita por intolerância. Aí agora
quando eu faço outras, para não ter esse revés... eu tenho mais cuidado, ‘Ah,
vai ficar lá em tal lugar, não, então vamos fazer diferente’. Sei que talvez eu
tivesse que ser mais ousado e eu talvez tô sendo um pouquinho covarde.
Porque eu não quero acreditar que só daqui algum tempo que eles vão
entender isso, sabe? É um pouco de covardia também. Mas é necessário
para continuar trabalhando, para receber encomenda. Tem toda essa
adaptação... mas tenho esperança que vai mudar. (KALU)

Depois de perder algumas obras em sucata e resgatar outras, o fazer artístico foi
“controlado” subjetivamente, ao dizer que não foi mais ousado, para garantir seu sustento
com mais encomendas. Kalu assume para si uma “culpa” de uma “ousadia” ou “afronte
121

aos bons costumes” passando a regular sua criação em alguns casos e espaços. No entanto,
se observarmos na sua fala, a intenção era representar as virtudes, e entre elas o amor, e
não de afrontar adultos, religião ou prejudicar crianças. Então talvez podíamos entender
que não seria necessária essa regulação, no entanto, para quem sentiu na pele a intolerância,
passar a limitar partes de sua criação artística, se tornou importante para manter seu
trabalho aceito pela sociedade.
Reação essa à uma dinâmica de opressão sofrida no ato de silenciamento de sua
expressão naquelas obras, suprimidas do espaço público, e que ressoam em seu fazer,
quando da produção de outras, em uma esquiva de sofrer novamente esse “revés”, que
atinge diretamente seu trabalho e sustento. Pela injustiça e violência dos opressores, o
sujeito é negado em sua humanidade, como pontua Freire (2019), sendo retirado de sua
autonomia. A colonialidade do ser atuando, desta forma, conforme destaca Mota Neto
(2016), pela negação do direito à liberdade e existência do sujeito.
Jurema também relata experiências de quando participou de projetos, pinturas de
painéis na cidade, e que simplesmente deixaram de existir. Ao refletir sobre essas situações,
a artista fala que as obras: “simplesmente somem... o Kalu sente mais”, com empatia sobre as
obras de seu amigo e colega, por também conhecer as histórias contadas acima. Relata um
de seus trabalhos, na pintura do painel da Fauna e Flora no evento Circo das Artes (figura
39), a artista conta o episódio e como sente-se nesse caso:

Tivemos também mais um trabalho que a gente trabalhou, participou do


“Circo das artes”. Um painel que foi pintado e que agora já não existe
mais... o problema nosso aqui é que as coisas se perdem. Você tem um
trabalho, faz um trabalho primoroso, de repente muda, e eles... muda e,
pronto, acabou. Eu não sei dizer, ou é porque muda os interesses, alguma
coisa assim... sei que não há uma conservação. Então olha o trabalho, eu fiz
a fauna e a flora brasileira, então imagine o trabalho pra pintar todo esse
painel. Mas... já foi. (JUREMA)
122

Figura 39 - Painel pintado por Jurema para o Projeto "Circo das Artes, Brasil 500 anos”

Fonte: arquivo pessoal Jurema Edy Pereira.

Quando descreve sobre o que fez, “...e que agora já não existe mais... o problema nosso
aqui é que as coisas se perdem.” é possível refletir como nessa frase o que se perde vai além
das coisas materiais, há a dedicação, o trabalho, o ser ali envolvido e que de alguma forma,
uma parte disso desaparece junto. E o sentimento não se concentra somente no ato de ter
sido removido e da não preocupação com a conservação da arte local, mas também de não
poder saber, ou não se esclarecerem os motivos de tal ato. Ações que nos remetem à
colonialidade do saber e ser, como descreve Gómez (2019), que atuam no espaço e no
tempo como uma colonialidade epistêmica, em que a arte é muitas vezes excluída ou
encurralada a espaços reduzidos. E assim, essa exclusão reflete no ser que a realiza, ao
ocultar a produção de quem o elabora.
Na frase em que Jurema relembra de como foi para elaborar a obra, “então imagine
o trabalho pra pintar todo esse painel. Mas... já foi.” traça a lembrança do empenho, da
capacidade, do fazer, do seu trabalho, até o “mas”... dentro de uma resignação perante o
alcance limitado para impedir que essa memória estivesse viva além da foto. No entanto, a
ação permanece nela, incorporada através do seu trabalho e do seu recordar, como contribui
Bosi (1987, p. 398), ao refletir sobre trabalho e memória, descrevendo que: “Todo e
qualquer trabalho, manual ou verbal, (...) acaba-se incorporando na sensibilidade, no
sistema nervoso do trabalhador” e que, ao recordá-lo, investe grande significação e valor
ao ocorrido.
Esse evento do painel da Fauna e Flora, que a artista relata, nos faz refletir sobre o
impacto de atos de controle sobre o produto de seu trabalho. Quando o trabalho é alvo de
123

controle (e exploração), reconhece-se uma das dimensões16 principais em que a


colonialidade do poder atua, de acordo com Quijano (2014), ao controlar, não só o trabalho,
mas também seus recursos e produtos, em torno e em função do capital e do mercado
mundial.
E nas memórias que ficam de trabalhos realizados pelos narradores dessa pesquisa,
e que agora existem somente em fotos e memória, está também o painel “Os pioneiros”
(figura 40). Essa obra, dessa vez feita coletivamente pela Jurema e Eloy de Lima, e
executada pelo Kalu, acabou sendo desmanchada recentemente, por outros motivos, após
o incêndio do prédio do Teatro Municipal ao lado da onde o painel estava instalado. Jurema
conta:
Esse incêndio foi muito triste, porque construir o Teatro foi uma conquista
muito grande. Inclusive, o painel não queimou, mas não sei onde está...
Porque agora desmancharam o teatro, mas eles deveriam ter feito... isso aí
é uma coisa que faz parte do patrimônio mas não sei onde está! Porque eles
podiam ter entrado em contato com o Kalu, pra que ele retirasse, porque
ele ia saber como retirar para não estragar. Mas aqui o negócio é isso aí,
eles não respeitam, eles não acham, não dão importância devida às obras
artísticas. E assim a gente se sente frustrada, né? Porque quando você vê,
foi! O Kalu, por exemplo, deve ter contado a história das estátuas lá na
praça, e ele ainda mais que eu... porque ele faz as coisas que aparecem mais,
mais plausíveis. Que você vê aquilo... some e foi pra onde? Ele andou
catando as esculturas dele por aí, porque só faltava ter jogado fora,
literalmente, sabe? Eles não dão o valor. (JUREMA)

Ao relatar essa vivência, mistura-se a alegria de ter conquistado esse espaço, de ter
contribuído nessa parte da história cultural da cidade, de um trabalho coletivo e que tem
orgulho de ter feito, com a dor e indignação de agora nem saber o que foi feito com ele,
não ter sido consultada, além da triste perda do prédio do Teatro. O incêndio queimou o
Teatro17, porém o painel, que tinha ficado intacto, foi retirado/desmanchado para a obra de
reconstrução. Por isso a decepção no tom de suas palavras sobre mais uma obra que não
existe mais. Quando diz: “mas aqui o negócio é isso aí, eles não respeitam.” reflete uma relação
com o espaço em que atua, a cidade e sua relação com o campo da artes, sentido em nuances
de apoio e também de desamparo, experienciando em diferentes situações vivenciadas
durante sua carreira artística local.

16
Quijano (2014) indica dois eixos onde o novo modelo de poder é fundamentado: um está baseado na ideia
de “raça” e o outro na constituição de uma nova estrutura de controle do trabalho.
17
Em 17 de abril de 2018, um incêndio destruiu o Teatro Municipal Naura Rigon. O fogo atingiu a estrutura
do teatro mas o painel não foi atingido. Em 2020 foi iniciada a demolição, para elaboração de novo projeto.
De acordo com a matéria do jornal Minuta, o prefeito informou que queriam tentar manter o painel, e se não
fosse possível, iriam pedir para o Kalu fazer outro. Disponível em:
<https://www.minutta.com.br/noticias/estrutura-do-teatro-comeca-a-ser-demolida-local-ficou-destruido-
depois-de-incendio>. Acesso em 14 jul. 2020.
124

Figura 40 - Painel “Os pioneiros” em fase de execução, ao lado do Teatro Municipal, no Centro
Cultural Raul Juglair, dez. 1997.

Fonte: acervo pessoal Jurema Edy Pereira

Sobre a possibilidade de resgate do painel após o incêndio do Teatro, Kalu contou


também como aconteceu o que sabe sobre o processo de retirada: “Destroçaram. Tentaram
retirar, mas não tinham técnica, né? Não sabiam como é que era.” E mesmo sem terem esse
conhecimento, não entraram em contato com o artista, que ficou sabendo depois como foi:
“Não, não pediram, mas tentaram tirar, sem quebrar, não deu jeito.” Ele conta também que,
quando da ocasião do incêndio do telhado e estrutura interna do Teatro, chegou a pedir,
para a secretária da cultura na época, as estruturas que ficaram retorcidas : “Eu ia fazer uma
fênix com esses ferros. Só que ela foi atrás, mas a empresa que foi contratada pra desmanchar ficou
com tudo e levaram embora.” Nessa ocasião, de acordo com o relato, houve uma tentativa por

parte dos responsáveis de colaborar, mas que não foi possível nos trâmites burocráticos,
comumente impessoais. No entanto, a relação emocional dos/as artistas da cidade com esse
Teatro, vai além do contrato de reconstrução da obra física. Sentimento esse que seria
representado na proposta da obra de arte que Kalu gostaria de fazer para colocar ao lado
do novo Teatro, no formato de uma fênix, com as estruturas de ferro retorcidas pelo fogo.
Como observa Albán Achinte (2017, p. 139), “la vida se acelera pelas demandas de lo
productivo”. Dessa vez, a fênix não renasceu.
As memórias e lembranças dos artistas sobre esse painel, um dos trabalhos que
realizaram unindo suas mãos, técnicas e criatividade, se fizeram presentes durante as
entrevistas de ambos. Para Jurema, além dessa questão do final do painel, que contamos
125

acima, houveram outras situações estranhas, vamos assim dizer, que ocorreram já no início
desse concurso que participou junto com o Eloy. Abaixo o relato das cenas que envolveram
a premiação:
Então foi uma coisa bem bacana. E esse menino, o Eloy de Lima, ele fazia
aula comigo. Nós combinamos assim: ‘Quem ganhar o prêmio divide.’
Porque nós fizemos em parceria, e foi legal! Porque os meninos, às vezes
eles não tem essa disposição... mas daí eu fui puxando: ‘Eloy, você tem
capacidade, você faz’. Eu preparei a massa, que foi uma massa especial,
para poder fazer, pra ficar bom. Foi bem bacana e a gente trabalhou muitas
parcerias. E ganhamos o prêmio! Só que assim... ganhamos o prêmio, mas
foi muito interessante, porque disseram: ‘Ah, mas será que vocês não
podiam dar tanto pro Departamento de Cultura?’. Olha... caramba, né?
Não, não, uma coisa assim... louca. Porque a prefeitura que ofereceu o
prêmio. Um valor mínimo, mil reais. Pra obra que fosse escolhida, para ser
a representação do que eles queriam. E na hora da premiação, de receber a
premiação: ‘Ah, vocês não podiam dar um tanto pro Departamento de
Cultura…’ Aquelas coisa tudo assim... e a gente muito idiota, deu, né? É
desapego de artista... Mas assim, foi aquilo e acabou, não sabemos o que
aconteceu, o que não aconteceu, se não... nada, foi assim! Porque nós
recebemos uma parte e uma parte a gente deu. E pronto, foi assim, daí
nunca perguntei, a gente também não fica muito atrás. Mas só que a gente
depois começou a analisar: ‘Pô meu, não precisava né? Eles deviam ter
deixado para gente, pra que ainda ter que auxiliar? Eles têm já, para cada
projeto eles tem uma verba, né?’ Então, é uma coisa muito interessante
pensar, para você ver que, o apoio e o incentivo é... e assim tem acontecido.
(JUREMA)

