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DISSERTAÇÃO
PATO BRANCO-PR
2021
GISELE CRISTINA VOSS
PATO BRANCO - PR
2021
Atribuição – Uso Não Comercial (CC BY-NC) - Permite que outros remixem, adaptem e criem
obras derivadas sobre a obra licenciada, sendo vedado o uso com fins comerciais. As novas
obras devem conter menção ao autor nos créditos e também não podem ser usadas com
fins comerciais. Porém as obras derivadas não precisam ser licenciadas sob os mesmos
4.0 Internacional termos desta licença.
À vó Maria e ao vô Manfredo, pelas
histórias que me contaram e que lembro
com saudade.
AGRADECIMENTOS
Desde o início desta pesquisa, fui agraciada com a presença de pessoas que me
acompanharam, indicando direções, auxiliando nos tropeços, celebrando os saltos ou
suavizando os passos. Por fazerem parte desta história, sou grata.
Professora Dr.ª Franciele Clara Peloso, por me conduzir com sua amorosidade
rigorosa, que via antes de mim o que eu nem sabia que seria capaz de realizar. Para a
construção de uma dissertação sensível e crítica, busquei por uma luz Clara, e encontrei
em forma de orientadora e amiga. Grata por inspirar e transformar.
Professoras Drª Ercília de Paula, Drª Hieda Corona, e professor Dr. João da Mota
Neto, por aceitarem compor minha banca examinadora e por lerem mais do que as palavras
escritas, provocando meu fazer e meu pensar além das bordas.
À Jurema Edy Pereira e Sinésio Pereira Chueiri (Kalu), minha especial gratidão,
por aceitarem confiar a mim a escrita do rememorar destas vidas repletas de cores,
possibilitando que esta pesquisa acontecesse de forma tão bela e intensa.
Meus queridos pais Fátima e Márcio, grandes e inspiradores, grata pela vida, pelo
amor, por acreditar em mim sempre. À minha mãe, por suas sábias palavras e por me
amparar tanto. À meu pai, por suas observações e revisões sinceras, e pelo exemplo de
pesquisador que és.
Meu amado esposo Diogo Rossetto, que representa, nos seus atos, a força da nossa
união, sendo um dos alicerces para essa pesquisa acontecer. Um apoio constante, paciente,
ativo e amoroso.
Às nossas filhas Serena e Natália, sou grata por vocês existirem e me motivarem a
olhar, ainda mais, para a arte de viver.
Minha irmã Ligia e meu irmão Douglas, e seus pares Juliano e Vanessa pelo apoio
e exemplos que são para mim. E ao Lucas, Fernanda e Alice, pela alegria brincante.
Priscila, minha colega, amiga e comadre, por sua parceria ímpar, trazendo aromas
e sabores nesses dias de mestrandas, sempre com palavras que elevaram meu ânimo.
Ana Paula, Elisangela, Antonio, Égide, Nathana e Samoara, colegas da UTFPR, por
sempre trazerem aqueles empurrõezinhos necessários nessa empreitada.
Analice, Anne, Patrícia Maciel, Nathalia, Aline, Abelha (Fábio) e David, que,
mesmo distantes fisicamente, se fizeram presentes, celebrando comigo as vitórias do
caminho.
Eliza e Tarciane, pela parceria e suporte com nossas filhas quando o relógio
encurtava as horas do dia.
Carmem e Alberto, pelos conselhos de vida e pelo apoio sempre zeloso comigo e
minha família.
Felipe de Mendonça, por ser poeta, compositor e embalar o dia da defesa desse
trabalho com uma canção inspirada nas histórias de vida de Jurema e de Kalu.
A Deus, por me dar condições de sentir a luz, a paz e o amor em meus dias.
Às amigas, aos amigos, parentes e colegas que fazem parte de meu caminhar, e que
preenchem meus dias com alegria e inspiração, para juntos re-existirmos.
RESUMO
Esta dissertação teve como objetivo compreender, a partir das histórias de vida de artistas
plásticos residentes em Pato Branco - PR, como experienciam o seu fazer artístico,
considerando as colonialidades do poder, do ser e do saber e as práxis de re-existência.
Tem como fundamentação teórica as contribuições de autores de(s)coloniais latino-
americanos (QUIJANO, 1992, 2002; MIGNOLO, 2008, 2017; LANDER, 2000; WALSH,
2005, 2013; ALBÁN ACHINTE,2013, 2017; BOSI, 1986, 1992; e outros), com reflexões
sobre os temas do trabalho, do desenvolvimento, da arte e dos/das artistas. A justificativa
desta pesquisa está voltada à necessidade de ampliar as compreensões sobre a sociedade
moderno-colonial, a partir de artistas e das suas realidades locais. Neste sentido, foram
escolhidos artistas plásticos como sujeitos da pesquisa, pelo conjunto de características
presentes no fazer artístico, que envolvem tempos distintos da aceleração imposta com as
transformações do desenvolvimento econômico nos últimos séculos (BOSI, 1992; ALBÁN
ACHINTE, 2017), o que afeta suas vivências e relações com o mundo. Caracteriza-se como
uma pesquisa qualitativa de histórias de vida (BOSI, 1987, 2003), que visa a valorização
do sujeito e de sua história, como componentes importantes para a formação social. Foram
convidados dois artistas plásticos residentes em Pato Branco - PR, Jurema Edy Pereira e
Kalu Chueiri, para rememorar e contar suas vivências na relação com a sociedade. Foram
realizadas duas entrevistas em profundidade com cada participante, nos anos de 2019 e
2020, sendo registradas a partir do processo de transcriação (CALDAS, 1999). As histórias
foram trabalhadas a partir da análise narrativa (GILL e GOODSON, 2015), com base nos
conceitos das colonialidades do poder (QUIJANO, 2002), do ser (MALDONADO-
TORRES, 2007) e do saber (LANDER, 2000) e das práxis de re-existência (ALBÁN
ACHINTE, 2017). As principais considerações desta dissertação envolvem as
possibilidades de se re-pensar e re-criar a realidade, a partir de práxis de re-existência
identificadas no fazer artístico, ampliando o rol de possibilidades para transformar as
colonialidades ainda atuantes na sociedade. Foi possível identificar a ação destas três
colonialidades em episódios rememorados pelos artistas, com atos de exclusão,
invisibilização, desconhecimento e intolerância com o fazer artístico, ligados à lógica
moderno-colonial que estão presentes em seu dia a dia. Também foram identificados
exemplos de práxis de re-existência presentes no cotidiano das histórias contadas,
destacando sua relevância para inspirar e transformar formas outras de ser e estar nesta
sociedade. O trabalho, como uma das áreas constituintes do sujeito, é diretamente afetado
pelo sistema moderno-colonial, mas também, como percebido nesta pesquisa, é uma das
ferramentas de possível ação de(s)colonial a partir de lugares ocupados no mundo. Ao
conhecer partes de como se mobiliza a arte e a cultura no município de Pato Branco, a
partir das histórias rememoradas por Kalu e Jurema, vemos como tais ações movimentam
o campo do desenvolvimento regional, a partir desta área de atuação. Ainda, consideramos
ser relevante contribuir para ampliar os estudos na área das trajetórias artísticas, e de se
pensar o trabalho com artes a partir do/da artista, na de(s)colonialidade.
ABSTRACT
This dissertation aimed to understand, from the life stories of visual artists Pato Branco-
PR city residents, how they experience their artistic work, considering the colonialities of
power, being and knowledge and the praxis of re-existence. It has as theoretical basis the
contributions of latin american decolonial authors (QUIJANO, 1992, 2002; MIGNOLO,
2008, 2017; LANDER, 2000; WALSH, 2005, 2013; ALBÁN ACHINTE,2013, 2017;
BOSI, 1986, 1992; and others), with reflections on the themes of work, development, art
and artists.The justification for this research is aimed at the need to broaden understandings
about modern-colonial society from artists and their local realities. In this regard, plastic
artists were chosen as participants in the research, due to the set of characteristics present
in artistic making,that involve different times from the imposed acceleration imposed by
the transformations of economic development in the last centuries (BOSI, 1992; ALBÁN
ACHINTE, 2017), what affects their experiences and relationships with the world. It is
characterized as a qualitative research of life stories (BOSI, 1987, 2003),which aims at
valuing the person and its history, as important components for social formation. Two
artists residing in Pato Branco - PR, were invited, Jurema Edy Pereira and Kalu Chueiri,to
remember and recount their experiences in the relationship with society. Two in-depth
interviews were conducted with each participant, in the years 2019 and 2020, being written
from the transcreation process (CALDAS, 1999). The stories were examined trough
narrative analysis (GILL e GOODSON, 2015), based on the concepts of the colonialities
of power (QUIJANO, 2002), of being (MALDONADO-TORRES, 2007) and of
knowledge (LANDER, 2000) and the praxis of re-existence (ALBÁN ACHINTE, 2017).
The main considerations of this dissertation involve the possibilities of re-thinking and re-
creating reality, based on the re-existences praxis identified in artistic practice, expanding
the range of possibilities to transform the colonialities still present in society. It was
possible to identify the action of these three colonialities in episodes recalled by the
artists,with acts of exclusion, invisibility, ignorance and intolerance with the artistic doing,
linked to the modern-colonial logic that are present in their daily lives. Examples of re-
existence praxis present in the daily life of the stories told were also identified,highlighting
its relevance to inspire and transform other ways of being in this society. The work, as one
of the constituent areas of the subject, is directly affected by the modern-colonial system,
but also, as noted in this research, it is one of the possible tools of decolonial action from
its places in the world. By getting to know parts of how art and culture are mobilized in
Pato Branco city, from the stories recalled by Kalu and Jurema, we see how these actions
move the field of regional development, from this area of expertise. Still, we consider it
relevant to contribute to expand studies in the area of artistic trajectories, and to think about
the work with arts from the artist's perspective, in decoloniality.
Este estudo acontece motivado por um conjunto de temas que perpassam minhas
experiências acadêmicas e profissionais. Os interesses sobre o ser e estar no mundo, o fazer
artístico, o trabalho, as histórias de vida e a Psicologia Social, que compõe esta pesquisa,
se encontram em diferentes caminhos que venho trilhando.
A expressão artística se faz presente em minha vida desde a infância, sendo
incentivada pela minha família e por ações na escola em que estudei até o ensino médio
em Passo Fundo - RS. Aos 14 anos já trabalhava como atriz na companhia de teatro da
Universidade local, e aos 16 anos meu trabalho com teatro possibilitou o voluntariado no
Hospital da Cidade, surgindo a Palhaça Aspirina. Desde então, estudar e vivenciar a arte
da palhaçaria em diferentes áreas, inclusive na terapêutica e na social, ampliaram a minha
aproximação da arte com o humano e com o sentir-se parte no/do/com o mundo, como
sujeito ativo.
Anos depois, na graduação em Psicologia, o interesse sobre as relações e emoções
humanas foi ampliado pelas teorias e práticas propostas nas disciplinas da área de
Psicologia Humanista, que contribuem com um olhar sobre os fenômenos humanos e a
consideração do sujeito como construtor ativo em suas experiências. Na área de Psicologia
Social e Comunitária foi possível realizar o estágio semestral junto à uma comunidade de
famílias de pescadores em Guaraqueçaba – PR e também estágios profissionalizantes em
duas áreas de trabalho social, sendo o primeiro como educadora social com jovens em
vulnerabilidade na cidade de Piraquara - PR, e o segundo como agente de desenvolvimento
regional em um bairro de Curitiba - PR. Nos três estágios, a Psicologia Social, a abordagem
humanista e a arte foram fundamentos de ação. Tais experiências, somadas à participação
ativa no movimento estudantil regional de Psicologia, fizeram crescer as inquietações
perante a realidade social, aos sistemas de opressão sobre os sujeitos dessas histórias, e da
função do profissional de Psicologia frente a isso.
Como pesquisadora, o trabalho de conclusão de curso de graduação em Psicologia
promoveu um diálogo entre a Psicologia Corporal, baseada na teoria da Análise
Bioenergética (LOWEN, 1975), com a experiência de ser palhaço, registrada em
entrevistas que realizei com oito palhaços e palhaças de cinco países. O estudo possibilitou
o desenvolvimento de uma análise em três dimensões: pessoal, psicoemocional e social.
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Conheci formas de ser, sentir e viver em sociedade através da experiência de ser palhaço
em diferentes realidades.
A vivência profissional atual também vem me possibilitando ampliar o olhar e a
compreensão sobre a complexidade e beleza dos fenômenos humanos, nas três principais
áreas que venho atuando: Psicologia Clínica, Educacional e do Trabalho. Na experiência
clínica com atendimentos na abordagem sistêmica, as histórias pessoais e a compreensão
sobre os sistemas em que o sujeito é inserido, tem sido campo vasto de aprendizagem sobre
a subjetividade das relações. Uma outra área de atuação da Psicologia, que tive a
oportunidade de vivenciar, foi como Orientadora Educacional no ensino fundamental em
uma escola de Dois Vizinhos-PR, por dois anos, com experiências intensas na área de
educação, culminando em uma pós-graduação lato-sensu em Psicopedagogia Clínica e
Institucional. Estas experiências transformaram meu olhar sobre o papel da educação na
vida dos sujeitos e seus lugares na sociedade. E desde outubro de 2017 atuo como psicóloga
do trabalho em uma instituição federal de educação superior, na cidade de Pato Branco –
PR. A Psicologia do Trabalho tomou lugar entre minhas atenções, observando como o
trabalho influencia na constituição do sujeito, além de lhe direcionar nas formas de relação
com a sociedade e construção de sentidos.
Algumas inquietações se construíram nessa caminhada de vivências, que me
motivaram a querer saber mais sobre as possíveis maneiras de estar no mundo, atenta ao
ser, sentir e viver na sociedade atual. Busquei a continuidade dos estudos através do
mestrado, me inscrevendo no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional
(PPGDR) na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR), na linha de Educação
e Desenvolvimento. Um encontro essencial para a concepção desse projeto de pesquisa
ocorreu ainda antes de entrar na seleção do Mestrado, quando fui aluna externa do PPGDR
em 2018, na disciplina de Pesquisa Social ministrada pela professora Dra. Franciele Clara
Peloso. Os textos, os diálogos em círculo, o acolhimento e provocações a pensar, me
fizeram reviver os espaços de construção de sentidos que tive no caminhar acadêmico,
ampliando para novas possibilidades de caminhos em pesquisa qualitativa. A cultura, a arte
e as histórias de vida também ganharam brilho nos primeiros diálogos com a professora,
tornando-se possíveis temas para uma futura pesquisa com questões ligadas à sensibilidade,
em diálogo com o Desenvolvimento Regional. Assim se deu o encontro inicial.
Quando comecei a ouvir as narrativas coletadas na presente pesquisa, ressoou no
meu coração lembrar que vi/fiz isso na minha adolescência, quando em uma oficina de
história oral na Universidade de Passo Fundo, fiz o registro em fitas cassetes de memórias
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relatadas pelo meu avô Manfredo Carlos Voss e minha avó Maria Gasparina Voss. E parte
dessas lembranças ali gravadas, perpassam pelas ruas de Pato Branco, por ser a região da
família de minha avó, e onde moraram em alguns períodos de suas vidas, trabalhando,
inclusive, na rádio local. A relação familiar com a região enriquece o pertencimento ao
lócus da pesquisa.
Essa bagagem de vivência pessoal constitui uma parte da motivação para a
realização dessa proposta de estudo. Somados à essa justificativa, apresento, nos próximos
parágrafos, o contexto social em que foi construída a questão desse projeto de pesquisa,
justificando sua pertinência em um Programa de Pós Graduação em Desenvolvimento
Regional, na linha de Educação e Desenvolvimento.
Como pesquisadoras, voltamos nosso olhar ao sujeito artista, dando atenção às
vivências que têm no contexto social em que está inserido. A realidade social sobre a qual
nos debruçamos tem aspectos que se constituíram conforme as transformações trazidas
pelas revoluções técnico-científicas, identificadas desde a primeira revolução industrial no
século XVIII. De acordo com Libâneo, Oliveira e Toschi (2012) esse processo afeta,
continuamente, as relações de produção, de trabalho e de educação no mundo.
Transformações essas que, motivadas pela busca de crescimento econômico, também
afetaram as relações sociais, acelerando o ritmo dos processos, do trabalho, da automação,
da comunicação e do transporte. A sociedade segue, desde então, a velocidade do
capitalismo globalizado e conectado (BRUNO, 2011). Furtado (1978) destaca que os
processos criativos foram também afetados e direcionados para a ciência e tecnologia,
visando o lucro e resultados para o mercado.
Os trabalhos que passaram a ser cada vez mais valorizados, segundo Heidemann
(2009) envolveram a tecnologia, a velocidade, a padronização e automação, sendo
intensificados nos projetos de desenvolvimento do século XX, pautados no crescimento
econômico. O desenvolvimento econômico, com a implantação do capitalismo no mundo,
está relacionado a outros impactos sociais, não somente na área de trabalho e produção,
sendo percebido em outras instâncias da sociedade e da constituição da subjetividade.
Alguns movimentos de crítica ao desenvolvimentismo, a partir dos anos 1960, apresentam
alguns resultados da corrida econômica que vem ampliando a desigualdade social e
impactos ambientais globais (PORTO-GONÇALVES, 2016; RESTREPO, 2017).
A partir dessa contextualização, pensamos sobre como esse conjunto de
transformações ligado ao desenvolvimento, às revoluções técnico-científicas e ao
capitalismo, afeta o/a artista e seu trabalho. Essa reflexão toma lugar, ao observar
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pesquisas que versem sobre o/a artista, sua história e sua vivência pessoal na
colonialidade/modernidade.
Esta pesquisa propõe, também, uma contribuição de caráter político, de reflexão,
provocação e sensibilidade. Nesse sentido, os teóricos da de(s)colonialidade utilizados por
nós, reconhecem nas contribuições do/da artista, pelas especificidades ligadas ao seu
trabalho, dentre as possíveis práxis de re-existência ao processo de opressão, característico
do sistema moderno-colonial. Em um sentido de construção crítica e criativa perante a
realidade, o ato criador também pode ser visto como ato político. O/a artista, ao re-criar a
realidade e transformá-la pelo seu olhar, também é afetado pelo seu exercício de ação, e
consequentemente, afeta seu entorno sociocultural (ALBÁN ACHINTE, 2017). Soma-se
a isso o fato de muitas ações artísticas se configurarem como uma ação de registro,
marcando as raízes de um povo por mediações simbólicas, ao produzirem obras que contém
em si memórias de um tempo (BOSI, 1992).
Vale registrar que uma das justificativas que permeiam esta dissertação, é que nós
pesquisadoras (pesquisadora principal e orientadora) também temos na arte uma escolha
de expressão, mesmo que não como a principal atividade laboral no momento. Mas ao
perpassar por nossos corpos a sensibilidade artística de forma intensa, sentimos também os
reflexos da sociedade sobre a classe, o que nos levou a realizar um estudo com artistas
plásticos em uma pesquisa na linha de Educação e Desenvolvimento.
Esse desenho nos provocou ainda mais a querer aumentar a compreensão sobre
sujeitos que vivenciam essa realidade e re-pensar a sociedade a partir de suas memórias e
reflexões. Para conhecer uma das formas de vivenciar seu lugar no mundo, optamos por
estudar sujeitos que escolheram as artes plásticas como sua forma de expressão laboral, por
dois motivos centrais: 1) pelas características do trabalho artístico vinculados à
sensibilidade, possibilidade de resistência e de tempo distinto do ritmo da sociedade
moderno-colonial; 2) as artes plásticas se justificam pelo trabalho manual requerido no
desenvolvimento das obras, é uma das formas laborais descritas dentre as afetadas pelas
transformações ocorridas nas revoluções técnico-científicas.
Delineadas as motivações, contexto sócio-histórico, fundamentação teórica e
justificativas desse projeto de pesquisa, chegamos às nossas questões de pesquisa: Como
artistas plásticos vivenciam seu lugar no mundo? Como foram construídos seus modos de
ser, fazer e sentir, através dos lugares que ocupam nessa sociedade moderno-colonial?
Para responder a essas questões, nos propomos a trabalhar com os seguintes
objetivos:
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Objetivo geral:
Compreender, a partir das histórias de vida de artistas plásticos residentes em Pato
Branco - PR, como experienciam o seu fazer artístico, considerando as colonialidades do
poder, do ser e do saber e as práxis de re-existência.
Objetivos específicos:
Refletir sobre a sociedade moderno-colonial e o papel da arte e do/a artista, a partir
das contribuições de autores de(s)coloniais latino-americanos.
Registrar as memórias das vivências de dois artistas plásticos, na sua relação com
a sociedade;
Identificar nas histórias de vida de dois artistas plásticos como vivenciam ser e estar
no mundo e como foram construídos seus modos de ser, fazer e sentir através das
experiências vivenciadas no contexto da sociedade moderno-colonial.
sociedades dependentes resgatem sua autonomia e a valorização da sua cultura, afirma Fals
Borda (2007).
No modelo capitalista de desenvolvimento são identificadas ações que promovem
a manutenção da lógica da colonização, porém em outros formatos e com novas
nomenclaturas. Ao descrever o processo brasileiro de desenvolvimento, Bosi (1992)
compara as consequências dos períodos das marchas colonizadoras com as frentes de
produção da atualidade:
econômica, são feitos pelos e para os sujeitos, o que se reflete na constituição de sua
subjetividade.
