Você está na página 1de 62

1

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE - UFRN


CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES - CCHLA
DEPARTAMENTO DE ARTES
CURSO DE LICENCIATURA EM TEATRO

PAMELA DUTRA DANTAS

BÁLSAMO: MEMÓRIA E IMAGEM NA CONSTRUÇÃO PERFORMÁTICA

NATAL/RN
2018
2

PAMELA DUTRA DANTAS

BÁLSAMO: MEMÓRIA E IMAGEM NA CONSTRUÇÃO PERFORMÁTICA

Monografia apresentada como parte das exigências


para conclusão do curso de Licenciatura em Teatro
pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte
(UFRN).

Orientadora: Prof.ª Dr.ª Camila Maria Grazielle


Freitas

NATAL/RN
2018
3

Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN


Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Departamento de Artes - DEART

Dantas, Pamela Dutra.


Bálsamo : memória e imagem na construção performática / Pamela
Dutra Dantas. - 2018.
62 f.: il.

Monografia (licenciatura) - Universidade Federal do Rio


Grande do Norte. Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
Licenciatura em Teatro, Natal, 2018.
Orientador: Prof.ª Dr.ª Camila Maria Grazielle Freitas.

1. Memória. 2. Imagem. 3. Performance. 4. Feminino. 5.


Persona. I. Freitas, Camila Maria Grazielle. II. Título.

RN/UF/BS-DEART CDU 792

Elaborado por Pamela Dutra Dantas - CRB-X


4

PAMELA DUTRA DANTAS

BÁLSAMO: MEMÓRIA IMAGEM NA CONSTRUÇÃO PERFORMÁTICA

Monografia apresentada ao Curso de Graduação em Teatro/Licenciatura como parte das


exigências para a obtenção do título de licenciado em Teatro pela Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN).

BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Camila Maria Grazielle Freitas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)

_______________________________________________
Prof.º Dr.º Alex Beigui de Paiva Cavalcante
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Nara Neide Ciotti
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
5

À minha mãe, Waneide. Às minhas irmãs, Wanessa, Marcely,


Paloma e Acácia. Às minhas sobrinhas, Odara e Aurora. À
minha filha Maria Bella e a todas as mulheres que fizeram
parte desta trajetória...
6

AGRADECIMENTOS

Agradeço à orientadora deste trabalho, professora Camila Freitas, que com


paciência e simplicidade conseguiu me guiar de forma sábia até a concretização desta
pesquisa. Pela generosidade em que apontou meus erros, me fazendo querer prosseguir.
Obrigada! Você surgiu de repente já deixando sua leveza ao me ensinar sobre os
melhores caminhos a se percorrer, me mostrando que existe sim a possibilidade de dar
certo.

Ao professor Alex Beigui, que foi o primeiro orientador dessa jornada.


Agradeço, pois, apesar de não poder acompanhar o processo de perto, você me ensinou
bastante sobre a arte e sobre a vida desde o primeiro momento em sala de aula. E
despertou em mim, a virtude de sempre querer ser e fazer o melhor que posso.

À professora Naira Ciotti, por sempre me inspirar como mulher e artista,


mostrando-me, através da performance, que podemos enfrentar nossos próprios anseios.
Por aceitar fazer parte deste percurso, mesmo que indiretamente. Por estar disponível a
me ajudar em todas as horas que a procuro.

Agradeço a todas as mulheres que fazem parte da minha família.

À minha mãe, Waneide, por nunca me deixar desistir, por ser meu porto seguro,
por ter sido a mãe de minha filha no período em que eu mais precisava, por me fazer
acreditar que conseguiria e por ter me dado as melhores irmãs do mundo.

Às minhas irmãs, por serem sempre as melhores companheiras, as quais eu


posso contar seja qual for o momento. Deposito nelas a culpa dos dramas a seguir.

À minha irmã Wanessa, por ter sido minha mãe nos anos em que mainha
precisava nos deixar para trabalhar; eu reconheço cada esforço seu. Por me acolher em
seu mundo encantado que é o Monte do Sol, juntamente com seu companheiro Bico.
Pelas conversas, pelos conselhos e pela referência que és para mim.

À minha irmã Marcely, por me mostrar sempre o lado bom das coisas e que,
apesar de tudo, foi você que me ensinou sobre a aceitação, me fazendo sentir felicidade
7

por ser do jeitinho que eu sou. Por me mostrar a possibilidade de olhar o mundo com
sensibilidade e humanidade. Eu te amo muito.

À minha querida irmã Paloma, que é meu espelho, meu ombro amigo, meu
aconchego, minha força pra continuar. Cuidou e olhou para minha filha com os meus
olhos de mãe, me mostrando a força da amizade em cada lágrima que escorria por sua
bochecha, que inclusive é mais fofinha que a minha. Deu-me a mão como uma criança
abraça a outra.

À minha irmã caçula Acácia, que apesar de ter sido a última a chegar em casa,
me mostra a cada dia o poder da justiça e da coerência, da calma e da pureza, da
generosidade e do carinho. E, ainda mima minha filha como ninguém. Não perde nem
pra mainha.

Às minhas sobrinhas Odara e Aurora, por alegrarem meus dias e por me


lembrarem da importância em cultivar a espontaneidade e a ingenuidade. Por me
mostrarem que, apesar de vivermos num país em caos, estaremos sempre unidas para
juntas atravessarmos o sistema e mudarmos o mundo.

À minha filha Maria Bella, que compartilha comigo de sua criatividade e me


convida a entrar num universo que é só seu. Por ter paciência diante das ausências
necessárias para o fechamento desse ciclo, que esteve totalmente voltado para as
experiências proporcionadas pela sua chegada. Obrigada filha.

Ao meu companheiro Adilis, por cuidar, junto comigo, tão bem de minha filha e
com muita sabedoria, principalmente nos momentos turbulentos desta jornada. Por ter
me mostrado sua sensibilidade e que, apesar disso, diariamente, tenta amolecer suas
verdades endurecidas pela sociedade. Por caminhar junto a mim nessa eterna
desconstrução da vida. Por me apoiar, por me ajudar nas indecisões geminianas, por me
levantar quando o autoboicote da preguiça reina sobre meu corpo. Obrigada, eu te amo.

Agradeço aos amigos que conquistei ao longo do curso. Em especial Bianca,


Bruno, Éric, Guga, Juciê e Wisla por me fazerem acreditar em mim e por estarem ao
meu lado, principalmente nos aspectos mais difíceis do curso, dando uma palavra de
carinho ou nas arengas que sempre são superadas. Gratidão.
8

Não sinto deslizar o tempo através de mim, sou eu quem


deslizo através dele e sinto-me passar com a consciência
nítida dos minutos que passam e dos que se vão seguir. Como
compreender a amargura desta amargura?

(Flor Bela Espanca)


9

RESUMO

Esta pesquisa tem como objetivo apresentar uma reflexão teórica e prática acerca do
meu percurso durante o curso de Licenciatura em Teatro (2014-2018) e da construção
das quatro figuras intituladas: Tuberosa, Malambo, Prenhe e Salito, desenvolvidas nas
disciplinas de Elementos de Treinamentos Pré-expressivos (2016.2), Estudos da
Performance (2016.2) e TCC I: Espetáculo (2017.1). O trabalho baseou-se nos aspectos
da memória voltados para a infância, em vista da elaboração de imagens mentais,
oníricas e imaginárias permeadas pela ideia do feminino em desconstrução, tendo como
resultado a produção do fragmento performático Bálsamo. O extrato narra, através das
ações da persona central Aurita, os fatos existentes em minhas experiências de forma
hibrida e ressignificativa, transformando a subjetividade do memorável em poética
pessoal.

Palavras-chaves: memória; imagem; performance; feminino; persona.


10

ABSTRACT

This research aims to present a theoretical reflection and practice about my journey
during the course of degree in theater (2014-2018) and the construction of four pictures
titled: Tuberosa, Malambo, Prenhe and Salito, developed in disciplines of
Preexpressive Training Elements (2016.2), Performance Studies (2016.2) and TCC I:
Show (2017.1). The work was based on aspects of memory for childhood, in view of the
development of mental images, dreamy and imaginary permeated by the idea of the
female in deconstruction, resulting in the production of the performance fragment called
Bálsamo. The extract tells, through the actions of the central persona Aurita, the facts
that exist in my experiences of hybrid form and remeaned, transforming the subjectivity
of the memorable in personal poetic.

Keywords: memory; image; performance; female; person.


11

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ............................................................................................................12

CAPÍTULO I: Trajetória In(disciplinar) ...................................................................16

1.1 Memória como campo de resistência ........................................................16

1.2 As faces de Aurita ........................................................................................23

1.3 Metáforas do Real .......................................................................................34

CAPÍTULO II: Bálsamo ..............................................................................................40

2.1 A espacialidade ............................................................................................40

2.2 As ações ........................................................................................................45

2.3 O feminino ...................................................................................................54

CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................58

REFERÊNCIAS ............................................................................................................60
12

INTRODUÇÃO

O presente trabalho pretende analisar minha trajetória durante o curso de


Licenciatura em Teatro (2014-2018), com vista na reflexão teórica e prática que
permeia o processo de construção poética, tendo como base as imagens da memória e
suas ressignificações. O processo de desenvolvimento parte das figuras Tuberosa e
Malambo, Prenhe e Salito, desenvolvidas nas disciplinas de Elementos de Treinamentos
Pré-expressivos (2016.2) ministrada pelo professor Robson Carlos Haderchpek, Estudos
da Performance (2016.2) e Salito TCC I: Espetáculo (2017.1), ambas ministradas pela
professora Naira Neide Ciotti. Assim, a construção da persona central Aurita, que
manifesta em si a hibridização das quatro figuras, se dá em virtude da ideia do feminino
em desconstrução, cujas investigações resultaram no fragmento performático Bálsamo.

Para tanto, o trabalho está dividido em dois capítulos, dentre os quais o primeiro
apresenta uma contextualização sobre a memória enquanto potência para a resistência
artística e o segundo tenta esmiuçar o extrato performático a partir da espacialidade e
das ações, além de analisar o aspecto feminino que diz respeito às manifestações das
imagens da memória e sua materialidade cênica.

O primeiro capítulo, intitulado Trajetória (in)disciplinar, apresenta, como já


sugere o título, a forma como me coloco (in)disciplina, ou seja, dentro de tais
componentes curriculares do curso, ao mesmo tempo que analiso a minha trajetória a
partir dos aspectos disciplinares. Neste sentido, o diálogo com a teoria teatral,
performática, bem como o uso dos pensamentos teóricos a seguir foram essenciais para
a construção deste capítulo.

Destaco o autor e filósofo, Erich Auerbach (1997) a partir do conceito de figura


que utilizo ao longo do trabalho. Georges Didi-Huberman (2011) me apresentou a
metáfora referente ao brilho dos vagalumes em contrapartida às grandes luzes do poder,
na qual me aproprio para desenvolver a relação da infância com a criação poética e
artística. Gaston Bachelard (2003) colaborou com suas investigações sobre a imagem da
casa na perspectiva espacial e imaginativa que abrange a presente pesquisa. Cássia
Lopes (1999) aponta uma análise sobre a repetição permeada pelo mito de Sísifo, onde
faço uma relação com a importância da ressignificação do gesto repetitivo para o
13

processo criativo. Hans Ulrich Gumbrecht (2010) contribuiu com o conceito de


presença que se relaciona com a ideia de corpo-vida de Jerzy Grotowski (2010). Renato
Cohen (2013) esclareceu-me sobre a performance e Alfred Jarry (2011) sobre a
patafísica.

Apresento, então, a origem da motivação em tratar sobre a memória, seus


desdobramentos e suas ressignificações visando às imagens da infância e da casa,
baseadas na sobrevivência da minha voz e do meu corpo em estado de criação. Reflito
sobre as questões que ocasionaram desvios no entendimento do conhecimento regular
obtido em sala de aula, com vista na reversão voltada para a necessidade da construção
poética, pautando o aspecto coletivo e individual que sugeriu o processo criativo.
Ressalto ainda, a busca pelo saber necessária para compreender a própria poética que
revigora no conceito de figura (AUERBACH, 1997), de modo a apontar caminhos para
o entendimento e o desenvolvimento da composição performática. Pretendo esclarecer
as questões relacionadas à escolha do título Bálsamo que nomeia o extrato cênico,
deixando explícito como este se aproxima com a ideia de caixa que me acompanhou por
um longo período da vida.

Apresento a origem da figura central (Aurita) do extrato performático e seu aspecto


narrativo, assim como sua relação com a minha realidade. Discuto sobre as disciplinas,
destacando os aspectos formativos pelos quais se manifestaram as demais metodologias,
o processo da construção das quatro figuras e ainda, como as mesmas compuseram a
identidade da persona central Aurita que contempla seus anseios e características de
forma híbrida e suplementar. Por conseguinte, faço uma análise sobre a configuração
que os tempos do passado e do presente sofreram, atravessando tanto o aspecto da
memória quanto a perspectiva de criação que se manifesta pela presença da ação.