Percebe-se que a ênfase das falas dela não são somente na questão do valor pago,
mas ainda mais sobre o pedido de dividí-lo, e da sua própria reação: “Aquela coisa tudo
assim... e a gente muito idiota, deu, né? É desapego de artista…” O que seria que naturaliza esse
“desapego do artista”? De um valor que seria dividido entre os dois autores da obra escolhida,

pôde ser considerado “natural” ser entregue somente metade do total do prêmio a eles,
como se relacionassem o trabalho do artista como “voluntário” ou não remunerado… A
colonialidade do saber e do poder que influenciam diretamente nas valorizações e
desvalorizações dos saberes e fazeres, numa naturalização do modo de ser da sociedade
liberal-capitalista e que atende à “necessária superioridade dos conhecimentos que essa
sociedade produz (“ciência”) em relação a todos os outros conhecimentos.” (LANDER,
2000, p. 13).
Além da reação da artista, sobre como lidaram com tal evento na época, esse
episódio traz outras reflexões sobre a construção local de conhecimento, as relações sociais
em torno do fazer artístico. A partir dos relatos de somente dois artistas da cidade, podemos
perceber o quanto Pato Branco tem ações na área das artes, mas que em alguns casos estão
ali para compor uma burocracia, mas não para fazer parte do patrimônio e constituir
história, a partir da conservação por parte das autoridades.
126

Bosi (1986) destaca o papel do artista em sua historicidade local, sem deixar de
delinear o caráter único de cada obra. Quando as obras são retiradas sem explicação, sem
devolução, os pagamentos são dados em parte, entre outros episódios do gênero, fica um
questionamento do que acontece com o reconhecimento, valorização e respeito ao lugar da
arte, e dos/as artistas, na construção e desenvolvimento do município. Para Maldonado-
Torres (2008), ações assim enfraquecem a produção de um conhecimento importante para
a descolonização epistêmica, que tem sua força a partir do local, a partir da localização
geopolítica do sujeito.
Ainda nessa história, Jurema conta que ocorreu outra cena inusitada, dessa vez com
o quadro que a artista fez e que compunha o conjunto das obras selecionadas na ocasião:

Então, essa obra do painel era para representar o que foi Pato Branco
(figura 41). Nós tínhamos que fazer uma maquete, que inclusive eu acredito
que esteja lá ainda, uma maquetezinha com a miniatura do que foi feito no
painel. A gente fez o projeto no meu ateliê, o Eloy fez essa parte mais
futurista, mais moderna, e eu fiz uma peça com carroça, com pinheiro, com
uma coisa assim do que foi a colonização. Então cada um abordou um
caminho. Inclusive esse meu quadro, quando o governador Greca, que era
governador do estado na época, esteve em Pato Branco, ele levou esse
quadro, porque estava lá no Departamento de Cultura, eles me pediram se
podia dar. O que que tu vai fazer? Aí então eu tenho até uma foto, agora
não tá aqui, eu tenho que inclusive tenho que encontrar, que tem o registro
que eu doei. Inclusive ele já me convidou várias vezes para ir na casa dele
ver onde está meu quadro... Então, o que acontece... esse quadro eu já fiz
assim uma coisa super moderna para aquela época, porque eu coloquei
tronco de pinheiro, eu coloquei uma carrocinha, tipo vamos dizer, 3D.
(JUREMA)

No conjunto dos episódios dessa premiação, dois momentos de desvalorização do


trabalho artístico: o primeiro, ao proporem aos artistas reduzirem o valor a receber do
prêmio, e o segundo, ao pedir para doar uma obra, sem esboçar nenhuma intenção de pagar
por ela, para aí então “presentear” o convidado ilustre. Nesse pedido do município, para a
artista doar o quadro premiado, ocorreu o reconhecimento do valor da obra em seu sentido
simbólico, do saber ali produzido, representando algo grandioso e erudito, para se dar de
presente à uma autoridade, em nome da cidade. O que ficou pendente foi o reconhecimento
da obra como produto de um trabalho, com investimento de tempo, técnica e material,
digno de remuneração. O saber artístico, muitas vezes produzido fora da lógica
hegemônica, por envolver no seu fazer características como sensibilidade, criatividade e
outros ritmos de execução, como ressalta Albán Achinte (2006), é atingido diretamente
pela colonialidade do saber, de exploração e de certo domínio sobre o outro (Mignolo,
2017), não sendo considerado o aspecto econômico nesse caso.
127

Figura 41 -Doação da Obra representando a colonização de Pato Branco - Outubro 2000

Fonte: arquivo pessoal Jurema Edy Pereira

Em nossa sociedade, marcada pelo pensamento hegemônico da ciência moderna,


das transformações no espaço de trabalho pelo desenvolvimento econômico, os processos
criativos fora do eixo da tecnologia, velocidade, automação, padronização, sofrem
desvalorização constante (FURTADO, 1978; HEIDEMANN, 2009). Outros exemplos nas
descosturas existentes em relações comerciais, apareceram nas narrativas de ambos
artistas. Destacamos alguns trechos onde essa dificuldade é ilustrada, como nessa fala de
Kalu:
Não sei lidar com isso não. Eu gosto de fazer. Tanto é que eu, pra fazer a
valoração da obra: ‘Nossa, mas foi tão fácil fazer. Ah, então foi fácil, vou
cobrar só tanto então.’ Aí eu cobro, só tanto, sabe? E dificilmente eu: ‘Ó,
isso aqui vale tanto e não abro mão.’ (...) E também as pessoas pedem
desconto, pechincham. Único cara que não pediu desconto é o Cláudio e um
cliente recente agora. Os outros, todo mundo pechincha: ‘Ah não, faça isso
aí e eu coloco você no jornal, eu faço isso aquilo, eu ponho aqui na minha
loja todo mundo vai ver’. Esse tipo de coisa assim. Como se tivesse fazendo
favor, isso é mais comum. Mas... eu preciso do dinheiro. Mesmo que seja
menos que o valor real... Mas eu não me entristeço com isso. Eu quero fazer
escultura. Posso fazer o que eu gosto. Só que, para entender essa cultura em
relação à arte... eu vou pegar lá nos fundamentos de educação. Se por acaso
todos nós tivéssemos assim, um tipo de aula, sobre leituras de obras de arte,
e saber que nem tudo que é explícito é o implícito. Se eles tivessem a
capacidade de ver a obra como o inusitado, o não óbvio, certo? Que é difícil
de elaborar, que o cara sofre para fazer, que o pintor tem que aprender
muito de perspectiva para poder pintar. Tudo isso, se ele tivesse aprendido
isso tudo lá na escola, seria diferente. Então o que eu acho é que a questão
da escola reprodutivista dentro da arte. Acabou com isso. É só fazer, é só
copiar. (...) Esse tipo de coisa que se a escola prezasse mas isso, eu acho que
mudaria... mudaria um pouquinho o jeito de ver arte e de valorizar. Porque
reconhecer, meu anjo, todo mundo reconhece ‘Pô, você é o cara.’ Mas
mesmo não dá dinheiro. Tem que valorizar. (KALU)
128

Dentre algumas situações relatadas por Jurema sobre o tema das relações
financeiras, destacamos o trecho abaixo:

Porque o nosso mercado aqui é muito restrito. Tem bastante pessoas que
fazem... e além de tudo... tem assim, até as pessoas assim que tem mais posse,
eles valorizam mais pegar um quadro de fora. (...) Muito interessante... a
gente tem essa dificuldade. As pessoas falam, olham, querem, não querem.
Quando querem comprar uma obra sempre acham caro, é desconto, é isso,
é prazo. Então você também vai se desanimando... porque você tem um
investimento! (...) Então isso é que é a dificuldade que eu sinto... a maneira
que se vê as coisas. Mas é uma questão cultural, porque esses dias eu
também me vi pensando assim ‘não deu valor... ah, mas olha, isso, isso,
aquilo.’ Então você tem que raciocinar, porque é uma coisa assim que tá
meio incrustada em você. (JUREMA)

Kalu e Jurema observam algumas desvalorizações econômicas18 vivenciadas na


sociedade local perante seu trabalho. É interessante observar que as peças produzidas por
ele são diferentes das criadas por ela, em tamanho, formato, material, estilo e preço, mas a
reação do público no momento de compra e venda, reflete o mesmo desgaste. Ambos
apontam para uma cultura, como diz ela, que parece que está "incrustada" nas pessoas, de
desvalorização do trabalho artístico, em sentimentos vividos a partir de sua experiência nas
relações na sociedade local. Quando Mignolo (2003 in MOTA, 2016) destaca a
importância de compreender o conhecimento produzido a partir de seu lócus de
enunciação, inclui a reflexão que precisa ser levantada sobre as relações de desvalorização
que se repetem ou são naturalizadas em determinado território, e que talvez em outros não
são percebidas. Pelos relatos acima, reconhece-se pontos frágeis que precisam ser
trabalhados na região, para que a arte e os/as artistas ocupem um lugar de respeito, não
somente de reconhecer o talento, mas incluir o valor também em sua participação comercial
na cidade e no seu desenvolvimento.
O conhecimento que passa por desqualificações sistemicamente, também
desestrutura as referências de vida dos sujeitos, oprimidos no seu saber e fazer, pois o
“conhecimento está ligado à todas as dimensões de vida de um indivíduo, grupo ou classe”,
como ressalta Mota Neto (2016, p. 97). E, nas ocasiões narradas, como por ser um produto
artístico, em uma cidade do interior, fizesse parte da compra os clientes pensarem em
desconto, em não pagar, trocar ou só dizer “Pô, você é o cara!”. Pensamento presente na

18
A desvalorização comercial acontece em alguns casos, não há como generalizar o ganho monetário da
classe artística, e não é o objetivo dessa pesquisa. Reconhecemos a diversidade de atuação e remunerações
que existem na área. Consideramos esse ponto financeiro para um início de reflexão, baseada nas vivências
pontuais relatadas pelos narradores.
129

colonialidade do poder, agindo em função do capitalismo e valorização somente de


produtos dentro de moldes hegemônicos mundiais (QUIJANO, 2014).
Ambos se referem também ao investimento que tem, de tempo, conhecimento,
material, olhar artístico, esforço e dedicação. Jurema ressalta também sentir as dificuldades
no comércio local, assim como Kalu, que, ao perceberem essas relações, ainda expressam
almejar que sejam transformadas com o passar do tempo. Kalu indica caminhos que
poderiam reverter um pouco essa cultura de não valoração das obras, pela educação do
olhar, pelo conhecimento e compreensão dos processos de criação que envolvem os
produtos resultantes do fazer artístico, desde a infância. Formas para a superação da
colonialidade do saber presente nessas relações descosturadas.
Como visto nos episódios re-contados nessa primeira parte do capítulo, a opressão
expressa nas formas das colonialidades do poder, do saber e do ser, ao serem identificadas
nas narrativas dos convidados, nos possibilitaram ampliar a noção do alcance que essas
ações de dominação, exploração e exclusão ocupam no cotidiano. Mesmo trabalhando em
diferentes tipos de trabalho artístico, Jurema e Kalu têm em comum a escolha pela arte
como seu meio de ação no mundo, construindo suas histórias à mão pelos caminhos
trilhados através desse saber. Os percalços encontrados, representados pelas metáforas das
sucatas e descosturas, foram, em muitos casos, perpassados pela lógica moderno-colonial,
às vezes explícita e outras implícitas.
Tomar consciência da opressão é uma das condições para o motor das ações de
libertação, as quais também se fizeram presentes durante as recordações de nossos
narradores. No próximo bloco, apresentaremos outros episódios, lidos à partir das práxis
de re-existência, à luz da de(s)colonialidade.