Apresentamos, no próximo tópico, uma das vias propostas por autores
de(s)coloniais para outras formas de se pensar a sociedade e o sujeito, visto como ser ativo
e com potenciais distintos, o que visa contribuir na proposição de formas outras de se
relacionar com o trabalho e de promover e de se desenvolver nessa sociedade moderno-
colonial.
não é negociável com o sistema: a dignidade. Para Albán Achinte (2017), este fazer
diverso, dentro e fora das instituições, com outros ritmos, inclui o artista, através do seu
trabalho, como parte das pedagogias, práxis e estéticas de re-existência pela visão
de(s)colonial, para alcançar novos lugares e lógicas “outras” para o ser e estar no mundo.
Em um movimento para humanizar a si e ao coletivo, e não deixar seu corpo e subjetividade
serem coisificados. O autor direciona suas contribuições partindo de uma visão sobre a arte
que vai além da produção de objetos artísticos, descrevendo-a como um espaço de reflexão
permanente em torno das desigualdades sociais, dilatando os cenários de discussão em
torno das violências e autoritarismo do sistema moderno-colonial.
Isto posto, percebe-se que o/a artista tem a opção de ocupar um lugar de reflexão
dentro do sistema, onde reconhece-se alguns traços formadores da cultura moderna que, de
acordo com Bosi (1992), conferem à arte, à filosofia e à ciência, a possibilidade de resistir
às pressões da estrutura dominante, em diferente contextos. Sendo uma possibilidade, não
se refere a todos os tipos de produções artísticas.
Nesse sentido, Camintzer (2011) considera que o lugar do artista, pode promover
distintas interpretações sobre sua ação perante a sociedade. E para isso também é preciso
refletir que lugar ocupa, e como sente que esse lugar é interpretado pelos outros à sua volta.
Como um trabalho de comunicação constante, a responsabilidade social do artista como
comunicador, está também vinculado ao público a que se destina. Com responsabilidade
sobre seu trabalho, e sobre a mensagem que constrói, o artista tem condições de especular
e produzir obras sobre relações e temas que não são possíveis noutras áreas do
conhecimento.
O ato de re-criação da realidade, na transformação que o olhar do artista produz,
afeta o seu entorno e a si (ALBÁN ACHINTE 2017), aproximando a construção criativa e
crítica do ato criador a um ato político e de registro das memórias de um tempo (BOSI,
1992). Considerar a potência da arte para a de(s)colonialidade, e as características do
trabalho artístico vistos em sua sensibilidade para a crítica e transformação, demonstra que,
de certa forma, o lugar do artista no sistema moderno-colonial ocorre por vias distintas, em
muitos casos. Bosi (1992) ressalta que a divisão social do trabalho tem um tempo social
específico, acelerado e com ênfase no tecnicismo, enquanto o fazer artístico está numa
outra dinâmica de tempo, fazendo parte do rol dos conhecimentos que não são tão
valorizados na racionalidade hegemônica. A contribuição ofertada nesse tipo de trabalho
não representa a mesma velocidade de técnicas e tecnologias exaltadas nesse sistema,
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sendo uma contribuição distinta, por estar na dimensão dos tempos corporais da
imaginação e da sensibilidade.
Refletindo sobre o tempo distinto nessa sociedade atual, Albán Achinte (2017,
p.139) apresenta uma opção, que nomeia como “a decolonialidade do tempo ou a estética
da lentidão”. Um conceito que evidencia a narrativa sobre o tempo que também foi
colonizada pelo projeto civilizatório moderno-colonial do desenvolvimento, e que ocorre
em três dimensões: a negação do passado, a rentabilidade do tempo no processo produtivo
e a concepção ilimitada de desenvolvimento de exploração da natureza. A dinâmica destas
três dimensões altera a memória do sujeito, disciplina seu corpo pelo horário laboral, refém
de uma constante atividade produtiva do tempo presente e de um passado suprimido: a
produtividade se torna o sentido de sua existência. O paradoxo se instala no momento em
que o tempo é vendido ao desenvolvimento do capitalismo e ao sujeito não resta tempo
para ele mesmo, numa dinâmica onde “o tempo é ouro” para o sistema mas, para si mesmo,
“não tenho tempo”.
A lentidão apresenta-se como uma estética de(s)colonial, um contra-sentido do
aceleramento do projeto globalizador, ao questionar os ritmos impostos e de lembrar que
o ato de in-surgir se alarga quando se dá tempo para o pensar. De acordo com Albán
Achinte (2017), o ato reflexivo da lentidão pode ser ilustrado na geração de espaços de
ócio produtivo, de um tempo dedicado para a análise da realidade, na organização de
processos que demandam tempo, atos nos quais a arte desempenha um papel fundamental.
Essa dinâmica da lentidão atua como uma forma da memória ser re-configurada, através
do tempo necessário para conceber um pensamento crítico, um repensar-se sujeito nesse
tempo e nessas sociedades, com tempo para relembrar o que se passou e a imaginar como
quer ser.
Nessa dinâmica temporal, ocorre o ato criador, característico no trabalho do artista,
conectado com o existir, com o re-aprender a viver, a retomar o lugar de sujeito perante a
lógica instaurada na narrativa ocidental, como explicita Albán Achinte (2009):
As escolhas, afetos e memórias do/da artista compõem sua expressão. Isso perpassa
as sensações que experiencia. No entanto, para Bosi (1992), o mundo das sensações, tão
próprio da arte, nem sempre tem sido compatível com o modus operandi da sociedade
moderna ocidental. O presente, nesse sistema, é visto como a potencialidade de futuro, e a
função da produtividade é acentuada, exercendo um domínio sobre as pessoas e sobre a
matéria.
É possível observar reflexos das tensões e contradições do projeto moderno-
colonial, que converteu o não-ocidental em o “outro”, o diferente e exótico, e assim implica
na existência de uma arte que corresponda ao moderno, seguindo as ações em prol da
racionalidade hegemônica estabelecida geopoliticamente. Esse processo converteu a
América Latina, segundo Albán Achinte (2017), em um receptáculo de tendências
universalizantes da arte, seguindo os modelos de “países desenvolvidos” europeus e norte-
americanos. Um contexto que impede a valorização e reconhecimento da arte latino-
americana em seu universo próprio de produção e criação.
Frente ao exposto podemos afirmar que esse contexto, protagonizado pelo projeto
moderno colonial, dificulta a valorização e o reconhecimento da arte latino-americana e,
por consequência da/do artista, em seu universo próprio de produção e criação. Gómez
(2019) destaca que houve um “branqueamento” da estética, do mundo do sensível, criando
uma “geo-estética” privilegiando somente representações consideradas e reconhecidas
como da “alta cultura”, da etno-classe branca, em sua construção do projeto civilizador. A
relação com as expressões dos colonizados historicamente foi relacionada ao não-humano,
de bárbaros, de artesanatos, de utensílios, de mitos, não-originais, feios ou de mau gosto.
De acordo com Albán Achinte (2009), na dinâmica do sistema mundo moderno-colonial
artistas que têm em seu fazer o trabalho artístico, mas com histórias e trajetórias distintas
da racionalidade hegemônica – como por exemplo os indígenas, afrodescendentes e
campesinos - tiveram sua arte transformada em artesanato para turistas, expressões
folclóricas ou exóticas, tornando-as manifestações do passado ou de baixo valor estético.
Ao compreendermos que a arte se faz, como um sistema de representar, interpretar,
simbolizar, imaginar, compreender e problematizar o mundo, Albán Achinte (2009) afirma
que todas as expressões artísticas teriam que estar ocupando o mesmo espaço. Nesse
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“populares”, “artesanais”. Da mesma forma, o autor indica que a cor da pele, as etnias, as
descendências e as religiões são indicativos de inferioridade. Por isso o espaço do/da artista
que não é “enquadrado” nas categorias dita superiores, tem sua identificação com práticas
de resistência (cuidar, as vezes é resistência, às vezes re-existência - padronizar ou explicar
porque usa das duas formas), como reflete Bosi (2007), analisando algumas produções
poéticas brasileiras:
Continuo pensando que a ideologia dominante reduz os signos dos seus vários
discursos a um grau alto de abstração retórica, cujo fim é persuadir o interlocutor
a aceitar os princípios que regem o status quo, maquiando, por exemplo, as
iniqüidades do capitalismo ou a opressão de um determinado tipo de estado
tecnoburocrático. A poesia responde, de formas diversas, a esse rolo compressor,
contemplando momentos singulares e irredutíveis do cotidiano, revivendo
instantes epifânicos do passado tornado presente, reelaborando generosamente
mitos de liberdade ou, por via da negação, exercendo o poder de sátira ou de
humor com que desmitifica os pseudo-argumentos da ideologia. Os exemplos
felizmente não são poucos, e cito apenas aqueles poetas maiores a que dediquei
alguns escritos: Leopardi, Ungaretti, Montale, Drummond, Cabral, José Paulo
Paes e Ferreira Gullar (BOSI, 2007, p. 286).
oprimido. As artes sacras com base ibérica e presentes na América Latina têm em sua
construção, em muitos casos, mãos de artistas locais, indígenas evangelizados, mestiços,
escravos, o que promoveu algumas adaptações nas imagens de santos, na arquitetura e na
música. Ainda segundo o mesmo autor, nas obras dos “opressores cristãos” (p.166), estão
presentes as expressões artísticas dos oprimidos. Observa-se em músicas e canções
populares religiosas, de como a realidade das classes oprimidas era apresentada de forma
triste e chorosa, tal como sentiam-na. Podendo ser reconhecidas como uma expressão
artística religiosa da realidade, ou, para alguns, representam uma trágica resignação à
opressão.
Mais uma vez, como também observado nos estudos de Albán Achinte (2009, 2017)
e de Bosi (1986, 1992), há a expressão artística reconhecida pelo seu papel de resistência
cultural, dos povos colonizados e oprimidos pelas ações constantes de aculturação e
exploração. Mesmo que no caso exemplificado sejam feitas de forma velada, como
descreve Dussel:
É com essa potência produtiva, criativa e artística que o sujeito artista mantém
constante diálogo com a realidade cotidiana, e assim vivencia seu lugar na sociedade, junto
a seu povo. Muitas das expressões que o autor relaciona ao movimento para libertação,
estão reunidas no arcabouço artístico da cultura popular, onde valorizam os aspectos de
criatividade, inteligência e produção do artista, contribuindo no resgate e manutenção da
memória artístico-cultural de cada região.
Dussel (1997), ao se referir à produção artística, ele confere à ela um perfil próprio,
dentro do rol de atos humanos produtivos, onde reconhece-se (em sua maioria) a ligação
da classe social do artista com o ato que efetua. Partindo dessa concepção, o autor expõe,
na história latino-americana, a exclusão dos artistas que não eram da burguesia, de estética
europeia, dos estilos impostos trazidos pelos colonizadores, ou simplesmente por serem
expressões locais e próprias dos povos originários ou escravos. Tal distinção tem sofrido
algumas alterações nas últimas décadas, porém ainda é possível encontrar os indícios da
permanência dessa relação de poder e de desprezo em certas áreas de estudo e crítica
48
No mesmo sentido, Bosi (1986), fala sobre o caráter plural presente no trabalho do
artista:
Hoje, a fusão, tantas vezes dissonante, de grito e maneira poderá levar a uma
reconsideração do caráter plural do trabalho artístico, que passa pela mente, pelo
coração, pelos olhos, pela garganta, pelas mãos; e pensa e recorda e sente e
observa e escuta e fala e experimenta e não recusa nenhum momento essencial
do processo poético (BOSI, 1986, p. 71).
Após essa fase inicial, procedeu-se para a etapa proposta no segundo objetivo
específico: registrar as memórias das vivências de dois artistas plásticos, na sua relação
com a sociedade. Para o registro das histórias de vida, descritas no capítulo quatro, foram
realizadas entrevistas em profundidade com os sujeitos participantes (MINAYO, 2002;
RICHARDSON, 2014).
As histórias foram trabalhadas a partir da análise narrativa, técnica indicada para
pesquisas de histórias de vida (NOGUEIRA et al., 2017; GILL e GOODSON, 2015). Essa
parte é destinada para atender ao terceiro objetivo específico: Identificar nas histórias de
vida de dois artistas plásticos como vivenciam ser e estar no mundo e como foram
construídos seus modos de ser, fazer e sentir através das experiências vivenciadas no
contexto da sociedade moderno-colonial. A análise narrativa compõe o capítulo cinco,
onde foi promovida uma leitura dos episódios rememorados e reflexões trazidas pelos
artistas, a partir das contribuições de autores de(s)coloniais sobre o sistema moderno-
colonial e sobre os/as artistas.
Nas próximas páginas serão descritas cada uma dessas etapas do percurso
metodológico proposto.
Quando o estudo tem como método histórias de vida, que se propõe a captar a
interpretação que a pessoa faz da sua própria vida, o número de sujeitos na amostra
geralmente é pequeno, como apontam Bogdan e Biklen (1994), dado o debate e a análise a
que se propõe. Dessa forma, o recorte metodológico proposto nesta pesquisa foi o de dois
participantes.
Os narradores desta pesquisa são duas pessoas idosas, uma mulher e um homem,
reconhecidos na sociedade patobranquense pelas suas mãos artísticas, olhares sensíveis e
mente conectada com a arte e a cultura na região. Ambos são aposentados, no entanto
continuam trabalhando diariamente com artes plásticas em seus ateliês na cidade. A seguir
apresentamos uma breve descrição desses participantes.
Jurema Edy Pereira, 71 anos, natural de São Carlos – SC, reside em Pato Branco
desde 1960, quando se mudou para a cidade com seu marido, recém-casada. Os trabalhos
manuais fazem parte da sua história desde a infância, quando iniciou a aprender bordados
e outras habilidades manuais no colégio de freiras que estudou. E também relata a herança
dos traços bem delineados de seu pai, registrados em seus trabalhos como agrimensor. A
53
Sinésio Pereira Chueiri, conhecido como Kalu Chueiri, 70 anos, natural de Ibaiti -
PR, reside em Pato Branco desde 1974. Morou também em outras cidades, algumas na
região do sudoeste paranaense. Os trabalhos manuais e a arte fazem parte da sua família,
sendo filho de pai artesão, fabricante de sapatos, e irmãs musicistas. Considera-se escultor
autodidata, e tem em sua trajetória de aprendizagem, mestres que encontrou em pequenas
1
Disponível em: <https://www.facebook.com/JuremaEdy>. Acesso em 10 ago. 2020.
54
2
Disponível em: <https://silvinhabl.blogspot.com/2013/03/a-arte-de-transformar-conceitos-em.html>.
Acesso em 10 ago. 2020.
55
relacionado às artes no final do ano de 2019, sendo que nessa oportunidade, os dois
puderam esclarecer mais informações sobre o convite feito anteriormente pelo telefone, e
confirmaram o aceite em participar dessa pesquisa.
Esta pesquisa foi realizada em Pato Branco, cidade onde residem Jurema e Kalu.
Está situada na região sudoeste do Paraná, e atualmente tem uma população de
aproximadamente 84 mil habitantes conforme página da Prefeitura Municipal (2021).
Sittilo Voltolini (1966), ao contar sobre as origens da cidade, diz que ela recebeu esse nome
por uma cena vivida por João Arruda, que veio morar com sua família “na margem do Rio
Chopim junto ao barranco de um rio a que deu o nome de Rio do Pato Branco, por ter nele
abatido um pato selvagem em cuja plumagem predominava a cor branca.” (VOLTOLINI,
1966, p. 30).
Muitos “causos” e memórias guardam essas terras, nas margens do Rio Pato Branco
e do Rio Ligeiro, vividos por pessoas de diversas origens, como conta Neri Bocchese (in
FREIRE, CAMPESTRINI e BOCCHESE, 2003):
Assim como a ave da qual a cidade carinhosamente herdou o nome, que sabe
nadar, que sabe caminhar e que sabe também voar, somos um povo que
vencemos as dificuldades das distâncias, do isolamento, no meio dos pinheirais,
dos problemas sociais principalmente os de convívio, dos primeiros tempos da
Colônia Bom Retiro e do alvorecer de Villa Nova.
Somos o caboclo, como disse Darcy Ribeiro, o primeiro brasileiro, filho de mãe
índia e de pai português. Somos o caboclo defensor da sua terra e da sua família
que aqui precisou de refúgio depois do Contestado. O caboclo que com os seus
ranchos e desejo de vizinhança, foi o primeiro morador de Pato Branco e
responsável pelo primeiro ciclo econômico, o da erva-mate, trabalhou nos
barbaquás dos argentinos.
padre, o bispo e os fiéis da própria etnia. As irmãs ucranianas cuidam do Lar dos
Idosos, mantém a tradição, a língua e a escola Sant´Ana.
Pato Branco não é só um povo. Não traz uma realidade cultural única. Aqui está
a sua grandeza, sabendo conviver e somando as diferenças fizeram da Colônia
Bom Retiro, crescendo com Villa Nova e chegando à cidade de Pato Branco.
Existe uma história de desenvolvimento que é marcada por raízes culturais distintas,
que se encontram em um território comum, permeadas, como observado na descrição
acima, com diferenças raciais demarcadas e com influências culturais religiosas.
Atualmente somam-se outras culturas de diferentes países e regiões do Brasil, formando a
população dessa cidade (figura 4) sudoestina. Com misturas, encontros e desencontros,
essa cultura é construída com marcas de colonialidade e resistência.3
3
Sabemos que a história de Pato Branco é fortemente marcada por aspectos coloniais ao que tange a religião,
política e cultura. Acreditamos que essa temática possa ser problematizada por nós em trabalhos futuros.
4
Disponível em: http://patobranco.pr.gov.br/galerias/patobranco/attachment/aereas_credito_rudi_bodanese-
4/. Acesso em 10 dez. 2020.
57
Por esta vertente social das histórias de vida se justifica sua escolha para o presente
estudo das histórias de artistas e suas relações com os lugares que ocupam no mundo
moderno-colonial. A valorização da oralidade, a evocação da memória e seu registro como
metodologia, dialogam com as contribuições de(s)coloniais (ALBÁN ACHINTE (2013),
WALSH (2013), sendo que as pesquisas com história oral têm ganhado cada vez mais
espaço nas produções acadêmicas latino-americanas, em seu potencial teórico e
epistemológico (RIVERA CUSICANQUI, 1987). Como descrito nos capítulos anteriores,
58
a sociedade moderna impõe ritmos acelerados que tornam o tempo de guardar e sentir como
não sendo parte do modo de existir atual. Bosi (2003) registra seu olhar sobre estes tempos
que são subjugados pela sociedade industrial, e se refere à importância de recompor as
histórias, e as possibilidades dos/das artistas em contribuir neste registro.
Assim, para esta pesquisa, julgou-se a escolha do sujeito artista como a mais
adequada, contribuindo com suas vivências e com o recontar delas, para se refletir sobre
ser e existir em sociedade, sobre os lugares neste mundo da velocidade e do presente
contínuo. A aceleração dos tempos, a repetição das máquinas, a competição pelos lucros,
sufocam, de certa forma, a lembrança. Chauí (1987) ressalta que muitas histórias são
oprimidas, desvalorizadas, para dar lugar à vitória contada pelo vencedor, enquanto a
tradição dos vencidos é pisoteada. Esta reflexão dialoga e se aproxima da
de(s)colonialidade do tempo, em contraponto com a velocidade acelerada do processo
produtivo e da concepção de desenvolvimento de progresso ilimitado. O tempo laboral, a
velocidade das máquinas, o projeto de desenvolvimento, enlaçam as lembranças em um
silenciamento, que são atingidas diretamente pelas colonialidades do ser e do saber. De
acordo com Albán Achinte (2017), o recordar dá sentido ao sujeito, ao ser, e os
aprendizados contados do passado constroem as formas de conhecer, saber e aprender.
Para a psicologia social que Bosi (2003) apresenta, o trabalho da memória é sobre
o tempo vivido, significado pelo indivíduo e pela cultura, e isso também é afetado pelo
tempo que se experiencia. Em cada sociedade, cada classe, assim como para cada pessoa,
o tempo flui diferentemente. Neste contexto, a arte de contar histórias também sofre com
os impactos do pensamento moderno colonial no trabalho e nas relações sociais. Como
reflete a autora: “A arte da narração não está confinada nos livros, seu veio épico é oral. O
narrador tira o que narra da própria experiência e a transforma em experiência dos que o
escutam.” (BOSI, 1987, p. 43). Com a memória oral recebendo mais atenção de
pesquisadores, a valorização do sujeito e de sua história toma forma na academia e no
mundo.
As vivências que são compartilhadas pelos narradores, contribuem para a
compreensão de algumas realidades sociais, no entanto, a história de vida coletada não
substitui uma teoria ou conceito da História. Os depoimentos são itens da memória social,
registrados na memória pela experiência individual e, ao evocá-la, se conecta com a
dimensão temporal e com o momento psicossocial da lembrança (BOSI, 2003). No
conceito de Bosi (1987), memória é trabalho:
59
Não há evocação sem uma inteligência do presente, um homem não sabe o que
ele é se não for capaz de sair das determinações atuais. Aturada reflexão pode
preceder e acompanhar a evocação. Uma lembrança é diamante bruto que precisa
ser lapidado pelo espírito. Sem o trabalho da reflexão e da localização, seria uma
imagem fugidia. O sentimento também precisa acompanhá-la para que ela não
seja uma repetição do estado antigo, mas uma reaparição (BOSI, 1987, p. 39).
pensamentos críticos sejam liberados, o que acontece muitas vezes em tom de confidência,
por isso exige-se um olhar cuidadoso sobre a vivência relatada. Ainda segundo a autora,
nas histórias de vida encontram-se materiais ricos para a análise do vivido e para, a partir
da visão individual, promover uma reflexão da dimensão social.