As discussões pretendem dialogar com as metáforas do real que dizem respeito à


relação entre ficção e realidade, refletindo sobre como a memória se transforma em cena
e como esta fala sobre a realidade. Exponho a perspectiva da autobiografia, cuja
memória se insere como objeto de pesquisa, reconfigurada numa perspectiva de
transformação e de reinvenção. A narratividade me desloca para uma posição de
criadora/produtora, onde posso manipular as estratégias de recriação de minha própria
história. Ao fim, mostrarei como o ciclo de criação poética se desenvolveu nesta jornada
14

e como preencher o vazio, numa perspectiva da inventividade, que tende a nos puxar
para trás com intuito de nos fazer desacreditar no processo de criação artística.

No segundo capítulo, cujo título é Bálsamo, foco na reflexão sobre a prática


dramatúrgica a qual abrange a transformação da espacialidade e como esta interfere
inclusive no diálogo com os processos teórico da pesquisa. As ações e as questões
apresentadas partem do envolvimento com uma teoria e uma prática baseadas nos
aspectos do feminino.

Nesta perspectiva, as contribuições dos teóricos e autores se manifestaram como


guias para sistematização do pensamento. O aporte teórico contou com as colaborações
de Jean Chevalier et al. (2018) de acordo com o verbete do labirinto, de Virgínia
Kastrup (2015) com a contextualização sobre o método cartográfico proposto por
Deleuze e Guattari, de Christine Greiner (2006) analisando sobre o corpo que não se
dissocia do espaço, com os estudos de M. Darcy Uchôa (1959) sobre a
despersonalização e de Daniela Souza, Luiz Prado e Cesar Piccicini (2011) sobre o
contexto da depressão pós-parto. Aproprio-me ainda dos aspectos antropofágicos
apontado por Michel Riaudel (2011), da dualidade que envolve o sagrado e o profano de
Mircea Eliade (1992) e do contexto histórico sobre o feminino pautado por Simone de
Beauvoir (1967).

Apresento, assim, o discurso que diz respeito à construção e à transformação da


espacialidade, com intuito de melhor retratar a ambiência das imagens mentais em vista
da sua materialidade. Em um primeiro momento a disposição do espaço se manifestou
num cubo com 8m³ de área, feito com cano de PVC pintado de tinta preta; em seguida,
por meio da necessidade de me dispor de uma maior liberdade corporal, o espaço se
reconfigura numa espécie de labirinto demarcado no chão com fita isolante também de
cor preta. Por conseguinte, o labirinto se coloca como cartografia que rege inclusive as
características voltadas para a forma de aprendizagem que se dá por várias vias do
entendimento, se caracterizando pelo aspecto metamórfico e de retorno. Destaco a
intenção de fazer uma associação do corpo como a continuidade do espaço através das
estratégias que envolvem o figurino e a sonoplastia, em virtude da materialidade das
imagens mentais.
15

O que permeia o trabalho também são as questões referentes à escolha de se


trabalhar com a performance, tendo em vista a variedade de metodologias e de estéticas
oferecidas durante o curso e as simbologias voltadas para as ações através da proposta
de roteirização, na qual apresento as significações dos gestos desenvolvidos. Assim,
também será evidenciada a relação entre espaço, corpo e objeto, visando seus
desdobramentos e sua dualidade.

Destaco, nesta perspectiva, a presença do feminino na composição do trabalho. A


narrativa onírica surge para mostrar como, diante das imagens produzidas, o feminino
permanece na infância e na memória que emerge em Bálsamo. A dualidade, presente
nas ações e nos objetos de Aurita, transparece a relação com o sagrado e com o profano
me propondo a desconstrução dos aspectos históricos que impõe a mulher um lugar
predefinido através dos padrões. Aurita subverte os fatos tidos como “femininos” pela
sociedade machista, rompendo com o mito do “eterno feminino” (Beauvoir, 1967) e
utilizando-se dos aspectos inerentes à mulher, como a menstruação, o parto e etc., para a
ressignificação da imagem feminina, enaltecida pelo olhar subversivo da transformação.
16

CAPÍTULO I

TRAJETÓRIA (IN)DISCIPLINAR

1.1 Memória como campo de resistência

A pesquisa aqui realizada parte de campos distintos de criação artística. A


princípio, ela corresponde à consciência diante das minhas memórias de infância, bem
como das imagens mentais que se apresentam nos meus sonhos. Desta forma, destaco os
exercícios de criação desenvolvidos em disciplinas do curso de Licenciatura em Teatro
(2014-2018), as quais ajudaram a compor as quatro figuras que permearam meu
processo criativo. Tais figuras, apresentadas no presente trabalho, auxiliaram na
composição do extrato cênico Bálsamo1, objeto do segundo capítulo. Sendo assim, ao
longo do trabalho procuro fazer uma reflexão sobre meu percurso dentro do curso a
partir de disciplinas específicas, bem como das experiências pessoais que me
atravessaram e fizeram com que eu buscasse compreender tais vivências como
propulsora do fazer artístico.
Para as figuras surgidas durante o processo de criação nas disciplinas, atribuí os
seguintes nomes: Tuberosa, Malambo, Prenhe e Salito. As mesmas fundem-se na figura
central de Aurita que carrega as quatro faces em si e conta suas histórias de forma
híbrida. As duas primeiras foram desenvolvidas na disciplina Elementos de
Treinamentos Pré-expressivos (2016.2), cuja proposta era dialogar com as poéticas
corporais inerentes aos estudos da Antropologia Teatral, bem como o uso de imagens
fotográficas e pinturas. A terceira figura nasceu na disciplina Estudos da Performance
(2016.2), sendo objeto de trabalho também na matéria Composição Coreográfica
(2017.1), ofertada pelo curso de dança. A quarta e última surgiu na matéria de TCC I:
Espetáculo (2017.1), na qual, além da performance, estudávamos contextos
relacionados à teoria da patafísica proposta pelo dramaturgo francês Alfred Jarry. As
figuras por hora apresentadas norteiam este trabalho, sendo melhores retratadas no
tópico seguinte.

1
Apresentado na mostra de composições coreográficas no início de 2017, no evento Tudo à Mostra,
organizado pelos alunos e pela coordenação do curso de teatro, no final do ano de 2017 e no Congresso
Reperformar o Afeto no início de 2018.
17

No presente tópico, o que permeia o discurso, além da investigação que introduz o


processo, é a forma como me coloco (in)disciplina, dentro de tais componentes
curriculares do curso, questionando meu papel como artista-criadora e as propostas
disciplinares. A trajetória manifestou-se diante da necessidade de composição
relacionada às memórias, às imagens da infância e da casa, baseada na sobrevivência da
minha voz e do meu corpo em estado de criação, cujas necessidades ocasionaram
desvios no entendimento do conhecimento regular. Portanto, a expectativa do saber a
qual abrangeria somente os conteúdos voltados para tais disciplinas, se reverteu em
disposição e inserção das minhas lembranças com vista na necessidade de construção
poética. A criação artística ultrapassou as propostas no âmbito acadêmico em função da
necessidade de uma investigação que abrangeria a relação tanto com a coletividade,
advinda da turma, quanto com a individualiadade originária das minhas vivências.

Durante os estudos, identifico na composição um manifesto do eu que se firma


através da relação construída pela interferência e pela contribuição do externo, apesar
do caráter individual do fragmento performático. O processo pressupõe um aspecto de
pluralidade e de alteridade que permeia a “ideia de esfume” relacionada aos olhares
evocados pelos colegas enquanto expectadores e em exercício, assim como a relação
inversa que desvenda e produz outros olhares. Na perspectiva de criação voltada para as
intervenções e proposições dos colegas em sala de aula, vislumbro a construção da
aprendizagem, cujo foco se manifesta de forma horizontal. Ou seja, o processo de
criação o qual toma sua consciência durante as disciplinas, desvia-se de qualquer
relação hierárquica que compreende o formato de aula e manifesta-se considerando a
produção dos sujeitos presentes durante os exercícios.

No entanto, a busca pelo saber, necessária para compreender a própria poética,


revigora-se no conceito de figura utilizado durante o desenvolvimento da pesquisa, de
modo a apontar caminhos para o entendimento das composições cênicas. O significado
da palavra figura emergiu nas primeiras investigações, permeado pela consciência do
surgimento de imagens que reverberaram na construção e na costura dos fragmentos.
Segundo a obra Figura (1997) de Erich Auerbach, o conceito está remotamente ligado à
“forma plástica”, mas historicamente agregou definições como: imagem, cópia, forma
que retrata, forma que muda, visão de sonho e até mesmo a concepção de figura de
linguagem.
18

Durante seus estudos, o filósofo alemão descobre a alusão relacionada à


interpretação figural da palavra, revelada e expandida pela Igreja no Período Medieval.
Portanto, essa interpretação indica a prefiguração concreta de algo que acontecerá em
um momento futuro.

A interpretação figural estabelece uma conexão entre dois


acontecimentos ou duas pessoas, em que o primeiro significa não
apenas a si mesmo, mas também ao segundo. Enquanto o segundo
abrange ou preenche o primeiro. Os dois polos da figura estão
separados no tempo, mas ambos, sendo acontecimentos ou figuras
reais, estão dentro do tempo, dentro da corrente da vida histórica.
(AUERBACH, 1997, p. 47)

Diante desse fato, considerando as figuras que surgia repetitivamente através das
minhas memórias, pude sondar esta reflexão que explica a interpretação no contexto
deste trabalho. As matrizes desenvolvidas são femininas, de aspectos velhos ou
relacionadas com o sofrimento, com a dor e com a loucura. Por trás de certa
obscuridade, observei que os reflexos contidos nessas aparições expunham revelações
que falavam muito sobre as figuras femininas existentes na minha família. Assim,
tracei um paralelo entre as fantasias da memória que prefiguram as vivências maternais
da minha realidade. O encontro entre as fantasias e as experiências da realidade, bem
como figuras reais e fictícias, compuseram o fragmento Bálsamo.

O título surgiu da condição da imagem do corpo morto, porém zelado e


embalsamado, que tanto permeou minhas mais longínquas confusões sobre vida e
morte. A metáfora refere-se às memórias restauradas e preservadas em virtude da
dramaturgia pessoal e poética apresentada neste trabalho. A imagem também indica o
corpo como caixa e/ou o corpo como moradia. Ainda que o mesmo possa esconder algo
ou pareça estar morto externamente, ele pulsa por dentro como o brilho dos vaga-lumes
que desaparecem na grande claridade e resurge diante da poesia por trás de sua
ingenuidade.

Aqui, reverberam-me os pequenos lampejos que Georges Didi-Huberman evoca


em seu livro Sobrevivência dos Vaga-lumes (2011). A obra retrata momentos históricos
e políticos através de observações de filósofos, poetas e escritores relacionadas à figura
do vaga-lume. A proposta do autor enaltece a importância da imagem do povo como
19

aparição que persiste e sobrevive diante da feroz luz do poder. As grandes luzes tentam
apagar o brilho do pensamento supostamente ínfero das luzes pequenas. E é justamente
nesse brilho efêmero que incide a ideia da resistência poética retratada aqui.

[...] Trata-se nada mais nada menos, efetivamente, de repensar


nosso próprio “princípio esperança” através do modo como
Outrora encontra o Agora para formar um clarão, um brilho, uma
constelação onde se libera alguma forma para nosso próprio futuro.
Ainda que beirando o chão, ainda que emitindo uma luz bem fraca,
ainda que se deslocando lentamente, não desenham os vaga-lumes
uma constelação? Afirmar isto a partir do minúsculo exemplo dos
vaga-lumes é afirmar que em nosso modo de imaginar faz
fundamentalmente uma condição para nosso modo de fazer
política. A imaginação é política, eis o que precisa ser levado em
consideração. [...] (DIDI-HUBERMAN, 2011, p. 60)

A partir da ideia dos vaga-lumes trazida pelo autor, me aproprio dos pequenos
lampejos de contraposição que fazem jus às imagens evocadas pela criança ou pelo
poeta, que geralmente apagam-se diante da imensa luz dos convictos. Entretanto, a
mesma luz que se apaga, reacende-se através de sua perseverança e intuição ingênua. O
brilho passageiro em movimentos de compressão e de expansão se condensa durante a
infância tornando-se política do ser. Estes passos contemplaram o processo de criação
de Bálsamo, que resiste a um diálogo com as memórias do passado, pautado na sua
ressignificação através da imaginação, e retornam-me impulsionando o meu processo de
criação artística.

Antes mesmo de ter contato com estudos sobre o teatro, já questionava a relação
entre o imaginário do ser e sua existência no universo. E nisto, posso incluir fortemente
fases da infância, nas quais eu e minhas irmãs, longe da proteção de nossa mãe que
precisava nos deixar pra trabalhar, inventávamos nosso mundo diante de toda aquela
liberdade.