5.2. TransBordar e TransFormar: das re-existências

Bordas erguidas na sociedade moderna-colonial, fôrmas para se encaixar no


cotidiano “normal”, fazem parte das cenas e diálogos teóricos tecidos nas páginas
anteriores desta análise narrativa. Das colonialidades atravessadas, passamos agora a ler a
partir da teoria, experiências de re-existências identificadas nas histórias rememoradas por
Jurema e por Kalu.
Nas relações construídas durante a trajetória desses artistas, como residentes de Pato
Branco, as experiências incluem desencontros e descosturas, como contadas acima, mas
também encontros e belas tramas, onde são reconhecidos, apoiados e incentivados pelo seu
130

fazer. Dentro dessa contradição tão humana, os sentimentos bons e os não tão bons,
convivem juntos, e estão presentes nas histórias contadas. Nas próximas páginas nos
permitiremos escrever-pensar também sobre essas vivências que se constituem, a partir de
nosso olhar, como práxis de re-existência.
Iniciamos com uma das falas de Jurema que, ao relatar suas experiências, reflete
sobre como também sente “um reconhecimento bacana pelas pessoas na cidade”, quando sente-
se respeitada pelo seu trabalho. No entanto, relata sentir certa pressão, principalmente da
sociedade, por ser do seu jeito, mais simples:

E me sinto assim bem realizada. Só que há cobranças. Há cobranças assim


da sociedade, que a gente sente que eles querem que você seja “fulano”! Que
você realce, que você apareça, que você cresça, que você venda, que você
faça, que você aconteça! Mas não é! Pra mim não é. Eu tô feliz no que eu
faço. (JUREMA)

A incompatibilidade com o modus operandi da sociedade moderna ocidental, de


acordo com Bosi (1992) é comum com aqueles que atuam no mundo das sensações, tão
próprio da arte, em que suas obras perpassam a relação que o artista tem com o mundo e
consigo, nos sentimentos, pensamentos e na representação do que vivencia. Por isso
optamos, como pesquisadoras, reconhecer que há nesses relatos de histórias de vida, as re-
existências em ser, pelo seu saber e fazer. E reconhecer também o trabalho e a dedicação
que o fazer artístico exige, e os caminhos trilhados para ocupar seus lugares no mundo.
Nem sempre uma certa incompatibilidade com a lógica moderno-colonial se
apresenta como impedimento, sendo que, para alguns casos, oferecem uma lógica “outra”
para o ser e estar no mundo, como buscado nas propostas de de(s)colonialidade. Em uma
experiência recente que Jurema narrou, encontramos a expressão de sua satisfação, ao
sentir o reconhecimento do trabalho feito à mão (figura 42):

Com meu trabalho, cada dia tenho uma experiência. Semana passada
mesmo veio uma menina, inclusive ela tá indo para fora do Brasil, e ela disse
assim: ‘Eu quero aprender a bordar a mão, já tive máquina que fazia tudo
automático, mas eu quero fazer à mão.’ Então você vê, isso pra você é uma
realização, até escrevi para a mãe dela agora: ‘Tô feliz por poder passar
meus conhecimentos.’ E saber que as coisas vão e voltam! E o ‘à mão’, esse
sempre vai ser o teu valor, ou vai ter o valor, porque qualquer máquina faz,
mas ‘à mão’, é uma outra mão que faz! Então foi fantástica a experiência
que tive com essa moça semana passada. Eu brinquei com ela: ‘Ah, assim
não vale! Tudo que eu te ensino você aprende!’, daí ficamos as duas
trocando ‘Não, é a profe!’ ‘Não, é a aluna!’. Então foi muito gratificante.
Então, isso me traz uma satisfação muito grande, porque eu tenho prazer
em ensinar. (JUREMA)
131

Figura 42 - Detalhes de jogo de cama de bebê bordado à mão por Jurema

Fonte: arquivo pessoal Jurema Edy Pereira

A satisfação de encontrar em outra pessoa mais jovem, o ressoar da valorização que


tem sobre o “fazer à mão”. Ao refletir sobre como “as coisas vão e voltam”, observa-se a alegria
da possibilidade de permanência e continuidade desse saber tradicional, reproduzido neste
aprender a bordar à mão, mesmo tendo a máquina para fazê-lo. Bosi (1977 in BOSI, 1987,
p. 388), desenha versos em seu texto “O trabalho da mão”, numa bela ilustração desse tema,
que aqui destacamos dois deles:

(...)Para perfazer tantíssimas ações basta-lhe uma breve mas dúctil anatomia:
oito ossinhos no pulso, cinco no metacarpo e os dedos com as suas falanges,
falanginhas e falangetas.
Mas seria um nunca acabar dizer tudo quanto a mão consegue fazer quando a
prolongam e potenciam os instrumentos que o engenho humano foi inventando
na sua contradança de precisões e desejos. (BOSI, 1977 in BOSI, 1987, p. 388).

E na continuidade, o autor ainda discorre por uma diversidade de ações, desde lavrar
a terra, o bordar, esculpir, escrever, até o refletir sobre a operação das máquinas: “Na idade
da Máquina, a mão teria, por acaso, perdido as finíssimas articulações com que se casava
às saliências e reentrâncias da matéria?” (BOSI, 1977 in BOSI, 1987, p. 389). Mas o que
vemos nas experiências contadas por Jurema, essas articulações ainda resistem, e
continuam a prolongar os instrumentos, como a agulha e o pincel que ganham força na
continuidade do movimento de seu corpo. Muito da força das práxis de re-existência se
encontram no que é humano, produzido também no encontro das pessoas, que dividem
132

entre si conhecimentos, resgatam e mantém práticas como essas que Jurema ensina a suas
alunas. A expressão do bordado é de quem o borda, pelas mãos que o bordam, como ela
mesmo ressalta.
Na América Latina, um dos exemplos que podemos ilustrar essa potência, onde o
unir-se para aprender a bordar, e para bordar juntas ganha forças de resistência, foi o de
um grupo de mulheres chilenas nos anos 1970 que, através das oficinas Arpilleras19,
registraram seu dia-a-dia bordando em confecções feitas de retalhos e sobras de pano. Esse
movimento aconteceu em meio a um regime político repressivo, sendo elas mesmas
também perseguidas políticas durante a ditadura e, com seus bordados, encontraram um
meio para enfrentá-la, quebrando dessa forma o silêncio imposto e registrando a história
nas imagens bordadas. “As arpilleras mostravam o que realmente estava acontecendo nas
suas vidas, constituindo expressões da tenacidade e da força com que elas levavam adiante
a luta pela verdade e pela justiça.” (BACIC, 2012, p 7) Esse é um dos tantos espaços que
encontramos a expressão artística como uma ferramenta para continuarem existindo, re-
existindo, através do registro simbólico da realidade (ALBÁN ACHINTE, 2017).
Desse registro simbólico da realidade nas obras, há também as reflexões possíveis
de outros olhares sobre si e sobre seu entorno, a partir da prática do fazer artístico. Das
histórias contadas por Kalu, destacamos sua descrição sobre a proposta pedagógica, que
fez no Trabalho de Conclusão de Curso da pós-graduação em Arte Educação, e que aplica
em aulas e oficinas:

A minha tese era baseada no seguinte: a utilização da argila nos processos


de desenvolvimento cognitivo, pedagógico. E eu apliquei, eu ensinava eles a
preparar uma aula com argila... desde a primeira parte da aula, da parte
principal da aula, pro final da aula, pra não sair guerrinha de barro. Pras
crianças entenderem o mundo um pouquinho diferente e de se sentirem
capazes de fazer alguma coisa com as próprias mãos. Por exemplo, um
exercício que eu fazia. Na época estava bem no forte dos Piratas do Caribe.
Pega o filme, passe o filme pra eles, depois você pega, aí você dá argila pra
eles e façam eles fazerem os personagens do filme. Aí então vai ter, pirata
com tapa olho, com chapéu de três bicos, papagaio, navio, uma porção de
coisas. Certo? Aí, através disso você pode contar toda a história da
colonização do caribe, você pode localizar eles lá, tudo com um pedacinho
de barro. Então eu apliquei isso. (KALU)

Essa vivência que Kalu traz, encontramos também nas reflexões da psicóloga Ecléa
Bosi (2003, p. 171), ao refletir sobre o trabalho manual: “Mesmo no gesto tão simples de

19
Para saber mais: Catálogo Arpilleras da resistência chilena/curadoria: Roberta Bacic Apresentação: Paulo
Abrão - Brasilia- Biblioteca Nacional, 2012. disponível em https://cjt.ufmg.br/wp-
content/uploads/2019/02/CA.-Arpilleras-da-Resist%C3%AAncia-Pol%C3%ADtica-Chilena.pdf.
133

modelar um patinho de barro a criança experimenta o sentimento de criar uma coisa do


princípio ao fim com as próprias mãos”. E continua: “Talvez as artes plásticas, desde o
humilde modelar no barro até uma escultura, sejam tão confortadoras por que as
executamos de alfa a ômega”. Trazendo a importância das mãos, que tem uma afinidade
com o concreto, onde a criança tem a oportunidade de aprender a utilizar da sua força e
concentração, ao acompanhar “até o fim a consequência corporal da ideia.”. Uma clara
experiência de práxis de re-existência, quando se examinam os efeitos que têm ocorrido
pela divisão do trabalho, das linhas de produção, da industrialização, que separam por
partes e reduzem o alcance do trabalhador no processo, desumanizando seu papel e sendo
somente repetidor de ações mecânicas de uma etapa. Algo que tende a retirar o sentido
sobre o que se produz, realidade comum em muitos dos projetos de desenvolvimento
econômico, em dimensões globais. Onde as mãos, como reflete Alfredo Bosi (1977 in
BOSI, 1987), passam da ação consciente para ligar e desligar chaves, pressionar de botões,
acionar manivelas, cedendo às máquinas o que antes faziam. Bosi (2003) afirma que não
há como voltar ao trabalho manual exclusivamente e retirar o ritmo e os processos de
automatização que também tem seu valor de contribuição, não é essa a reflexão, mas sim,
que o valor que tem nessa ação precisa ser reconhecido e ter seu espaço, desde como
pedagogia e também como trabalho.
Percebemos nessa proposta a sua intenção de proporcionar aos estudantes, em um
encontro educativo, a sensação de autonomia, de potencialidade, do seu corpo para o
mundo, se identificando com a proposta da descolonização do saber, uma práxis de re-
existência à produção de conhecimentos descontextualizados e descorporizados do sistema
moderno-colonial (LANDER, 2000). Kalu fala do objetivo que tem, ao trabalhar com o
barro para as “crianças entenderem o mundo um pouquinho diferente” . Outros materiais que
utiliza para a escultura, também são ferramentas para essa construção de entendimento
sobre o mundo, como podemos acompanhar nas reflexões a partir da aula de gesso, com o
uso de fôrmas:
Até gesso a faculdade não comprava, eu que comprei o gesso pros alunos
fazer as formas, ensinei eles a fazer fôrma. Porque se você ensinar uma
criança a fazer uma fôrma, ela vai ver a vida do modo contrário. Então, por
exemplo, eu fazia: ‘Faça uma careta, faça um narizão, nem que seja nariz
de cenoura, faça uma careta.’ Daí o nariz aqui tá assim, na hora que ele
abre a fôrma o nariz tá pra dentro. Às vezes você tem outra visão, das coisas,
daí você pode levar pro lado da educação filosófica: ‘Olha, a vida não é bem
só desse lado, tem também o outro lado. Não é tudo positivo também tinha
a parte do negativo.’ Tudo isso com um pedacinho de barro. Então dava,
dava! Eu ganhei louvor da minha tese, a professora, ela gostou demais, e
dava né? (KALU)
134

Conhecer os outros lados do que se vê, aprende, recebe, a importância de buscar


ver além do resultado, o processo. A oportunidade de refletir sobre o que nos forma, ou o
que muitas vezes deforma. Sobre as fôrmas a que nos encaixamos, ou nos forçam a se
encaixar, ou que são veladas, não contadas. A de(s)colonialidade busca ampliar essa
consciência histórica, política, buscando ver os movimentos de poder que estão do outro
lado, ou lados, e a re-historicização, compreendendo criticamente a geopolítica do poder e
da produção do conhecimento. Para descolonizar, faz-se necessário considerar “o caráter
histórico, indeterminado, inacabado e relativo do conhecimento. A multiplicidade de
vozes, de mundo, de vida, a pluralidade epistêmica.” (LANDER, 2005, p.39 in MOTA,
2016, p. 95). Ao proporcionar às/aos estudantes a possibilidade de pensar sobre o quanto
há de relativo, que há mais lados do que está explícito, caracteriza-se como uma práxis de
re-existência, numa dimensão educacional de TransFormação, ao transpor as fôrmas,
considerando também o que há de implícito nas relações. Dessa maneira, buscar ampliar o
alcance de ações críticas e conscientes do sujeito perante o mundo.
Do TransFormar vamos a uma reflexão do TransBordar, mas neste momento no
sentido de transpassar bordas culturais, ou até territoriais, na história que Jurema conta, do
convite que fez para Juan Tamayo, artista cubano que atualmente é residente em Pato
Branco:
Agora ultimamente você vê, as pessoas têm talentos que vão se perdendo
pela questão financeira. (...) Porque por exemplo, o meu trabalho aqui, eu
consigo me manter porque eu não vivo dele, ele me ajuda. Mas se eu
dependesse totalmente daqui, não dava! Porque veja bem, tem essa casa,
tem luz, tenho água, tenho IPTU. Por isso que muitos não aguentam. É que
a gente tem, graças a Deus, já tem esse patrimônio que dá para mim quase
me dar um luxo, né? É uma coisa que não tem nexo, é muito, muito,
interessante essa questão.