São características do procedimento de entrevistas em profundidade: um caráter
colaborativo, processual, que presume confiança e um relacionamento mais estreito entre
o entrevistado e o pesquisador. O direcionamento de fala é mínimo, priorizando o fluxo da
entrevista na ordem e sequência construída pelo participante, como descrito por Gill e
Goodson (2015). Nesse sentido, Richardson (2014) afirma que a entrevista em
profundidade também é qualificada do tipo não diretiva, na qual o pesquisador sugere o
tema geral em estudo, não formulando perguntas prévias, e proporcionando tempo e
condições para o sujeito passar pelo processo de reflexão sobre o tema. Para embasar os
encontros desta pesquisa, a pesquisadora utilizou um Roteiro de Temas (Apêndice A) com
alguns pontos considerados importantes para os objetivos propostos.
A entrevista se dá no movimento de um encontro, como reflete André Levy (2001
in NOGUEIRA et al., 2017), quando afirma que o encontro na pesquisa tem uma história
própria, quando uma pessoa aceita confiar sua história ao pesquisador. Esse encontro
envolve interação e afeto, favorecendo a abertura do sujeito para narrar sua história de vida.
Como um método científico que considera a dimensão do vínculo entre pesquisador e
sujeito, é reforçada a necessidade de cuidado nessa relação e se ressalta a importância do
compromisso do pesquisador com a realidade a ser compreendida (SILVA et al., 2007).
Neste tipo de procedimento de pesquisa, Nogueira (et al., 2017) ressalta que a atenção é
direcionada à forma em que a situação foi vivida, e como os fatos e os elementos afetivos
atuais são compostos a partir dessa vivência.
A responsabilidade da pesquisadora também perpassa a dimensão ética perante um
estudo que registra histórias pessoais, tendo como um passo indispensável para a realização
dessa pesquisa a adequação e aprovação de um Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo
seres humanos, para assegurar a segurança dos participantes, como previsto pelo Ministério
da Saúde (BRASIL, 2012). O projeto de pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em
Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Tecnológica Federal do Paraná, sendo
aprovado sob número do CAAE: 24196719.3.0000.5547. Seguindo as orientações éticas
previstas neste projeto, os participantes receberam, antes de iniciar as gravações, o Termo
de consentimento livre e esclarecido (TCLE) e Termo de consentimento de uso de imagem,
61
som e voz (TCUISV) (Apêndice B). Os termos foram assinados pelo participante e pela
pesquisadora, em duas cópias, para então dar início ao registro dos depoimentos.
Foram realizadas duas entrevistas em profundidade com cada participante, que
tiveram duração média de uma hora e meia cada encontro. As entrevistas com o Kalu foram
realizadas em dois momentos distintos. A primeira ocorreu após um evento promovido
pela ALAP no final do ano de 2019, em Pato branco, onde o artista era convidado de uma
mesa redonda. Nesse período ele estava residindo em Curitiba, por isso a entrevista foi
gravada naquele mesmo dia, no local do evento. O segundo encontro foi realizado em seu
ateliê, em junho de 2020, quando já estava residindo novamente na cidade de Pato Branco,
e readquiriu seu ateliê para dar continuidade no seu trabalho. A coleta das histórias de vida
da Jurema ocorreram em seu ateliê, mesmo local onde realiza suas aulas de pintura e
bordado. Foram realizadas no mês de junho de 2020, com 15 dias de intervalo entre uma e
outra.
Nas entrevistas em junho de 2020, devido ao período da pandemia do Covid-19,
foram tomadas as medidas de segurança e higiene apropriadas, conforme orientações das
autoridades e do decreto vigente no município. Foi oferecida a opção de entrevista on-line,
mas ambos os participantes preferiram o encontro presencial, realizados com os cuidados
necessários.
As entrevistas foram gravadas em áudio, acompanhadas de fotografias. A
necessidade de captar imagens se dá pelo fato que o tema, ao envolver a esfera artística, as
falas incluem referências a acontecimentos, obras ou lugares, que, com o registro
fotográfico, compõem o texto da dissertação. As imagens são de diferentes fontes: captadas
por câmera da pesquisadora, enviadas pelos artistas com imagens de seu arquivo pessoal,
ou retiradas de páginas e sites públicos. Além da gravação das entrevistas e captação de
imagens, foi utilizado um diário de campo, para o registro dos achados, das dúvidas, dos
encantamentos e, também, das dificuldades no percurso (BOSI, 2003), assim como para
anotações da pesquisadora pós encontro.
A gravação das entrevistas foi transcrita, e posteriormente organizada nos capítulos
destinados à apresentação das narrativas coletadas, onde são descritas as histórias de vida
dos participantes e análise.
Quando se escolhe trabalhar com pesquisa de histórias de vida, é preciso incluir nos
“materiais” da pesquisadora alguns itens: tempo, atenção e respeito. Esses pontos são
essenciais, desde o início, intensificados no momento da escuta e da construção da
atmosfera adequada para o encontro com os narradores. Como ressalta Bosi (1987, p.46),
“a narração é uma forma artesanal de comunicação”, onde a pessoa que reconta tece o
acontecido, sem a intenção de transmití-lo “em si”, sendo que ela investe sobre o objeto e
o transforma ao narrar. E esta forma de comunicar-se têm sofrido distorções com o tempo,
perdendo-se a faculdade de escutar e o espaço para contar. Pesquisas como esta aqui
proposta, estão sendo algumas das maneiras dessa “forma artesanal” de re-existir, e de ser
re-conhecida também no âmbito acadêmico.
Nesse sentido, também é com um bom tempo de dedicação, atenção com as
informações e respeito com as memórias compartilhadas, que se dá o processo de registro
escrito das histórias de vida e da análise narrativa. As entrevistas em profundidade
realizadas somaram aproximadamente 5 horas de áudio e 86 páginas de transcrição. Relatos
que envolveram cenas da infância em família, caminhos de aprendizagem, experiências
juvenis, escolhas profissionais, formação da família, vivências em Pato Branco e outras
mais, cada um narrando de sua maneira. Além das recordações de etapas da vida, os artistas
também expuseram suas opiniões, sentimentos e reflexões sobre ser e estar no mundo, das
cidades que moraram, das relações sociais, dos sonhos que aos poucos vêm sendo
realizados.
Nos capítulos 4 e 5, estas narrativas são apresentadas em dois momentos: o quarto
capítulo tem como objetivo apresentar quem são Jurema e Kalu e o que contam de suas
lembranças, formando os textos de suas histórias de vida, escritos aplicando a técnica de
transcriação. No quinto capítulo é construída a análise narrativa e, para isso, trazemos
também outros trechos das entrevistas que ainda não apareceram no capítulo das histórias
de vida, mas que envolvem os conceitos de análise propostos, somando-se às vivências já
apresentadas. Neste capítulo o conjunto das informações narradas é apresentado a partir da
leitura feita baseada na fundamentação teórica do trabalho.
Esta foi a maneira que encontramos de trazer o máximo das lembranças que Jurema
e Kalu, gentilmente, nos concederam nos encontros. O convite é para pensarmos,
sentirmos, imaginarmos e refletirmos junto com cada artista as histórias rememoradas.
Como escrevemos acima, o tempo, a atenção e o respeito são essenciais nesse processo,
incluindo o momento da realização da leitura.
63
A escrita das histórias de vida foi feita a partir do processo de transcriação, que de
acordo com CALDAS (1999) é um conceito aplicado aos estudos de indivíduos,
comunidade ou grupos, buscando uma forma possível de tradução da fala para a
textualização, envolvendo a memória, transcrição e interpretação. Indicando uma trajetória
de “procedimentos e o espírito da transformação da fala do interlocutor” (CALDAS, 1999,
p. 01), para a construção do texto.
Nesse formato, buscamos dar cadência à escrita, mantendo-a próxima de uma
história contada pelo(a) narrador(a). Para isso, foram suprimidas as perguntas feotas ao
longo das entrevistas, buscando conservar o ritmo da fala, em um formato adequado à
leitura. Nesse caso vale ressaltar, como o faz Caldas (1999), de que não se trata de um
monólogo, apesar de às vezes parecer por terem sido retirados os elementos do diálogo
travado durante as entrevistas. Seguimos algumas ideias centrais da transcriação presentes
nesse formato de registro, apresentadas por Paiva (1987 in CALDAS, 1999): a) ao
entrevistar, permitir que o(a) narrador(a) fale livremente de sua vida, e deixar que
interprete da sua maneira todas as suas recordações; b) ao escrever, manter o tom coloquial
das falas e uma pontuação que mantenha a entonação, para que o(a) leitor(a) tenha a
impressão de estar ouvindo quem narra; c) retirar as perguntas para que o texto seja mais
fácil de ser lido, de forma corrida, sem pausas do diálogo; d) unir os temas que se separem
no vaivém das respostas e perguntas.
Nesse sentido, no processo das entrevistas, não havia um questionário fechado, e
sim um roteiro de temas (apêndice A) somente para a pesquisadora, que serviu como uma
referência de temas que pensamos importantes de serem abordados para que pudéssemos
atingir o objetivo da pesquisa. As perguntas aconteciam de acordo com o que estava sendo
trazido por ela e ele, então alguns assuntos apareceram em mais de um momento, e na
transcriação foram unidos e organizados seguindo critérios como temporalidade ou temas
afins. Como afirma Caldas (1999), ao reordenar, cortar e remontar, há uma força de
modificação que atua, e que também permite o resultado de um texto em colaboração, um
processo que une as entrevistas, os momentos, as imagens e as histórias registradas nas
páginas das histórias de vida.
64
A opção por essa metodologia foi por sua coesão com a proposta dessa pesquisa,
como identificado na descrição de Caldas (1999, p. 3):
O conceito de transcriação traduz uma ação criativa e uma relação viva entre as
clássicas dicotomias (sujeito-objeto, eu-tu, oral-escrito, documento-
pesquisador) superando-as sem fazer-lhes concessões. No processo transcriativo
as dicotomias lógicas, necessárias a qualquer instauração científica, cedem lugar
a uma ficcionalidade viva, a um sujeito e um mundo sem os limites que lhe são
normalmente impostos, bem longe dos limites científicos de uma metafísica
caduca e perigosa, vivendo o indefinido como condição de existência
(CALDAS, 1999, p. 3).
o sujeito com o mundo e a consciência, “sendo um traço de união entre o que foi e o que
será, é antes de tudo memória.”
A maneira como são narradas as experiências e as condições dos acontecimentos,
estão dentro da imaterialidade do tempo e da imprevisibilidade do movimento da vida,
características presentes no trabalho de recordar. Essa imaterialidade do tempo e o recontar
de cenas temporais da existência tornam mais complexo o tratamento analítico do discurso
biográfico, estando num plano que não é verificável. Mesmo estando tramado com a
história coletiva, envolve a subjetividade, com seus jogos de linguagem, poder e
imaginação de cada sujeito, como ressalta NOGUEIRA (et al., 2017). É preciso ter
consciência dos limites do humano, como o esquecimento e as perdas de algumas
lembranças, sendo que o narrador conta a sua verdade, da maneira que consegue recordar
de si no seu tempo, como descreve Bosi (2003):
Para quem pesquisa é preciso situar a análise narrativa respeitando esse tempo
próprio do relatar, em consideração aos aspectos subjetivos e a tessitura simbólica inerente
da narrativa (NOGUEIRA et al., 2017). Na pesquisa com histórias de vida é necessário
refletir sobre a relação que está sendo construída entre o sujeito contemporâneo e o tempo,
que foi acelerado. É importante observar este movimento na experiência do encontro, para
ampliar o cuidado na realização da pesquisa, preservando uma atmosfera para que a
narrativa tenha seu tempo preservado, sem obstáculos.
Para a construção deste capítulo, foram considerados os referenciais sobre histórias
de vida, do tratamento de narrativas e memórias de pessoas idosas, a partir da sua narração,
para então proceder a análise em diálogo com as contribuições dos autores de(s)coloniais.
Os conceitos que foram trabalhados nesse processo de análise narrativa foram a
colonialidade do poder (QUIJANO, 2002), a colonialidade do saber (WALSH, 2005;
LANDER, 2000), a colonialidade do ser (WALSH, 2005; ALBÁN ACHINTE, 2017;
MALDONADO-TORRES, 2007) e a práxis de re-existência (ALBÁN ACHINTE, 2017).
Após essa fase, e da escrita do texto, os capítulos quatro e cinco, contendo as
histórias, a análise narrativa e as imagens, foram enviados para os participantes, para a fase
de devolutiva, que é descrita a seguir.
66
Figura 5 - Foto do casamento dos pais de Jurema com inscrição da letra de seu pai
A minha mãe era Da Silva, mas não sei a origem dos sobrenomes, a gente sabe
pouco da história. Eu sei que eram de Santa Catarina, o vô João faleceu quando eu era
pequeninha e então a única vó que eu conheci foi a Maria Rita, mãe da minha mãe. Da
parte do meu pai não cheguei a conhecer os avós, a mãe do meu pai era, na verdade, mãe
solteira, e morava no Rio Grande do Sul, e um dia meu vô Marcelino foi visitá-los e levou
o filho Muritiba embora para Joaçaba. Ele o levou para Santa Catarina e a mãe ficou sem
71
o filho, sem notícias. Ele ainda era pequenininho. Lá ele tinha uma esposa, a dona Elvira
Pedrini, que foi a madrasta do meu pai, ela o assumiu como filho, tanto que ele tem o
sobrenome Pedrini.
Quando eu ainda era pequena, nossa família se mudou para Joaçaba - SC, onde vivi
até meus seis anos, mais ou menos. Depois fomos morar em Xanxerê – SC, porque meu
pai foi contratado como agrimensor pela prefeitura de lá. Ele que fez todo o traçado da
cidade, das ruas, fez todo aquele trabalho de organização da cidade. Eles foram nos buscar
lá em Joaçaba para ele trabalhar em Xanxerê. Porém, quando eu tinha oito anos, meu pai
faleceu...
Como ele faleceu jovem, eu bem jovenzinha tive que assumir e cuidar dos irmãos,
para a mãe trabalhar. E eu fiquei fazendo o que podia fazer... naquele tempo eu ficava com
os três menores: o Tubo, que era bebê, o Maragiba e a Yara, que tinha 6 anos. Na nossa
família, eu sou a segunda filha de cinco (figura 6), o mais velho é o Marcelino Muritiba,
que tem o nome do meu avô e o nome do meu pai. Depois vem eu, Jurema Edy, depois
minha irmã Yara Maria, cada uma com um pedacinho do nome da mãe. Depois vem os
dois mais novos: o Maragiba Miguel, que nasceu no dia de São Miguel, e o Maracituba
Francisco. Esses nomes assim, a mãe dizia que foi porque o meu pai ele era bem estudioso,
ele lia muito, são todos nomes indígenas.
Eu sinto que herdei de meu pai o gosto pela arte, mesmo sem ter visto ele trabalhar.
Eu sempre gostei de trabalhos manuais, fui a única que me dediquei a aprender mais. Ele
fazia caricatura, planta de casa, essas coisas assim. A rotina da vida… minha mãe, com
cinco filhos, fez com que os desenhos do pai acabassem se perdendo. E a gente, naquela
época, não tinha como ver ele trabalhando e desenhando, como hoje, você quer fazer uma
coisa, você traz seu filho para olhar, para participar, é diferente. Ele fazia as coisas dele, e
a gente não... meu Deus, não podia nem entrar naquele escritório!
No nosso tempo de criança era diferente, não tinha muito acesso. Por exemplo, um
dos meus tios, que a gente conviveu um período com ele bem legal, era sanfoneiro, era
músico. Era um dos tios mais presentes, e a esposa dele era bem bacana, tem muitas
lembranças boas. Mas da música, ele tocava gaita, tocava piano, tocava sax, tocava
violoncelo, tocava tudo, nessa parte a gente não tinha essa convivência. A gente sabia que
ele tinha um conjunto, mas nunca vi, não lembro de ter visto ele tocar, só lembrava que
tinha uma sala onde tinha todos os instrumentos onde ele ensaiava. A gente tinha pouco
acesso, quando muito conversar, assim, pouca coisa.
A minha mãe (figura 7) costurava, ela fazia nhandoti. É uma técnica de fazer que
tem um tabuleiro... vamos dizer que vai fazer uma flor, então é cortado no compensado o
formato da flor vazada no meio, e em volta tudo é feito tipo uns dentinhos, você passa o
fio naquilo e por trás outro barbante e depois você faz toda a trama e reborda. Eu não
aprendi, mas eu tenho na minha mente, porque eu ajudava a mãe a fazer, eu ajudava a
montar os fios. Então eu acho que se eu for fazer agora, acho que eu consigo, de tanto ver
ela fazer.
E quando minha mãe ficou viúva, era jovem, tinha 34 anos e cinco filhos, e não
recebeu aposentadoria do meu pai, porque ele trabalhava na prefeitura de Xanxerê mas não
era registrado. Nossa, a gente passou um período bem difícil, mas aí, cidade pequena, todo
mundo ajudou. As mulheres faziam pão e levavam para a mãe, a do restaurante dava
comida, era assim. Porque no início, amamentando e com cinco crianças para cuidar em
casa, não podia nem sair, só um tempo depois ela começou a fazer faxina e meu irmão foi
engraxar sapatos.
73
Figura 7 - Jurema com dois meses, no colo de sua mãe Edy e ao lado de seu irmão Marcelino
E o grande, a coisa ainda que foi nossa salvação, é que nós morávamos numa casa
da prefeitura, então nós tínhamos casa! Às vezes minha mãe, querida ela, ficava queixosa
porque não tinha a aposentadoria do pai. E eu disse: “Mãe, não se queixe, com a
aposentadoria do pai jamais tínhamos construído uma casa!” E nossa casinha era ótima, de
madeira bruta que nem essa do ateliê, tabuinha e tudo. E ainda era coberta de telha, tinha
chiqueirinho, forno a lenha... até um galinheiro, tudo!
E aí fomos vivendo, ela trabalhando, os meninos estudando, eu estudando, e foi
assim, a gente sempre muito abençoado. Teve até uma senhora rica da cidade, olha bem!
História... que dá uma novela! Essa senhora colocou eu e minha irmã no Internato, na
própria cidade de Xanxerê. Ela nos deu todo o enxoval de roupa, cama e banho que tinha
que levar! E ela pagou pro meu irmãozinho o Jardim, e pro outro meu irmão a Escola
Agrícola. Olha só gente! Uma benfeitora, não sei… depois de um tempo eu até tentei achar
essa família, em Curitiba, mas eu não consegui mais encontrar, eu queria encontrar com
ela, sabe?
E nesse colégio de freiras a gente tinha os trabalhos manuais. Eu tenho toalhas,
tenho vários objetos que uso em casa, ainda do bordado que fiz durante a escola! Os
trabalhos manuais eram bem cobrados, era nota, mas eu sempre gostei, e fazia não como
uma obrigação, fazia com gosto. Nesse período ficamos dois anos no Internato, e isso deu
74
Quando eu terminei o ginásio, nós fomos fazer uma excursão da escola. Naquela
época não tinha excursão, mas o nosso grupo de quartanistas era bem empreendedor, então
a gente trabalhou um período grande, juntamos dinheiro e pudemos fazer uma excursão!
Imagine! Saímos de Xanxerê de ônibus, pagamos tudo, com o nosso trabalho, e fomos
conhecer a praia, que ninguém conhecia. Nós fomos para Caiobá, ai Jesus! Muito bacana!
Então, para juntar o dinheiro quando éramos quartanistas, fazíamos promoções,e
para fazermos as festas, a gente saía coletando flores. E nós saímos e conseguimos
camélias, penduramos cestas de camélias em todo salão, e nós fazíamos o baile. E todas as
promoções que fizemos sempre eram boas, então todo mundo ia! Fizemos até um baile de
debutantes que virou tradição na cidade, tanto que quando paramos, o clube deu
continuidade. Coisa que, imagine gente, em 1969, 1968, foi inédito!
Quando normalistas, também pagávamos uma mensalidadezinha mínima por mês,
então fizemos menos promoções. Quando chegou perto de viajar, uma tinha namorado, a
outra tava noiva, outra tava assim, outra tava assado... ficou difícil de ir! Aí o que nós
fizemos? Repartimos o dinheiro em partes iguais para todas. Pra mim foi maravilhoso,
comprei todo meu enxoval... O enxoval para casar, e o vestido e o sapato da formatura,
porque o dinheiro era muito curto.
E é bem gostoso esse grupo, um grupo grande, tanto que até hoje a gente se conversa
e se encontra (figura 8). Mas, das que bordam e fazem assim, é só eu da nossa turma... bem
interessante... Umas foram para área técnica, tem umas que trabalharam no Banco do
Brasil, outras se aposentaram como professoras, e assim por diante. Cada uma foi levando
o seu caminho.