Em nossa antiga casa não havia quartos ou se quer cantos da casa que pudéssemos
nos resguardar. Nas minhas mais distantes lembranças, vivíamos num único ambiente
até meados dos meus 10 anos de idade. Nos momentos de angústia, me trancava em
meu mundo e, coberta por um lençol, protegia-me dos sentimentos ruins. Nas ocasiões
de solidão, repugnava a mim e aos meus pensamentos, reforçando o desejo e a
20

necessidade de habitar e me esconder no meu próprio corpo. Eu me fechava, me fazia


caixa lacrada como encomenda secreta que somente uma pessoa pode desvendar. A
imagem da caixa me fez entender suas paredes como minha própria pele. O menor
vestígio de movimento resultaria em indícios da respiração, somente.

Houve momentos, até alcançar algum entendimento sobre a experiência poética, nos
quais meu corpo embalsamado de memórias me possibilitava a consciência de acessar
visões e aparições de imagens mentais. As imagens que me surgiam em sonhos da
infância deslocavam-me para outro sentido: o imaginário. Estagnada diante da
necessidade de fuga, encontrava nesses sonhos um estado confortável. Eu não sabia
exatamente o que isso tudo significava, quase sempre eu findava por escrever sobre as
imagens num caderno e até então isso já me satisfazia.

Em um dos sonhos, uma voz intuitiva me ordenara que eu corresse até chegar ao pé
de uma ladeira longa e escura, que alcançava o interior de uma casinha pequenina, com
suas paredes feitas de escuridão. Chegando a casa, me dei conta de que o dia era escuro
e a noite clara. Então me indaguei: de que ou de quem eu corro? Para onde? Por quê?
Corria do rosto “feminino” do céu, um rosto forte com cara de chuva e vento molhado,
como se estivesse segurando uma mangueira furada que rega o espaço. Eu sempre
conseguia chegar até a casa para proteger meu corpo e meus olhos em seu interior. Isto
me retornara constantemente ao longo da minha infância.

Ao ingressar na faculdade, me deparei com os escritos de Gaston Bachelard (2003)


que manifesta a casa como guardiã dos devaneios do sonhador, onde criamos o nosso
primeiro universo antes mesmo de vivenciar experiências no mundo externo. Quando o
ser verdadeiramente encontra o menor abrigo, ele se enraíza no cosmo. Essa
primitividade pertence somente aqueles que aceitam sonhar. A casa abriga o imaginário
do sujeito da infância, possibilitando ao adulto um mergulho no passado, por meio das
lembranças desdobradas no tempo presente. Os momentos de imaginação regados pela
criança sobrevivem através da proteção que oferece este espaço, não só diante de seu
aspecto físico, mas também de sua virtualidade onírica e fantasiosa. Um domínio
imemorial, para além da mais distante memória, se abre para o sonhador do lar. Nossas
diversas moradas guardam o tesouro dos dias antigos, memória e imaginação
comungam em aprofundamento mútuo, constituindo-se de lembrança e de imagem.
21

As imagens reexistem no ciclo que compreende a criação poética ou pelo contrário,


o ciclo se compõe pelas imagens que sempre acompanharam os passos dessa repetição
significativa através de sua inventividade. Aqui ecoa a imensidão íntima que Bachelard
discute em sua obra A Poética do Espaço (1975). No instante do vazio2, abrem-se as
portas dos devaneios que adentra a imensidão, onde certamente as imagens latejam a
vigor de produção sempre retornando à solidão. No universo do sonho, o sonhador já
não vislumbra a realidade tal como ela é, e isso se reverte por meio da existência da
imaginação.

No vazio, encontra-se o ser puro, de imaginação pura, que provoca, durante o


devaneio, a imensidão das imagens purificadas e ativas por excelência desde seu
instante inicial, que estão livres da necessidade de analogias ou referências, pois são
inteiramente constituídas desde a primeira contemplação. Segundo o autor, a imensidão
é o movimento do ser imóvel. Externamente nada acontece, mas internamente olhamos
com grandeza o universo. Deslocamo-nos por espaços incomparáveis que esse estado de
intimidade nos propicia. Foram por esses deslocamentos que transitamos Aurita e eu.
Ela se tornou minha aliada no processo de embalsamamento da memória, cujo corpo
elucidara luz de resistência. Desde a infância até a construção do imaginário do presente
trabalho, os espaços e tempos se fundem e já não são como o óleo e a água, rompendo
limites e fazendo movimentar-se em homogêneo espaço que ultrapassa as demandas do
tempo e me remonta no fazer que transita entre os tempos do passado, do presente e do
futuro.

De dentro da caixa, vi-me perante diversas imagens e figuras que me surgiam


repetidamente. Diante da estranheza de suas faces, o medo me tomava conta, e de
repente eu me via frente a mim mesma. Cássia Lopes em Um Olhar na Neblina (1999)
explica que Sigmund Freud, aborda a questão da inquietude do estranho3 como algo que
assusta e provoca medo, como desconforto, porém, isso remete ao conhecido, ao
familiar, na qual seria uma categoria do próprio inconsciente. A autora ainda aponta em
Freud uma premissa que define o estranho em relação à realidade, através de algum

2
Neste sentido, Segundo Peter Brook, “Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço
vazio. O espaço vazio permite que surja um fenômeno novo, porque tudo que diz respeito ao conteúdo,
significado, expressão, linguagem e música, só pode existir se a expressão for nova e original. Mas
nenhuma experiência nova e original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para
recebê-la.” (BROOK, 2010, p. 4).
3
Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (FREUD, 1996).
22

elemento familiar reprimido. Quando esse elemento explode, ele desvela-se como uma
realidade estranha. Portanto, a condição de renascimento do impulso primitivo reflete
no sujeito o estranho, já que o mesmo viveu repressão em sua origem. Minhas imagens
espelhavam anseios pequeninos e inocentes que latejavam diante do vasto mundo
prestes a me engolir. E como foi insuportável conseguir deixá-los sobreviver até o
momento em que alcançassem sua menor virtude no presente.

A busca pela presentificação da memória permeou as investigações


dramatúrgicas e corpóreas das quatro figuras desenvolvidas no curso, que mais tarde
fundiram-se em Aurita, figura central do fragmento Bálsamo. Esta, que de tão soterrada
na obscuridade do inconsciente, parecia até chegar aos portões do imemorável. No
entanto, sobreviveu ao engessamento social que tende a nos fazer vencer pelo cansaço.
As imagens vislumbradas no passado agora ressoam corporificadas como símbolo de
resistência poética e política que me mantém ativa no ato da criação.

Em sua obra Produção de Presença (2010), Hans Ulrich Gumbrecht elucida que
a presença está ligada à sensação de ser a corporificação de algo. A intensidade da
presença pressupõe uma oposição à procura por sentidos (explicações) que instaura a
distância e desvia o estado de presença à sua redução. A serenidade do corpo advém da
vontade de querer ser e de estar ali, fazendo possível a ação da experiência diante da
presença. No entanto, há uma alternância entre intensidade e apaziguamento perfeito,
são nesses instantes que conseguimos viver momentos de presença; quando os
pensamentos que nos trazem as lembranças relacionadas aos nossos sentimentos
individuais, sejam eles alegrias ou tristezas, já não interferem ou distanciam nossa
relação com os aspectos externos. Desse modo, isolamos esses pensamentos particulares
no corpo e a distância se transforma em estado de presença, cuja experiência alcança a
virtude de estar-no-mundo.

Diante disto, Lopes traz ainda, nos seus discursos sobre o aspecto da repetição
que atravessa o mito de Sísifo, a potência que está por trás deste ato e as questões que
resistiram ao meu processo de sobrevivência. Sísifo como reflexo do poeta, ao empurrar
o rochedo até o alto da montanha e repetir incansavelmente a ação, nos revela um tom
irônico que transforma a inutilidade do gesto, a princípio tratada como infernal, numa
poética do fazer como expressão de vontade e de desejo. Assim, a ação que se apresenta
como um fardo a ser cumprido por Sísifo torna-se ensejo de libertação.
23

A tessitura da memória provém tanto da lembrança quanto, não menos importante,


do esquecimento. O artista adquire diante disso a persuasão do disfarce e se apropria do
fingimento que possibilita motivos e caminhos impulsionados pela invenção,
permitindo a continuidade da repetição por meio desse filtro. Com isso, Lopes explica
que Deleuze revê o papel da pulsão da morte:

O eu centralizado do autor morre no disfarce, na re-presentação. O ato


de repetir exige a presença, assim, da morte. No disfarce, no poder da
máscara, uma identidade fixa e centralizadora, construída pela
permanência do hábito, morre e, com isso, as vozes de outros se
contorcem nas páginas, permitindo a repetição na diferença. (LOPES,
1999, p. 62).

A repetição se constrói na diferença, desencadeando sua multiplicidade no que diz


respeito às máscaras. Desta forma, a presença da morte está para a ausência da matriz
originária que se suplementa do novo. Isto é, a morte abre espaço para surgir novos
“eus”, que se embriagam nesses movimentos do retorno e da diferença. Portanto, a
morte e o disfarce referem-se aos destinos que estão também ligados aos pontos de
partidas, cujas máscaras transitam em regresso e progresso no labirinto da criação diante
da sua demasiada pluralidade.
Se, na literatura, Sísifo e o rochedo representam, respectivamente, o poeta e a
palavra, nesse contexto eles despertam o eu artista e a memória. O gesto da repetição
mora na solidão deste mergulho e tece-se em composição e decomposição. Assim,
como seus passos, os meus também reexistiram pela crença. A arte transgrediu-os no
limiar da linha tênue entre crença e descrença, morte e vida. As palavras escritas no
papel são como minhas pegadas, apagam-se por natureza e através da necessidade de
tomar outros rumos e chegar a destinos filtrados pelo ciclo, remarcam o chão, nos quais
traçam o percurso manifestado pela experiência vivida.

1.2 As faces de Aurita

A ressignificação da memória ressoou para mim como voz de súplica por


sobrevivência poética diante do engessamento social que tenta impedir o acontecimento
da transformação e da resistência individual. Assim, proponho, em virtude do fragmento
24

performático Bálsamo, a presentificação da ausência como eco de potência criativa que


permeia o resgate das imagens advindas dos devaneios e sonhos da infância.
As imagens dizem respeito às experiências sinestésicas voltadas para as figuras
centrais do fragmento performático Bálsamo: Tuberosa, Malambo, Prenhe e Salito,
repercutidas em uma única face: a de Aurita, que contempla os anseios e as
características das quatro forças de forma híbrida e suplementar. Contudo, antes de
começar a exprimir o diálogo entre as figuras, considero importante falar sobre quem foi
Aurita4 fora da ficção. Essa mulher ecoava em mim antes mesmo de seu nome pairar
sob as ideias de criação da poética, pois existia em minha memória a personagem real.
Aurita fora uma babá que trabalhara em minha antiga casa, nos tempos de infância.
Recordo-me bem de sua força e de seus cabelos que eram tão pálidos que quase chegava
a ser da cor de sua alma. Tornava-se nossa mãe nos tempos que a saudade ainda não era
entendida. Eu e minhas irmãs gostávamos de imaginar histórias sobre ela e atrelada a
isso estavam as que ela nos contava.
Ainda ouço, como se fosse hoje, o rangido do balanço de sua rede surrada e cheirosa
que nem café feito na tardezinha de domingo, quase sempre depressivo. Aurita
carregava baldes de lágrimas descansadas na desilusão de que crer nas pessoas enruga-
lhe a garganta. Vi-a desamparada na suspensão da solidão e diante de sua sufocante
respiração; eu a sentia. Não entendia o motivo de tanta melancolia, mas acho que isso
de alguma forma impregnou em mim, causando-me um olhar diferente sobre as coisas.
Na época, ninguém enxergava minhas mãos e suas preces, somente avistavam uma
bolha no dedão da mão esquerda que tem formato de placenta e se escondia
entrelaçando pelos outros dedos. Com Aurita acontecia diferente, além de observar a
placenta estacionada, ela me falava sobre a textura da pele que a cobria me fazendo
enxergar a beleza da aceitação. Às vezes, eu a confundia com minha mãe, mas nos dias
ruins seus olhos me faziam ter medo e estranhamento. Aquele rosto me era familiar,
porém, sua figura acompanhou e contribuiu para todo um desencadeamento do meu
olhar sensível.
Assim, passei a acreditar nessas construções regadas pelos impulsos que os
momentos de liberdade e de imaginação podem nos proporcionar. Aurita agora se funde

4
Utilizarei grafias distintas para diferenciar as “Auritas”, as quais representam a personagem fictícia e a
personagem real. Sendo em itálico para referir-me à figura de Bálsamo e sem destaque a Aurita que
existiu na vida real.
25

nessas quatro faces e está presente como inspiração primordial para condensação das
figuras que reexistiram no meu imaginário.
Na disciplina de Elementos de Treinamentos Pré-expressivos, ministrada pelo
professor Robson Haderspeck, no segundo período do ano de 2016, tive a oportunidade
de iniciar um trabalho voltado para imagens concretas. Nessa ocasião, pude perceber
que minhas escolhas dialogavam, intrinsecamente, com momentos da infância nos quais
eu me encerrava em forma de caixa. A princípio, foi solicitado pelo professor que
trouxéssemos duas imagens que nos representassem ou nos emocionassem. Assim,
ficou estabelecido que partiríamos das imagens de uma árvore e de uma pintura.
A árvore escolhida por mim foi o Umbuzeiro, de nome científico Spondia Tuberosa.