Por isso que eu oportunizei pra esse menino, o Juan Tamayo, cubano, para
vir fazer a arte dele aqui.Por enquanto está assim, ele não me paga nada, e
assim estou auxiliando ele a ter um espaço. A gente até pretendia fazer
coisas juntos, mas agora com essa função dessa pandemia não deu. Então
disse para ele: ‘Fica só para você as tuas aulas, porque você também precisa
se manter’. Eu aqui de qualquer maneira tenho que manter isso.

Eu conheci ele num programa aqui da nossa TV Total, ele estava


divulgando o trabalho dele e nós estávamos dando uma entrevista, eu e a
Neri Bocchese, a respeito do projeto que nós estávamos fazendo da
Academia, do Diálogo dos Saberes. Nós fomos lá para isso e ele também
estava lá, aí já convidei-o a participar do evento também. E eu acho assim
um rapaz que tem muito conhecimento, que até, em princípio, ele tem uma
certa humildade, ele não ostenta. Ele é formado em artes lá em Cuba, e
também ele tem a formação acadêmica de educação geral. E assim convidei
ele pra vir aqui, achei o traço dele muito bom. E é tão bom quando a gente
tem oportunidades, porque eu já tive oportunidades assim. Coisas que
aconteceram que foi muito legal, que me deu uma oportunidade grande, e
135

aprendi, aproveitei. Uma coisa assim que eu acho que a gente tanto dá que
você recebe. (JUREMA)

Ao abrir seu espaço para o trabalho do Juan, se coloca num lugar dialógico e de
acolhimento. Transpassa as bordas também da língua, cultura e aproxima países latinos
através de uma proposta de trabalho conjunto. Como Walsh (2013) destaca nas propostas
de pedagogias de(s)coloniais, das práxis de re-existência, o desaprender para re-aprender a
aprender, em um movimento constante de fortalecimento coletivo, e assim também
contribuir para a construção de caminhos “de estar, ser, pensar, mirar, escuchar, sentir y
vivir con sentido o horizonte de(s)colonial” (2013, p. 24). Nas frases de Jurema: “E é tão
bom quando a gente tem oportunidades, porque eu já tive oportunidades assim. Coisas que
aconteceram que foi muito legal, que me deu uma oportunidade grande, e aprendi, aproveitei.”
Reconhece-se a existência de memórias de gratidão, das oportunidades que recebeu, de
momentos que foram superados com o suporte e incentivo de outras pessoas que apoiam o
conhecimento produzido na arte. Como também sentimos em alguns relatos de Kalu, como
quando fala de seu mecenas: “E teve algo que me auxiliou muito, foi o mecenas, o cara que me
prestigiou.” Os encontros com quem também sabe apreciar a arte, e apoiar os/as artistas e
auxiliam essas histórias a continuarem acontecendo, como agora para o Juan Tamayo.
Um outro ponto onde se faz possível compreender as re-existências na arte,
encontra-se nas características que permitem a expressão, a construção simbólica, a
provocação, onde o ato criador, está conectado com o existir, com o re-aprender a viver, a
retomar o lugar de sujeito perante a lógica instaurada na narrativa ocidental, como explicita
Albán Achinte (2009). Nas descrições de Kalu sobre os processos de criação e significação
das estátuas do Largo da Virtudes, por exemplo, encontramos essas características. Além
dos trechos apresentados no início desse capítulo, destacamos mais uma descrição da
elaboração das obras do artista, para ilustrar essa práxis de re-existência, pela sensibilidade,
criatividade e crítica:
Fiz uma outra chamada Solidariedade. Era quase como se fosse um S. Mas
aqui era uma forma circular e aqui outra forma circular. Então,
solidariedade não é você dar um quilo de alimento pro moço que queimou
a casa dele, isso é outra coisa, menos solidariedade. Solidariedade é quando
você faz exercício das tuas bondades, de todas elas. Você é solidário, você
sente a dor do outro, você não dá um presente pra ele. Você sente a
necessidade, você conforta, você dá o presente físico, o presente material,
você dá um olhar benevolente, isso é ser solidário. Então tá, só que a
solidariedade ela tem que ter um começo, então ela começa na ponta do S,
e ela vai, faz o círculo e volta pra você! (KALU)
136

A criação artística descrita pelo olhar do artista, dá o tom do exercício de reflexão,


estudo e processo de TransFormação do pensamento em expressão estética, em um
movimento necessário de descolonização do imaginário, tantas vezes engessado na
sociedade moderno-colonial e seus moldes hegemônicos. Nesse exemplo, ao construir
escultura da solidariedade, carregada de simbologia, de um S que em suas pontas representa
o movimento da virtude ali ilustrada - assim como nas demais obras desse conjunto
descritas anteriormente - provocam um pensamento crítico, um outro olhar, para o humano
e suas relações. Mesmo que as estátuas tenham sido removidas, o sentido ali construído,
no registro das imagens - fotográficas ou em quem as viu -, ainda ressoam. E como Kalu
falou, o exercício de conceber o Largo das virtudes, com as leituras sobre o tema em que
se aprofundou, promoveram transformações em si também: “Nossa, o que eu li de livros, de
livro das virtudes, coisa bem ética, moral... Nossa, melhorei muito comigo mesmo. Porque a proposta
era você provocar as pessoas a terem conceitos também, sabe? Então o que a gente tava fazendo era
uma provocação.” Na proposta de provocar o outro, a pessoa que o constrói também é
afetada.
De acordo com Bosi (1986), a consciência poética, simbólica é construída a partir
das experiências interiorizadas pelo/a artista, e que se diferenciam na maneira que dá o
relevo e o contorno à sua intuição. O que também é destacado por Dussel (1997), ao
reconhecer que, no espaço entre fazer parte do mundo, há a capacidade de conseguir olhar
para ele e intuir através do que sente, sendo um movimento que está na base de muitas
produções artísticas, e da construção de um pensamento crítico e reflexivo, essenciais no
desenvolvimento de uma sociedade transformadora.
Este exercício de construção simbólica, se transportado para o nosso fazer, ser,
sentir no cotidiano, mesmo para aqueles que não são artistas, promove capacidades de
(re)conhecimento, proximidade e criação perante a realidade. O re-existir também acontece
no se re-inventar, tão necessário frente às descosturas e sucatas encontradas nas relações
sociais dentro da lógica moderno-colonial. Como reflete Albán Achinte (2017), sobre a
capacidade criativa para o sujeito recuperar-se em seu ser, insistir e existir:

La praxis de re-existencia consiste en enfrentar todas las formas de dominación,


explotación y discriminación, mediante acciones que conlleven a construir
conciencia de ser, de sentir, de hacer, de pensar, desde un lugar concreto de
enunciación de la vida, son acciones que conducen a decolonizar al ser, sus
imaginarios, su lenguaje, su fantasía, su capacidad creativa para recuperar-se
ontológicamente, para insistir en construir el derecho a ocupar un lugar en la
sociedad con dignidad, a impedir la renuncia a ser lo que se debe ser y no a se
lo que impongan ser. En esta medida, una praxis de re-existência, entendida la
praxis como ‘Acortar distancias… La praxis es esto y nada más: un aproximarse
a la proximidad’ (Dussel, 1996, p. 31) (...) para convertir-se en inquilino de su
137

autoafirmación y determinar autónomamente que es lo que se quiere ser, sin


vergüenza, sin menoscabo de sus propias posibilidades, sin renegar su
condición de oprimido sino que desde allí, desde ese lugar enfrentar el vejamen
de la negación para abrirse al espacio de la autoafirmación critica (...)
(ALBÁN ACHINTE, 2017, p. 21).

E é a partir desses lugares concretos de enunciação da vida, de autoafirmação, e de


insistir em construir seu direito de habitar seu espaço no mundo, com dignidade, que nossos
convidados continuam sendo. Quando perguntei à Jurema, de forma provocativa, por que
não se aposentava do ateliê, onde trabalha há mais de 35 anos, pois já estava recebendo do
INSS, sua resposta rapidamente foi essa: “Não! Porque aqui é vida!” E então perguntei: “Você
entende assim? É teu trabalho...” E ela continua a resposta:

Sim, sim! Não, não... porque aqui eu amo. (...) Que isso aqui é muito
importante assim tanto pra minha parte mais emocional e realização do que
eu faço, e a gente habitua também com o trabalho né? E essa troca de ideias
e de palavras e de pessoas junto é muito importante. (...) Aqui eu falo
sempre, até que eu puder eu quero trabalhar nisso. Porque é uma coisa
assim que só faz bem. Porque você fazendo o que você gosta, transmitindo.
É uma troca muito muito boa. (JUREMA)

A percepção de Jurema sobre o seu dia-a-dia no ateliê, onde afirma que “aqui é
vida!”, "porque aqui eu amo”, nos aproxima do que Bosi (1987) destaca, quando fala da
“fusão do trabalho com a própria substância da vida” que percebe nas memórias de pessoas
idosas com quem fez sua pesquisa de doutorado. A autora também reflete o quanto o lugar
da ação também é o próprio trabalho, o que reconhece-se na descrição da artista em relação
ao seu ateliê. Sentir a amorosidade com que Jurema fala de seu fazer laboral com as aulas
de artes e com as obras que produz, é um exemplo de re-existência, pelo fato de se permitir
fazer aquilo que gosta, mesmo com alguns obstáculos. Nessa fala percebe-se como sua
ação no mundo ganha mais sentido e alcance, ao estar transmitindo seu conhecimento e
vendo ter seguimento em outras mãos.
E Kalu, quando perguntado sobre o trabalho, sobre o tempo que leva na elaboração
das obras, sobre se aposentar, explica:

É que eu consegui assim ‘introspectar’ um conceito de arte. Arte não é


trabalho. Arte é arte, sabe? Então aí que vem a fruição, o devir, certo? Não
tem explicação. Às vezes eu fico aqui até 10 horas da noite, sozinho. Não
cuido a hora para terminar. E não fico com vontade de ir ao banheiro, não
me dá sede, não fico com fome. Às vezes eu faço assim, de que saio por
automação, não porque eu queira, só porque tem que ir embora. (KALU)
138

Uma fala que expõe uma contradição, sendo que grande parte deste estudo estamos
nos debruçando sobre o tema do trabalho de artistas, e nosso convidado diz que para ele
“Arte não é trabalho. Arte é arte.” Mas, o que há de implícito nessa observação que faz Kalu?

Popularmente o trabalho, muitas vezes, vem sendo relacionado à sofrimento, carga,


algo inscrito inclusive na etimologia da palavra trabalho, que tem como palavras latinas
originárias o tripalium, referente a um instrumento da agricultura, e também o verbo
tripaliare, “que significava "torturar sobre o tripalium". Por muito tempo, a palavra
trabalho significou experiência dolorosa, padecimento, cativeiro, castigo.” (Oliveira e
Silveira, 2012, p. 150) Sendo que, além dessa conotação, também foi culturalmente
relacionado à perda de liberdade, relacionando-o à escravidão. E, quando Kalu se
desconecta da sensação de estar sofrendo por estar trabalhando, para permitir a fruição
acontecer, fica a reflexão sobre como o trabalho com a arte, muitas vezes, tem diferenças
em relação aos modos impostos em sociedade sobre esse tema. Uma relação com o tempo
que ocorre dentro de uma fruição que produz, incluindo os tempos de estudo, criação,
elaboração, aperfeiçoamento, dedicação, rigor… e que permitem a Jurema e Kalu sentirem
prazer e realização em seu fazer diário.
E assim, ambos continuam construindo, junto com aqueles que conhecem e que os
acompanham, esperanças que embalam sonhos por mais memórias assim. Esperanças
sentidas a partir dos relatos dos sonhos pessoais de cada um, apresentados ao final de suas
histórias de vida, onde os anseios contados perpassam sua atuação como artistas, e que
incluem o agir, transFormar e transBordar atuando nessa área que escolheram pra vida. Re-
existir. Continuar existindo através de seu fazer, saber e assim ser, e continuar sendo. E,
paulatinamente, se libertando de possíveis amarras das colonialidades, promovendo
libertação para outros a sua volta, como reflete Freire (2019):

Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo
conhecimento e reconhecimento de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que
lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor
contido na violência dos opressores, até mesmo quando essa se reveste de falsa
generosidade referida (FREIRE, 2019, p. 43).