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Minha juventude dos 8 ao 21 anos foi em Xanxerê, onde eu fiz toda minha formação
primária, ginásio e a escola normal. Ali estudei, fiz concurso, e antes mesmo de formada,
eu trabalhei muito como professora, trabalhava meio na Escola e meio período no Cartório
de Registro. E depois eu saí dos dois trabalhos para casar, que o mais importante era casar!
E foi legal, estamos há 50 anos casados (figura 9).
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Disponível em: <https://www.facebook.com/JuremaEdy>. Acesso em 10 ago. 2020.
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Casei com 21 anos com o Bira, o Pedro Ubiratan Pereira, e logo viemos para Pato
Branco - PR. Assim que consegui, fui professora municipal e dava aula no bairro Industrial.
No ano de 1972 fiz concurso pra Copel, fui lotada como secretária, trabalhei até a primeira
filha nascer, e então eu pedi demissão. Mas assim, foi muito gostoso, eu curti a maternidade
e de poder cuidar das crianças. Tivemos três filhas, a Adelyne, a Karyne e a Anne
Chrystine.
E já temos três netos e uma neta: o Murilo Francisco, o Lorenzo, o Bernardo e a
Alice. É uma história (figura 10)! E assim passamos os períodos da vida…
Quando parei de trabalhar fora para cuidar das filhas, eram tempos diferentes, não
tinha tanto essa preocupação com esse financeiro e funcionava! Nós casamos quase sem
nada e conseguimos comprar, construir nossa casa, fazer nossa vidinha, dava para fazer, é
muito interessante.
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Por um tempo eu dei aula no meu ateliê antigo, na minha casa, e para vir para esse
espaço aqui a principal incentivadora foi a minha filha Karyne. Ela incentivou virmos pra
cá porque ela já trabalhava como terapeuta artística, e precisava de um espaço maior e
exclusivo, com privacidade. A gente já tinha essa casa aqui, mas estava alugada, e quando
decidimos vir pra cá, trabalhamos juntos em família (figura 12) para montar o espaço como
ateliê.
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A Karyne foi minha parceira desde lá, trabalhamos uns quatro anos juntos e depois
ela se mudou. Agora ela mora em Curitiba com a família, ela tem uma criação bem
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interessante, é um trabalho bem diferenciado do meu. E esse período juntas aqui no ateliê
foi um tempo bem legal, fizemos várias atividades com as crianças. Foi muito bacana,
comemorávamos dia da criança, aniversários, teve bolos e surpresas que elas fizeram. E
na aula também faziam uns teatrinhos no recreio, com uns fantoches que eu tinha. Porque
criança tem muita criatividade, nossa, como criança gosta de fazer as coisas!
A Adelyne, minha filha primogênita, incentivadora e coordenadora, está sempre
presente organizando projetos. Grande parceira, com muita paciência e dedicação, colabora
com tudo e com todos. Minha mentora na tecnologia. Tem o dom de ensinar com carinho
e determinação. Mesmo morando em Caxias, está aqui.
A Anne Christine, filha caçula, designer gráfica, com sua arte colaborando, com
seus desenhos e dicas, para aprimorar o meu fazer. A Inglaterra fica perto. Está sempre
presente no apoio e no incentivo a novos desafios.
Sou grata às minhas filhas e meu esposo, estão sempre apoiando, cada um do seu
jeito, somos uma família parceira.
A minha iniciação foi assim, bem autodidata, do nada, fazendo aqui, fazendo ali. E
quando eu comecei a dar as aulinhas de tecido, eu tive a necessidade de aprender mais,
porque as alunas também queriam outras coisas. Teve um período que fiz cursinho de tela
com a Maria Genoveva. Ela também foi uma das precursoras artistas plásticas aqui de Pato
Branco, deixou um legado bem grande. E tem outra pessoa que eu também fiz umas aulas,
foi com a Cléria Jaeger, no curso de porcelana. Fiz umas aulas com ela, depois comprei o
meu forno, foi se ampliando, se dedicando, e assim foi se montando o meu universo…
Até tive a possibilidade de fazer faculdade em Xanxerê, em 2010, que tem de
Desenho Artístico, mas daí pensei, pensei, digo “Não vou fazer, eu vou ficar numa
correria… Ah não! Eu vou passear, ver meus netos, e fazer uns cursos, quando surgir um
curso, uma oficina, faço essa oficina”. Então eu fui aprendendo, fazendo os cursos e
oficinas mesmo, de acordo com as necessidades do dia a dia e a evolução das coisas. É por
isso que tem tantas coisas aqui que a gente faz no ateliê.
Nós, no interior, temos que ter variedade (figura 14), porque numa cidade grande,
por exemplo, tem vários lugares que você vai especificamente para tela, ou para tecido, ou
para patchwork... assim, específico. Mas aqui, se eu for fazer específico, eu não tenho
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público. Aqui as coisas são mais de interior, é diferente, tanto a participação do professor
como dos alunos é diferente. Numa capital, numa cidade maior, é bem técnico.
Aqui no ateliê a gente faz diferente. Eu tenho no máximo seis alunos por vez, com
uma dedicação especial, e dessa forma sinto que a pessoa se sente atendida. Vou mais
devagar, consigo acompanhar e as pessoas conseguem também pegar melhor, porque eu
não chego lá e faço o traço, eu vou construindo o traço com eles, pelo caminho deles, pela
orientação.
Acho que isso também é pelo meu jeito de ser que, por exemplo, eu tenho alunas
aqui que estão há quinze, vinte anos comigo, então não é mais professora... é uma amizade!
E tem muitos que consideram como uma terapia. Eu sinto que o pintar acalma bastante, até
para mim. Quando estou mais agitada, quando você tá muito assim... eu digo: “Vou lá pro
ateliê”. Ainda mais nesse período agora na pandemia... “Eu tenho uma coisa pra pintar!” e
me mando para cá, sabe? Daí aqui eu fico horas e horas, você foge do mundo. É incrível,
você para fazer um traço, pintar alguma coisa, ou aprender um ponto, acaba ficando tão
absorta naquilo que você esquece das outras coisas! Então é bem bacana.
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A primeira vez que eu expus meus quadros sozinha (figura 15), foi a convite... acho
que foi do Rotary. A exposição foi lá no Clube de Tiro, e no dia eu vendi uma daquelas
telas. Nossa, eu fiquei assim... realizada! Foi a primeira que vendi numa exposição, porque
fora eu já havia vendido outras, mas não assim em um evento. Essa exposição fez parte de
uma festividade, de um evento em que eu fui convidada a colocar para ter mais alguma
coisa, como às vezes se faz, né? Uma oportunidade que foi dada e foi bacana.
Figura 15 - Primeira exposição individual de Jurema Edy– Clube do Tiro - Pato Branco
Durante esse período todo depois que eu comecei a dar aulas, eu fiz com minhas
alunas quinze exposições de trabalhos. Nós começamos em 1990, e as primeiras foram no
Clube Pinheiros (figura 16), no Banco do Brasil, na Caixa Econômica Federal, que foram
os lugares fora do eixo artístico. Depois, passou a ser lá no Teatro Municipal. No final do
ano eu fazia uma coletânea dos melhores materiais, e de cada aluno eu colocava uma, duas,
no máximo três obras. E geralmente só colocava uma minha.
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Nessas exposições a gente fazia um coquetel. Tem até um ponche que até hoje eu
faço nos meus eventos e todo mundo curte, e é uma das características das nossas
exposições. E sempre convidei algum artista para participar, um violinista, um gaiteiro,
alguém para se apresentar. A gente convidava todos os familiares e amigos para prestigiar.
Mas assim, a sociedade em si não aparecia... nós temos aqui uma dificuldade muito grande.
A gente sempre procurou agregar mais cultura. Mas tudo isso aqui é um trabalho feito pelo
ateliê. A única coisa que nós tínhamos de apoio da Cultura de Pato Branco era não cobrar
o espaço, mas nem para cuidar, nem para nada. Nem divulgação... não se
responsabilizavam. Se eu queria abrir para que houvesse visitação, eu tinha que estar lá,
sabe? Se chegassem pessoas, entravam por dentro, mas eles não deixavam aberto ao
público porque ninguém se responsabilizava. Então é uma coisa que, infelizmente, nós não
temos em Pato Branco esse apoio... não é de hoje, é de muito tempo. Agora já não tenho
mais o mesmo pique para promover, a gente já vai mais na retaguarda.
Mas tiveram pessoas que sempre apoiaram, como o Victor Hugo Ribeiro, a esposa
dele é a Alba, que foi minha aluna por muitos anos, até que agora foi embora para Curitiba.
Ele quem fez a primeira exposição na praça, da qual também participei. Bem nos anos bem
idos. Ele fazia parte da diretoria do Clube Pinheiros, por isso que nossa primeira exposição
do ateliê foi lá. Total apoio dele e da esposa.
Todos os quadros, principalmente esses da mostra, são quadros inéditos, são
quadros originais. Por exemplo, na sétima exposição eu representei numa tela (figura 17),
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uma barriga, que uma das minhas filhas estava grávida. Então pintei o céu, um jardim e
uma ave vindo, chegando na barriga. Tanto que essa tela está com a médica que trouxe ao
mundo os netos Lorenzo e Bernardo, que eu doei pra ela. No total até hoje já fiz quinze
exposições, agora o que der é lucro. Meu objetivo era fazer esse ano, mas já falei com os
alunos que não vai dar, com essa pandemia, mas no próximo ano nós vamos organizar.
Figura 17 - Painel da recepção da 7ª exposição do Atelier Juart´s, com a tela de Jurema em destaque
Teve um período que foi o auge da pintura de telas, e depois aos poucos foi se
largando essa parte, diminuindo a procura. Daí comecei a me dedicar com a novidade do
patchwork, isso já faz uns 13 anos que iniciei. Eu lembro da data em que eu fiz o primeiro
curso em Curitiba quando nasceu meu neto Bernardo, que vai fazer 14 anos, então por isso
eu tenho um parâmetro de data, senão tu não tem né? Quando eu estava lá esperando o
Bernardo nascer eu fui num sábado de manhã e fiz uma manhã de curso, e aí abriu outro
caminho…
Eu fui uma das precursoras para trazer o patchwork para Pato Branco, inclusive a
gente trazia todo material de Curitiba, porque aqui não tinha nada. Foi um período muito
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bacana, de muita gente fazendo, de muitas vendas. E como tudo tem o tempo... os auges...
depois a coisa vai se acomodando, é tudo sazonal. E foi bom, valeu, muitas pessoas
aprenderam, estão fazendo, mas eu não quis entrar muito nessa área. Aí foi mais esse
período mesmo e depois eu senti a necessidade de outra coisa, que foi quando fui atrás de
começar os bordados retrôs, que também está sendo uma fase muito bacana.
Então tenho trabalhado com os bordados, como o rococó, o ponto atrás, o ponto
haste, o ponto corrente... São pontinhos simples, mas que no conjunto fazem a total
diferença e, além disso, é muito gostoso de fazer. Eu tenho ensinado, mas poucas pessoas
fazem porque ele é uma coisa com muita paciência, é delicado, muito trabalhoso... e
demora, demora. De todas as pessoas que eu ensinei aqui, quase ninguém fez. Deram
continuidade, abrindo os pontos, aplicam noutras coisas, mas não nessas peças como os
colares (figura 18) e as outras coisinhas desse estilo que eu faço.
Com meu trabalho, cada dia tenho uma experiência. Semana passada mesmo veio
uma menina, inclusive ela tá indo para fora do Brasil, e ela disse assim: “Eu quero aprender
a bordar a mão, já tive máquina que fazia tudo automático, mas eu quero fazer à mão.”
Então você vê, isso pra você é uma realização. E saber que as coisas vão e voltam! E o “à
mão”, esse sempre vai ser o teu valor, ou vai ter o valor, porque qualquer máquina faz, mas
“à mão”, é uma outra mão que faz! Então foi fantástica a experiência que tive com essa
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Disponível em: <https://www.facebook.com/JuremaEdy>. Acesso em 10 ago. 2020.
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moça semana passada, isso me traz uma satisfação muito grande, porque eu tenho prazer
em ensinar (figura 19).
Às vezes até parece chato, um clichê eu dizer isso, mas eu sempre gostei muito de
ensinar. Tanto em casa, os netos, os filhos, os alunos, e se você quiser uma orientação, o
máximo que eu puder passar até por telefone eu te passo. Tem vezes que já me aconteceu
de uma pessoa me ligar muitos anos depois: “Jurema, tu me salvou de uma crise assim,
assim, assado”, eu nem lembrava mais o que que foi! Era de quando eu fiz um curso com
um pessoal que veio de Curitiba ensinando a técnica da montagem do pano para tela para
bordar. Aí ela lá do Mato Grosso, me ligou e eu passei tudo direitinho, de como eu tinha a
receita para fazer. Daí muitos anos depois ela me ligou agradecendo, porque meu telefone
continua de 40 anos, o mesmo número. Então as pessoas têm sempre uma referência. Isso
traz uma satisfação, que não tem dinheiro que pague. Porque é um legado que fica, é um
legado muito bom. Esse legado está nas mãos de pessoas, na cabeça, na história, na
consciência. Então isso é o que vale, que tudo o resto é passageiro mesmo. Tem vezes que
tem um vento que derruba tudo, tem vezes que qualquer coisa, já acaba. Isso não, isso fica.
Tive a oportunidade de dar aula em Vitorino – PR pela prefeitura. Era uma aula por
semana, para uma turma à tarde e uma turma à noite, foram 8 anos. E aqui em Pato Branco,
pelo ateliê, nós trabalhamos em vários projetos. Em 1995 teve o “Cidade Bela”. Fomos
com uma turminha pintar um muro no centro da cidade. Tivemos também mais um trabalho
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que participamos do “Circo das artes”. Um painel que foi pintado e que agora já não existe
mais... o problema nosso aqui é que as coisas se perdem.
Participei com uma tela também no cartão postal em homenagem aos 49 anos de
Pato Branco. Eu achei muito bacana, foi um período que todos os artistas de Pato Branco
fizeram um cartão postal da cidade, uma iniciativa da prefeitura. Teve também um trabalho
que apresentei, quando fomos pra São Paulo na Bienal, apresentei a experiência que tive
ao visitar o Museu Oscar Niemeyer de Curitiba-PR. Também apresentei alguns trabalhos
na FADEP (Faculdade de Pato Branco).
Em 1995 participei do 36º Salão de Artes Plásticas para Novos Artistas. Eu inscrevi
três obras, fui uma das classificadas (figura 20), participei da exposição, mas não fui
premiada, não fiquei entre os três primeiros. Era um grupo de todo o oeste do Paraná, mas
foi uma oportunidade bacana de participar. A exposição foi em Francisco Beltrão – PR,
pelo Governo do Estado. Foi um dos poucos Salões que teve aqui do nosso lado.
Figura 20 - Obra "Reflexos", classificada no 36º Salão de Artes Plásticas para Novos Artistas em 1995
Teve um outro trabalho que a gente participou. Esse foi premiado, um painel que
tinha no Teatro Municipal. Era de um concurso da prefeitura em que eles queriam uma
obra sobre os colonizadores, como do que era Pato Branco. A iniciativa foi do
Departamento de Cultura, inclusive nessa época era o Gilson Marcondes que estava no
Departamento. Eu e o Eloy de Lima que projetamos e o Kalu executou. Nós tínhamos que
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fazer uma maquete, que inclusive eu acredito que esteja lá ainda na biblioteca, com a
miniatura do que foi feito no painel. A gente fez o projeto no meu ateliê, o Eloy fez essa
parte mais futurista, mais moderna, e eu fiz uma peça com carroça, com pinheiro, com uma
coisa assim do que foi a colonização. Então cada um abordou um caminho.
Nos anos 2000, 2001, teve um grupo que foi começado pela Valéria Borges aqui na
cidade. Ela era de Curitiba e veio trabalhar na FADEP como coordenadora. E quis fundar
a Academia de Letras e Artes de Pato Branco, no momento, o presidente estadual da
Academia era o Túlio Vargas, e o interesse da Valéria era interiorizar essa instituição.
Como eles eram bem conhecidos, começaram a reivindicar essa possibilidade da fundação,
para isso foram chamados professores, já mais antigos, como o professor Sittilo, a Neri, e
outros, e também artistas, escritores, poetas, artistas plásticos, pessoal que trabalhava com
dança e com o teatro.
Então foram apresentados os nomes de outros artistas para que fossem agraciados
com essa homenagem, e foi formada a Academia, da qual eu faço parte desde a fundação
que foi em 22 de junho de 2001 (figura 21). Trabalhei atuantemente durante todo esse
tempo, participando praticamente de todas as reuniões e todos os projetos que executamos.
Por muitos anos fizemos correções de trabalhos artísticos e poéticos de escolas e
instituições filantrópicas, com as nossas avaliações.
Também por trabalhar sempre, estar sempre presente e saber de toda a nossa
atuação, chegou o momento que eu também teria que dar minha contribuição como
presidente. Então para a gestão de 2019/2020 eu fui escolhida como presidente, tenho
procurado desempenhar da melhor maneira possível. Nos anos anteriores sempre participei
da diretoria, por muito tempo como tesoureira, como bibliotecária e outras atividades. E
para mim está sendo uma honra participar como presidente e desejando que a nossa
Academia tenha sempre muito sucesso.
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Um dos meus grandes sonhos é conseguir um espaço para divulgar e ter uma galeria
de arte em nossa cidade. Que isso seria muito proveitoso para todos os artistas que tem
aqui, e temos muitos valores! Promover eventos com a participação da comunidade,
sempre que a gente solicita, a comunidade participa. Elês tem sede de saber e de arte.
Inclusive eu até comentei com o pessoal da Academia (ALAP) que o meu sonho é fazer ao
menos uma Exposição, um Salão de Artes Plásticas como aquele que contei, que participei
em 1995. Queria fazer ainda na minha gestão como acadêmica, que agora sou presidente,
fazer alguma coisa a respeito das artes plásticas. Porque nós não temos tido muita
oportunidade. Só que nós precisamos dar oportunidade a todos e que tenham esse espaço
para que isso se torne uma rotina, uma referência. Isso acontecendo, com certeza terá
sucesso.
E o meu grande sonho é que eu possa, até que tenha condições, continuar dando as
minhas aulas e passando o pouco que sei, porque isso me satisfaz muito. E agradeço a Deus
por ter essa oportunidade de poder repassar o que sei e também de ter tido a tua iniciativa
de me convidar para participar dessa pesquisa. Obrigada.
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Disponível em: FREIRE, Antonio Reginaldo Maciel; CAMPESTRINI, Cristiane; BOCCHESE, Neri França
Fornari. (org). Revista da Academia de Letras e Artes de Pato Branco. Nº 1, Pato Branco, 2003.
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Estátua
Da abandonada estátua
partilho o mineral destino:
encherei de vazio a pedra,
e manterei os olhos polidos
pelos dejetos dos pássaros.
Da poesia
fiel discípulo serei:
abrirei a boca
apenas para morrer.
– a primeira pedra
não foi para castigar mulher.
4.2.1 Couro e música: família e primeiros contatos com a arte e trabalhos manuais
Eu tive umas coisas bem favoráveis para eu ir para esse lado da arte, acho que é
berço. Meu pai era músico autodidata, além de ser artesão. A minha mãe era costureira e
boleira, principalmente para casamentos. E nós éramos nove irmãos (figura 23). A
primeira, a Ester, ela foi estudar em Castro, isso era nos anos 1940 ainda. Lá ela aprendeu
piano e quando voltou o papai comprou um piano pra ela. Me lembro até hoje ele
desencaixotando o piano. Eu era pré-adolescente e acordava ouvindo Chopin, música
clássica, todas essas bonitas que são as mais populares... toda manhã eu acordava com isso!
Ela deu aula de piano, e tocava o órgão na igreja, e o papai era o regente do coral da Igreja
Presbiteriana. Ele era músico autodidata, ele lia partitura e tudo. Então isso, umas veias
dele que eu herdei.
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Meu irmão ele já era assim um outro tipo de cultura, ele era um dos poucos que
tinha uma radiola, e eu escutava Nat King Cole, com 10 anos! Então tudo isso ajuda na
formação do olhar, eu escuto música 24 horas por dia. A outra minha irmã, a Eunice, se
destacou mais no esporte, era mais alta e atlética, disputava campeonatos e tudo. O meu
irmão Samuel, é o meu ídolo, ele era o melhor jogador de futebol da minha cidade, tanto é
que ele ascendeu profissionalmente em virtude de ser bom de bola. Aí todo mundo gosta
dele por causa disso.
Depois tem minha irmã Eleni, ela é o gênio, o professor pardal da família. Ela fazia
os nossos brinquedos, os carrinhos de roda de pau, as bicicletas de roda de pau, ela era
terrível. Habilidosíssima com as mãos, era música, tocava piano também. E tinha a minha
irmã Edite, a característica dela é que ela dava risada de tudo, ela era assim de um humor
espetacular, brincava e dava risada, era ela quem brincava mais conosco.
Daí então tem um irmão que é um ano só de diferença comigo, que é o Xis, o
Otoniel. Ele foi, dos professores, o mais vencedor, ele foi técnico de voleibol, ele ganhou
tudo que disputou no estado do Paraná. E uma passagem bem interessante dele comigo foi
quando a mamãe plantou pimenta, ela cresceu e deu a frutinha vermelhinha compridinha.