Imagem 15: Planta Spondia Tuberosa (Umbuzeiro).


Foto: Rosa Melo.

Considerada a árvore sagrada do sertão, por Euclides da Cunha, ela é bastante


conhecida no interior do Nordeste, uma vez que assume a função de reservar água em
suas raízes para se prevenir de secas futuras. Desta forma, desenvolvi a figura Tuberosa

5
Umbuzeiro (Spondias Tuberosa) de Rosa Melo. Disponível em <https://olhares.sapo.pt/umbuzeiro-
spondias-tuberosa-foto8016827.html> Acesso em: 23 de novembro de 2018.
26

baseada na sede, remetendo às características relacionadas à planta. Aqui surge a


imagem do labirinto na forma como a raiz, o caule e os galhos do Umbuzeiro se
organizam espacialmente bem como nos movimentos que o corpo da figura Tuberosa
realiza.
Por ser um verme, ela alimenta-se de terra e seus movimentos estão completamente
presos nas suas raízes, conseguindo livrar-se somente ao pingo do meio dia. Rasteja-se
pelo chão fervente em busca de outros alimentos, como o sangue. Pela sua vagina saem
animais pequenos e podres que furam cabeças alheias e sua menstruação é feita de
cascas de feridas que ao serem expelidas para o mundo, contaminam a natureza.
A segunda figura desenvolvida na disciplina partiu da pintura que uma senhora
penteia os fios de cabelo da criança que parece não gostar dos movimentos daquelas
mãos.
27

Imagem 2: Pintura A Penteação da Neta6.

Sob o título Malambo, a figura se comunica e sente o universo através do contato


com os fios existentes e dispersos pelo espaço. Após conseguir se comunicar, a velha
reúne os cabelos que serão queimados na chama de uma vela. Na ação desenvolvida,
vivencio junto a ela uma peste danada de piolhos no momento da partitura corporal,
cujos gestos de contaminação epidêmica crescem a partir da relação com o outro. A
relação com o labirinto se manifesta também nesta figura, na precisão do emaranhado
que os cabelos acabam por provocar. Durante as ações, utilizo a partir de minhas
lembranças, a música que sempre tocava na difusora da igreja de minha cidade natal,
que fala sobre um barco esquecido7, me trazendo a nostalgia das tardes que se dissipam
pelo céu.
Nesse período do curso, estive diante das imagens que se revelaram como o
estranho que tende a retornar. Dispus-me, então, a encontrar esse estado investigando as
possibilidades de contato com o espaço e o grupo de colegas de curso. Diante disto,
encontrei nos escritos de Jerzy Grotowski (2010) um texto sobre o corpo-vida que fala
da importância do reconhecimento do corpo como base que carrega todas nossas
inscrições de experiências, desde a infância até o momento presente. O meu primeiro
passo foi entender o momento, respeitando os limites das proposições vindas do
encontro entre o eu, minha memória e as interações e intervenções de todo coletivo.
Segundo Grotowski, o ato do corpo-vida implica nessa comunhão com os seres, que é
virtude primordial de nossa natureza. O impulso sincero nasce da consciência de estar
presente ocasionando a disposição para os compartilhamentos entre o coletivo que nos
impulsiona e desperta vida. No mesmo instante, percebi que eu já não interpretava o
meu resguarde no interior da caixa como proteção e acolhimento, era necessário
desnudar-me dela para poder presentificar-me na liberdade de estar em exercícios de
reinvenção de mim mesma e de minha memória.
A partir de Tuberosa, meu corpo enfraquecia-se em sua forma física ressecada,
áspera e com seu emaranhado de galhos que sufocaria até a si própria. Em Malambo, o
corpo trapo empestava a natureza com sua maldade. Porém, eu estava disposta a esvair

6
“The Combing of Grand-daughter” do pintor grego Georgios Iakividis, 1886. Disponível em:
<http://wiki.cultured.com/people/Georgios_Jakob> Acesso em 02 de outubro de 2018.
7
“Há um barco esquecido na praia” de Padre Zezinho.
28

da caixa que me trancafiava dentro do impossível e da negação. Ao abri-la avistei uma


floresta. Já não havia distinção entre Tuberosa e Malambo, tornaram-se uma só,
conseguindo vislumbrar seu lugar no espaço fora da caixa.

Imagem 3: Atriz nas figuras Tuberosa e Malambo, simultaneamente, na sala A do Deart/UFRN.

O processo que norteou o desenvolvimento das ações na disciplina partiu de


exercícios de treinamento energético proposto pelo LUME – Núcleo Interdisciplinar de
Pesquisas Teatrais da UNICAMP, que visa, através do esgotamento físico, a descoberta
de novas energias. Durante as aulas iniciais, antes de investigarmos as imagens
individuais e coletivas, seguíamos os passos do treinamento de forma ritualística, pelos
quais, a cada encontro que se passava, era possível perceber a abertura e a naturalidade
com que as histórias aconteciam. O treinamento era conduzido na seguinte sequência:
29

 Aquecimento individual: alongamento corporal, aquecimento vocal,


concentração e presença para o trabalho que estar por vir;
 Corpos deitados e dispostos pelo chão, percebendo os mínimos movimentos
que a respiração provoca, controlando o ritmo da mesma;
 Percepção das qualidades de pulsos e impulsos advindos dos movimentos da
respiração;
 Movimento que nascem do ato de espreguiçar-se, esticando e alongando o
corpo nas mais diversas possibilidades ainda em nível baixo;
 Inicia-se um deslocamento do nível baixo aos níveis médio e alto;
 Dinamização da energia: os movimentos intercalam-se entre os três níveis e
sua intensidade altera do lento para o rápido;
 Ocorre, a partir da exaustão, um esvaziamento das energias, abrindo canal
para uma nova energia;
 A construção da nova energia começa a se instalar;
 O coletivo inicia um processo de troca dessas energias, através da interação
dos movimentos;
 Nesse momento do treinamento, o professor nos conduz com alguns “stops”
e bruscamente os corpos paralisam e retornam aos seus movimentos.
 O treinamento continua com apontamentos de alguns elementos técnicos
propostos pelo professor como: o corpo como bola de borracha; o corpo
numa piscina de concreto; o corpo com alavancas; ativação do koshi;
sensação de asas nas costas; lançamentos; porcentagem dos movimentos;
feches de luz que saem do corpo, etc.
A investigação das energias para composição de novas ações corporais teve
duração de dois meses. Foram semanas de puro cansaço e exaustão através da repetição
do treinamento, mas considerei o trabalho gratificante e necessário, pois eu buscava o
alcance de novas formas para reinvenção da memória. Durante o processo, eu me sentia
confortável e, apesar das dificuldades, encontrei no gesto repetitivo a novidade.
Partimos então para o trabalho com as imagens. A princípio, após a pesquisa e
escolha das imagens, as construções das matrizes iniciaram-se da simples observação e
codificação das mesmas. Colocávamos no corpo suas posições e formas estáticas,
sempre como ponto de partida e, diante das indicações, os movimentos e os diálogos
30

iam surgindo. Com a construção corporal, vieram os trabalhos dos ressonadores para
encontrar as vozes das figuras. Minhas matrizes quase não falavam, mas foi na
repetição de seus próprios nomes que encontrei o impulso da vibração grave em suas
vozes. Elas são como o barro denso e pesado, rachando-se de sede, sem nem se quer
haver saliva em suas bocas. Mas são como o fogo também, inconstante e leve diante de
suas existências, disparando uma luta contra as cinzas que confundem com o que as
aprisionam.
A floresta estava posta, e as figuras também. Elas ativavam-se como se
brotassem das gotas de suor que escorriam pelos corpos até chegar ao chão. Algumas
me traziam mensagens das falecidas carnes de meus familiares que morreram afogados
no álcool, me traduzindo o cheiro das paredes do quarto pequeno, nos fundos da casa de
minha avó materna, que servia de túmulo todas as vezes que seus filhos morriam. Ah, e
como morriam. Constantemente. Incessantemente.
Aurita se concebe aqui em mulher árvore, vinda das raízes do profundo solo e
destinada a contaminar o espaço com seus frutos que de tanto comerem, ardiam os
dentes e quebravam-se as gengivas alheias. O umbu de casca plana, com as veias a
explodirem, guardava dentro de si toda força materna de várias gerações. Os cadeados
de minha caixa, ao menos, foram rompidos e a memória se refez na constante
metamorfose de presentificação. A caixa, através de sua ressignificação, já não
interrompe ou esfuma o processo de experiência, pois contem frestas de luzes que
surgem em decorrência do contato com o espaço e se colocam disponíveis para intervir
e interagir na memória.
Nesse percurso, ainda no segundo período do ano de 2016, em paralelo a
Tuberosa e Malambo, surgem rastros da Figura Prenhe.
31

Imagem 4: A atriz na figura Prenhe.


No Teatro Laboratório Jesiel Figueiredo, Deart/UFRN.
Foto: Produção da Mostra de Composições.

Nascida na disciplina de Estudos da Performance ministrada pela professora


Naira Ciotti, pude através da figura, reviver o momento das dores sofridas do meu parto.
Aqui, houve um aguçar na perspectiva voltada para a percepção do tempo/espaço. Eu
estava diante da condição de reviver uma realidade, desde sua inevitável ressignificação
e do tempo que havia se passado até o ato da reperformance. Houve ainda a
necessidade de me apropriar de um objeto como metáfora para a ação de expelir.
Busquei por um objeto que conseguisse expressar tempo/espaço, distintos e iguais
simultaneamente.
Na ocasião do parto original, existiu uma analogia à sensação de estar
vivenciando tudo aquilo em um hospício. A parição ocorreu em um dos leitos do
hospital NASF, situado na cidade de Carnaúba dos Dantas/RN, na data de 29 de
dezembro de 2012, onde nascera minha filha. O quarto contaminado da cor branca, sem
que houvesse nenhum sintoma de qualquer outra cor, inclusive no sanitário, nos lençóis
e nos rostos dos profissionais que não apareciam, fez emaranhar-me em surto.
Com esse ensejo, pude perceber e vislumbrar no objeto da biloca (bola de gude)
esta intensidade. O impulso ao ser expelido da vagina, seu barulho ao cair no chão, seus
desenhos e formas perante os movimentos no espaço, tudo se concentrava na medida do
32

tempo e do espaço que eu esperava provocar. A rigidez da estrutura do material do


objeto me levou a pensar e associar ao leite pedrado que jazia dentro de mim. As bilocas
aparecem para mim como mundos distintos e iguais em tempos diversos, se
complementando e misturando com as bilas do olhar do espectador que observa e
interpreta as ações desempenhadas.
O intervalo de tempo e a reconfiguração dos espaços, entre o ato original e o ato
da reperformance, me fez refletir sobre a ausência diante do presente. Aqui, a ausência
da dor não significaria sinônimo de conforto. O que se moveu em um corpo passado se
traduz na reconfiguração desse corpo no presente, tornando-se ausência presentificada.
Renato Cohen, em sua obra Performance como Linguagem (2013), define a
performance, como uma função da relação entre espaço/tempo. Nas perspectivas de
conceito e de prática, a performance advém das artes visuais e não das artes cênicas. No
entanto, ela propõe um limite entre as duas artes através do seu hibridismo, levando em
conta as características da primeira enquanto origem e da segunda enquanto finalidade.
Desta forma, ela passa pela chamada body art, onde o artista se coloca no espaço como
sujeito de sua própria obra de arte, enquanto escultura viva, transformando-se em
atuante que age como performer (artista cênico). Levando em consideração esta
definição, o interessante aqui é a questão de como a performance dispara certa
transgressão diante da realidade, alterando a perspectiva entre espaço e tempo que
possibilita experiências podendo compreender o passado, o presente e até mesmo o
futuro, em virtude da criação e poética do sujeito como fio condutor.

A performance é basicamente uma linguagem de experimentação,


sem compromisso com a mídia, nem com uma expectativa de
público, nem com uma ideologia engajada. Ideologicamente
falando, existe uma identificação com o anarquismo que resgata a
liberdade da criação, com a força motriz da arte.
A arte como formula Freud, caminha com base no princípio do
prazer e não no princípio de realidade. O artista lida com a
transgressão, desobstruindo os impedimentos e as interdições que a
realidade coloca (a obra de arte vai se caracterizar por ser uma
outra criação: se eu vejo uma paisagem que objetivamente é verde,
sob uma ótica vermelha, nada me impede de pintá-la assim).
(COHEN, 2013, p.45)

Aqui, a arte e a vida se misturam. A invenção e a memória compõem a criação.