E nesse amor de transformação, transbordam seus sonhos, e continuam suas


histórias repletas de conhecimentos e (re)conhecimentos produzidos junto à sociedade
patobranquense. Para Walsh (2013), o de(s)colonial denota um caminhar contínuo, no qual
pode-se visibilizar, encorajar e identificar construções alter-(n)ativas e “lugares” de
exterioridade, caminhos identificados nessas páginas do segundo bloco deste capítulo, nos
139

escritos-pensados com as teorias e as histórias de vidas que são e estão sendo,


compreendendo, a partir delas, as práxis de re-existência.
Das mãos ativas das histórias rememoradas, aos lugares no mundo vivenciados,
escrevemos-pensamos esse capítulo de análise narrativa. Mãos que, de “troféus” à
“sucatas”, coletaram matéria-prima para a resistência adquirida, e entre “lindos bordados”
e “descosturas”, desenrolam fios de re-existência na formação cultural da cidade.
É posssível (re)conhecer nas histórias de vida de Jurema e Kalu algumas das
diversas influências do pensamento moderno-colonial em seu cotidiano como artistas
plástico em Pato Branco, representados pelos fatos descritos no primeiro bloco. Situações
que envolveram a invisibilização, falta de apoio e conservação por parte das autoridades,
intolerância e desvalorização econômica foram exemplos das colonialidades do poder, do
saber e do ser vivenciadas por eles.
Na continuidade desta análise narrativa a partir da de(s)colonialidade, o segundo
bloco contemplou reflexões da artista e do artista e cenas rememoradas, compreendidas a
partir das práxis de re-existência frente às dinâmicas de poder do sistema moderno-
colonial. A permanência do fazer à mão, a transmissão de saberes, a força da simplicidade
do ser, as artes como trabalho e como pedagogia, a pluralidade epistêmica, o movimento
dialógico, a união, a reflexão simbólica, o prazer no fazer, ser e sentir a partir de seus
lugares no mundo, foram narrativas que marcaram a presença das práxis de re-existência
no trabalho artístico. E assim, possibilitar a transFormação de si e dos outros, ao
transBordar características do fazer artístico para nosso cotidiano.
A partir dessas duas histórias de vida e do diálogo proposto neste capítulo,
buscamos uma aproximação dos conhecimentos corporizados e contextualizados, em
superação às separações das lógicas entre razão e mundo, impostas pela colonialidade do
saber, como ressalta Lander (2000) e Walsh (2005), como parte dessa busca presente no
constante movimento de resgate do sujeito e de sua existência, em direção à
(de)colonialidade do ser, como nos provoca Maldonado-Torres (2007), e identificando as
ações da colonialidade do poder, para superá-las e transformá-las, como fala Quijano
(2002), reconhecendo cada vez mais as práxis de re-existência, em suas práticas criativas
para re-existir, promovendo um mundo mais sensível e coerente, como propõe Albán
Achinte (2017).
Entre uma e outra descostura em sociedade, outras obras e legados desses artistas
permanecem fazendo parte da história dessa cidade e região: quadros, bordados,
decorações, exposições de Jurema, e das obras produzidas por tantas alunos e alunos que
140

levam adiante esse legado nas mãos; nas esculturas, monumentos, portões, troféus,
esculpidos por Kalu, e também alunas e alunos que levam esses conhecimentos consigo,
transformando-os em novos traços. E não somente o legado material, há o legado da re-
existência ativa e presente desses artistas na sociedade, das contribuições da constituição
cultural de Pato Branco, e das inspirações promovidas na convivência com seus modos de
ser e continuar sendo através da arte. Importante presença da possibilidade de construir, a
partir de sua cidade, a construção de um pensamento histórico e geopoliticamente
localizado (MOTA NETO, 2021).
Como aspira Jurema, por dar “mais oportunidades a todos e que tenham esse espaço” ,
para assim a arte ampliar seus alcances na cidade, nos olhos, nos corpos, atingindo toda a
sua diversidade de expressões, que incluem também as artes plásticas. Quando Kalu
também pede que as oportunidades continuem acontecendo, ao destacar que “o que eu não
entendo é você não ter mais oportunidades! Você não precisa gostar de um casal nu, mas você pode
gostar de um pato, então encomende um pato…”.
Está aí o pato20...

Figura 43 - Escultura do Pato, de autoria do Kalu, no Parque do Alvorecer, inaugurado em 2018

Fonte: arquivo pessoal de Franciele Clara Peloso

20
Para saber mais, ver o contrato de execução da obra, disponível em:
http://pronimtb.patobranco.pr.gov.br:8087/pronimtb/anexos/03%20-
%20Licitacoes%20e%20Contratos/Exerc%C3%ADcio%202018/Inexigibilidade/01%20-
%20Escultura%20-%20Parque%20Ambiental%20-%20Pag%2001%20a%2075.pdf
141

CONSIDERAÇÕES, AO FINAL

Este estudo objetivou compreender, a partir das histórias de vida de artistas plásticos
residentes em Pato Branco - PR, como experienciam o seu fazer artístico, considerando as
colonialidades do poder, do ser e do saber e as práxis de re-existência. Para isto, foi traçado
um percurso metodológico, conduzindo a construção desta pesquisa, e neste momento
registramos algumas considerações, que apresentamos agora, a(o)final. Neste capítulo
trazemos, inicialmente, as compreensões e problematizações tecidas a partir do conteúdo
resultante desta pesquisa, e na segunda parte apresentamos uma breve história da vida desta
dissertação, em sua curta (mas comprida) duração, e possibilidades de reverberação como
pesquisa.
Pelo que vimos nos estudos sobre trabalho e desenvolvimento a partir da
de(s)colonialidade, no primeiro capítulo desta pesquisa, o ritmo imposto nas produções, a
automatização e tecnologias de comunicação, a corrida pelo lucro, a competitividade
global, os desafios na América Latina frente ao projeto de desenvolvimento moderno-
ocidental eurocêntrico a partir do sul global, tem afastado cada vez mais pessoas do que há
de humano na vida (ALBÁN ACHINTE, 2009), na questão do ser e sentir no trabalho.
Nessa pesquisa tivemos a oportunidade de olhar para o trabalho, daquele que o faz, conhece
e sente, a partir do ponto de vista de dois trabalhadores da área artística, e, ao ouvir a reação
deles, ressaltando a importância desse trabalho em suas vidas, com termos ligados à
felicidade, amor, emoção e troca, é como um fôlego na aceleração do tempo. Nas memórias
de Jurema Edy Pereira e de Kalu Chueiri percebe-se, como observa Bosi (1987, p. 393), “a
fusão do trabalho com a própria substância da vida”, e quando o sentido que ali se constrói
é como o descrito por estes dois artistas, é um sentido de vida. São inspirações para lembrar
que não estamos aqui só para reproduzir as colonialidades, e sim, como esses artistas,
produzir fissuras nesse mundo moderno colonial.
E das lembranças, mas também dos sonhos e das esperanças, que aqui foram sendo
registrados em partes - na limitação que o papel e as palavras contém - percebemos como
a resistência se movimenta no cotidiano, no micro, no que há de humano no trabalho de
cada um de nós. Do individual para a compreensão do social, onde os depoimentos nos
permitem reconhecer itens da memória social, como descreve Bosi (2003), em que as
experiências individuais são evocadas e se conectam com a dimensão temporal e o
momento psicossocial da lembrança.
142

Ao refletir sobre a sociedade moderno-colonial e o papel da arte e do/a artista, a


partir das contribuições de autores de(s)coloniais latino-americanos, como proposto no
primeiro objetivo específico, encontramos nos estudos (QUIJANO, 1992, 2002;
MIGNOLO, 2008, 2017; LANDER, 2000; WALSH, 2005, 2013; ALBÁN
ACHINTE,2013, 2017; BOSI, 1986, 1992) um conjunto de contribuições em busca de
transformação da realidade que vivenciamos como um território de origem colonial. Nos
estudos sobre desenvolvimento, vemos no pensamento de(s)colonial problematizações
sobre o tema, levantando algumas questões, como: Para que? Para quem? De que
desenvolvimento precisamos? (ALBÁN ACHINTE & ROSERO, 2016). E assim, a partir
destas problematizações, busca-se ampliar as possibilidades de pensarmos sobre outros
desenvolvimentos, e outras ações frente a esse projeto civilizatório moderno-ocidental
eurocêntrico, construídos a partir da nossa realidade local. Fundamentando as ações de
de(s)colonização do pensamento moderno-colonial, busca-se conhecer as dinâmicas de
dominação das colonialidades do poder (QUIJANO, 2002), do ser (MALDONADO-
TORRES, 2007 e do saber (LANDER, 2000), para assim superá-las. O trabalho, como uma
das áreas constituintes do sujeito, é diretamente afetado por este processo, mas também,
como vimos nesta pesquisa, é uma das ferramentas de possível ação de(s)colonial a partir
de lugares ocupados no mundo. Desta forma, compreendemos o quanto o trabalho e o
desenvolvimento estão interligados, e procuramos contribuir ampliando os estudos da
de(s)colonialidade dentro destes temas, relacionando-os ao conceito da práxis de re-
existência (ALBÁN ACHINTE, 2017).
Os estudos sobre a práxis de re-existência nos mostram a diversidade de ações
presentes em nossos cotidianos, a partir da realidade latino-americana, que se constituem
como força e alternativas, para relacionarmos e superarmos as colonialidades ainda
atuantes em nossa sociedade. Nesta pesquisa, nos debruçamos sobre este conceito,
destacando entre as práticas criativas de re-existência (ALBÁN ACHINTE, 2017), o fazer
artístico. Como observado no levantamento bibliográfico realizado na fase exploratória
inicial, há ainda uma lacuna nos estudos nas áreas da arte e de(s)colonialidade, em relação
ao sujeito artista, sobre suas histórias, aprendizados e vivências na sociedade moderno-
colonial, bem como suas re-existências. Consideramos, a partir desta constatação, ser
relevante contribuir para ampliar os estudos na área das trajetórias artísticas, e de se pensar
o trabalho com artes a partir do/da artista, com base nas contribuições de autores
de(s)coloniais. No segundo capítulo, ao elencar diversas características que envolvem as
possibilidade de re-existência presente nesta área, foi possível unir e re-afirmar
143

academicamente, a potencialidade que há no trabalho artístico, para outras formas de se


pensar, ser, existir, fazer, na sociedade moderno-colonial, propondo o transbordar das
práxis de re-existências presentes nas artes, para o cotidiano de sujeitos que não são artistas.
A partir das contribuições de Albán Achinte, Alfredo Bosi e Enrique Dussel, foi possível
refletir sobre o tempo, a sensibilidade, a criatividade, o pensar crítico sobre o entorno, a
expressão simbólica da sociedade, o re-criar e o re-pensar a realidade, a si e ao outro, a
corporalidade do saber e a presença ativa como sujeito. Essas contribuições ampliam o rol
de possibilidades para transformar as colonialidades do poder, do ser e do saber.
Para ampliar os estudos nesta área, nos propomos no segundo objetivo específico,
a registrar as memórias das vivências de dois artistas plásticos, residentes em Pato Branco-
PR, na sua relação com a sociedade. Apesar dos desafios que envolvem os trabalhos com
histórias de vida nas ciências humanas e sociais, buscamos contribuir no escopo de
pesquisas com essa metodologia, em que o âmbito social ganha corpos, olhos, sentimentos
que, em coletivo, afetam-se mutuamente e constroem nossas sociedades. Ao trabalhar com
as histórias de vida, unidas à de(s)colonialidade, foi possível reforçar os caminhos para a
descolonização de um imaginário único, hegemônico e eurocêntrico, em que sabemos que
a força está no imaginário múltiplo, de um a um a muitos. Imagens, sons e aromas que não
são possíveis de reprodução e repetição, pois são vividos, na experiência de cada pessoa,
sendo assim rememorados - ou não, de acordo com as possibilidades que encontram para
contar suas histórias. E, ao unir essas lembranças, como numa colcha de retalhos, mantém
suas características individuais, mas ao mesmo tempo trazem compreensões do coletivo,
do conjunto, do espaço compartilhado.
Nas reflexões tecidas nessa pesquisa, nos caminhos abertos a partir da leitura das
histórias rememoradas por Jurema e Kalu, percebemos a partir do capítulo de análise
narrativa, como o recordar dá sentido ao sujeito e ao ser, e assim os aprendizados contados
do passado constroem as formas de conhecer, saber e aprender, como fala Albán Achinte
(2017). A aproximação feita nesta pesquisa, das formas de conhecer, saber, ser, estar,
pensar, sentir, fazer, representar e sonhar, a partir das histórias de vida de Jurema e de Kalu,
possibilitou uma ampliação da compreensão das possibilidades de ação e de re-existência
no sistema moderno colonial. Desta forma, busca-se expandir o (re)conhecimento do papel
de cada um na construção da história dos lugares que vivemos, retomando-os, física e
simbolicamente, como parte de si.
Outro ponto que esta pesquisa permitiu reconhecer, é a importância da escuta
sensível junto às pessoas idosas que, pelo tempo vivido, carregam consigo histórias de
144