E ele falou pra mim: “Você já comeu tomate comprido?” Eu era mais novo, adivinha? Foi
morder e chorar! Isso é história da família da gente, tudo quanto é encontro lembram.
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Você viu que é tudo nome judeu? Quase tudo nome bíblico, por causa do meu pai.
Apesar de que a gente é árabe, mas é quase tudo nome judeu. Eles já vieram cristãos do
Líbano pra cá, que lá tem os copta, uma variação bem próxima do catolicismo. E o meu
nome, Sinésio, era o nome de um amigo do meu pai, e ele quis fazer uma homenagem pro
amigo. Mas me chamam por Kalu mesmo. Esse apelido foi porque, quando eu nasci em
1951, era o auge das rainhas do rádio na época. As minhas irmãs ouviam a Dalva de
Oliveira no rádio e eram fãs dela, e ela tava cantando um sucesso do Luiz Gonzaga e do
Humberto Teixeira chamado Kalu: “Tira o verde desses óio de riba deu, Kalu, Kalu, não
se esqueça que você já me esqueceu...” E o meu primeiro monossílabo foi “cá”, tem uns
que é “dá”, “má”, o meu foi “cá”. De “cá” pra Kalu foi um tapa, e ainda mais com olho
verde… Então desde pequenininho eu fui Kalu.
Daí depois de mim tem a minha irmã mais nova, que o apelido dela é coisa
maravilhosa: Rica. Zenir é o nome. A Rica ela tem esse apelido de tão bonita que ela era,
uma riqueza, e ela é linda até hoje, formosa. E eu sou assim mais próximo dela hoje do que
todos os outros meus irmãos, não sei se porque a gente é os dois últimos, e eu tenho mais
isso com ela.
E daí tem o irmãozinho que morreu, que é o Ahyde Jorge Chueiri Filho. Ele nasceu
bem depois, é o último, são 9 ou 10 anos de diferença, e na época ele morreu de encefalite
com dois aninhos eu acho. Hoje tem cura, na época não tinha. Papai era uma pessoa de
posse, classe média, a gente tinha carro, tinha casa, e com a doença do meu irmão, bancou
o tratamento particular no Hospital das Clínicas de São Paulo durante 6 meses. Ele teve
que ir vendendo coisas, foi tudo. Ele desgostou, vendeu a loja, a oficina, tudo, e a gente foi
morar noutra cidade. Foi bem traumático a perda do meu irmão.
Então, depois da morte do meu irmão mais novo, nós saímos de Ibaiti, onde eu
nasci e daí fomos morar em Santo Antônio da Platina que é uma cidade a 70km de lá, no
Norte Pioneiro. Pra mim foi muito importante passar a adolescência lá, porque eu encontrei
o que eu sonhava e que não tinha na minha cidade: jogar basquete, jogar voleibol (figura
24), praticar natação. E nós três últimos irmãos, todos fomos professores de educação
física.
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Nossa, foi o auge, e era bom porque tinha uma coisa assim mais glamurosa, a gente
discutia mais política, mais música, muito Chico Buarque, Geraldo Vandré, eu sou dessa
geração. E quando estava na época de eu alistar, fui falar com o sargento, e ele falou que
com a minha altura eu podia ir num lugar melhor para servir o exército e me mandou pro
Rio de Janeiro. Imagina que maravilha, nossa mãe do céu! Foi a coisa mais boa que
aconteceu na minha vida na época e até tive algumas regalias no exército porque sabia
jogar voleibol, o comandante sempre me chamava!
E quando eu voltei do Rio, naquela época tinha uma coisa chamado supletivo, uma
dureza. Meus pais estavam morando em Curitiba, e minha mãe vendia coxinha numa
mercearia que papai comprou, e ela pegava o dinheiro e me dava para ir fazer prova. Eu ia
fazer os exames das provas em tudo quanto é lugar, e em três meses eu terminei o supletivo,
e já fiz vestibular para Educação Física em Curitiba. Passei, comecei lá e depois transferi
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para Londrina, porque o meu irmão era diretor de esporte de Rolândia. A cidade ia sediar
os jogos abertos e estavam montando equipes, então ele me chamou para jogar para a
cidade, em troca eles me pagavam a faculdade. Era tudo que eu queria, deu tudo certo!
E quando eu tava na faculdade teve outra coisa que me transformou também,
porque eu sou muito tímido, por incrível que pareça. Eu tinha muito problema de
autoimagem, aí eu aprendi a tocar violão na marra, sozinho, pra ganhar as menina, pra elas
te verem como um cara um pouquinho mais importante do que o que não sabia tocar violão.
Essa também é uma coisa que marcou bastante na formação, para mais tarde eu partir pro
lado da escultura. E naquela época comecei a fazer algumas sacolas de couro. Eu passei
para meu pai como é que era o jeito de fazer as bolsinhas que vendia, na época vendia
muita coisa de couro, chinelão de couro, bem dos anos 1970. Bem legal, porque não
precisava costurar na máquina, era só costurar na mão. Eu tenho até hoje coisas que ele
fez. Aí eu vendia algumas coisas, dava para ajudar a pagar as coisas na faculdade em
Londrina.
E quando eu era acadêmico ainda, meu irmão Samuel era gerente da agência do
Banco Bamerindus em Coronel Vivida, e eles tinham recém construído uma quadra de
esportes e meu irmão sabia jogar voleibol. Então quando eu vim passar as férias na casa
dele, ele me chamou pra ir ensinar as outras pessoas a jogarem voleibol. Comecei a ensinar
eles, e logo no ano seguinte inauguraram um clube com piscina, e eu vim de novo nas férias
e dei aula de natação. Aí ganhei a cidade!
Nós fizemos um campeonato de natação, primeiro que teve até do Sudoeste, nunca
tinham. Foi muito legal. E tinha um outro lance que era o concurso Rainha das Piscinas,
pra ter um outro tipo de atrativo junto. Foi muito legal pra formação cultural da cidade. E
quando eu me formei na faculdade tinha 44 aulas me esperando ali. Porque o prefeito
gostava, o diretor da escola também gostava, e na época sobrava aula. E eu tinha aula lá
em Londrina também, mas daí eram 8 aulas: “Opa, eu não! Vou lá para Coronel Vivida
comprar minha motocicleta!” Primeira coisa que eu comprei foi minha motocicleta.
E a questão de ir pro lado da escultura também tem outro fator. Embaixo da minha
casa, lá numa outra cidade, tinha um entalhador, e esse senhor fazia uns entalhes
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Figura 25 - Escultura em madeira embuia de 1989, dada de presente à uma amiga professora de educação física
E teve uma época que eu fiquei em Chopinzinho e lá observei que em volta da igreja
tinha paralelepípedos enormes, bem entalhadinho, bem retinho. Fiquei intrigado com
aquilo, daí eu perguntei: “Onde é que vocês compraram essas pedras aí em volta da igreja?”
“Ah isso é o seu Zezinho que mora ali, assim, assim, que faz.” E eu fui lá no tar do seu
Zezinho. Pedreiro! Pedreiro de pedra. Ele tinha um formãozinho e um martelinho. E pra
ele cortar ele ia batendo, batendo, batendo. Pá, pá! Uma técnica que você não imagina! Aí
eu fui lá aprender com ele, eu tenho até uma escultura que fiz no ateliê dele, uma coisa bem
abstrata, que tá no estúdio de arquitetura do Nereu Ceni. E ele me ensinava ali mesmo, sabe
que essas empatias acontece assim, ele percebia meu interesse. E as pedras ainda estão nos
materiais que trabalho até hoje (figura 26).
Depois de Coronel Vivida, eu morei em outros lugares também, eu fui pro norte do
Brasil, fiquei lá quatro anos e daí eu voltei para Pato Branco. Nas minhas idas e vindas
deve dar uns 10 anos fora, então o período que eu fiquei em Pato Branco dá uns 30 anos
mais ou menos, e tamo aqui até hoje. A família da minha ex-mulher é daqui, eu casei com
a Miriam em 1979 e eu vivi 11 anos com ela, nesse tempo tivemos três filhos: a Daniela
em 1979, e dois anos depois a Fernanda em 1981 e o Samuel em 1988 . Depois que eu me
separei, logo em seguida minha filha mais velha já foi estudar em Curitiba, e os outros dois
ficaram aqui com a Miriam. Depois a Fernanda também logo saiu, e só ficou o Samuel.
E tem meu filho Vitor Hugo, de 1996, da Rose, uma namorada que eu tive depois.
Quando ele nasceu, ficou com a mãe, até um ano e pouquinho, daí ela teve que voltar para
Foz do Iguaçu, e ele ficou comigo. Eu deixava ele numa crechezinha, ia trabalhar, voltava
de tarde. Tem até o sapatinho dele, tá ali em cima da mesa, até hoje. Depois ela foi morar
na Espanha, quando ele tinha 10 anos foi para lá e ficou até os 17, 18 mais ou menos. Então
voltou a morar comigo, aqui em cima (mostrando um mezanino de madeira dentro do
barracão do ateliê, onde moraram por um período).
Então são quatro filhos e já tenho quatro netos, Máximo, a Maria Fernanda, o Lucas
e o Mateo Samueli (figura 27).
100
Um pouco antes da minha separação, em 1989 teve os Jogos Abertos aqui em Pato
Branco, o primeiro que veio para o sudoeste. Eu tinha um cargo muito importante na
organização, eu era diretor técnico dos jogos, e técnico da equipe de vôlei feminino, que
com o trabalho anterior tinha sido duas vezes vice campeão desses Jogos. Mas nesse, a
gente não foi bem, nós saímos fora na primeira fase, e todo mundo foi bem nos jogos,
menos a minha equipe, e o crucificado fui eu. Nunca mais entrei numa quadra de vôlei! E
nesse período vai acumulando uma porção de coisas...
101
Nesse ano eu já estava tendo uma atividade bem mais pedagógica do que técnica,
fui ler mais sobre educação, menos de desporto, já mudou, e eu vi um outro mundo. E como
o destino do meu casamento foi embora, então eu precisava de alguma coisa para amparar,
uma fuga... só que a fuga foi encontro! Eu consegui algumas madeiras e comecei a fazer
algumas peças de madeira. Eu já fazia antes, mas daí eu me dediquei mesmo, fiz alguns
troféus para eventos. Fiz um troféu, uma clave de sol para um concerto de corais, uma coisa
bem legal! Daí me iluminou e eu fui atrás.
E já estava morando sozinho, então eu não tinha horas vagas, minha horas vagas
eram o mais prazeroso possível, por causa da manufatura das peças. E isso me entusiasmou
e eu saí pra procurar cursos. Fui pra São Paulo, na casa de um parente, pra dar uma fugida.
Aí... nossa... estava tendo uma exposição da Tomi Otaki, aí me encantei de vez! Já fui pra
tudo quanto é museu, ai ai... e voltei com outro olhar, com outro jeito de ver a vida.
Teve um período que eu ainda era professor de educação física, que eu pude me
dedicar à arte integralmente. Foi um projeto com o doutor Alceni Guerra, quando foi
prefeito aqui: o Estado me cedia para Prefeitura, em troca a Prefeitura cedia um professor
no meu lugar pro Estado, e eu ficava recebendo do Estado. Me deu um barracão, que era
uma massa falida, onde é o Senac hoje. Então eu fazia as obras, e ele comprava o material.
Nesse período, fiz obras pra cidade (figura 28), eu fiz escultura até para o vice-presidente
da República, que veio aqui, e ele dava de presente. Falou: “Ó Kalu, vem fulano, faça
alguma coisa.” Jaime Lerner, Dona Fani Lerner, tudo esse povo que vinha aqui levava uma
escultura minha de presente, de lembrança da cidade. Algumas eu já tinha fôrma, era um
patinho, e tinha outras que não, daí ele me dava o tempo pra fazer.
102
Essa época, nossa mãe do céu, imagine como me sentia! Olha o prestígio, pelas
obras públicas que fiz na época dele. O Largo das Virtudes por exemplo, o que eu li de
livros, de livros das virtudes, coisa bem ética, moral. Nossa, melhorei muito comigo
mesmo. Porque a proposta era você provocar as pessoas a terem conceitos também, então
o que a gente estava fazendo era uma provocação. E não tem em nenhum lugar do mundo...
Não sei se você já ouviu falar que fizeram esculturas sobre conceitos éticos? Tem do
general em cima do cavalo, da moça nua na praia, do Tom Jobim com violão nas costas.
Mas sobre humildade, você já...? E a gente tinha uma, tinha de várias virtudes, no Largo
das Virtudes (figura 29). Então em termos de artístico... pra mim... nossa! Melhor época,
melhor época. Assim, porque eu não vendia nada, é uma relação diferente de criação.
8
Disponível em: <http://kaluesculturas.blogspot.com/>. Acesso em 20 jul. 2020.
103
Fizemos também o início da Rua da Cultura, que era na Rua Jaciretã desde a Av. Tupy, até
o Teatro. Essa Rua da Cultura só ficou na ideia, as próprias pessoas da rua não quiseram.
9
Disponível em: <http://patobrancomemoria.blogspot.com/2017/09/2003-monumento-ao-amor.html>.
Acesso em 20 jul. 2020.
104
E teve algo que me auxiliou muito, foi o mecenas, o cara que me prestigiou, pagou
curso pra mim, comprou todas as minhas esculturas, me pagava por ano para fazer
esculturas pra ele. Que é seu Cláudio Petrycoski, ali da Atlas. É alguém que incentiva muito
a cultura, ele gosta muito de filosofia. E então quando eu me aproximei dele, a gente
começou a conversar mais sobre filosofia, e nesse intervalo, eu comecei a apresentar
minhas esculturas para ele. E ele começou a encomendar, e depois outra, outra, outra. E
bem no fim ele me bancou bem uns bons anos. Aquela esculturona grandona (figura 31) lá
do São Roque do chopim, ele me pagava por mês! Eu levei mais de ano para terminar
aquela escultura.
10
Disponível em: <http://kaluescultura.com.br/monumentos_detalhes.php?id=12>. Acesso em 10 ago. 2020.
105
Figura 31 – Imagem do período de construção do Monumento alusivo ao operário metalúrgico, na entrada do Distrito
Novo Espero - Pato Branco - PR
11
Disponível em: <http://kaluesculturas.blogspot.com/>. Acesso em 20 jul. 2020.
12
Disponível em: https://www.jornaldebeltrao.com.br/noticia/194226/documentario-mostra-a-comunidade-
a-historia-da-praca-theophilo-petrycoski - acesso 02/11/2020
106
exercício que eu fazia, que na época estava bem no forte do filme Piratas do Caribe: pega
o filme, passe o filme pra eles, depois dá argila pra eles fazerem os personagens do filme.
Aí, através disso você pode contar toda a história da colonização do caribe, você pode
localizar eles lá, tudo com um pedacinho de barro. Então eu apliquei isso numa faculdade
de licenciatura em arte. Mas ninguém queria nada com nada, eu levava até o material, aí
parei, não fui mais.
Tem uma coisa que foi bem boa, que tinha uma aluna minha, ela dá aula de artes lá
na Escola Carlos Gomes. Ela levava os alunos lá no meu ateliê, algumas turmas que fiz a
oficina com eles! Nossa… aí eu me esbaldava, era a coisa mais boa do mundo, sabe? Tinha
as esculturas lá, tinha o barro lá, tinha as fôrmas pras crianças verem como é que é o
negativo.
Tem uma oficina também que eu dei dois anos lá no CEFET, lá na UTF. Sabe o que
é que era a coisa legal lá? Vinha estudante de engenharia, de terceiro ano, e eu pedia pra
eles fazer um pé, fazer uma mão, fazendo eles observarem que a mão ela não é reta, que
ela é... sabe, essas nuances? E pra terminar eu falava: “Agora vocês inventem um carrinho
de supermercado, com o barro. Mas diferente dos que tem hoje” Saiu carrinho de tudo
quanto é jeito. E minha avaliação era assim: “Agora você vai fazer um texto sobre o
carrinho que você fez.” Nem que ele fizesse uma poesia só, mas em cima do tema,
relacionado com a forma como ele tinha feito. E eles curtiram, nossa! Bateram palma.
Em 2018 eu me mudei para Curitiba. Até vendi meu barracão, por causa disso. Foi
outra guinada na vida também, eu ter ido pra lá e conviver com mais pessoas do ramo,
tinha reciprocidade. Fui porque eu precisava aprender bronze e porque eu sempre fui muito
só eu aqui, e sentia necessidade de conviver com outros escultores para aprender outras
coisas. Aqui tem outros artistas, de outras áreas, que a questão da fundamentação até é
muito parecida, mas a forma e a técnica é muito diferente, tridimensional é bem diferente.
Então, eu venho trabalhando (figura 33) com madeira, chapas de ferro, resina, mármore e
outros tipos de pedra, esses quatro basicamente, e em Curitiba eu aprendi a fazer bronze.
Então em Curitiba eu estava no ateliê da Fundação Cultural de Curitiba. Tinha colegas
escultores, lá eu estava no paraíso, e só voltei agora pra Pato Branco por causa do corona,
porque fechou o ateliê em Curitiba e daí não tem como, porque lá é muito caro você alugar
um galpão. E eu não sei ficar sem fazer escultura.
108
Daí eu vim pra cá, porque o moço que eu vendi meu barracão ele tava muito
desanimado que os vândalos tinham arrebentado com tudo aqui, sabe? E falou para eu usar
sem pagar aluguel, que pelo menos conservava mais. Mas depois eu ofereci minha
motocicleta e mais uma parte em dinheiro, e aos poucos vou pagando o restante e ele está
me vendendo de volta.
Estou fazendo essa escultura (figura 34) do professor Sittilo Voltolini, eu comecei
a fazer quando eu estava em Curitiba e agora eu trouxe para finalizar aqui. Eu ganhei um
edital, de uma sugestão que eu dei para a Academia de Letras (ALAP), para fazer uma
escultura do professor Sittilo, para homenagear ele com uma obra. Aí a ALAP fez o projeto,
109
mandou para prefeitura, a prefeitura aprovou e eles me pagaram 8 mil reais. Eu ia cobrar
16, eu fiz pela metade porque, aqui, a prefeitura não ia pagar. Só que ninguém faz uma
escultura dessas por menos de 20. Essa é tamanho natural, daí 8 mil eles pagaram. Não só
pela escultura, pagaram 8 mil para, inclusive dar uma palestra e mais algumas outras coisas.
Aí o bolo ficou tudo por esse valor.
Agora eu vou limpar ela, lixar, passar outra textura de novo e eu tenho que fazer
um banco para ele para pessoa tirar fotografia do lado do intelectual. Tem muito intelectual,
mas dos que eu conheci, ele pra mim, dos livros que ele escreveu, tá louco! Demais, demais.
Depois de pronta vai ficar do lado da Biblioteca Pública, do lado lá da onde era o Teatro.
110
Olha, do Sittilo tem uma história também. Uma vez a Tangriani me chamou na
UTF, quando era a diretora do câmpus aqui, acho que foi uns dois anos depois que ele
morreu. Ela me chamou e falou assim: “Ó Kalu, eu prometi pro professor Sittilo que eu ia
atender um pedido dele. Ele queria um local ecumênico.” Seria um lugar para que os alunos
fossem lá antes de uma prova ou algum período mais atribulado, que ficassem lá em
contemplação, meditação. E eu criei esse espaço, do jeito que ela falou.
Então eu bolei um quadrado com bancos, coberto. Na frente não tinha altar, tinha
só uma escultura do Flagelo de Deus, do Michelangelo. Só o pedaço do braço e o outro
pedaço do outro braço, assim. Um divino e um humano, só isso, quase encostando. As
paredes eram vírgulas, por que a vírgula é que separa uma oração da outra, o ponto acaba
a oração. Tá bom assim? Mandei bem pra caramba, né? Então, eu fiz a maquete da
escultura, que na época não sei, acho que sairia em torno do que... uns dez mil reais para
fazer. Que eu ia fazer tudo armação de ferro e ia fazer com resina transparente azul. Mas
não foi feito. Porque o reitor, disse que não tinha verba para decoração. Ela mostrou a
maquete para ele, tudo, mas não estava previsto... sei que não saiu...
Agora recentemente aconteceu uma coisa muito interessante... tem um senhor que
é dono de uma empresa da área de aviação, aqui da região. Na fazenda dele tem muita
coisa, ele gosta de arte, e ele comprou duas esculturas minhas sem ver! A primeira ele viu
lá no aeroporto, que eu tinha emprestado para o prefeito usar lá na inauguração, pediu meu
contato e por telefone comprou e já levou.
E daí muito tempo depois, quase um ano depois, a gente tá no aeroclube lá em
Curitiba, eu e essa minha filha que mora na Espanha, e um amigo que estava com a gente
nos apresentou. E ele já quis sentar junto com a gente, já apresentei minha família pra ele,
aquela coisa toda, e já deu um passeio de helicóptero pro povo todo no outro dia. Nesse dia
eu mostrei a fotografia da hélice: “Ó tem uma hélice de 3 metros e pouco de altura que eu
fiz...” “Deixa eu ver. Quanto que é?” “Tanto.” “Então pode levar lá no hangar.” Assim!