As ações de Prenhe já não significariam representações de um ato passado, mas
insistentemente diz respeito à ruptura do apego que ocasiona o retrocesso na potência da
33

experiência. Portanto, percebe-se diante dessas afirmações sobre a performance, seu


caráter radicalizador que concerne na satisfação do prazer, prevalecendo e ultrapassando
as exigências e as imposições engessadas perante à realidade.
No primeiro período do ano de 2017, na disciplina de Composição coreográfica,
ofertada pelo curso de dança e ministrada pela professora Maria de Lurdes Barros da
Paixão, tive a oportunidade de pensar as ações de Prenhe a partir da composição de um
extrato coreográfico. Os impulsos dos movimentos partiam do ato da dor e me
possibilitaram o controle de uma fluidez e o rompimento total do cordão umbilical que
ainda me mantinha ligada à caixa.
Com isso, Aurita estava prestes a complementar-se em Bálsamo. Mas, foi no
final de 2017 que ela reluziu com a força de Salito, desenvolvida na disciplina de TCC
I: Espetáculo, ministrada também pela professora Naira Ciotti.

Imagem 5: A atriz na figura Salito.


No Teatro Laboratório Jesiel Figueiredo, Deart/UFRN.
Foto: Produção da Mostra de Teatro do DEART.

A inspiração inicial se manifestou da imagem de uma parede se desmanchando


em pó, advinda de um sonho. Todas as pessoas do universo tinham seus corpos feitos de
um material semelhante ao gesso. Os mesmos se desmanchavam em virtude de mazelas
34

advindas dos corações podres. Em contrapartida, os corações providos de pureza


garantiam o estoque de partes corporais que os mantinham vivos. Era possível para as
pessoas boas reconstruírem-se, tanto a si quanto aqueles que elas desejassem ajudar,
incluindo os de corações ruins que quase sempre estariam prestes a dissiparem pelo
espaço, deixando de existirem.
Durante os estudos sobre a patafísica, definida como soluções imaginárias por
Alfred Jarry (2004), o presente sonho me propôs, através de suas soluções de
sobrevivência, um estranhamento diante da figura. Repercutindo na relação até então
construída com Aurita, a quarta e última figura da composição provocara um desmonte
de seu corpo, como uma parede que leva pouco tempo para se desmoronar, ela seguiu o
sentido inverso que as outras, se decompondo em tempo e em espaço. A patafísica
apresentou-se como uma proposição para sua existência, mantendo-se entregue ao
público.
No espaço, ela surge desenhando uma espiral (símbolo da patafísica) no chão
com giz. Neste momento, sua veste compõe-se por uma máscara e uma saia feita com
tiras de elásticos, cujas pontas serão entregues às pessoas da plateia. O público, ao
segurar as pontas da saia, é puxado com a intenção de movimentar-se no espaço. A ação
de entrega das supostas extensões de corpo representa a distribuição de partes
fragmentadas do corpo, como doação ao espectador que agora compõe a ação e o
espaço.
Aurita está perpétua, embalsamada. Se ontem me encontrei com a memória, hoje
preservo a capacidade de sua manipulação, pela presença e pela ausência, mesmo diante
dos desmontes e acúmulos suportados em nossos próprios túmulos. Aurita se tornou o
escuro em uma montanha solitária, cansada de mastigar suas recordações. Mas o escuro
sempre nos retorna, apesar das frestas de liberdade. A mulher que brotara do chão e
como árvore manifestou seus frutos à natureza (Tuberosa e Malambo), repousando em
sua dor a prosperidade da vida (Prenhe), agora se desfaz e se desmonta (Salito) na
busca, mais uma vez, pela retomada do seu ciclo (Aurita).

1.3 Metáfora do real

As experiências vivenciadas em Bálsamo propuseram-me uma série de


sensações que se caracterizam por me manter em contato e diálogo com a poesia
35

concentrada na infância. A abertura para possibilidade de reinventar-me, tanto no


campo ficcional quanto no campo da vida, me fez enxergar o mundo ainda com olhar
imaginante e perceber que aí está o sentido pra continuar repetindo e me firmando
presente e existente aos olhos da arte. O retorno ao túmulo que embalsama minhas
memórias se mantém em relação com a imperfeição, me colocando em estado de
transformação toda vez que a ele retorno. A resistência impulsiona-me a crer na criação
poética advinda de experiências vividas, proporcionando a potência do eu enquanto
artista e enquanto inventora de minha própria identidade no trajeto de volta para casa.
Aqui, traço a morte como ponto de partida desse infinito mosaico que não cessa por
multiplicar-se. Neste tópico, o plano onírico se confunde, ou melhor, se propõe como
um reflexo do real diante da linha tênue entre obra e vida.
Eneida Maria de Souza em seu livro sobre crítica biográfica, Janela Indiscretas
(2011), explica o fator de rompimento da integridade estética por meio da ponte
metafórica entre ficção e realidade. Para a autora, “Metaforizar o real significa
considerar tanto os fatos quanto as ações praticadas pela pessoa biografada como
possibilidade de inserção na esfera ficcional. Ao espectador o direito de construir
também sua história e interpretação do enredo [...]” (SOUZA, 2011, p. 54) Com isso, a
estética compreende não somente a ficção, mas uma apropriação de fatos reais para a
composição artística e ficcional. No contexto da presente pesquisa, a memória em seu
demasiado aspecto imaginante, adentra na fantasia através da narrativa e possibilita à
biografia um caráter de compartilhamento que se mantém pela reconstrução das
histórias, permeadas ainda, pela relação com o outro e com o externo.
O aspecto narrativo, no qual eu me coloco em primeira pessoa, assumindo a
realidade diante dos fatos oníricos, me propõe registros, ainda que incertos, das visões e
aparições das imagens do passado vivido ou imaginado. Através do exercício de
composição das narrativas autobiográficas e dos sonhos e imagens suscitadas na
infância, pude perceber um fortalecimento no resgate do corpus de memória que
adquiriu potência na firmação de sua existência, me auxiliando na trajetória de
composição de Bálsamo. Sendo assim, esse foi o passo que provocara uma consciência
diante da experiência poética, e sucessivamente, um domínio perante às potências que
ressignificariam a memória, através de sua inventividade e criação. Trata-se então, de
reunir os elementos dispersos e redescobrir a intimidade. Nesse caso, em virtude da
criação poética, proponho exercícios de autoinvenção e de sintonizar o tempo-espaço
36

entre as experiências do passado em diálogo com o presente da ação criadora e com o


desfecho da narrativa pelo aspecto do futuro.
Ainda nos discursos de Souza, destaco a morte imaginária do sujeito que escreve
sua própria biografia, na transformação da escrita real em ficção. O atravessamento das
histórias reais pela ficcionalidade imaginária converte a biografia em literatura, na qual
subsiste o deslocamento intencional da figura do poeta em várias outras. Essa
multiplicidade compreende o caminho que busquei para representar a dinâmica voltada
para Bálsamo. Nesse sentido, as faces de Aurita distorcem a realidade da minha
memória convergindo para o renascimento de composições múltiplas.
Segundo Ítalo Calvino (2010), em seus escritos sobre a visibilidade, há dois tipos de
processos imaginativos: o que parte da palavra para chegar à imagem visiva e o que
parta da imagem para chegar à expressão verbal. Nessa perspectiva, a poética para
construção do fragmento performático Bálsamo permeou o segundo tipo de processo
imaginativo, percorrendo o caminho que parte das imagens mentais para sua
corporificação, chegando à construção da dramaturgia. A escrita se manifesta como
condutora dessa composição, já que a mesma guia a manipulação da memória em
detrimento de seu registro fixo no papel e no corpo, possibilitando assim, um retorno à
imagem originária que reverbera caminhos múltiplos diante da imaginação.
Calvino reflete ainda sobre a importância da preservação das imagens na qual a
imaginação transmite-nos de forma individual, porém essas estão suscetíveis a
borrarem-se, não adquirindo relevo diante dos mil estilhaços de outros tipos de imagens
que se depositam e sujam nossa memória. A visibilidade dessas imagens evocadas no
interior se manteve como propósito principal para processo de criação, tornando-se
extrato híbrido que alcança a presença da criança, da ficcionalidade e da subjetividade.
A aspiração por essas imagens me propôs a composição do ciclo que compreende
um eterno retorno aos aspectos da memória como lembrança do que se é e ao
esquecimento que repercute a não existência, colocando-me diante do vazio que
impulsiona a novidade na criação. Contudo, a experiência relacionada a esse vazio, no
limite da sobrevivência, alcançou virtudes que me colocou em extremo estado de pulsão
de presença.
Como ponte entre as perspectivas pelas quais transitou minha experiência, destaco
esse vazio seja ele reflexo de vida ou de morte, como impulsionador no ato da criação
que reforça a resistência poética e possibilita a sobrevivência das imagens. Vladimir
37

Saflate (2016) discute sobre o salto no vazio como redenção e abertura às possibilidades
de afetos que a queda está disposta a nos causar, onde a impotência se coloca como
obstáculo que esconde o impossível. No entanto, há nisso, os perigos a quem se propõe
a esse encontro com o chão. Segundo o autor, o poder reside nos corpos que se sujeitam
a quebrarem-se diante da dureza do asfalto, decompondo-se e despossuindo-se para que
surjam novos circuitos de afetos. O desamparo, inesperadamente, trata de nos mostrar o
impossível através do papel da arte, pois a situação do sujeito desamparado implica no
reconhecimento de sua impotência, em contrapartida, ao ajuste pela necessidade de
transformação que desvia dessa condição revelando-se em criação.
Recorro, aqui, aos meus sonhos de criança, quando, por vezes eu adormecia
vigiando o teto e contando suas telhas. Ao chegar o sono, o teto se derretia diante de
meu corpo com sua voz suave, quase calando, gritando silêncios ao meu ouvido e me
dando forças para voar. Durante o voo, eu me desviava das árvores, dos fios dos postes
e das nuvens que cruzavam o meu caminho. Justo no momento que eu estava possuída
da certeza de estar no ar, eu despertava estagnada, com meu corpo estático após a
sensação de queda. E um vazio tomava conta de mim. A certeza pura de ter vivido
aquilo entrava em conflito com o choque que a realidade provocara.
Portanto, o vazio nesse processo não é inerte, mesmo surgindo em detrimento de um
fim, ele suscita no sujeito uma possibilidade de recomeço. A arte é responsável pelo
acesso ao impossível, que nos faz transformar o nada em brechas que vazam múltiplas
alternativas possíveis. O vazio é um espaço infinito onde se morrem e se renascem
saídas e caminhos manipulados pela criação.
O processo de decomposição de Aurita, instaurado com a presença de Salito,
direcionou-me à ideia que compreende esse estado, onde o que eu sentia resumia-se no
vazio que repercutiu na ação do corpo que se entrega e se desmonta, e enrijece seus
movimentos como o cimento secando na parede. No entanto, é nesse momento que
Aurita se firma em Bálsamo. A partir disso, a experiência volta-se para o renascimento
ou para sua lucidez que desperta existência.
Na obra A Procura da Lucidez em Artaud (1996), Vera Lúcia explica que, para
Artaud, o nascer significa reconhecer uma alteridade que está dentro de si e que não
pode nascer porque é como outro independentemente, enxergando nessa falha a
possibilidade da poesia como liberdade. Portanto, deseja-se o relato verídico da
fragmentação que se unifica pela força da alma. O poema, então, possibilitaria a
38

concentração entre pensamento e alma, como esperança de reconhecimento do poema


existente no presente.
Reconhecer o aspecto da existência no contexto da presente pesquisa resultaria na
consciência do renascimento de uma poética, que se reconfigura a partir das imagens da
memória. A poética diz respeito a uma realidade vista sob o olhar da arte, que através da
linguagem tem a finalidade de fazer consumar esse encontro e comunicação entre as
imagens da alma e o pensamento do artista. Daí a função transformadora da linguagem,
pois recupera para além da racionalidade um ponto que (re) ascende e torna possível a
criação. A realidade poética passa a ser o próprio artista, em novidade, substância da
imagem (vida) e escala do sentimento (lucidez). O que conta para esse renascimento são
a densidade interior e a força do sentimento.
O vazio propõe o renascer resgatado pela força das lembranças, porém propõe
finalidades distintas que atravessa a memória em reconstruções e apresenta caminhos
para o meu fazer artístico. O ciclo compreende pela repetição, uma criação pautada na
ressignificações das imagens e um diálogo que permite o processo permeado pela
visitação nos tempos: passado, presente e futuro. Esses aspectos refletiram na
perspectiva da existência, tanto na ficção quanto na vida, me propondo o despertar das
histórias que traçam um olhar para a perspectiva subjetiva e me motivam a permanecer
em exercício de criação no qual a criança faz morada. Portanto, a existência reflete a
identidade dentro de seu aspecto de transformação e ressignificação a partir da
imaginação advinda da forma individual da interpretação do universo. O processo de
criação volta-se para percepção desse ciclo que reúne os sofrimentos e as descobertas,
em uma consciência favorável a qual se compõe a vivência artística, propondo um
dialogo com a realidade que designa a experiência no presente.
Neste ensejo, Aurita representa minha memória fantasiosa e real, se definindo pelas
figuras que a compõe, e perpetua-se pelo vazio, em existência, morte e renascimento
que caracteriza o ciclo da criação. Bálsamo encerra-se em fragmentos, numa narrativa
não linear, os desvios vão surgindo como as imagens de um sonho que deixam seus
rastros ao despertar. Nas primeiras apresentações, a caixa existia vazada e escura, porém
agora ela se transfigurou na imagem do labirinto.
Escrever no espaço a história da memória é preencher de vida um corpo vazio.
Aurita vive lá em sua casa real, porém vive aqui no encontro com a fantasia,
transmitindo sua força para outras pessoas que nem ela própria conhece. Aurita da
39

ficção representa a ausência física do espaço sensorial da infância, propondo a


consciência da presença transformada em arte. No espelho ainda vejo meus antigos
olhos que refletem a ação infantil e me mostram as possibilidade encontradas no
impossível.
40