muitas pessoas que também participaram de suas vidas, memórias coletivas e aprendizados
compartilhados. Em uma sociedade em que o ritmo imposto atropela muitos saberes e
fazeres, tende a atropelar também aqueles que têm outros ritmos, no seu trabalho, ou pela
sua idade, e também diminuem e apagam o tempo de se contar histórias, de dividir as
lembranças, as impressões sobre os fatos acontecidos a partir de seus lugares no mundo.
Os estudos com histórias de vida, e com pessoas idosas, como apresentado no capítulo
metodológico, têm ocupado um papel de contribuição acadêmica nas ciências sociais e
humanas, ao promover o reconhecimento da construção social dos significados, pela
presença das influências históricas, políticas e socioculturais nas ações e atividades
humanas, se tornando explícitos quando são narrados (GILL e GOODSON, 2015). Em
nosso estudo, foi possível perceber e afirmar a relevância desta forma de contribuição para
as compreensões das dinâmicas que envolvem o sujeito e a sociedade, e também para
fundamentar, problematizar e analisar temas como o trabalho, o desenvolvimento, a arte, a
educação, o social, a partir das memórias registradas.
Na continuidade da pesquisa, após registrar as histórias de vida, fomos
(re)conhecendo as colonialidades, pensadas a partir das realidades rememoradas, em sua
influência, por vezes implícita e outras explícitas, a partir de alguns episódios vividos e
compartilhados pelos narradores deste estudo. Sendo possível identificar nas histórias de
vida de dois artistas plásticos como vivenciam ser e estar no mundo e como foram
construídos seus modos de ser, fazer e sentir através das experiências vivenciadas no
contexto da sociedade moderno-colonial, como proposto no terceiro objetivo específico.
Apesar de não serem sujeitos pertencentes a grupos de povos originários tradicionais como
os indígenas e afrodescendentes, ou a movimentos sociais, de lutas por território, de gênero
ou de raça, comumente associados como atingidos diretamente pelas colonialidades do
poder, do ser e do saber, foi possível sentir nas palavras ditas, o quanto os atos de exclusão,
invisibilização, desconhecimento e intolerância ligados à lógica moderno-colonial estão
presentes em seu dia a dia. O que abre possibilidades para a reflexão do quanto a opressão
não tem legenda e limitação para quem pode sentí-la, agindo nas dimensões subjetivas, e
também objetivas, a partir dos lugares que ocupamos no mundo, nesse caso, do fazer
artístico.
A partir da identificação das colonialidades, nos propusemos a registrar os
exemplos de práxis de re-existência presentes no cotidiano das histórias contadas,
compreendendo a sua relevância para inspirar e transformar formas outras de estar, ser e
“estar sendo” nesta sociedade moderno-colonial. Como reflete Mota (2021), nós pensamos
145

com nossos pés, nossos corpos, construindo um pensamento histórico e geopoliticamente


localizado. E são a partir destes pensamentos escritos por autores de(s)coloniais latino-
americanos, a partir de seus corpos e lugares, unidos aos pensamentos dos artistas contados
de onde pisam seus pés, e trabalhados por nós, pesquisadoras residentes em Pato Branco -
PR, que foi possível compreender os exemplos de re-existências presentes nas vidas destes
artistas. Ressaltamos que pela extensão da dissertação e pelo tic-tac do relógio impondo
um tempo limite para finalização deste escrito, não foi possível incluir todos os exemplos
de colonialidades do poder, do ser e do saber, e de práxis de re-existências encontrados nas
entrevistas. Pretendemos, posteriormente, nos debruçar sobre outras possibilidades de
leitura e socialização dessas informações.
Ao conhecer partes de como se mobiliza a arte e a cultura no município de Pato
Branco, a partir das histórias rememoradas por Kalu e Jurema, vemos como tais ações têm
impacto no campo do desenvolvimento regional, a partir desta área de atuação. A história,
a expressão e o registro simbólico do povo de um local, contribui no fortalecimento daquela
comunidade, que tem a possibilidade de refletir e se ver nas ações artísticas presentes no
espaço público. Parte destes registros na cidade e região, estão presentes no dia a dia,
compondo o espaço físico e nosso cotidiano, reforçando nossa identidade. Os movimentos
realizados por artistas, como Jurema e Kalu, somam a outros, tais como atividades
desenvolvidas pelo departamento de educação e cultura do município, pelo CEU das Artes
e do Esporte21, pelo JoArte22, pela ALAP e ações promovidas por grupos independentes,
encontrando espaços de contribuição, re-existindo. No entanto, ainda é percebido, como
em alguns dos episódios narrados, de suas trajetórias na história da cultura e arte do
município, a retirada de obras, a invisibilização, desvalorização ou falta de apoio de ações
culturais que ainda ocorrem, e que fazem com que a resistência continue sendo importante
e necessária. A partir dos registros feitos nesta pesquisa, foi possível reconhecer o papel
dos/das artistas nesta história da cultura local, em suas costuras e descosturas.
Compreendemos que nesta pesquisa foram somente dois pontos de vista, duas experiências,
que reunimos e registramos, em prol da valorização do fazer artístico em nossa região, mas
que somado aos movimentos que já acontecem e aos que estão por vir, ampliamos o alcance

21
CEU das Artes e do Esporte, é um local para a prática de esportes, de lazer e de cultura através da dança,
leitura, recreação e eventos, vinculado à Prefeitura de pato branco. Para conhecer mais:
https://www.facebook.com/CEUdasartesedosesportesdepatobranco
22
O “JoArte - Arte e Literatura” é um evento anual que ocorre desde 2016 em Pato Branco, com oficinas e
apresentações artísticas abertas ao público, realizado pela Biblioteca Joana Corona em parceria com o CEU
das artes de Pato Branco. Para conhecer mais: https://www.facebook.com/joartearteeliteratura/.
146

e permanência destas ações em nosso meio, para continuar contribuindo no


desenvolvimento regional. Contribuições que vão além do registro simbólico, incluindo a
participação da arte no meio econômico, educacional e de saúde, na formação da história
cultural e identitária do município.
No conjunto de reflexões tecidas nesta pesquisa, encontramos no re-contar as
vivências destes dois artistas plásticos de Pato Branco - PR, e no re-pensar nossas
realidades a partir das colonialidades e re-existências encontradas nas narrativas, nossa
forma de contribuir no campo de pesquisas em desenvolvimento regional. Reconhecer as
dinâmicas que envolvem o sujeito, a partir dos lugares que ocupa no mundo, e das relações
que constrói neste sistema moderno-colonial, buscando, assim, ampliar as compreensões
das dinâmicas locais e regionais, e as possibilidades de fortalecimento a partir das pessoas
que ali transformam o cotidiano. Trazendo à tona também a presença da diversidade no
ser, estar e fazer das pessoas, que também contribuem no desenvolvimento de uma região.
Ainda, nestas considerações, ao final desta pesquisa, incluo então uma breve
história que retoma a trajetória de pesquisadora e as considerações finais que foram
possíveis, num caminho guiados por “um menino que carregava água na peneira”.23

----- * -----

No início, eram duas colegas servidoras se conhecendo numa sala de aula do


PPGDR em março de 2018, uma pedagoga, ali professora da pós, e a outra psicóloga, ali
aluna especial do mestrado. Como me apresentei como psicóloga e palhaça, ela expressou
que gostaria de orientar uma palhaça (ou algo nesse sentido)… Assim, há três anos iniciei
minha trajetória que resultou nesta pesquisa que você leu agora (se pulou direto para as
considerações finais, “volte duas casas”.)
Após entrar como aluna regular do mestrado, em 2019, foram muitos papéis usados
para rascunhar possíveis temas, e que tardiamente, mas não tarde demais, se
transFormaram no tema atual. Um tema que estava “fora da fôrma”, ao meu ver no início,
de uma pesquisa em Desenvolvimento Regional. Agora, após a conclusão dela, sinto que
encaixou sim na fôrma (talvez não em uma fôrma quadrada) e que transBordou um pouco

23
Referência ao poema de Manoel de Barros: “O menino que carregava água na peneira” (1999), recebido
das mãos da orientadora, na recepção dos calouros da turma 10 do PPGDR.
147

a massa de reflexões na linha de educação e desenvolvimento, ficando a sensação de


inacabada.
Feita a introdução do final, vamos registrar o processo de aproximação da
fundamentação teórica, que perpassou possíveis perspectivas apresentadas na grade
curricular do mestrado, até o encontro com a opção de(s)colonial, em algumas disciplinas
e no grupo de estudos. Uma aproximação que foi facilitada pela força de sua proposta
epistêmica, ética, política e estética, e por tantos pontos de relevância e ressonância a partir
do meu lugar como latino-americana. E neste caminho foi necessário um cuidado constante
para uma construção do conhecimento a partir dessas contribuições críticas, sem “cair” em
extremismos. Autores como Albán Achinte e Catherine Walsh, em sua eloquência e
sensibilidade, me permitiram compreender e (re)pensar o(s) desenvolvimento(s) e a
educação, e assim possibilitar o meu acesso à tantas contribuições, que permearam os
assuntos chaves dessa dissertação, a partir de uma perspectiva do sujeito, do ser.
Então o tema dessa pesquisa é o sujeito, como sempre destacou para mim a
professora Clara, apesar de minha resistência em acreditar de que isso seria possível, pelas
sensações e percalços percorridos na construção do ser-estar pesquisadora em
Desenvolvimento Regional em uma Universidade Tecnológica, sendo psicóloga. A chave
da transFormação, dessa vez, está na metodologia aqui utilizada, que Ecléa Bosi traz
magistralmente em seu trabalho como psicóloga social, professora e pesquisadora
brasileira. “Uma história de vida não é feita para ser arquivada ou guardada numa gaveta
como coisa, mas existe para transformar a cidade onde ela floresceu.” (BOSI, 2015, p. 69)
E assim as histórias que não foram para as gavetas, foram registradas nestas páginas,
florescendo junto com a cidade de Pato Branco - PR, sendo vistas, sentidas, e pensadas,
em seus espinhos e aromas. Ressoando memórias também das minhas histórias familiares
nas ruas e páginas patobranquenses.
Uma pesquisa é feita de escolhas, inclusive para definir quem seriam os sujeitos
deste estudo. Pelo movimento das pesquisadoras nas reflexões das possibilidades para a
pesquisa na cidade e das leituras em andamento, escolhemos que seriam artistas plásticos.
E assim fomos agraciadas com o aceite de Jurema, mesmo que apreensiva no início em
como poderia contribuir, e o aceite de Kalu, que sentiu na primeira ligação de que não
seriam entrevistas para falar somente de obras de arte… Nesse momento a pesquisa ganhou
um volume, engrandecido pelas palavras dos autores do capítulo sobre a arte e artistas
(inclusive pelo companheiro de Ecléa Bosi, o Alfredo Bosi, que rendeu o número
expressivo de referências com esse sobrenome), que fizeram o enlace da fundamentação
148

teórica, nos mostrando as possibilidade que existem para ser, sentir, fazer, pensar e estar
nos nossos lugares no mundo a partir das práticas criativas de re-existência, existentes no
fazer artístico.
De repente, uma pandemia global.