E agora que retornei para Pato Branco e ele ficou sabendo por uns amigos em
comum que viram minhas esculturas lá na fazenda, me contratou para fazer umas
esculturas. E daí eu fui lá, e ele me mostrou as pedras, tem quatro pedras dessa altura, e me
111
deixou livre para sugerir o que fazer, já estou trabalhando num estudo, uma maquete, para
mostrar pra ele. E ele também quer fazer um mausoléu. Então eu tenho trabalho para um
bom tempo. Então isso que tá me deixando assim bem animado, bem motivado. Tem um
tempo que vou esperando o retorno dele, para o que for fazer, aí enquanto isso eu vou
fazendo outras coisinhas aí no ateliê (figura 35).
Para falar dos meus sonhos agora, vou responder com conceito: um dia eu dei de
presente para um amigo meu, professor de filosofia, uma biga com uma cocheira. Porque
ele contou a história das Almas, em que os gregos acreditavam que as almas quando elas
vinham pra habitar um corpo, essas almas eram colocadas numa biga e o cocheiro levava
112
elas nos confins do Universo para receberem as essências de uma pessoa. E tinha um cavalo
branco e um cavalo preto, o cavalo preto era o cavalo da sexualidade e o cavalo branco era
o cavalo da razão. Quando ele conseguia dominar os dois cavalos para chegarem certinho
lá nos confins do universo e receber, ah, essa pessoa ia ser um cidadão normal, cumpridor
dos deveres... Quando ele conseguia domar o cavalo preto e deixar o cavalo branco mais à
vontade, isso seria um filósofo, seria um artista, seria um líder da comunidade... Quando
ele não conseguia, que o cavalo preto dominava, ia ser um sofista ou um político. E daí eu
fiz, baseado nessa história dele, eu fiz a biga e os dois cavalos. Só que em vez de fazer um
cocheiro eu fiz uma cocheira, sensual, bonita, cabelo assim esvoaçando, onde que ela tava
indo, voando. E ele tava junto com a mulher dele quando eu dei esse presente, tava pertinho
do fim já. Eu falei: “Professor, eu trouxe um presente.” E ele disse assim “Kalu, você é
uma artista.” Eu falei: “Eu não, não sou não.” “Sabe porque que você é? Porque a diferença
do artista e do artesão é que o artista muda as coisas.”
Eu tô tentando mudar as coisas e meu sonho é esse. Sabe? Fazer alguma coisa para
mudar. Isso dentro da atividade de escultor. Esse é o sonho! Ainda quero... talvez nessa
empreitada aqui que eu te falei desse senhor da aviação, porque ele quer que eu faça um
túmulo também. Ele quer que eu faça o mausoléu dele, tudo em mármore. Essa é a minha
oportunidade de fazer um túmulo genuinamente do meu jeito de ser. Acho que por aí.
Talvez seja esse o sonho.
----- * -----
Esses são Kalu e Jurema que, com a força e a simplicidade presentes em suas
histórias de vida, nos permitem aproximar da grandiosidade que há no humano, em ser e
viver. As histórias aqui relatadas nos apresentaram quem são e parte do que vivenciam
esses artistas residentes em Pato Branco, e que dividem seus trabalhos artísticos com as
memórias desse povo.
No próximo capítulo, apresentaremos a análise narrativa. Para isso, continuaremos
trazendo mais vivências relatadas por eles, além daquelas contadas aqui, e mais reflexões
compartilhadas por Jurema e Kalu durante as entrevistas da pesquisa, contribuindo para a
construção do diálogo proposto neste estudo.
113
Das lembranças dos desenhos feitos pelas mãos do pai, na sala atrás daquela porta
onde as crianças nem sempre entravam…
Das recordações sonoras feitas pelas mãos das irmãs, nas teclas do piano, que viu
ser desencaixotado sobre o tapete da sala...
Dos embalos dos bailes, entre camélias colhidas por mãos amigas, recordados a
cada encontro...
Do cheiro de couro da bolsa que ainda guarda, feitas por mãos paternas na oficina
junto à casa…
Das mãos que cresceram rodeadas de amor, e agora trazem as mãozinhas animadas
dos netos e netas que chegam….
E assim as histórias foram sendo rememoradas, nas sensações e percepções que
ficaram, de cada experiência de vida.
sociais, ao reconhecer formas outras para ser e estar, viver e sentir, fazer e sonhar, e assim
compreender mais as relações sociais a partir de quem as vivencia.
Nessa pesquisa, conforme fomos remontando as histórias de vida, fomos
percebendo fatos que são atravessados pela colonialidade e também aqueles permeados de
re-existências, os quais nos possibilitam ler as realidades vivenciadas através da base
teórica por nós escolhida: a de(s)colonialidade, o que faremos neste capítulo de análise
narrativa. Optamos por apresentar Jurema e Kalu no capítulo anterior, sem tecer a análise
narrativa junto aos textos de suas histórias de vida, e agora, nas próximas páginas,
destacamos episódios e memórias que nos convidam a refletir como nossa postura em
relação ao mundo também possibilita a construção de conhecimentos construídos a partir
dos significados existenciais e biológicos que encontramos no espaço de vida de nossas
“bolhas de sabão” (BOSI, 2003).
As leituras teóricas que são descritas a seguir, buscam atender ao terceiro objetivo
específico desta pesquisa: Identificar nas histórias de vida de dois artistas plásticos como
vivenciam ser e estar no mundo e como foram construídos seus modos de ser, fazer e sentir
através das experiências vivenciadas no contexto da sociedade moderno-colonial. Nesse
sentido, escolhemos os conceitos das colonialidades do poder, do saber e do ser, e da práxis
de re-existência, para conduzir o escrever-pensar desta análise narrativa.
A colonialidade do poder, entendida como forma de dominação do sujeito e do
material, produtora de desigualdades nos direitos de ser, existir e pensar do sujeitos, se
expressa atualmente no controle do capitalismo e sua exploração social pautada em um
padrão universal (QUIJANO, 2002); a colonialidade do saber, que se dá no detrimento das
formas de produção de conhecimento que não atinjam os ideais do pensamento
hegemônico ocidental (WALSH, 2005; LANDER, 2000) e; a colonialidade do ser,
reconhecida nos sentimentos de inferioridade existenciais, sendo reproduzida nas
invisibilização, visibilização negativa e silenciamento dos sujeitos que produzem
epistemes de forma distinta dos objetivos impostos pelo pensamento moderno-colonial
(WALSH, 2005; ALBÁN ACHINTE, 2017; MALDONADO-TORRES, 2007). As práxis
de re-existência, por sua vez, compreendidas como ações, modos de ser e de saber que
potencializam os sujeitos na procura por libertação e reconstituição do ser em sua
integralidade (ALBÁN ACHINTE, 2017), produzindo caminhos de descolonização do
poder, do ser e do saber.
Organizamos o texto da seguinte maneira: num primeiro momento, trazemos
episódios rememorados por Jurema e Kalu, que são atravessados pelas colonialidades do
115
poder, do ser e do saber. Na sequência, outros fatos e recordações das histórias vividas pela
artista e pelo artista participantes são lidos a partir do conceito de práxis de re-existência.
Optamos trabalhar o texto em dois blocos distintos, para assim reunir as leituras a partir
dos conceitos ligados às colonialidades e depois o conjunto daqueles relacionados à práxis
de re-existência. Finalizando o capítulo com considerações decorrente das reflexões
escritas.
Só que... teve uma época que ficou difícil, sabe? Não sei se você chegou a ver
uma escultura que eu tinha na praça de um casal nu abraçado (figura 36)?
Pois é, me chamaram de satânico. Foi bem ruim, porque a intenção não
tinha nada a ver com… A intenção era Largo das Virtudes, daí tinham oito
esculturas com fundamento filosófico baseado no meu entendimento da
forma que podia ser caracterizado cada virtude. O casal abraçado era a
escultura da virtude do amor.
13
Disponível em: www.kaluesculturas.com
116
Então vou te dar um exemplo, tinha uma que era a humildade (figura 37).
O que que é humildade? Normalmente as pessoas pensam que a humildade
é o cara que não maltrata o pobre. Ou é o pobre que só tem um chinelinho.
Não! Isso é pobreza! E se você passa a mão na cabeça dele, não! Isso é
demagogia, não tem nada a ver com humildade! O humilde é o mais forte
de todos, porque ele não se ofende com a grandeza do outro... Como é que
eu fiz isso na forma, assim, no palpável, na escultura? Eu fiz uma barra
circular de uma roda de um caminhão, e daí eu pus uma escultura de uma
leve inclinação de cabeça (...). Porque eu reclino a minha cabeça pra você,
porque imperceptivelmente você também já se reclinou a mim, você já
reconheceu a minha grandeza também. Isso é ser humilde, é você
reconhecer! E daí eu fiz isso, com umas barras de ferro grossa... forte…
tensa. Porque o humilde é forte! O fraco é hipócrita. Então isso era uma das
esculturas... é linda a escultura, linda a escultura… arrancaram e jogaram
fora! Literalmente! O cara vendeu pro ferro velho as esculturas de ferro,
quando o prefeito saiu que entrou o outro. Então, nossa… como é que não…
isso machuca né? Machuca…
Tinha uma que era muito difícil, as pessoas, quando eu explicava assim…
Fora o nu né? Então tinha duas formas, duplicadas, as mesmas formas mas
duplicadas, duas de cada uma. Uma era a forma de um seio bem cheio, e a
outra um seio bem caidinho, mirradinho. O nome dessa virtude era
14
Em sua pesquisa de Mestrado sobre a praça Presidente Vargas, Cardenal (2018, p. 135), destaca um
depoimento coletado em relação à estátua principal do Largo das Virtudes, do casal abraçado: “O pessoal
achou que fosse uma cena de amor, então no dia 07 de setembro, quando houve o desfile, [...] colocaram uma
capa grande de plástico por cima, para cobrir aquilo. E houve protestos por causa daquilo. [...] Eu estava na
Praça e então eu vi que tinha aquela capa grande, durante a parada toda. Bem na frente do pessoal que fazia
o discurso. (ENTREVISTADO I, 2016)”
117
Quer mais umas virtude? Pode falar? A outra, era uma professora sentada,
assim, com um livro. Mas ela é bem altiva, bem garbosa. Essa escultura se
chamava Gratidão (figura 37)! Agora, você tem que entrar no universo, do
Largo, do contexto... Então, o que que é a gratidão? É gratidão quando você
agradece alguém por alguma coisa que te afetou, que você é agradecido.
Mas no sentido comunitário, você tem que ser agradecido ao teu professor,
porque ele que muda a cultura, que te transforma da cultura familiar pra
cultura erudita. Padre não, padre conserva. O político também é
conservador. O professor é o que te transforma, né? Então, eu fiz o
professor como, neste caso, do Largo das Virtudes, o símbolo da gratidão.
E eu não fiz, eu não fiz ela lendo. Eu fiz ela com olhar perdido, porque?
Porque quando você lê, você só introspecta. Você só aprende quando você
reflete. E fiz ela refletindo sobre o que tava lendo. (KALU)
15
Disponível em: <http://kaluescultura.com.br/monumentos_detalhes.php?id=5>. Acesso em 21 jul. 2020.
118
sei o que foi feito. E tem outras que eu sei, que tavam jogadas atrás do Teatro, duas, a da professora
que é da gratidão e a da justiça.” Essas duas esculturas de pedra foram resgatadas e recuperadas
por ele, sendo a da Gratidão doada para uma Escola em Santo Antônio da Platina, onde sua
tia foi a primeira professora, e a da Justiça está na Vara da Justiça do Trabalho de Pato
Branco. Porém, as de ferro foram vendidas a preço de sucata. Kalu relata: “Eles vendem e
jogam fora” Mas, mesmo assim, busca compreender partes desse processo: “Olha, pra ser
sincero, eu entendo perfeitamente a questão cultural da intolerância, o que eu não entendo é você não
ter mais oportunidades! Você não precisa gostar de um casal nu, mas você pode gostar de um pato,
então encomende um pato…”.
Atos e fatos, que vão além, talvez, de uma intolerância cultural, e que perpassam
por relações de poder, nesse caso, de poder político. Dentro da lógica da colonialidade do
poder, aqueles que ocupam cargos dito superiores, ou tem o controle do capital, se arrogam
do direito de dominar, explorar, mas também de limitar os acessos, dentro de um padrão
definido por poucos, como afirma Quijano (2014), num movimento gerador de conflitos
de interesses sociais.
Situações de desrespeito que, ao serem vividas na pele, nas imagens rememoradas
em palavras, ficam registrados no tom da dor sentida. Em algumas frases ditas por Kalu,
em meios às recordações sobre como elaborou suas obras, emoções ressoam na percepção
pessoal do evento: “Então, nossa… como é que não… isso machuca né? Machuca…” ou “Dá razão
pra mim de ficar... triste? Bemmmm desanimado.” Palavras, sentimentos, que falam por si.
Nesses relatos, reconhece-se a manifestações de expressões primárias da colonialidade do
ser, como descrito por Maldonado-Torres (2007): a desumanização e a invisibilização.
Dentro das ações desumanas de invisibilização e silenciamento das retiradas das
obras do Largo das Virtudes, a escultura do casal nu abraçado quase foi parar no fundo do
rio. Kalu explica que a retirada do “Monumento ao Amor” foi diferente das esculturas das
outras virtudes, e que o seu desaparecimento por completo foi evitado pela ação de um
amigo que trabalhava na prefeitura na época:
Depois de um tempo, recuperei ela, você viu que o casal tá ali na entrada do
ateliê (figura 38). Aí a história é bem legal. Tinha um amigo que era
responsável pelo setor de iluminação da cidade. E ele ouviu quando o
prefeito conversando lá com pessoal dele falou assim: ‘Você dá um jeito de
consumir com aquela, com aquele casal pelado lá. Jogue no fundo do rio,
consuma!’ Aí meu amigo pagou um caminhão do bolso, de madrugada, foi
lá e tirou a escultura e escondeu. E sumiu a escultura, e o prefeito pensou
que era o pessoal dele mesmo que tinha tirado. Ficou por isso.
Daí muito tempo depois, meu amigo me procurou e falou assim: ‘Ó, a hora
que o prefeito sair eu devolvo a escultura pra você.’ E ele trouxe aqui a
escultura! Nossa mãe do céu. Aí eu tinha trazido um vinho do casamento da
119
ao processo pelo qual o senso comum e a tradição são marcados por dinâmicas de poder
de carácter preferencial: discriminam pessoas e tomam por alvo determinadas
comunidades.” O autor ainda destaca que, a partir de Quijano (2000, in MALDONADO-
TORRES, 2008, p. 49), “O carácter preferencial da violência pode traduzir-se na
colonialidade do poder, que liga o racismo, a exploração capitalista, o controlo sobre o
sexo e o monopólio do saber.” Nesta passagem da retirada das obras do Largo das Virtudes,
fica a reflexão do que a presença de corpos nus abraçados significou para provocar tal
reação? A negação do corpo, é reconhecida como um dos alvos do sistema de controle
moderno-colonial, que ocorre em diferente âmbitos, e, como fala Albán Achinte (2017), a
“corporalidade” é um nível decisivo de relações de poder, onde o corpo é depositário dos
sistemas de produção, de controle, de evangelização e do conhecimento. Nesse episódio,
fica explícita a intolerância sobre a representação do amor no abraço de corpos nus, e que
encontra as justificativas em discursos religiosos, parte dos sistemas de controle descritos
pelo autor. O que se “pode” colocar na praça central em frente à Igreja Matriz?
No entanto, ampliamos a reflexão sobre o restante das obras que foram retiradas da
praça, quais seriam então, os motivos explícitos da retirada e despejo de esculturas que
representavam as virtudes? O que elas significavam? Fica a questão do que havia na
construção subjetiva que elas provocavam, que também precisou ser invisibilizada pelo
poder público, dentro dessa mesma dinâmica de controle moderno-colonial. E o porquê de
sua “incompatibilidade” com a cultura da cidade? Ficam as questões.
Além da reflexão dos impactos sociais que envolvem esse episódio narrado por
Kalu, abaixo nos propomos a olhar pelo viés do controle subjetivo sofrido, ao (re)conhecer
as influências no seu fazer artístico após passar pela experiência relatada:
Então tem que ter muito cuidado com essas coisas. Principalmente quando
é obra pública. Aquela experiência ali da escultura da praça, foi terrível.
Porque a questão da nudez ali, ela não foi aceita por intolerância. Aí agora
quando eu faço outras, para não ter esse revés... eu tenho mais cuidado, ‘Ah,
vai ficar lá em tal lugar, não, então vamos fazer diferente’. Sei que talvez eu
tivesse que ser mais ousado e eu talvez tô sendo um pouquinho covarde.
Porque eu não quero acreditar que só daqui algum tempo que eles vão
entender isso, sabe? É um pouco de covardia também. Mas é necessário
para continuar trabalhando, para receber encomenda. Tem toda essa
adaptação... mas tenho esperança que vai mudar. (KALU)
Depois de perder algumas obras em sucata e resgatar outras, o fazer artístico foi
“controlado” subjetivamente, ao dizer que não foi mais ousado, para garantir seu sustento
com mais encomendas. Kalu assume para si uma “culpa” de uma “ousadia” ou “afronte
121
aos bons costumes” passando a regular sua criação em alguns casos e espaços. No entanto,
se observarmos na sua fala, a intenção era representar as virtudes, e entre elas o amor, e
não de afrontar adultos, religião ou prejudicar crianças. Então talvez podíamos entender
que não seria necessária essa regulação, no entanto, para quem sentiu na pele a intolerância,
passar a limitar partes de sua criação artística, se tornou importante para manter seu
trabalho aceito pela sociedade.
Reação essa à uma dinâmica de opressão sofrida no ato de silenciamento de sua
expressão naquelas obras, suprimidas do espaço público, e que ressoam em seu fazer,
quando da produção de outras, em uma esquiva de sofrer novamente esse “revés”, que
atinge diretamente seu trabalho e sustento. Pela injustiça e violência dos opressores, o
sujeito é negado em sua humanidade, como pontua Freire (2019), sendo retirado de sua
autonomia. A colonialidade do ser atuando, desta forma, conforme destaca Mota Neto
(2016), pela negação do direito à liberdade e existência do sujeito.
Jurema também relata experiências de quando participou de projetos, pinturas de
painéis na cidade, e que simplesmente deixaram de existir. Ao refletir sobre essas situações,
a artista fala que as obras: “simplesmente somem... o Kalu sente mais”, com empatia sobre as
obras de seu amigo e colega, por também conhecer as histórias contadas acima. Relata um
de seus trabalhos, na pintura do painel da Fauna e Flora no evento Circo das Artes (figura
39), a artista conta o episódio e como sente-se nesse caso:
Figura 39 - Painel pintado por Jurema para o Projeto "Circo das Artes, Brasil 500 anos”
Quando descreve sobre o que fez, “...e que agora já não existe mais... o problema nosso
aqui é que as coisas se perdem.” é possível refletir como nessa frase o que se perde vai além
das coisas materiais, há a dedicação, o trabalho, o ser ali envolvido e que de alguma forma,
uma parte disso desaparece junto. E o sentimento não se concentra somente no ato de ter
sido removido e da não preocupação com a conservação da arte local, mas também de não
poder saber, ou não se esclarecerem os motivos de tal ato. Ações que nos remetem à
colonialidade do saber e ser, como descreve Gómez (2019), que atuam no espaço e no
tempo como uma colonialidade epistêmica, em que a arte é muitas vezes excluída ou
encurralada a espaços reduzidos. E assim, essa exclusão reflete no ser que a realiza, ao
ocultar a produção de quem o elabora.
Na frase em que Jurema relembra de como foi para elaborar a obra, “então imagine
o trabalho pra pintar todo esse painel. Mas... já foi.” traça a lembrança do empenho, da
capacidade, do fazer, do seu trabalho, até o “mas”... dentro de uma resignação perante o
alcance limitado para impedir que essa memória estivesse viva além da foto. No entanto, a
ação permanece nela, incorporada através do seu trabalho e do seu recordar, como contribui
Bosi (1987, p. 398), ao refletir sobre trabalho e memória, descrevendo que: “Todo e
qualquer trabalho, manual ou verbal, (...) acaba-se incorporando na sensibilidade, no
sistema nervoso do trabalhador” e que, ao recordá-lo, investe grande significação e valor
ao ocorrido.
Esse evento do painel da Fauna e Flora, que a artista relata, nos faz refletir sobre o
impacto de atos de controle sobre o produto de seu trabalho. Quando o trabalho é alvo de
123
Ao relatar essa vivência, mistura-se a alegria de ter conquistado esse espaço, de ter
contribuído nessa parte da história cultural da cidade, de um trabalho coletivo e que tem
orgulho de ter feito, com a dor e indignação de agora nem saber o que foi feito com ele,
não ter sido consultada, além da triste perda do prédio do Teatro. O incêndio queimou o
Teatro17, porém o painel, que tinha ficado intacto, foi retirado/desmanchado para a obra de
reconstrução. Por isso a decepção no tom de suas palavras sobre mais uma obra que não
existe mais. Quando diz: “mas aqui o negócio é isso aí, eles não respeitam.” reflete uma relação
com o espaço em que atua, a cidade e sua relação com o campo da artes, sentido em nuances
de apoio e também de desamparo, experienciando em diferentes situações vivenciadas
durante sua carreira artística local.