CAPÍTULO II

BÁLSAMO

2.1 A espacialidade

O espaço cênico da composição performática Bálsamo, se insere num contexto onde


são construídas as simbologias, a partir dos aspectos relacionais entre as imagens
memoriais e sua materialidade espacial, visual e sonora. As discussões acerca da
produção artística aqui levantadas promovem um olhar mais aguçado sobre os aspectos
do corpo, do ambiente e do som. Busco assim, problematizar um desejo de ocupar os
aspectos físicos durante o processo de criação através de questões que reverberam os
espaços mentais de criação imaginária.

Gostaria de destacar as alterações que o experimento sofreu desde a sua primeira


formação em 2017, a partir do entendimento do conceito de Work in Progress8,
amplamente utilizado pelas construções performáticas contemporâneas. O espaço
cênico de Bálsamo perpassou pela caixa ou cubo (feita com canos de PVC de 25 mm
pretos, demarcando a área de 8m³) assumindo agora a forma de labirinto (desenhado ao
chão com fita isolante preta). Se antes a ideia da caixa, mencionada no Capítulo I,
caracterizava-se pelo seu aspecto de proteção e esconderijo, associando-se a imagem da
casa nos devaneios da minha infância, a mesma se reconfigura agora em uma espécie de
labirinto, que mostra as possibilidades de caminhos e formas no contexto da criação. Na
caixa havia certa imobilidade física, onde o espaço era delimitado pelo cubo, cujo
desenho demarcava a minha memória de forma interna e fechada, onde eu me protegia e
acolhia as imagens mentais aprisionadas. No entanto, o labirinto me proporciona um
trajeto onde se é possível descobrir e resignificar as imagens por meio da abertura e
saídas que este espaço oferece, e ainda me sugere o compartilhamento com o externo.

8
“Literalmente poderíamos traduzir por “trabalho em processo”, procedimento este que tem por matriz a
noção de processo, feitura, iteratividade, retro-alimentação, distinguindo-se de outros procedimentos que
partem de apreensões apriorísticas, de variáveis fechadas ou de sistemas não-iterativos.” (COHEN, 2006,
p. 17)
41

O espaço cênico, antes disposto em caixa (como mostra a Imagem 6), agora se
configura em labirinto no qual as saídas e entrecruzamentos assimilam a conduta
memorial e a multiplicidade do contexto performático. Assim, a perspectiva pedagógica
da criação se caracteriza pelo aspecto processual manifestando nos saberes e nas
descobertas voltados tanto para os elementos cênicos quanto para as experiências
pessoais da memória.

Imagem 6: Estrutura cênica do cubo.


Bálsamo em 25/05/2018 no IFRN da Cidade Alta, Natal/RN.
Foto: Wallacy Medeiros.

Em O Dicionário de Símbolos (2018), escrito por Jean Chevalier et al., encontro no


verbete do labirinto algumas associações que me ajudaram a pensar sobre a perspectiva
espacial do extrato em virtude dos aspectos reflexivo e prático voltados para o processo
42

de materialização do ambiente mental (interno) a respeito de sua externalidade e


fisicidade. Segundo o autor, o labirinto é o entrecruzamento de caminhos onde somente
alguns têm saídas. Nele se manifesta uma vontade muito evidente de representar o
infinito por meio da combinação de dois motivos: o figurado pela espiral, que exprime a
mutação e o figurado pela trança, que exprime o eterno retorno. Portanto, destaco esses
motivos como potência no ciclo que compreende minha trajetória no curso de teatro,
meu processo de composição criativa e o ensejo da descoberta e da inventividade da
memória. A mutação e o retorno conduziram-me como pistas, possibilitando-me uma
visão maior diante das peças do quebra-cabeça que fizeram parte da construção
prática/teórica e da relação com o processual. Enquanto a mutação refere-se à
identidade híbrida de Aurita, o retorno refere-se aos fragmentos da memória que fala
sobre mim.

Desta forma, o labirinto funcionou como uma espécie de cartografia da memória,


onde pude identificar o fator biográfico pelo trajeto das ações, que se caracterizam pela
sua transformação emergida das experimentações práticas. Pensar sobre o processo de
construção e materialização da memória na cartografia do labirinto, me possibilitou
caminhar numa perspectiva de entrecruzamentos que une os fragmentos, as figuras e as
imagens em um só destino.

Segundo a obra Pistas do Método de Cartografia: pesquisa- intervenção e produção


de subjetividade (2015), que reúne ensaios sobre o tema, Virgínia Kastrup explica na
pista 2 que a cartografia é um método formulado em 1995 por Gilles Deleuze e Félix
Guattari, cujo papel principal é o acompanhamento de um processo de produção, como
comenta a autora na seguinte citação:

De saída, a ideia de desenvolver o método cartográfico para


utilização em pesquisas de campo no estudo da subjetividade se
afasta do objetivo de definir um conjunto de regras abstratas para
serem aplicadas. Não se busca estabelecer um caminho linear para
atingir um fim. (...) Todavia, sua construção caso a caso não
impede que se procurem estabelecer algumas pistas que têm em
vista descrever, discutir e, sobretudo, coletivizar a experiência do
cartógrafo. (KASTRUP. 2015. P. 32)
43

Neste sentido, pude perceber que a cartografia da memória concentra prática e


reflexão pelo rastreio das imagens internas que reflete em sua materialização,
percorrendo um caminho caracterizado pelos aspectos voltados para a simbologia do
labirinto. Isto implica no metamórfico e infinito processo que permeia a imaginação e a
inventividade. As ideias que compuseram o extrato performático partiram das imagens
da memória, especialmente no período da infância, porém, foi atravessado pela
intervenção da coletividade, cujas figuras passaram pela influência relacionada ao
contato dos colegas em sala de aula, durante o processo de desenvolvimento.

Portanto, o processual se destacou como o meio que instigou de forma permanente o


desejo pela busca investigativa no desenrolar das ações, assim como da pesquisa, se
caracterizando pela concentração de aprendizagem e de descobertas num contexto
pedagógico. Assim, a cartografia do labirinto percorreu não só o cenário, envolvendo
também as condições que estão relacionadas à existência corporal e identitária de
Aurita.

Partindo do pressuposto instaurado pelo cenário em forma de labirinto que emerge


da espacialidade mental numa perspectiva cenográfica, a caracterização de Aurita e a
sonoplastia de Bálsamo baseada em ruídos também agiram ativamente na expressão da
transposição de um aspecto para o outro. A caracterização da persona e a sonoridade do
ambiente colaboraram para a manifestação que torna o aspecto interno, mental e onírico,
na possibilidade de realização prevista no ambiente real e físico. A materialização da
memória no corpo e no espaço me fez refletir sobre o movimento da arte, que possibilita
realizar as demandas dos desejos voltados para o desdobramento da memória, que antes
se manifestava de forma fixa e agora se tornou móvel e fluido.

O figurino desenvolveu-se com a intenção de propor uma homogeneidade entre a


espacialidade que se manifesta como continuidade do corpo, ou seja, como condição de
ambiência provocada pela presença do corpo. Assim, a veste abrange uma meia-calça e
um sutiã, ambos de cor bege clara, assemelhando-se à uma segunda pele, que favorecem
a ideia de exposição da silhueta e obtendo maior expressão dos movimentos corporais.
A escolha por essa vestimenta parte da perspectiva de proporcionar maior visibilidade
para o corpo e seus movimentos sem necessariamente estar nu. Alguns objetos estarão,
no momento inicial, escondidos no interior das vestes, pois durante os atos serão
44

expelidos ou retirados de lá, como por exemplo, as bilocas no sutiã e uma redinha de
náilon (utilizada geralmente para embrulhar frutas) próxima ao umbigo e preso na meia.

A maquiagem sugere a mesma ideia, em que é basicamente toda na cor bege clara,
na qual uniformiza o rosto, dando aspecto doentio ou fantasmagórico, objetivando a
ressignificação e a desconstrução do corpo feminino. No entanto, nas primeiras
apresentações, além da segunda pele, o corpo enrolado com fita isolante preta
complementava o figurino, e a maquiagem demarcava os traços do rosto e sombreava as
profundidades, adquirindo um aspecto sombrio à persona. No geral, a caracterização
traduz as figuras mentais que quase sempre se camuflam pela espacialidade do
imaginário e do corpo, apresentando-se como uma desconfiguração do corpo feminino
em virtude dos padrões impostos pela sociedade.

Por conseguinte, a sonoridade do extrato cênico também permeou a ideia de


continuidade do corpo e do espaço. Assim, busquei por sons que não necessariamente
fossem melódicos, mas sim que houvesse barulhos estranhos pelos quais dialogassem
com as ações. O silêncio foi cogitado, inclusive performei algumas vezes somente com
os sons produzidos pelos objetos que caiam no chão ou que eram arrastados. No
entanto, havia uma necessidade de instaurar certa estranheza voltada para ruídos que o
cérebro, mesmo em silêncio, produz. Por indicação do professor Maurício Motta
(UFRN), acabei por encontrar a sonoplastia desejada, pois o disco indicado -
Gravikords, Whirlies & Pyrophones - Experimental musical instruments (1998) - que
agrupa uma série de sons instrumentais, me suscitou a musicalidade da natureza,
inclusive me fez refletir sobre o som deste silêncio ilusório que o ambiente
onírico/mental experimenta.

Desta forma, ambiência, caracterização da persona e sonoridade do extrato


dialogaram com a visualidade do passado voltado para as imagens da memória, que
dizem respeito à substância que impulsionou o ato do processo de criação e da
realização deste trabalho. As imagens da lembrança se fortalecem no espaço cênico,
pelo exercício de experimentação que as mantém vivas e ativas no presente das ações.
As ações em Bálsamo narram a memória em virtude da sua externalidade,
possibilitando alteridade e interferência que a materialidade e a coletividade do
tempo/espaço presente concedem.
45

Segundo Christine Greiner, em seu livro O Corpo (2006), o organismo não se


dissocia do ambiente, pois o corpo e o espaço constituem-se através da dramaturgia que
organiza as imagens internas (mentais) e as imagens externas (implementadas em ações)
em seus processos comunicacionais. Portanto, a dramaturgia do corpo que emerge da
ação possibilita a relação entre os movimentos e os processos de cognição pelos quais
se manifestam as metáforas que permitem a compreensão da comunicação da
experiência corporal. Neste sentido, o corpo em movimento comunica ao
externo/público a experiência vivida pelo corpo no presente, que manifesta a memória
ressignificada da experiência vivida pelo corpo no passado, por meio da imaginação e
das sensações despertadas no momento da criação.

As ações em Bálsamo nascem da relação com os objetos e com o espaço que


simbolizam o resultado investigativo das imagens da memória. O corpo vivencia no
espaço as experiências constituídas de presente, porém partem da premissa de que as
quatro figuras não se dissociam uma das outras ou até mesmo de que Aurita não se
dissocia de mim. O extrato cênico manifesta-se pela junção das ações, atribuídas às
quatro figuras, que se expressam na perspectiva da construção dos corpos e energias
extraídas das imagens existentes em minha memória, desenvolvidas no decorrer do
curso.