Reticências emocionais e práticas no andamento da fase das entrevistas e escrita.
Dos quatro encontros da pesquisadora com os participantes, só o primeiro foi
possível nossas mãos se tocarem, onde nos outros três, o aperto de mão foi substituído por
apertos no frasco de álcool gel (mais sobre os encontros no Apêndice C). Estas restrições
necessárias para a saúde, não impediram que os corpos e palavras falassem, e expressassem
a grandeza que está presente nas histórias de Jurema e nas histórias de Kalu, e na gentileza
e confiança que depositaram em nossa proposta.
Na rotina de pesquisadora-mãe-trabalhadora tempo integral, tive o apoio de meu
esposo, inclusive na transcrição das entrevistas. E visto o decorrer do calendário alterado
pelo ritmo de uma pesquisa em tempos de pandemia (e com uma necropolítica como pano
de fundo), o projeto foi ganhando corpo antes da qualificação, sendo apresentado já em
formas de uma “pré-dissertação”, em setembro de 2020.
A qualificação, feita de forma remota, unindo sotaques do norte ao sul do Brasil,
recebeu contribuições ricas em diversidade e de(s)colonialidades, fazendo transBordar as
possibilidades e transFormar os alcances da proposta.
E daquele início, das duas servidoras amigas que se tornaram orientanda e
orientadora, foram se (re)conhecendo e se (re)afirmando artistas que somos, eu das cenas
e ela das cores, e se emocionando e refletindo sobre nossos lugares no mundo, a partir das
histórias de vida que encontramos, na educação, no trabalho e na arte.
E são dessas considerações finais que estou falando, de uma pesquisa feita de
(re)conhecimentos e de (re)afirmações perante o que a vida nos dá. Isso, para mim, são as
práxis de re-existência que me vi trabalhando teoricamente e que espero, possa contribuir
localmente no des-envolver de certos envolvimentos duros que existem nos caminhos em
busca da libertação do ser em sociedade. Práxis que trazem consigo as possibilidades de
contribuição ao desenvolvimento regional para o tema dessa pesquisa: o sujeito.
E registrando assim, em forma de uma dissertação, as contribuições de Jurema Edy
Pereira e Sinésio Pereira Chueiri, o Kalu, artistas plásticos e professores, na construção
149

cultural em Pato Branco, pelo fazer ativo, pelas obras, e também pelo ser que são e que
estão sendo, que nos bordados e esculturas no tempo, transFormam e transBordam a partir
de seus lugares nesse mundo. Abrindo questões, também, do papel da arte e das
contribuições de artistas no desenvolvimento da cidade, lançando possíveis temas para
novas pesquisas.
150

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WALSH, Catherine. Pedagogías Decoloniais: practicas insurgentes de resistir, (re) existir


y (re) vivir. Tomo I. Quito: Ediciones Abya-Yala, 2013.
157

APÊNDICES

Apêndice A:
ROTEIRO DE TEMAS PARA ENTREVISTAS EM PROFUNDIDADE
Conforme enviado no Projeto aprovado pelo Comitê de Ética

Nas entrevistas aprofundadas alguns temas são propostos, e não precisarão ser
relatados em ordem cronológica ou outra ordenação pré-definida antes da entrevista. O
participante será incentivado de forma não diretiva a desenvolver seu relato o mais livre
possível. Dentre os temas possíveis, os principais estão relacionados à:

- fases da vida: infância, juventude, fase adulta;


- família;
- processos educativos;
- aprendizagem da arte;
- trabalho;
- escolhas, liberdades e opressões;
- ser artista
- sociedade
- sonhos e desafios
158

Apêndice B:
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
TERMO DE CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM, SOM E VOZ
(TCUISV)
Conforme entregue aos participantes

Título da pesquisa: Dos lugares no mundo: histórias de vida feitas à mão

Pesquisadora: Gisele Cristina Voss


Endereço: Rua Lindolfo Dietrich, 43. La Salle, Pato Branco - PR. Fone (46)
999080708

Orientadora: Prof. Dra. Franciele Clara Peloso


Endereço: Rua Frei Sergio Hillesheim - 194. Parque do Som, Pato Branco –
PR. Fone (46) 999854444

Local de realização da pesquisa: Esta pesquisa acontece no âmbito do


Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento Regional, da Universidade
Tecnológica Federal do Paraná Campus Pato Branco. Endereço: Via do
Conhecimento, Km, 1, CEP 85.503-390. Fone: (46) 3220-2608.
Local de realização da entrevista: (Definidas junto ao participante.

A) INFORMAÇÕES AO PARTICIPANTE

1. Apresentação da pesquisa: o(a) senhor(a) é convidado(a) a participar desta pesquisa sobre


as vivências de artistas na sociedade moderno-colonial. A pesquisa é importante para a valorização do sujeito
artista na sociedade e para a ampliação do conhecimento sobre o tema da arte.

2. Objetivo da pesquisa: Ilustrar como artistas plásticos vivenciam seu lugar no mundo.

3. Participação na pesquisa: ao participar deste estudo o(a) senhor(a) participará de


entrevistas, nas quais será convidado a relatar sobre suas experiências de vida, relacionadas ao seu trabalho,
vivências educacionais e outros temas relacionados a sua história pessoal. Suas informações não serão objeto
de avaliação quanto a acerto e erro. Serão conversas conduzidas de forma a lhe dar liberdade para definir o
que preferir relatar e compartilhar de suas experiências pessoais. As entrevistas serão realizadas em no
mínimo três encontros, que podem passar de uma hora de duração. Eventualmente podem ser divididos em
mais sessões se porventura fica cansativo. Serão registradas com uso de gravador, e também com registro de
foto. As coletas de dados ocorrerão em local previamente acordado de forma a ser mais confortável para o(a)
senhor(a). Ao final do processo de escrita e análise das informações coletadas, será feita a devolutiva, para
sua avaliação e aprovação do texto produzido, antes de ser publicado.

4. Confidencialidade: Os dados fornecidos serão utilizados apenas para as finalidades da


pesquisa e estarão protegidos pelo sigilo. Apenas as pesquisadoras terão acesso aos registros das entrevistas
e na divulgação de resultados só serão publicados os dados que passarem por sua aprovação.

5. Riscos e Benefícios:

5a) Riscos: O risco da pesquisa é mínimo, mais relacionado a algum tipo de constrangimento ou
ansiedade por relatar suas histórias de vida. Caso estas reações se mostrarem como impeditivo, a pesquisadora
possui condições técnicas devido à sua área de formação em Psicologia, para dar o suporte necessário e fazer
os encaminhamentos adequados.

5b) Benefícios diretos e indiretos: Dentre os benefícios diretos podemos elencar: a valorização do
trabalho dos artistas plásticos; evidenciar o papel da arte no desenvolvimento regional; registro da história
oral de artistas da região de Pato Branco - Paraná; ampliar o reconhecimento social da contribuição do
trabalho artístico para a sociedade.
159

Como benefícios indiretos indicamos: ampliação do conhecimento acadêmico na área; difusão da


metodologia de histórias de vida para registro e valorização de saberes; contribuição na construção da história
do desenvolvimento regional a partir do sujeito; ampliar as reflexões na área da educação não-formal e
informal.

6. Critérios de inclusão e exclusão.

6a) Inclusão: 1. Artistas plásticos que já trabalharam em empregos não ligados ao viés artístico, e que
saíram dos mesmos. E, no momento da realização desta pesquisa, se dedicam às artes plásticas como sua
atividade laboral principal.

2. Ter algum reconhecimento pelo seu trabalho artístico na sociedade em que estão inseridos na região
de Pato Branco - Paraná.

6b) Exclusão: Não se aplica.

7. Direito de sair da pesquisa e a esclarecimentos durante o processo: Você tem a


liberdade de não participar e pode, ainda, caso concorde em participar, interromper sua participação em
qualquer fase da pesquisa sem qualquer prejuízo. Você tem a liberdade de recusar ou retirar o seu
consentimento a qualquer momento sem penalização. Sempre que quiser, você poderá pedir mais
informações sobre o estudo contatando a pesquisadora Gisele Cristina Voss por meio do endereço eletrônico
giselevoss@utfpr.edu.br.

Assinale uma das opções abaixo para receber ou para não receber os resultados da pesquisa, conforme
seu interesse:

( ) Quero receber os resultados da pesquisa. Favor enviar para o e-


mail:__________________________
( ) Não quero receber os resultados da pesquisa.

8. Ressarcimento e indenização: Sua participação na pesquisa não envolve qualquer


dispêndio financeiro ou material de sua parte. Mas você tem o direito de ser indenizado por
qualquer dano que, comprovadamente, seja decorrente de sua participação na pesquisa.

ESCLARECIMENTOS SOBRE O COMITÊ DE ÉTICA EM PESQUISA

O Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (CEP) é constituído por uma equipe de
profissionais com formação multidisciplinar que estão trabalhando para assegurar o respeito aos seus direitos
como participante de pesquisa. Ele tem por objetivo avaliar se a pesquisa foi planejada e será executada de
forma ética. Se você considerar que a pesquisa não está sendo realizada da forma como você foi informado
ou que você está sendo prejudicado de alguma forma, entre em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa
Envolvendo Seres Humanos da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (CEP/UTFPR). Av. Sete de
Setembro, 3165, Rebouças, CEP 80230-901, Curitiba-PR, telefone: 3310-4494 e-mail: coep@utfpr.edu.br

B) CONSENTIMENTO DO PARTICIPANTE

Eu declaro ter conhecimento das informações contidas neste documento e ter recebido respostas
claras às minhas questões a propósito da minha participação direta na pesquisa e, adicionalmente, declaro ter
compreendido o objetivo, a natureza, os riscos, benefícios e indenizações relacionados a este estudo.
Concordo que minha voz seja gravada em áudio para os fins da pesquisa. Após reflexão e um tempo razoável,
eu decidi, livre e voluntariamente, participar desta pesquisa. Estou consciente que posso deixar o projeto a
qualquer momento, sem nenhum prejuízo.

Nome completo:________________________________________________________
RG:_____________________ Data de Nascimento:___/___/______ Telefone:__________________
160

Endereço:_____________________________________________________________CEP:_______________
Cidade:__________________ Estado:__________________

Assinatura:

________________________________ Data: ___/___/______

Eu declaro ter apresentado o estudo, explicado seus objetivos, natureza, riscos e benefícios e ter
respondido da melhor forma possível às questões formuladas.

Assinatura pesquisadora: ________________________ Data: ______________________________

Nome completo:_______________________________________________________

Para todas as questões relativas ao estudo ou para se retirar do mesmo, poderão se comunicar com
Gisele Cristina Voss, via e-mail: giselevoss@utfpr.edu.br ou telefone: (46)99908 0708 e (46)2604 0319.

OBS: este documento deve conter duas vias iguais, sendo uma pertencente ao pesquisador e outra
ao participante da pesquisa.
161

Apêndice C:
PARA UM DIA VOLTAR, AO ATELIÊ, AO ENCONTRO: DO QUE FICA
.
Quando conheci essas histórias...
Quando me senti acolhida por essas pessoas...
Em mim, senti calor.
Daquele que chamam de calor humano...
A mim soa melhor calor de vida.
Que emana, do corpo e da alma,
e ganha espaço, no espaço do encontro.
Gisele Cristina Voss
Pensando e sentindo do mestrado
07 dez. 2020

DOS ENCONTROS...

No primeiro dia de entrevista, Jurema me recebeu com simplicidade e gentileza.


Mesmo com os cuidados necessários ao período de prevenção do COVID-19, a máscara e
a distância física não impediram de ser convidada com um sorriso para conhecer a sua
história e seu espaço de trabalho.
As histórias de idosos também são contadas quando olhamos os cômodos de suas
casas, ou ambientes de trabalho. No caso da Jurema, antes
de iniciarmos a entrevista oficial, foi me conduzindo em
uma visita aos ambientes e histórias de seu atelier24, em que
trabalha há 35 anos. Lembranças representadas por objetos
expostos nas paredes de madeira, em armários e estantes
coloridas. Os quadros pendurados na sala de entrada, as
primeiras porcelanas na cristaleira, a estante-biblioteca
repleta de revistas com as técnicas aprendidas e ensinadas
naquele espaço, uma máquina de costura usada
recentemente, foram compondo as memórias. Reflete,
olhando suas revistas, do quanto a folhearam ela e os
alunos, mas que agora já estariam obsoletas, sendo o celular
o meio atual para pesquisar as técnicas.