16
Quijano (2014) indica dois eixos onde o novo modelo de poder é fundamentado: um está baseado na ideia
de “raça” e o outro na constituição de uma nova estrutura de controle do trabalho.
17
Em 17 de abril de 2018, um incêndio destruiu o Teatro Municipal Naura Rigon. O fogo atingiu a estrutura
do teatro mas o painel não foi atingido. Em 2020 foi iniciada a demolição, para elaboração de novo projeto.
De acordo com a matéria do jornal Minuta, o prefeito informou que queriam tentar manter o painel, e se não
fosse possível, iriam pedir para o Kalu fazer outro. Disponível em:
<https://www.minutta.com.br/noticias/estrutura-do-teatro-comeca-a-ser-demolida-local-ficou-destruido-
depois-de-incendio>. Acesso em 14 jul. 2020.
124
Figura 40 - Painel “Os pioneiros” em fase de execução, ao lado do Teatro Municipal, no Centro
Cultural Raul Juglair, dez. 1997.
parte dos responsáveis de colaborar, mas que não foi possível nos trâmites burocráticos,
comumente impessoais. No entanto, a relação emocional dos/as artistas da cidade com esse
Teatro, vai além do contrato de reconstrução da obra física. Sentimento esse que seria
representado na proposta da obra de arte que Kalu gostaria de fazer para colocar ao lado
do novo Teatro, no formato de uma fênix, com as estruturas de ferro retorcidas pelo fogo.
Como observa Albán Achinte (2017, p. 139), “la vida se acelera pelas demandas de lo
productivo”. Dessa vez, a fênix não renasceu.
As memórias e lembranças dos artistas sobre esse painel, um dos trabalhos que
realizaram unindo suas mãos, técnicas e criatividade, se fizeram presentes durante as
entrevistas de ambos. Para Jurema, além dessa questão do final do painel, que contamos
125
acima, houveram outras situações estranhas, vamos assim dizer, que ocorreram já no início
desse concurso que participou junto com o Eloy. Abaixo o relato das cenas que envolveram
a premiação:
Então foi uma coisa bem bacana. E esse menino, o Eloy de Lima, ele fazia
aula comigo. Nós combinamos assim: ‘Quem ganhar o prêmio divide.’
Porque nós fizemos em parceria, e foi legal! Porque os meninos, às vezes
eles não tem essa disposição... mas daí eu fui puxando: ‘Eloy, você tem
capacidade, você faz’. Eu preparei a massa, que foi uma massa especial,
para poder fazer, pra ficar bom. Foi bem bacana e a gente trabalhou muitas
parcerias. E ganhamos o prêmio! Só que assim... ganhamos o prêmio, mas
foi muito interessante, porque disseram: ‘Ah, mas será que vocês não
podiam dar tanto pro Departamento de Cultura?’. Olha... caramba, né?
Não, não, uma coisa assim... louca. Porque a prefeitura que ofereceu o
prêmio. Um valor mínimo, mil reais. Pra obra que fosse escolhida, para ser
a representação do que eles queriam. E na hora da premiação, de receber a
premiação: ‘Ah, vocês não podiam dar um tanto pro Departamento de
Cultura…’ Aquelas coisa tudo assim... e a gente muito idiota, deu, né? É
desapego de artista... Mas assim, foi aquilo e acabou, não sabemos o que
aconteceu, o que não aconteceu, se não... nada, foi assim! Porque nós
recebemos uma parte e uma parte a gente deu. E pronto, foi assim, daí
nunca perguntei, a gente também não fica muito atrás. Mas só que a gente
depois começou a analisar: ‘Pô meu, não precisava né? Eles deviam ter
deixado para gente, pra que ainda ter que auxiliar? Eles têm já, para cada
projeto eles tem uma verba, né?’ Então, é uma coisa muito interessante
pensar, para você ver que, o apoio e o incentivo é... e assim tem acontecido.
(JUREMA)
Percebe-se que a ênfase das falas dela não são somente na questão do valor pago,
mas ainda mais sobre o pedido de dividí-lo, e da sua própria reação: “Aquela coisa tudo
assim... e a gente muito idiota, deu, né? É desapego de artista…” O que seria que naturaliza esse
“desapego do artista”? De um valor que seria dividido entre os dois autores da obra escolhida,
pôde ser considerado “natural” ser entregue somente metade do total do prêmio a eles,
como se relacionassem o trabalho do artista como “voluntário” ou não remunerado… A
colonialidade do saber e do poder que influenciam diretamente nas valorizações e
desvalorizações dos saberes e fazeres, numa naturalização do modo de ser da sociedade
liberal-capitalista e que atende à “necessária superioridade dos conhecimentos que essa
sociedade produz (“ciência”) em relação a todos os outros conhecimentos.” (LANDER,
2000, p. 13).
Além da reação da artista, sobre como lidaram com tal evento na época, esse
episódio traz outras reflexões sobre a construção local de conhecimento, as relações sociais
em torno do fazer artístico. A partir dos relatos de somente dois artistas da cidade, podemos
perceber o quanto Pato Branco tem ações na área das artes, mas que em alguns casos estão
ali para compor uma burocracia, mas não para fazer parte do patrimônio e constituir
história, a partir da conservação por parte das autoridades.
126
Bosi (1986) destaca o papel do artista em sua historicidade local, sem deixar de
delinear o caráter único de cada obra. Quando as obras são retiradas sem explicação, sem
devolução, os pagamentos são dados em parte, entre outros episódios do gênero, fica um
questionamento do que acontece com o reconhecimento, valorização e respeito ao lugar da
arte, e dos/as artistas, na construção e desenvolvimento do município. Para Maldonado-
Torres (2008), ações assim enfraquecem a produção de um conhecimento importante para
a descolonização epistêmica, que tem sua força a partir do local, a partir da localização
geopolítica do sujeito.
Ainda nessa história, Jurema conta que ocorreu outra cena inusitada, dessa vez com
o quadro que a artista fez e que compunha o conjunto das obras selecionadas na ocasião:
Então, essa obra do painel era para representar o que foi Pato Branco
(figura 41). Nós tínhamos que fazer uma maquete, que inclusive eu acredito
que esteja lá ainda, uma maquetezinha com a miniatura do que foi feito no
painel. A gente fez o projeto no meu ateliê, o Eloy fez essa parte mais
futurista, mais moderna, e eu fiz uma peça com carroça, com pinheiro, com
uma coisa assim do que foi a colonização. Então cada um abordou um
caminho. Inclusive esse meu quadro, quando o governador Greca, que era
governador do estado na época, esteve em Pato Branco, ele levou esse
quadro, porque estava lá no Departamento de Cultura, eles me pediram se
podia dar. O que que tu vai fazer? Aí então eu tenho até uma foto, agora
não tá aqui, eu tenho que inclusive tenho que encontrar, que tem o registro
que eu doei. Inclusive ele já me convidou várias vezes para ir na casa dele
ver onde está meu quadro... Então, o que acontece... esse quadro eu já fiz
assim uma coisa super moderna para aquela época, porque eu coloquei
tronco de pinheiro, eu coloquei uma carrocinha, tipo vamos dizer, 3D.
(JUREMA)
Dentre algumas situações relatadas por Jurema sobre o tema das relações
financeiras, destacamos o trecho abaixo:
Porque o nosso mercado aqui é muito restrito. Tem bastante pessoas que
fazem... e além de tudo... tem assim, até as pessoas assim que tem mais posse,
eles valorizam mais pegar um quadro de fora. (...) Muito interessante... a
gente tem essa dificuldade. As pessoas falam, olham, querem, não querem.
Quando querem comprar uma obra sempre acham caro, é desconto, é isso,
é prazo. Então você também vai se desanimando... porque você tem um
investimento! (...) Então isso é que é a dificuldade que eu sinto... a maneira
que se vê as coisas. Mas é uma questão cultural, porque esses dias eu
também me vi pensando assim ‘não deu valor... ah, mas olha, isso, isso,
aquilo.’ Então você tem que raciocinar, porque é uma coisa assim que tá
meio incrustada em você. (JUREMA)
18
A desvalorização comercial acontece em alguns casos, não há como generalizar o ganho monetário da
classe artística, e não é o objetivo dessa pesquisa. Reconhecemos a diversidade de atuação e remunerações
que existem na área. Consideramos esse ponto financeiro para um início de reflexão, baseada nas vivências
pontuais relatadas pelos narradores.
129
fazer. Dentro dessa contradição tão humana, os sentimentos bons e os não tão bons,
convivem juntos, e estão presentes nas histórias contadas. Nas próximas páginas nos
permitiremos escrever-pensar também sobre essas vivências que se constituem, a partir de
nosso olhar, como práxis de re-existência.
Iniciamos com uma das falas de Jurema que, ao relatar suas experiências, reflete
sobre como também sente “um reconhecimento bacana pelas pessoas na cidade”, quando sente-
se respeitada pelo seu trabalho. No entanto, relata sentir certa pressão, principalmente da
sociedade, por ser do seu jeito, mais simples:
Com meu trabalho, cada dia tenho uma experiência. Semana passada
mesmo veio uma menina, inclusive ela tá indo para fora do Brasil, e ela disse
assim: ‘Eu quero aprender a bordar a mão, já tive máquina que fazia tudo
automático, mas eu quero fazer à mão.’ Então você vê, isso pra você é uma
realização, até escrevi para a mãe dela agora: ‘Tô feliz por poder passar
meus conhecimentos.’ E saber que as coisas vão e voltam! E o ‘à mão’, esse
sempre vai ser o teu valor, ou vai ter o valor, porque qualquer máquina faz,
mas ‘à mão’, é uma outra mão que faz! Então foi fantástica a experiência
que tive com essa moça semana passada. Eu brinquei com ela: ‘Ah, assim
não vale! Tudo que eu te ensino você aprende!’, daí ficamos as duas
trocando ‘Não, é a profe!’ ‘Não, é a aluna!’. Então foi muito gratificante.
Então, isso me traz uma satisfação muito grande, porque eu tenho prazer
em ensinar. (JUREMA)
131
(...)Para perfazer tantíssimas ações basta-lhe uma breve mas dúctil anatomia:
oito ossinhos no pulso, cinco no metacarpo e os dedos com as suas falanges,
falanginhas e falangetas.
Mas seria um nunca acabar dizer tudo quanto a mão consegue fazer quando a
prolongam e potenciam os instrumentos que o engenho humano foi inventando
na sua contradança de precisões e desejos. (BOSI, 1977 in BOSI, 1987, p. 388).
E na continuidade, o autor ainda discorre por uma diversidade de ações, desde lavrar
a terra, o bordar, esculpir, escrever, até o refletir sobre a operação das máquinas: “Na idade
da Máquina, a mão teria, por acaso, perdido as finíssimas articulações com que se casava
às saliências e reentrâncias da matéria?” (BOSI, 1977 in BOSI, 1987, p. 389). Mas o que
vemos nas experiências contadas por Jurema, essas articulações ainda resistem, e
continuam a prolongar os instrumentos, como a agulha e o pincel que ganham força na
continuidade do movimento de seu corpo. Muito da força das práxis de re-existência se
encontram no que é humano, produzido também no encontro das pessoas, que dividem
132
entre si conhecimentos, resgatam e mantém práticas como essas que Jurema ensina a suas
alunas. A expressão do bordado é de quem o borda, pelas mãos que o bordam, como ela
mesmo ressalta.
Na América Latina, um dos exemplos que podemos ilustrar essa potência, onde o
unir-se para aprender a bordar, e para bordar juntas ganha forças de resistência, foi o de
um grupo de mulheres chilenas nos anos 1970 que, através das oficinas Arpilleras19,
registraram seu dia-a-dia bordando em confecções feitas de retalhos e sobras de pano. Esse
movimento aconteceu em meio a um regime político repressivo, sendo elas mesmas
também perseguidas políticas durante a ditadura e, com seus bordados, encontraram um
meio para enfrentá-la, quebrando dessa forma o silêncio imposto e registrando a história
nas imagens bordadas. “As arpilleras mostravam o que realmente estava acontecendo nas
suas vidas, constituindo expressões da tenacidade e da força com que elas levavam adiante
a luta pela verdade e pela justiça.” (BACIC, 2012, p 7) Esse é um dos tantos espaços que
encontramos a expressão artística como uma ferramenta para continuarem existindo, re-
existindo, através do registro simbólico da realidade (ALBÁN ACHINTE, 2017).
Desse registro simbólico da realidade nas obras, há também as reflexões possíveis
de outros olhares sobre si e sobre seu entorno, a partir da prática do fazer artístico. Das
histórias contadas por Kalu, destacamos sua descrição sobre a proposta pedagógica, que
fez no Trabalho de Conclusão de Curso da pós-graduação em Arte Educação, e que aplica
em aulas e oficinas:
Essa vivência que Kalu traz, encontramos também nas reflexões da psicóloga Ecléa
Bosi (2003, p. 171), ao refletir sobre o trabalho manual: “Mesmo no gesto tão simples de
19
Para saber mais: Catálogo Arpilleras da resistência chilena/curadoria: Roberta Bacic Apresentação: Paulo
Abrão - Brasilia- Biblioteca Nacional, 2012. disponível em https://cjt.ufmg.br/wp-
content/uploads/2019/02/CA.-Arpilleras-da-Resist%C3%AAncia-Pol%C3%ADtica-Chilena.pdf.
133
Por isso que eu oportunizei pra esse menino, o Juan Tamayo, cubano, para
vir fazer a arte dele aqui.Por enquanto está assim, ele não me paga nada, e
assim estou auxiliando ele a ter um espaço. A gente até pretendia fazer
coisas juntos, mas agora com essa função dessa pandemia não deu. Então
disse para ele: ‘Fica só para você as tuas aulas, porque você também precisa
se manter’. Eu aqui de qualquer maneira tenho que manter isso.
aprendi, aproveitei. Uma coisa assim que eu acho que a gente tanto dá que
você recebe. (JUREMA)
Ao abrir seu espaço para o trabalho do Juan, se coloca num lugar dialógico e de
acolhimento. Transpassa as bordas também da língua, cultura e aproxima países latinos
através de uma proposta de trabalho conjunto. Como Walsh (2013) destaca nas propostas
de pedagogias de(s)coloniais, das práxis de re-existência, o desaprender para re-aprender a
aprender, em um movimento constante de fortalecimento coletivo, e assim também
contribuir para a construção de caminhos “de estar, ser, pensar, mirar, escuchar, sentir y
vivir con sentido o horizonte de(s)colonial” (2013, p. 24). Nas frases de Jurema: “E é tão
bom quando a gente tem oportunidades, porque eu já tive oportunidades assim. Coisas que
aconteceram que foi muito legal, que me deu uma oportunidade grande, e aprendi, aproveitei.”
Reconhece-se a existência de memórias de gratidão, das oportunidades que recebeu, de
momentos que foram superados com o suporte e incentivo de outras pessoas que apoiam o
conhecimento produzido na arte. Como também sentimos em alguns relatos de Kalu, como
quando fala de seu mecenas: “E teve algo que me auxiliou muito, foi o mecenas, o cara que me
prestigiou.” Os encontros com quem também sabe apreciar a arte, e apoiar os/as artistas e
auxiliam essas histórias a continuarem acontecendo, como agora para o Juan Tamayo.
Um outro ponto onde se faz possível compreender as re-existências na arte,
encontra-se nas características que permitem a expressão, a construção simbólica, a
provocação, onde o ato criador, está conectado com o existir, com o re-aprender a viver, a
retomar o lugar de sujeito perante a lógica instaurada na narrativa ocidental, como explicita
Albán Achinte (2009). Nas descrições de Kalu sobre os processos de criação e significação
das estátuas do Largo da Virtudes, por exemplo, encontramos essas características. Além
dos trechos apresentados no início desse capítulo, destacamos mais uma descrição da
elaboração das obras do artista, para ilustrar essa práxis de re-existência, pela sensibilidade,
criatividade e crítica:
Fiz uma outra chamada Solidariedade. Era quase como se fosse um S. Mas
aqui era uma forma circular e aqui outra forma circular. Então,
solidariedade não é você dar um quilo de alimento pro moço que queimou
a casa dele, isso é outra coisa, menos solidariedade. Solidariedade é quando
você faz exercício das tuas bondades, de todas elas. Você é solidário, você
sente a dor do outro, você não dá um presente pra ele. Você sente a
necessidade, você conforta, você dá o presente físico, o presente material,
você dá um olhar benevolente, isso é ser solidário. Então tá, só que a
solidariedade ela tem que ter um começo, então ela começa na ponta do S,
e ela vai, faz o círculo e volta pra você! (KALU)
136
Sim, sim! Não, não... porque aqui eu amo. (...) Que isso aqui é muito
importante assim tanto pra minha parte mais emocional e realização do que
eu faço, e a gente habitua também com o trabalho né? E essa troca de ideias
e de palavras e de pessoas junto é muito importante. (...) Aqui eu falo
sempre, até que eu puder eu quero trabalhar nisso. Porque é uma coisa
assim que só faz bem. Porque você fazendo o que você gosta, transmitindo.
É uma troca muito muito boa. (JUREMA)
A percepção de Jurema sobre o seu dia-a-dia no ateliê, onde afirma que “aqui é
vida!”, "porque aqui eu amo”, nos aproxima do que Bosi (1987) destaca, quando fala da
“fusão do trabalho com a própria substância da vida” que percebe nas memórias de pessoas
idosas com quem fez sua pesquisa de doutorado. A autora também reflete o quanto o lugar
da ação também é o próprio trabalho, o que reconhece-se na descrição da artista em relação
ao seu ateliê. Sentir a amorosidade com que Jurema fala de seu fazer laboral com as aulas
de artes e com as obras que produz, é um exemplo de re-existência, pelo fato de se permitir
fazer aquilo que gosta, mesmo com alguns obstáculos. Nessa fala percebe-se como sua
ação no mundo ganha mais sentido e alcance, ao estar transmitindo seu conhecimento e
vendo ter seguimento em outras mãos.
E Kalu, quando perguntado sobre o trabalho, sobre o tempo que leva na elaboração
das obras, sobre se aposentar, explica:
Uma fala que expõe uma contradição, sendo que grande parte deste estudo estamos
nos debruçando sobre o tema do trabalho de artistas, e nosso convidado diz que para ele
“Arte não é trabalho. Arte é arte.” Mas, o que há de implícito nessa observação que faz Kalu?
Libertação a que não chegarão pelo acaso, mas pela práxis de sua busca; pelo
conhecimento e reconhecimento de lutar por ela. Luta que, pela finalidade que
lhe derem os oprimidos, será um ato de amor, com o qual se oporão ao desamor
contido na violência dos opressores, até mesmo quando essa se reveste de falsa
generosidade referida (FREIRE, 2019, p. 43).
levam adiante esse legado nas mãos; nas esculturas, monumentos, portões, troféus,
esculpidos por Kalu, e também alunas e alunos que levam esses conhecimentos consigo,
transformando-os em novos traços. E não somente o legado material, há o legado da re-
existência ativa e presente desses artistas na sociedade, das contribuições da constituição
cultural de Pato Branco, e das inspirações promovidas na convivência com seus modos de
ser e continuar sendo através da arte. Importante presença da possibilidade de construir, a
partir de sua cidade, a construção de um pensamento histórico e geopoliticamente
localizado (MOTA NETO, 2021).
Como aspira Jurema, por dar “mais oportunidades a todos e que tenham esse espaço” ,
para assim a arte ampliar seus alcances na cidade, nos olhos, nos corpos, atingindo toda a
sua diversidade de expressões, que incluem também as artes plásticas. Quando Kalu
também pede que as oportunidades continuem acontecendo, ao destacar que “o que eu não
entendo é você não ter mais oportunidades! Você não precisa gostar de um casal nu, mas você pode
gostar de um pato, então encomende um pato…”.
Está aí o pato20...
20
Para saber mais, ver o contrato de execução da obra, disponível em:
http://pronimtb.patobranco.pr.gov.br:8087/pronimtb/anexos/03%20-
%20Licitacoes%20e%20Contratos/Exerc%C3%ADcio%202018/Inexigibilidade/01%20-
%20Escultura%20-%20Parque%20Ambiental%20-%20Pag%2001%20a%2075.pdf
141
CONSIDERAÇÕES, AO FINAL
Este estudo objetivou compreender, a partir das histórias de vida de artistas plásticos
residentes em Pato Branco - PR, como experienciam o seu fazer artístico, considerando as
colonialidades do poder, do ser e do saber e as práxis de re-existência. Para isto, foi traçado
um percurso metodológico, conduzindo a construção desta pesquisa, e neste momento
registramos algumas considerações, que apresentamos agora, a(o)final. Neste capítulo
trazemos, inicialmente, as compreensões e problematizações tecidas a partir do conteúdo
resultante desta pesquisa, e na segunda parte apresentamos uma breve história da vida desta
dissertação, em sua curta (mas comprida) duração, e possibilidades de reverberação como
pesquisa.
Pelo que vimos nos estudos sobre trabalho e desenvolvimento a partir da
de(s)colonialidade, no primeiro capítulo desta pesquisa, o ritmo imposto nas produções, a
automatização e tecnologias de comunicação, a corrida pelo lucro, a competitividade
global, os desafios na América Latina frente ao projeto de desenvolvimento moderno-
ocidental eurocêntrico a partir do sul global, tem afastado cada vez mais pessoas do que há
de humano na vida (ALBÁN ACHINTE, 2009), na questão do ser e sentir no trabalho.