2.2 As ações

Dentre as possibilidades de estéticas oferecidas pelo curso, pude perceber que a


criação na qual permeia minhas memórias dialoga com perspectivas da realidade, cuja
sobrevivência baseia-se nos desdobramentos ocasionados pela arte. A percepção do
corpo, que adquire identidade através de sua transformação, propõe a presentificação da
ação referente a um passado, se mostrando no presente como narrativa de existência.
Neste sentido, a linguagem da performance surge como condutora nas experiências que
se caracterizam pelo aspecto ressignificativo do eu enquanto criadora de minha própria
história, me possibilitando extratos cênicos baseados em vivências reais.

Para Renato Cohen (2013), o performer caracteriza-se pela capacidade de viver


o presente de sua própria pessoa, mais que o do personagem. Se no teatro, em termos de
46

cena naturalista, o “real” se reforça pelo adentramento do ator na ficção, na performance


quanto mais o performer se distancia da representação de certo personagem, mais se
quebra o aspecto ilusório abrindo espaço para o imprevisto, para o vivo, para o real. É
nesse limiar que vida e arte se aproximam, onde os extremos se encontram, pois no
momento da ação, o performer não é mais ele, ao mesmo tempo em que não representa
nenhum personagem. Isto acaba interferindo, inclusive, na relação entre o objeto e o
público, que se desloca da posição de espectador para fazer parte de um ato ritualístico,
caracterizado pelo aspecto de comunhão entre os sujeitos presentes.

Em Bálsamo, permito-me um diálogo com Aurita que expressa muito mais uma
perspectiva do olhar transparecido e contagiado pelo instante, do que qualquer tentativa
de mostrar/apresentar uma relação do passado fidedigno. As lembranças do passado,
impregnadas em mim, passaram pelo processo de ressignificação no momento da
criação no qual se relacionaram com o meu corpo e com as minhas experiências do
agora. A performance me abriu as portas para experimentação, onde é possível se
conectar com as causas híbridas das ações, permeadas pelo tempo/espaço do passado e
revigora-se no tempo/espaço presente.

Por conseguinte, passaremos pelo percurso de Aurita, no qual eu mencionarei suas


ações no trajeto do labirinto e a simbologia voltada para a relação entre corpo, espaço e
objeto, assim como a multiplicidade proposta pelo aspecto visual.

Para começar a pontuar sobre as ações, gostaria de deixar claro que não,
necessariamente, existe uma ordem ou linearidade na execução dos movimentos de
Aurita. Contudo, utilizarei um roteiro9 que compreende quatro atos identificados pelas
ações principais (como mostram as fotografias a seguir: imagens 6, 7, 8 e 9) nas quais
se desmembram em outras, por meio da necessidade de improvisação relacionada às
circunstâncias reperformáticas.

Ato I

9
Os atos serão separados e identificados pelas quatro ações: pentear, parir, violar e orar, somente na
escrita do trabalho, com intuito de melhor transmitir as simbologias e significados voltados para cada
ação, adquirindo mais clareza ao leitor.
47

Inspirada na performance Art Must Be Beautiful (1975) - (A arte deve ser bela/ O
artista deve ser bonito) de Marina Abramovich, a primeira ação que irei mencionar diz
respeito ao gesto de pentear os cabelos (representada na imagem 7, p. 46). Aurita se
penteia em movimentos que se alternam em rapidez ou lentidão, através da mão que
pesa ou flutua sob a cabeça no decorrer da repetição. Contudo, o gesto reflete a imagem
da pintura (imagem 2, p. 25) precursora da figura de Malambo, manifestando sua
colheita dos fios desprendidos e dispersos pelo ar. A relação entre a performance de
Abramovich e a pintura de Iakividis refletiu, nesta ação, como um sentimento de
melancolia e/ou de nostalgia no que diz respeito à sensação de encontro, o qual coloca o
eu criança frente ao eu adulto. A criança com seu efeito de criação partindo da ausência
de experiências e o adulto em perspectiva de desconstrução e de desvio assumindo o
erro como parte da experiência. Busco com a ação representar a libertação dos anseios
que Aurita carrega. Ela penteia para se purificar da peste manifestada pela sociedade
machista e limpar as impurezas que afetam seu corpo. Os cabelos são da avó que foi
maltratada pelo avô, são da mãe, assediada pelo próprio pai, são das irmãs, da filha, das
sobrinhas, meus e de Aurita. Os fios que caem ao chão são apanhados, acolhidos e
retirados deles os piolhos, as mazelas. Aurita passa pelo seu corpo, contorcido e
espremido, os cabelos que com o auxílio das mãos viram um ninho depositado no
umbigo.
48

Imagem 7: persona na ação de pentear.


Bálsamo em 27/11/2017, no No Teatro Laboratório Jesiel Figueiredo, Deart/UFRN.
Foto: Wallacy Medeiros.

Então, ela puxa a redinha escondida na meia e coloca na cabeça, sufocando-a. Aqui
há uma sensação de fuga, onde o próprio corpo se mostra para Aurita como algo
estranho. Ela tenta através das contorções e do sufocamento se dissociar de si mesma, se
livrar de sua condição no mundo. A persona carrega várias realidades em si, mas nesse
momento nenhuma surge. A redinha parece fatiar a cabeça, cujos pedaços não
ultrapassam os fios de náilon que se comportam como grades. O corpo selado aponta
para a tentativa de fuga, pois as linhas são como grades que a aprisionam. Aurita vive
neste ato a circunstância de sua despersonalização.

Em termos psicopatológicos, segundo Darcy M. Uchôa (1959), a


“depersonalização”, uma doença mental que pode ser caracterizada em três ordens de
fatos (levando em consideração os estudos de Schilder10): “Sentimento de
transformação do corpo (ego corporal) e da personalidade (ego psíquico), estranheza
diante do mundo exterior e tendência à auto-observação e à autoanálise.” (UCHÔA,
1959, p. 268) Neste sentido, considerando a apropriação do termo na perspectiva cênica
e a expressão da condição em que se encontra a persona no presente ato, as três
características dizem respeito ao estado de distanciamento diante do próprio corpo e da
própria realidade (em relação da ficcionalidade em que se insere Aurita), pelos quais a
persona desconhece. Em estado anestésico, a mesma busca livrar-se das angústias que
ela acredita serem causadas pela existência de seu corpo. A angústia é acionada pelo
fato de que ao se perceber em um corpo aprisionado nas ditas circunstâncias femininas,
ela renega a si própria, estranhando suas próprias entranhas.

Ato II

Após este ato, inicia-se uma caminhada de dores. Aurita percorre pelo corredor de
pessoas em movimentos de equilíbrios e desequilíbrios, causados pela dor do parto. Aos
poucos, seu corpo expele as bilocas que estão impregnadas e que representam tanto os
nascidos daquela mãe, quanto o leite pedrado pesando nos seios. Os objetos são

10
Paul Ferdinand Schieder psiquiatra, psicanalista e pesquisador Austríaco (1886-1940).
49

espremidos e expulsos através das mãos que mastigam o peito e a vagina, em busca do
livramento da dor. Ao caírem pelo chão, as estruturas esféricas provocam barulhos que
despertam sentidos de quebra, de incômodo.

Estas ações abordam a incompreensibilidade do período maternal em virtude da


depressão pós-parto que eu vivenciei e que, inclusive, atinge 10 a 15% das mulheres
(SOUSA, PRADO, PICCININI, 2011, p. 335). Nesse período da maternidade, a mãe
passa por uma serie de mudanças, sejam elas físicas, hormonais ou psíquicas. No meu
caso, além da sensação de inflamação corporal, em virtude da dificuldade de lidar com
aspectos como amamentação da criança e minha alimentação, passei por um período de
solidão profunda, no qual eu sentia vontade de chorar constantemente, sentia também
paralisações em que eu perdia o controle de meu corpo, o qual adormecia mesmo eu
estando de olhos abertos. Apesar disso, as dores físicas foram esquecidas, como se só
me restassem lembranças do estado corporal e das palavras que eu ligava a cada
sensação.

No presente ato, revivo os fenômenos da parição, onde as contrações ressignificam-


se no corpo como outro tipo de impulso, que me mostrou uma espécie de união da
morte e da vida. Ao mesmo tempo em que dei a luz aos corpos expelidos, os mesmos
me mostraram a escuridão do útero vazio. Foi como morrer e viver ao mesmo tempo.
No entanto, percebi-me multiplicada ao me procurar naqueles corpos que não faziam
mais parte de mim. Confundi-me, me camuflei, me escondi, me reinventei.

Aurita, após a proliferação de Prenhe, veste a saia feita com tiras de elásticos
brancos de Salito e entrega as pontas ao público continuando seu percurso. Sempre
contrariando a força que a puxa para trás e provoca um peso maior nos movimentos do
corpo. O elástico representa a mobilidade com que o corpo da persona se entrega à dor,
ao esquecimento, acentuando a incerta direção entre a vida e a morte.

A persona se vê aguda e inflamada no sangramento da luz. Ainda nas dores e nos


devaneios daquelas mulheres, surge o leite pedrado por mundos e tempos. O ato retrata
uma tentativa de sobrevivência, em que seu corpo se torna moradia, proteção e
dilaceramento, através das memórias espalhadas no espaço feminino. Aurita observa sua
morte, e clama a possibilidade de encontrar no céu de sua boca uma saída para o
livramento. Enquanto seu corpo ferve no interior do vulcão, a palha do sertão se sacode
50

e escreve sua passagem pela vida. O vento se corta a facadas, enquanto os cabelos
derramam no chão a secreção produzida no colo. Seu ventre é um molambo que se
alimenta da fome. Finaliza-se oca, vazia. Seus órgãos estão fora de si. É uma carcaça de
vento.

Imagem 8: persona na ação de parir.


Bálsamo em 27/11/2017 no No Teatro Laboratório Jesiel Figueiredo, Deart/UFRN.
Foto: Wallacy Medeiros.

Ato III
Ao chegar a determinada esquina do labirinto, inicia-se a relação com o objeto
vermelho, feito com uma beterraba e certa quantidade de água dentro de uma camisinha
feminina, cuja amarração sugere diferentes significações. Aurita movimenta-se
51

esfregando a bexiga em seu corpo e enfia-a na boca, pressiona-a na vagina e apoia-a no


peito. O objeto reflete um falo, uma vagina e um coração. O gemido e o choro
denunciam a violência. A boca e a vagina vomitam o órgão que procura o prazer no
corpo alheio e vulnerável, que arde em dor e palpita morte. Mais adiante, um objeto que
se assemelha também a uma placenta, um útero ou uma sangrenta vagina menstruada é
colocado numa taça, na qual Aurita risca e rasga o chão com movimentos circulares.
Então, ela faz daquele sangue seu próprio alimento, ao mesmo tempo em que ela come
o órgão externo opressor (falo), ela alimenta-se também de seus próprios órgãos
(vagina, placenta, útero, coração), cujo interno e externo não se distinguem. A beterraba
é mastigando como quem conhece a fome, mas não se deixa entregar à morte.

A ação, à primeira vista, indica uma relação com o canibalismo, com a antropofagia
que exprimem o ato de comer carne humana e faz parte de alguns rituais indígenas, cuja
característica resulta na apropriação das qualidades e virtudes pertencentes ao sujeito a
ser comido, pelo sujeito que o deglute. Neste ensejo, durante a pesquisa sobre o assunto,
encontro a questão que impulsiona a expressão do desejo revelado pelo terceiro ato. Em
seu artigo Devemos Temer a Antropofagia?, Michel Riaudel (2011) ressalta a
polissemia relacionada à palavra antropofagia no contexto do Movimento
Antropofágico, fundado pelo escritor Oswald de Andrade, na década de 1920.

Dentre os vários aspectos relacionados ao Movimento, a questão que agregou ao


meu trabalho, foi a que sugere uma cultura centrífuga, onde os artistas produzem
partindo do próprio centro, mesmo que levem em consideração os aprendizados
externos. A valorização da expressividade brasileira reforça a originalidade e diz
respeito a uma reconfiguração no aspecto cultural que utilizava do externo, do
estrangeiro como fonte primordial. A imagem canabalística, no contexto colocado pelo
autor, metaforiza a ideia de comer o outro numa perspectiva de associação e de,
apropriação do saber alheio, para um desenvolvimento criativo junto ao próprio saber,
que transmite novas formas de firmar a cultura.

Contudo, na imagem antropofágica evocada em Bálsamo, Aurita come seus próprios


órgãos (representado pela bexiga) como alimento que reafirma sua condição e em
protesto contra as sangrentas situações que envolvem a mulher. No centro de seu corpo
ela encontra força para lutar e sobreviver, aglutinando-se com rastros das várias virtudes
deixados pelos diversos mundos que foram expelidos de seu interior. A persona expele-
52

se e absorve-se simultaneamente, reconfigurando sua existência e seu corpo, ainda que


leve-se em consideração as cicatrizes e as marcas mundanas. O sangue de sua
menstruação se mistura com o sangue provocado pela violação. A transformação a faz
manter-se num estado onde sua alma se aconchega e se conforta pela serenidade que
transmite o corpo.

Imagem 9: persona na ação de violar.