24
A apresentação dos ambientes do ateliê ocorreu na chegada ao local, antes de ser apresentado o TCLE e
recebido a autorização para iniciar a gravação. Dessa forma, o relato descrito nesse parágrafo consta nos
registros de diário de campo da pesquisadora, não havendo registro gravado.
162

Cada lugar trouxe informações, como os móveis azuis da cozinha que foram de sua
mãe, do fogão que comprou intencionalmente no modelo antigo, e as crianças adoram
acender com fósforo, por ser diferente do botão automático de suas casas. Ao mostrar o
banheiro, contou do trabalho de design de sua filha, e dos desenhos que compõe o espaço.
Comentou sobre a técnica da parede original daquele banheiro, quer era de uma pintura à
mão especial da época, mas que a artista que fazia esse trabalho na cidade, não quis lhe
ensinar naqueles tempos. Reflete que ela opta por repassar o que sabe a quem pede,
demonstrando-se sentida por não ter tido a oportunidade de aprender aquele belo trabalho
na época. Nas paredes da sala de aula de artes, apresenta suas obras de diferentes períodos,
com técnicas que foi conhecendo e aplicando em seus trabalhos e nos ensinos. Conta de
um novo artista, cubano, com formação em artes e que convidou para dar aulas em seu
atelier, apresentando seus desenhos e belos quadros que registram imagens de Pato Branco
e outras paisagens. Após essa recepção, realizamos a entrevista na sala de aula de artes
(figura 44).

Figura 44 -Jurema em seu ateliê, na ocasião da primeira entrevista para essa pesquisa

Fonte: própria autora. Fotografado dia 10 jun. 2020.

Percebi uma leveza nas falas dela enquanto me contava dos cantos e obras do
atelier, e um certo enrijecer no tom da voz quando os gravadores foram ligados próximos
à ela, ao formalizarmos o início da entrevista. Lembrar e contar a história para alguém é
diferente de quando se percebe que aquela história será gravada e escutada novamente por
163

outra pessoa. Mas no decorrer do tempo essa sensação pareceu se diluir, e ao final o diálogo
foi tomando novamente formas mais leves como a conversa inicial. No segundo encontro
o contato já estava mais familiarizado, e as histórias foram contadas e gravadas de forma
mais natural, acompanhadas de um belo álbum de fotos que a artista trouxe, para apresentar
os registros das exposições e atividades que organizou e vem participando em sua trajetória
artística. A cada imagem, lembranças de pessoas, cenas, eventos e experiências. Reforça
várias vezes a satisfação de ter seu álbum organizado por sua filha, e conseguir relembrar
esses fatos. “Os filhos nos renovam, é o complemento da vida da gente.” (Jurema)
E assim os encontros com Jurema aconteceram.
----- * -----

Assim também, com essa clima amistoso, ocorreram os encontros com Kalu. Desde
o primeiro contato telefônico, o artista se colocou à disposição para contribuir com a
pesquisa, e no momento das entrevistas não foi diferente. A primeira aconteceu após um
evento sobre artes em que ele foi um dos convidados da mesa redonda, promovido pela
ALAP, e logo depois, ali mesmo no Largo da Liberdade, iniciou a contar suas histórias e
experiências. Disposto a compartilhar do que viveu e do que sentiu, mesmo com algumas
interrupções de pessoas que queriam vir cumprimenta-lo, falar de suas amizades, fez
questão de continuar a entrevista, resultando em quase uma hora de gravação de uma boa
conversa. Na ocasião da segunda entrevista, meses depois, a realizamos em seu seu ateliê,
instalado em um barracão localizado em um dos setores industriais da cidade. Ali me
recebeu com animação em suas palavras, e um grande cachorro que também demonstrou
alegria de receber visitas. Em seus relatos e histórias, suas mãos, olhos e expressão,
descreviam as emoções das lembranças.
Naquele espaço amplo, cada canto tinha algo a ser conhecido, obras prontas, peças
em construção, materiais diversos, e até alguns quebrados e que ali seriam recuperados, ou
talvez não... narrações que misturavam ideias alegres em meio a memórias de vandalismos.
E ele foi me conduzindo por aquelas histórias do que aconteceu, e do que está ainda para
ser feito, descrevendo os materiais e os propósitos de cada trabalho. Escutando um jazz
como música ambiente, passando por mesas de trabalho com ferro, pedras, madeiras, e
164

muitas ferramentas expostas nas paredes e bancadas. Um lugar para se criar. Mostra
também um mezanino no segundo andar, que por um período de sua vida foi a sua moradia,
e que agora estava desativado.
Em um trecho da conversa, ainda na chegada25 para a entrevista, consigo
exemplificar um pouco de como foi transitar naquele espaço de muita criação e trabalho:

Ah tem mais uma! Não sei se você veio pra ver arte. Arte não! Escultura por
enquanto. Vão ser arte daqui uns tempos, por enquanto é só escultura. (...). Esse
é um mármore travertino. (...) E aqui uns bustos quebrados. Esse aqui tava na
praça (apontando para uma escultura quebrada em dois pedaços, de uma mulher
sentada). A outra metade dela tá ali. Ó lá a outra metade dela. (...) Lá na praça
mesmo, quebraram tudo. Aí trouxe pra eu aqui, mas daí não me deu...(Kalu).

E continuou o trajeto dentro do ateliê, contando com detalhes alguns trabalhos


recentes. E assim apresentou outras obras que estava fazendo naquele período, sem
encomendas, e o protótipo de uma nova que será feita em formato maior, a pedido de um
novo cliente. Nos sentamos então para a entrevista,
nas cadeiras que dispôs (figura 45) (com a distância
necessária em tempos de pandemia), próximas a
uma mesa de trabalho. Entre ferramentas e pedaços
de materiais, preparou um espaço para apoiarmos o
gravador, e com alegria e certa curiosidade na sua
expressão, se colocou à disposição para o que eu
quisesse continuar perguntando do que faltou na
primeira conversa. E assim as histórias foram sendo
contadas, enquanto o cachorro ainda solicitava a
atenção do lado de fora do ateliê, mas nesse dia teve
que nos dar a licença, pois foram as memórias que
ganharam o carinho.

25
Como foi na segunda entrevista, consegui gravar a conversa antes de iniciarmos a entrevista no local pré-
definido.
165

Figura 45 - Kalu em seu ateliê na ocasião da segunda entrevista

Fonte: própria autora. Fotografado dia 24 jun. 2020.

E assim, os encontros com Kalu aconteceram.


Esses relatos do início da pesquisa, vem especialmente aqui no fim da dissertação,
pois são as forças desses encontros que moveram o que foi contado até então, e ainda
ressoam nesse momento de conclusão dessa aventura em comum, entre pesquisadora e
participantes.

DA AVENTURA...

Ecléa Bosi nos fala sobre a entrevista como algo que envolve responsabilidade pelo
outro, como na duração de uma amizade, e que a qualidade da entrevista depende da
qualidade do vínculo. Foi um exercício para mim, como pesquisadora, compreender isso e
empreender na prática. Porque foi como uma mistura, de admiração e respeito, de
responsabilidade e medo, de alegrias e descobertas, que elas aconteceram, desde o primeiro
166

contato (figura 46). A orientadora, constantemente, trabalhou em mim a postura de


pesquisadora, quando me percebia encantada com as histórias e com os participantes,
convidando a retomar o lugar que me cabia nesse momento. E, dentro do que foi possível,
aprendi um tanto, e continuo aprendendo, dentro dessa aventura, como explica Bosi (2003):

Narrador e ouvinte irão participar de uma aventura comum e provarão, no final,


um sentimento de gratidão pelo que ocorreu: o ouvinte, pelo que aprendeu; o
narrador, pelo justo orgulho de ter um passado tão digno de rememorar quanto
o das pessoas ditas importantes.
Ambos sairão transformados pela convivência, dotada de uma qualidade única
de atenção. Ambos sofrem o peso de estereótipos, de uma consciência possível
de classe, e precisam saber lidar com esses fatores no curso da entrevista.
Às vezes falta ao pesquisador maturidade afetiva ou mesmo formação histórica
para compreender a maneira de ser do depoente. Somos, em geral, prisioneiros
de nossas representações, mas somos também desafiados a transpor esse limite
acompanhando o ritmo da pesquisa (BOSI, 2003, p. 61).

Como pesquisadora num mestrado em desenvolvimento regional, como psicóloga


e também artista, foram muitas as representações para me libertar, das que a autora se refere
que estamos sujeitos a nos aprisionar. Busquei nas minhas memórias e aprendizados dos
diferentes caminhos que trilho como profissional e estudante, escolher os passos certos,
com a constante presença de minha orientadora ao meu lado (figura 47), com a
sensibilidade e o rigor necessários. Esses foram alguns dos tantos limites que vivenciei,
para a acompanhar o ritmo dessa nossa pesquisa. No entanto, grata a essa experiência de
viver essa aventura, e alguns momentos de resistência, para me permitir re-existir nesse
processo (e não desistir), posso dizer que a transformação pela convivência e o sentimento
de gratidão pelo que ocorreu é presente. E ainda pulsante. Do encontro fica a vontade de
voltar, e assim, seguimos o caminhar.
167

Figura 46 - Kalu, Gisele e Jurema, no evento Diálogo de Saberes, 2019.

Fonte: arquivo pessoal Gisele C. Voss. Fotografado dia 05 set. 2019.

Figura 47 - Gisele e prof. Clara, em curso sobre Paulo Freire na APP Sindicato, 2019.

Fonte: arquivo pessoal Gisele C. Voss. Fotografado dia 11 maio 2019.

DO SENTIR

Sinto que ao elencar as colonialidades do poder, saber e ser como conceitos para a
análise narrativa, elas parecem tão grandes, chego a sentir o peso. Ao mesmo tempo,
quando reflito do que senti nos encontros das entrevistas, não foram essas categorias que
se ressaltaram. Talvez por isso que na banca de qualificação os três professores pontuaram
a presença das (de)colonialidades, ou práxis de re-existência, desde o título.
168

Mas como onde há luz, há sombra, se fez necessário reconhecer as expressões das
relações de poder moderno-colonial para observar o que está implícito, como o verso de
um bordado e a fôrma de uma escultura de gesso.
No entanto, enquanto escrevia a análise narrativa, e na primeira leitura da
orientadora, a palavra pesado e cansativo se fez presente. É como se já estivéssemos
exauridos de vivenciar tais relações, que escrever e ler sobre elas não seja tão fluído (sem
desconsiderar a inabilidade de escrita acadêmica, ainda em formação.)
É algo que sinto no corpo também.
Estou ainda iniciando esses passos de pesquisadora, e como psicóloga (e com a
minha psicóloga), percebemos o quanto buscamos respostas pessoais em uma pesquisa,
que tem em si o propósito social de ampliar conhecimentos, em sua diversidade de formas.
E, no presente estudo, minha ânsia (talvez implícita, talvez explícita), era de re-conhecer
na vida, a vida que há. E, devo valorizar, a sensibilidade da minha orientadora, ao insistir
que a metodologia das histórias de vida era possível no mestrado em Desenvolvimento
Regional.
E com o pulsar das re-existências, desde crianças e jovens, Jurema e Kalu nos
brindaram com seus exemplos de vida. Ambos, aos responderem perguntas sobre seu início
na arte, remeteram às vivências desde a tenra idade, mostrando o valor da infância, da
família, das lembranças na sala da casa, e nas primeiras experiências de aprendizagem, da
educação vivida.
Que perpassam por perdas, nos aproximando ainda mais do humano, que nasce e
morre, que existe em constante ir e vir. E desde as cenas ligadas à seu pai, no caso de
Jurema, e de seu irmão caçula, no caso de Kalu, o amor à vida se faz presente. Ficar na
vida, na forma e nas mudanças que ela impõe, dá condições de crescer, fazer, sentir, chorar
e sorrir, como é o belo da existência.
Quando me deparo com as práxis de re-existência como um conceito ligado à
pedagogias, práticas e estéticas, me debruço um pouco mais, por identificação. Minhas
lembranças dos primeiros anos no teatro, com 12, 13 anos de idade, envolvem o
encantamento com o humano. Recordo ficar observando as pessoas nas paradas de ônibus,
após as aulas com o professor Marcio Bernardes, que sempre me permitiu se aproximar do
encantamento com o cotidiano.
Entrevistar artistas, ou melhor, ouví-los contar suas histórias, me fez renovar esse
encantamento. Re-existir.
Sou grata.

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