Nessa pesquisa tivemos a oportunidade de olhar para o trabalho, daquele que o faz, conhece
e sente, a partir do ponto de vista de dois trabalhadores da área artística, e, ao ouvir a reação
deles, ressaltando a importância desse trabalho em suas vidas, com termos ligados à
felicidade, amor, emoção e troca, é como um fôlego na aceleração do tempo. Nas memórias
de Jurema Edy Pereira e de Kalu Chueiri percebe-se, como observa Bosi (1987, p. 393), “a
fusão do trabalho com a própria substância da vida”, e quando o sentido que ali se constrói
é como o descrito por estes dois artistas, é um sentido de vida. São inspirações para lembrar
que não estamos aqui só para reproduzir as colonialidades, e sim, como esses artistas,
produzir fissuras nesse mundo moderno colonial.
E das lembranças, mas também dos sonhos e das esperanças, que aqui foram sendo
registrados em partes - na limitação que o papel e as palavras contém - percebemos como
a resistência se movimenta no cotidiano, no micro, no que há de humano no trabalho de
cada um de nós. Do individual para a compreensão do social, onde os depoimentos nos
permitem reconhecer itens da memória social, como descreve Bosi (2003), em que as
experiências individuais são evocadas e se conectam com a dimensão temporal e o
momento psicossocial da lembrança.
142
muitas pessoas que também participaram de suas vidas, memórias coletivas e aprendizados
compartilhados. Em uma sociedade em que o ritmo imposto atropela muitos saberes e
fazeres, tende a atropelar também aqueles que têm outros ritmos, no seu trabalho, ou pela
sua idade, e também diminuem e apagam o tempo de se contar histórias, de dividir as
lembranças, as impressões sobre os fatos acontecidos a partir de seus lugares no mundo.
Os estudos com histórias de vida, e com pessoas idosas, como apresentado no capítulo
metodológico, têm ocupado um papel de contribuição acadêmica nas ciências sociais e
humanas, ao promover o reconhecimento da construção social dos significados, pela
presença das influências históricas, políticas e socioculturais nas ações e atividades
humanas, se tornando explícitos quando são narrados (GILL e GOODSON, 2015). Em
nosso estudo, foi possível perceber e afirmar a relevância desta forma de contribuição para
as compreensões das dinâmicas que envolvem o sujeito e a sociedade, e também para
fundamentar, problematizar e analisar temas como o trabalho, o desenvolvimento, a arte, a
educação, o social, a partir das memórias registradas.
Na continuidade da pesquisa, após registrar as histórias de vida, fomos
(re)conhecendo as colonialidades, pensadas a partir das realidades rememoradas, em sua
influência, por vezes implícita e outras explícitas, a partir de alguns episódios vividos e
compartilhados pelos narradores deste estudo. Sendo possível identificar nas histórias de
vida de dois artistas plásticos como vivenciam ser e estar no mundo e como foram
construídos seus modos de ser, fazer e sentir através das experiências vivenciadas no
contexto da sociedade moderno-colonial, como proposto no terceiro objetivo específico.
Apesar de não serem sujeitos pertencentes a grupos de povos originários tradicionais como
os indígenas e afrodescendentes, ou a movimentos sociais, de lutas por território, de gênero
ou de raça, comumente associados como atingidos diretamente pelas colonialidades do
poder, do ser e do saber, foi possível sentir nas palavras ditas, o quanto os atos de exclusão,
invisibilização, desconhecimento e intolerância ligados à lógica moderno-colonial estão
presentes em seu dia a dia. O que abre possibilidades para a reflexão do quanto a opressão
não tem legenda e limitação para quem pode sentí-la, agindo nas dimensões subjetivas, e
também objetivas, a partir dos lugares que ocupamos no mundo, nesse caso, do fazer
artístico.
A partir da identificação das colonialidades, nos propusemos a registrar os
exemplos de práxis de re-existência presentes no cotidiano das histórias contadas,
compreendendo a sua relevância para inspirar e transformar formas outras de estar, ser e
“estar sendo” nesta sociedade moderno-colonial. Como reflete Mota (2021), nós pensamos
145
21
CEU das Artes e do Esporte, é um local para a prática de esportes, de lazer e de cultura através da dança,
leitura, recreação e eventos, vinculado à Prefeitura de pato branco. Para conhecer mais:
https://www.facebook.com/CEUdasartesedosesportesdepatobranco
22
O “JoArte - Arte e Literatura” é um evento anual que ocorre desde 2016 em Pato Branco, com oficinas e
apresentações artísticas abertas ao público, realizado pela Biblioteca Joana Corona em parceria com o CEU
das artes de Pato Branco. Para conhecer mais: https://www.facebook.com/joartearteeliteratura/.
146
----- * -----
23
Referência ao poema de Manoel de Barros: “O menino que carregava água na peneira” (1999), recebido
das mãos da orientadora, na recepção dos calouros da turma 10 do PPGDR.
147
teórica, nos mostrando as possibilidade que existem para ser, sentir, fazer, pensar e estar
nos nossos lugares no mundo a partir das práticas criativas de re-existência, existentes no
fazer artístico.
De repente, uma pandemia global.
…
…
…
Reticências emocionais e práticas no andamento da fase das entrevistas e escrita.
Dos quatro encontros da pesquisadora com os participantes, só o primeiro foi
possível nossas mãos se tocarem, onde nos outros três, o aperto de mão foi substituído por
apertos no frasco de álcool gel (mais sobre os encontros no Apêndice C). Estas restrições
necessárias para a saúde, não impediram que os corpos e palavras falassem, e expressassem
a grandeza que está presente nas histórias de Jurema e nas histórias de Kalu, e na gentileza
e confiança que depositaram em nossa proposta.
Na rotina de pesquisadora-mãe-trabalhadora tempo integral, tive o apoio de meu
esposo, inclusive na transcrição das entrevistas. E visto o decorrer do calendário alterado
pelo ritmo de uma pesquisa em tempos de pandemia (e com uma necropolítica como pano
de fundo), o projeto foi ganhando corpo antes da qualificação, sendo apresentado já em
formas de uma “pré-dissertação”, em setembro de 2020.
A qualificação, feita de forma remota, unindo sotaques do norte ao sul do Brasil,
recebeu contribuições ricas em diversidade e de(s)colonialidades, fazendo transBordar as
possibilidades e transFormar os alcances da proposta.
E daquele início, das duas servidoras amigas que se tornaram orientanda e
orientadora, foram se (re)conhecendo e se (re)afirmando artistas que somos, eu das cenas
e ela das cores, e se emocionando e refletindo sobre nossos lugares no mundo, a partir das
histórias de vida que encontramos, na educação, no trabalho e na arte.
E são dessas considerações finais que estou falando, de uma pesquisa feita de
(re)conhecimentos e de (re)afirmações perante o que a vida nos dá. Isso, para mim, são as
práxis de re-existência que me vi trabalhando teoricamente e que espero, possa contribuir
localmente no des-envolver de certos envolvimentos duros que existem nos caminhos em
busca da libertação do ser em sociedade. Práxis que trazem consigo as possibilidades de
contribuição ao desenvolvimento regional para o tema dessa pesquisa: o sujeito.
E registrando assim, em forma de uma dissertação, as contribuições de Jurema Edy
Pereira e Sinésio Pereira Chueiri, o Kalu, artistas plásticos e professores, na construção
149
cultural em Pato Branco, pelo fazer ativo, pelas obras, e também pelo ser que são e que
estão sendo, que nos bordados e esculturas no tempo, transFormam e transBordam a partir
de seus lugares nesse mundo. Abrindo questões, também, do papel da arte e das
contribuições de artistas no desenvolvimento da cidade, lançando possíveis temas para
novas pesquisas.
150
REFERÊNCIAS
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Paulo: Autonomia Literária, Elefante, 2016.
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VOLTOLINI, Sittilo. Retorno: origens de Pato Branco. Pato Branco: Artepress, 1966.
APÊNDICES
Apêndice A:
ROTEIRO DE TEMAS PARA ENTREVISTAS EM PROFUNDIDADE
Conforme enviado no Projeto aprovado pelo Comitê de Ética
Nas entrevistas aprofundadas alguns temas são propostos, e não precisarão ser
relatados em ordem cronológica ou outra ordenação pré-definida antes da entrevista. O
participante será incentivado de forma não diretiva a desenvolver seu relato o mais livre
possível. Dentre os temas possíveis, os principais estão relacionados à:
Apêndice B:
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (TCLE)
TERMO DE CONSENTIMENTO DE USO DE IMAGEM, SOM E VOZ
(TCUISV)
Conforme entregue aos participantes
A) INFORMAÇÕES AO PARTICIPANTE
2. Objetivo da pesquisa: Ilustrar como artistas plásticos vivenciam seu lugar no mundo.
5. Riscos e Benefícios:
5a) Riscos: O risco da pesquisa é mínimo, mais relacionado a algum tipo de constrangimento ou
ansiedade por relatar suas histórias de vida. Caso estas reações se mostrarem como impeditivo, a pesquisadora
possui condições técnicas devido à sua área de formação em Psicologia, para dar o suporte necessário e fazer
os encaminhamentos adequados.
5b) Benefícios diretos e indiretos: Dentre os benefícios diretos podemos elencar: a valorização do
trabalho dos artistas plásticos; evidenciar o papel da arte no desenvolvimento regional; registro da história
oral de artistas da região de Pato Branco - Paraná; ampliar o reconhecimento social da contribuição do
trabalho artístico para a sociedade.
159
6a) Inclusão: 1. Artistas plásticos que já trabalharam em empregos não ligados ao viés artístico, e que
saíram dos mesmos. E, no momento da realização desta pesquisa, se dedicam às artes plásticas como sua
atividade laboral principal.
2. Ter algum reconhecimento pelo seu trabalho artístico na sociedade em que estão inseridos na região
de Pato Branco - Paraná.
Assinale uma das opções abaixo para receber ou para não receber os resultados da pesquisa, conforme
seu interesse:
O Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo Seres Humanos (CEP) é constituído por uma equipe de
profissionais com formação multidisciplinar que estão trabalhando para assegurar o respeito aos seus direitos
como participante de pesquisa. Ele tem por objetivo avaliar se a pesquisa foi planejada e será executada de
forma ética. Se você considerar que a pesquisa não está sendo realizada da forma como você foi informado
ou que você está sendo prejudicado de alguma forma, entre em contato com o Comitê de Ética em Pesquisa
Envolvendo Seres Humanos da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (CEP/UTFPR). Av. Sete de
Setembro, 3165, Rebouças, CEP 80230-901, Curitiba-PR, telefone: 3310-4494 e-mail: coep@utfpr.edu.br
B) CONSENTIMENTO DO PARTICIPANTE
Eu declaro ter conhecimento das informações contidas neste documento e ter recebido respostas
claras às minhas questões a propósito da minha participação direta na pesquisa e, adicionalmente, declaro ter
compreendido o objetivo, a natureza, os riscos, benefícios e indenizações relacionados a este estudo.
Concordo que minha voz seja gravada em áudio para os fins da pesquisa. Após reflexão e um tempo razoável,
eu decidi, livre e voluntariamente, participar desta pesquisa. Estou consciente que posso deixar o projeto a
qualquer momento, sem nenhum prejuízo.
Nome completo:________________________________________________________
RG:_____________________ Data de Nascimento:___/___/______ Telefone:__________________
160
Endereço:_____________________________________________________________CEP:_______________
Cidade:__________________ Estado:__________________
Assinatura:
Eu declaro ter apresentado o estudo, explicado seus objetivos, natureza, riscos e benefícios e ter
respondido da melhor forma possível às questões formuladas.
Nome completo:_______________________________________________________
Para todas as questões relativas ao estudo ou para se retirar do mesmo, poderão se comunicar com
Gisele Cristina Voss, via e-mail: giselevoss@utfpr.edu.br ou telefone: (46)99908 0708 e (46)2604 0319.
OBS: este documento deve conter duas vias iguais, sendo uma pertencente ao pesquisador e outra
ao participante da pesquisa.
161
Apêndice C:
PARA UM DIA VOLTAR, AO ATELIÊ, AO ENCONTRO: DO QUE FICA
.
Quando conheci essas histórias...
Quando me senti acolhida por essas pessoas...
Em mim, senti calor.
Daquele que chamam de calor humano...
A mim soa melhor calor de vida.
Que emana, do corpo e da alma,
e ganha espaço, no espaço do encontro.
Gisele Cristina Voss
Pensando e sentindo do mestrado
07 dez. 2020
DOS ENCONTROS...
24
A apresentação dos ambientes do ateliê ocorreu na chegada ao local, antes de ser apresentado o TCLE e
recebido a autorização para iniciar a gravação. Dessa forma, o relato descrito nesse parágrafo consta nos
registros de diário de campo da pesquisadora, não havendo registro gravado.
162
Cada lugar trouxe informações, como os móveis azuis da cozinha que foram de sua
mãe, do fogão que comprou intencionalmente no modelo antigo, e as crianças adoram
acender com fósforo, por ser diferente do botão automático de suas casas. Ao mostrar o
banheiro, contou do trabalho de design de sua filha, e dos desenhos que compõe o espaço.
Comentou sobre a técnica da parede original daquele banheiro, quer era de uma pintura à
mão especial da época, mas que a artista que fazia esse trabalho na cidade, não quis lhe
ensinar naqueles tempos. Reflete que ela opta por repassar o que sabe a quem pede,
demonstrando-se sentida por não ter tido a oportunidade de aprender aquele belo trabalho
na época. Nas paredes da sala de aula de artes, apresenta suas obras de diferentes períodos,
com técnicas que foi conhecendo e aplicando em seus trabalhos e nos ensinos. Conta de
um novo artista, cubano, com formação em artes e que convidou para dar aulas em seu
atelier, apresentando seus desenhos e belos quadros que registram imagens de Pato Branco
e outras paisagens. Após essa recepção, realizamos a entrevista na sala de aula de artes
(figura 44).
Figura 44 -Jurema em seu ateliê, na ocasião da primeira entrevista para essa pesquisa
Percebi uma leveza nas falas dela enquanto me contava dos cantos e obras do
atelier, e um certo enrijecer no tom da voz quando os gravadores foram ligados próximos
à ela, ao formalizarmos o início da entrevista. Lembrar e contar a história para alguém é
diferente de quando se percebe que aquela história será gravada e escutada novamente por
163
outra pessoa. Mas no decorrer do tempo essa sensação pareceu se diluir, e ao final o diálogo
foi tomando novamente formas mais leves como a conversa inicial. No segundo encontro
o contato já estava mais familiarizado, e as histórias foram contadas e gravadas de forma
mais natural, acompanhadas de um belo álbum de fotos que a artista trouxe, para apresentar
os registros das exposições e atividades que organizou e vem participando em sua trajetória
artística. A cada imagem, lembranças de pessoas, cenas, eventos e experiências. Reforça
várias vezes a satisfação de ter seu álbum organizado por sua filha, e conseguir relembrar
esses fatos. “Os filhos nos renovam, é o complemento da vida da gente.” (Jurema)
E assim os encontros com Jurema aconteceram.
----- * -----
Assim também, com essa clima amistoso, ocorreram os encontros com Kalu. Desde
o primeiro contato telefônico, o artista se colocou à disposição para contribuir com a
pesquisa, e no momento das entrevistas não foi diferente. A primeira aconteceu após um
evento sobre artes em que ele foi um dos convidados da mesa redonda, promovido pela
ALAP, e logo depois, ali mesmo no Largo da Liberdade, iniciou a contar suas histórias e
experiências. Disposto a compartilhar do que viveu e do que sentiu, mesmo com algumas
interrupções de pessoas que queriam vir cumprimenta-lo, falar de suas amizades, fez
questão de continuar a entrevista, resultando em quase uma hora de gravação de uma boa
conversa. Na ocasião da segunda entrevista, meses depois, a realizamos em seu seu ateliê,
instalado em um barracão localizado em um dos setores industriais da cidade. Ali me
recebeu com animação em suas palavras, e um grande cachorro que também demonstrou
alegria de receber visitas. Em seus relatos e histórias, suas mãos, olhos e expressão,
descreviam as emoções das lembranças.
Naquele espaço amplo, cada canto tinha algo a ser conhecido, obras prontas, peças
em construção, materiais diversos, e até alguns quebrados e que ali seriam recuperados, ou
talvez não... narrações que misturavam ideias alegres em meio a memórias de vandalismos.
E ele foi me conduzindo por aquelas histórias do que aconteceu, e do que está ainda para
ser feito, descrevendo os materiais e os propósitos de cada trabalho. Escutando um jazz
como música ambiente, passando por mesas de trabalho com ferro, pedras, madeiras, e
164
muitas ferramentas expostas nas paredes e bancadas. Um lugar para se criar. Mostra
também um mezanino no segundo andar, que por um período de sua vida foi a sua moradia,
e que agora estava desativado.
Em um trecho da conversa, ainda na chegada25 para a entrevista, consigo
exemplificar um pouco de como foi transitar naquele espaço de muita criação e trabalho:
Ah tem mais uma! Não sei se você veio pra ver arte. Arte não! Escultura por
enquanto. Vão ser arte daqui uns tempos, por enquanto é só escultura. (...). Esse
é um mármore travertino. (...) E aqui uns bustos quebrados. Esse aqui tava na
praça (apontando para uma escultura quebrada em dois pedaços, de uma mulher
sentada). A outra metade dela tá ali. Ó lá a outra metade dela. (...) Lá na praça
mesmo, quebraram tudo. Aí trouxe pra eu aqui, mas daí não me deu...(Kalu).
25
Como foi na segunda entrevista, consegui gravar a conversa antes de iniciarmos a entrevista no local pré-
definido.
165
DA AVENTURA...
Ecléa Bosi nos fala sobre a entrevista como algo que envolve responsabilidade pelo
outro, como na duração de uma amizade, e que a qualidade da entrevista depende da
qualidade do vínculo. Foi um exercício para mim, como pesquisadora, compreender isso e
empreender na prática. Porque foi como uma mistura, de admiração e respeito, de
responsabilidade e medo, de alegrias e descobertas, que elas aconteceram, desde o primeiro
166
Figura 47 - Gisele e prof. Clara, em curso sobre Paulo Freire na APP Sindicato, 2019.
DO SENTIR
Sinto que ao elencar as colonialidades do poder, saber e ser como conceitos para a
análise narrativa, elas parecem tão grandes, chego a sentir o peso. Ao mesmo tempo,
quando reflito do que senti nos encontros das entrevistas, não foram essas categorias que
se ressaltaram. Talvez por isso que na banca de qualificação os três professores pontuaram
a presença das (de)colonialidades, ou práxis de re-existência, desde o título.
168
Mas como onde há luz, há sombra, se fez necessário reconhecer as expressões das
relações de poder moderno-colonial para observar o que está implícito, como o verso de
um bordado e a fôrma de uma escultura de gesso.
No entanto, enquanto escrevia a análise narrativa, e na primeira leitura da
orientadora, a palavra pesado e cansativo se fez presente. É como se já estivéssemos
exauridos de vivenciar tais relações, que escrever e ler sobre elas não seja tão fluído (sem
desconsiderar a inabilidade de escrita acadêmica, ainda em formação.)
É algo que sinto no corpo também.
Estou ainda iniciando esses passos de pesquisadora, e como psicóloga (e com a
minha psicóloga), percebemos o quanto buscamos respostas pessoais em uma pesquisa,
que tem em si o propósito social de ampliar conhecimentos, em sua diversidade de formas.
E, no presente estudo, minha ânsia (talvez implícita, talvez explícita), era de re-conhecer
na vida, a vida que há. E, devo valorizar, a sensibilidade da minha orientadora, ao insistir
que a metodologia das histórias de vida era possível no mestrado em Desenvolvimento
Regional.
E com o pulsar das re-existências, desde crianças e jovens, Jurema e Kalu nos
brindaram com seus exemplos de vida. Ambos, aos responderem perguntas sobre seu início
na arte, remeteram às vivências desde a tenra idade, mostrando o valor da infância, da
família, das lembranças na sala da casa, e nas primeiras experiências de aprendizagem, da
educação vivida.
Que perpassam por perdas, nos aproximando ainda mais do humano, que nasce e
morre, que existe em constante ir e vir. E desde as cenas ligadas à seu pai, no caso de
Jurema, e de seu irmão caçula, no caso de Kalu, o amor à vida se faz presente. Ficar na
vida, na forma e nas mudanças que ela impõe, dá condições de crescer, fazer, sentir, chorar
e sorrir, como é o belo da existência.
Quando me deparo com as práxis de re-existência como um conceito ligado à
pedagogias, práticas e estéticas, me debruço um pouco mais, por identificação. Minhas
lembranças dos primeiros anos no teatro, com 12, 13 anos de idade, envolvem o
encantamento com o humano. Recordo ficar observando as pessoas nas paradas de ônibus,
após as aulas com o professor Marcio Bernardes, que sempre me permitiu se aproximar do
encantamento com o cotidiano.
Entrevistar artistas, ou melhor, ouví-los contar suas histórias, me fez renovar esse
encantamento. Re-existir.
Sou grata.