Bálsamo em 27/11/2017 no No Teatro Laboratório Jesiel Figueiredo, Deart/UFRN.
Foto: Wallacy Medeiros.

Ato IV11

Aurita continua seu percurso em procissão dificultosa, enquanto seu corpo


lentamente busca o paraíso, ela está agarrada em seu colar de continhas vermelha (como
mostra a imagem 10, p. 52) da mesma cor do sangue que escorre pelas suas pernas. As
palavras que compõem a oração se organizam da seguinte forma: “No céu amarelo de
um corpo serpente. Me faço chão, fervente. Pele de pena, interior de vulcão. Da palha

11
Este ato pressupõe a ideia do eterno retorno e instaura, tanto em aspecto prático quanto em aspecto
teórico dramatúrgico, a descoberta de uma poética voltada para a repetição que passo a passo se depara
com o início do ciclo que diz respeito à criação e a vida.
53

12
do mundo à areia do sertão. Me faço vermelha, sangrenta, facão” . A ladainha
repetitiva e incessante parece acalentar sua existência, assim como seu corpo. O manto
branco que descansa sobre suas costas aos poucos se mostra com sintomas da caixa de
minha infância, que me protege, me guarde e me ilumina. Enquanto passa as mãos por
cada conta do colar, seu corpo, começando pelo centro (umbigo) vai amufinando até
que sua imagem some por dentro do véu branco. Seu corpo, agora externamente intacto,
embalsama todas suas memórias que pulsam internamente.

Imagem 10: persona na ação de orar.


Bálsamo em 27/11/2017 no Teatro Laboratório Jesiel Figueiredo, Deart/UFRN.
Foto: Wallacy Medeiros.

Os atos: pentear, parir, violar e orar norteam o trajeto pelo labirindo que visa
mostrar-lhes o extrato de minha memória na perspectiva performática e criativa, onde
há a possibillidade de vivenciar experiências e ressignificar a nós próprios, em um
contexto em que o corpo age e expressa a política que acreditamos. A experimentação
sempre estará presente em Bálsamo, e o diálogo com o externo é essencial para minha
transformação e aprendizagem. Aurita carrega em si muitas marcas, dentre elas a

12
Escrita desenvolvida por mim durante um exercício de descrição de imagem, vivenciado na disciplina
de Expressão Corporal IV, ministrada pela professora Carla Martins (UFRN).
54

cicatriz em seu corpo de mulher que pulsa a dor de outras. Seu caminho não é linear,
muito menos fácil, ele surge como surgem as esquinas do labirinto, onde e cada mulher
se depara com uma diferente, ou mesmo fases de si mesma. E acolhe-as, tomando pra si
aquelas dores. Encontra-se com o cabelos soltos ao vento, sofridos, mas firmes, como a
raíz de uma árvore, que mesmo ao adentrar no solo de uma casa não se parte nem se
quebra. Em cada esquina há uma biloca, batendo e catucando o chão com sua firmeza.
Estas são as crianças que, mesmo ouvindo a fala dos adultos, não absorve sua
negatividade.

2.3 O feminino

“Em um lapso de memória, minha mãe era uma velhinha com a face marcada
por traços esqueléticos adquiridos durante o tempo de vida. Ela se balançava numa
rede que acolhia seu corpo intacto exceto, seus olhos e os punhos feitos de cordão
retorcido rangindo ao fissurarem-se nos tornos, que por ora fazia parte de si. Havia
mulheres presas dentro de suas casas e homens soltos na rua que eu vigiava pela
brecha da janela, vendo-os dançar mundo afora. Quando não, eles espiavam também,
de fora pra dentro, invadindo nosso mundo particular. Eu me lembro de ficar embaixo
da rede surrada de minha mãe, balançando nas alturas. Nós, filhas, nunca poderíamos
encostar a pele de nossa mãe. Os homens lá fora pareciam famintos, gritavam e
tentavam nos arrancar de dentro de casa. Nesse momento (ainda dormindo) tentei
pegar um papel e escrever tudo aquilo, porém meus passos eram muito lentos e eu não
tinha força para chegar até a cômoda que comportava a caneta e o papel. Enquanto
isso, uma de minhas irmãs, sem querer, acabou encostando em mainha que em
instantes, transformou-se em bolhinhas pesadas e molhadas que caiam no chão como
espécie de sabão e nos engolia pouco a pouco. Os homens logo invadiram a casa e com
seus próprios pés, estouraram as bolhas que jazia nossa mãe. Depois de um tempo,
compreendi que ela já havia falecido, na rede restava só seu corpo sem vida, sem
alma.13”

13
Sonho (ou pesadelo) vivenciado no ano de 2005 (quando eu tinha 12 anos de idade). O mesmo foi
retirado do papel e escrito em arquivo virtual em meados de 2012 (quando eu tinha 19 anos de idade),
55

O aspecto feminino aparece, nesta pesquisa, desde o princípio, pois abrange o


contato e a relação com as mulheres de minha vida. Outro aspecto que surge baseado
nas construções do feminino são as quatro figuras desenvolvidas durante o curso (como
podemos perceber no capítulo I) que estão voltadas para uma composição performática
que fala sobre temáticas comuns ao universo das mulheres e a construção da persona
Aurita.

Os sonhos ou imagens mentais referentes ao passado memorial que inspiram


esse trabalho, diz repeito a um corpus de situações e aparições que permaneceram, por
muito tempo, vivos e pulsantes em mim. O corpus que expressa sobre o feminino
recorrente em minhas vivências, assim como, as influências pela relação com as
mulheres que fazem parte da minha família majoritariamente formada por mulheres, me
despertaram a vontade de entender e buscar saídas criativas, pelas quais eu pudesse
desconstruir a imagem do feminino.

A narrativa mencionada no início do presente tópico sobre um sonho vivenciado


no passado mostra através de palavras, de certa forma ingênua, a imagem de poder e
opressão que os homens carregam em si, evidenciada tanto na ação de pisotear as
mulheres que viraram bolhas quanto na condição de liberdade quando eles dançam pelas
ruas afora. Em contrapartida, a imagem das mulheres se transformando em sabão pelo
simples fato de tocarem a mãe, me sugere a ideia de proteção em que cada uma entra em
sua bolha para se isolar e se camuflar diante da opressão e da imposição daqueles
homens.

Aurita tenta subverter os fatos incorporados na memória ao revelar seu corpo


como firmação que enaltece a força da mulher. Ela passa pela necessidade em deturpar-
se de si e dos padrões impregnados em seu corpo e sua mente, chegando assim à
limpeza e ao preenchimento de novos estados existenciais. Neste ensejo, destaco a
relação entre o sagrado e o profano que permeou a trajetória da memória e da
construção performática, pois as ações e os objetos carregam a dualidade como
característica que subverte e denuncia as imposições da sociedade que segue, de certa
forma, colaborando com a naturalização da inferioridade da mulher.

pois o caderno já estava se despedaçando. A escrita foi também reestruturada em vista das necessidades
de adequação à ortografia e aos aspectos da estrutura textual.
56

Segundo Mircea Eliade (1992), a definição de profano surgiu quando o sagrado


começou a se manifestar na sociedade e, consequentemente, pela necessidade de
distinção entre o religioso e o não religioso. A manifestação do sagrado é denominada
pelo termo hoerofania que pode revelar-se no mais simples objeto.

Poder-se-ia dizer que a história das religiões – desde as mais


primitivas às mais elaboradas – é constituída por um número
considerável de hierofanias, pelas manifestações das realidades
sagradas. A partir da mais elementar hierofania – por exemplo, a
manifestação do sagrado num objeto qualquer, urna pedra ou uma
árvore – e até a hierofania suprema, que é, para um cristão, a
encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de
continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo ato misterioso: a
manifestação de algo “de ordem diferente” – de uma realidade que
não pertence ao nosso mundo – em objetos que fazem parte
integrante do nosso mundo “natural”, “profano”. (ELIADE. 1992.
P. 13)

Levando em consideração os conceitos de sagrado e de profano exprimidos pelo


autor, o sagrado indica algo que transcende e ultrapassa nossa realidade, e o profano
corresponde aos acontecimentos mundanos, pelos quais dizem respeito a nossa forma de
viver na terra. Neste sentido, Bálsamo expressa a dualidade através dos aspectos
femininos de Aurita, representados pelas suas ações e pelos seus elementos cênicos que
se transformam em aspectos divinos ligados à imagem da santa. O objeto feito de
camisinha feminina, em determinado momento da performance, alterna-se em várias
significações mundanas: uma vagina menstruada, um útero, uma placenta, porém
também se mostra como a imagem de um coração “divino”, quando, ao final, a persona
o põe em seu peito e caminha. Outro objeto que apresenta esta dualidade é o pano usado
para cobrir a cabeça da persona que se confunde com o manto trazendo a ideia de
pureza da santa e com o véu que remete a noiva que perderá a virgindade, portanto a
pureza.
Contudo, esta dualidade perceptível no extrato performático, trata-se de uma
estratégia para refletirmos sobre o papel da mulher na sociedade e o padrão estético que
é imposto. O trabalho implica na desconstrução do corpo feminino que desconhece as
imposições, sejam elas estéticas ou comportamentais. Para Simone de Beauvoir (1967),
“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico,
econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade.”
57

(BEAUVOIR, 1967, p. 9) Este argumento afirma que a sociedade é quem elaborou as


questões que dizem respeito ao significado de ser mulher. Enquanto crianças, tanto as
meninas como os meninos não se diferenciam sexualmente até, com passar dos anos, as
culturas vão influenciando e separando os sujeitos como mulheres e homens. Desde a
proteção maior que os pais têm com as meninas, ao desapego e à independência
ensinados aos meninos até a imposição religiosa imposta às meninas e a liberdade de
escolha em diferentes situações que os meninos desfrutam. A hierarquização é ensinada,
onde, geralmente, o pai tem poder de bater o martelo e dar a palavra final. Assim, a
mulher é ensinada a respeitar a vontade do homem, seja ele marido, irmão ou amigo.
Apesar de muita coisa ter mudado, esta herança do passado ainda se mostra como
realidade presente na vida contemporânea.
No entanto, a autora pontua que o mito do “eterno feminino” está prestes a ser
destruído. Se antes, a femilidade estava ligada às figuras: da donzela ingênua, da virgem
profissional, da mulher que valoriza o preço do coquetismo, da caçadora de maridos, da
mãe absorvente e da mulher que ergue o escudo da fragilidade contra a agressão
masculina, da dona-de-casa, da princesa, hoje a mulher faz questão de demonstrar sua
independência, seja ela financeira ou intelectual.
O espaço é invadido por imagens do feminino onde a narratividade de fragmentos,
coberta pelos aspectos da natureza feminina, rompem com a ideia de delicadeza e de
leveza, revelando o que se esconde por trás das mais sutis situações, escancarada nas
sangrentas circunstancias que violenta a mulher. Os estilhaços que distanciam a mulher
da menina e a segregação que a afasta de sua própria liberdade estão estampadas na
história contada por Aurita e aparta a ideia que associa a imagem da mulher como
objeto da representação masculina.
O trajeto por este espaço que se faz real suscita a ambiência mental, me colocando
em diálogo com meus próprios desejos, mas, sobretudo me proporcionando um diálogo
com mulheres que, de alguma forma, atravessaram meu processo de amadurecimento
criativo e pessoal. Estas mulheres foram representadas pela figura de Aurita, com a qual
eu pude compreender a condição de ser mulher em vista da realidade em que vivemos e
adquirir um olhar de transformação voltado para minha existência.
58

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho teve como objetivo manifestar a apropriação e a ressignificação das


próprias experiências como possibilidade de firmar-se enquanto artista, em virtude de
uma dramaturgia pessoal que se construiu partindo da matéria-prima disposta no âmbito
memorial e pelas experiências vividas. As análises e as reflexões feitas às vivências
permitiram a manipulação e o brincar com as imagens mentais, oníricas e oriundas da
imaginação, pelas quais pude transformar-me, reinventando-me em outras.

O processo da pesquisa onírica que guiou a trajetória até Bálsamo, me mostrou a


importância de se ter um trabalho que comunga das experiências pessoais e da produção
artística. Pois, ao analisar meu início no curso de Licenciatura em Teatro, quando
somente existiam as figuras e as imagens mentais quase enterradas pelo imemorável,
percebo que a partir desse resgate, houve um retorno, inclusive a mim mesma. Foi
possível reconhecer que as pequenas vibrações internas estavam prestes a saltarem para
fora de meu corpo, me mostrando sua grande possibilidade de luz. Como vimos nos
escritos de Didi-Huberman (2011) quando ele discorre sobre as pequenas luzes dos
vaga-lumes que podem ser enaltecidas pela união e força de várias delas juntas.

Retornar à casa primitiva, mesmo que em aspectos intuitivos e invisíveis, me


propiciou um diálogo com a minha própria criança que, antes adormecida, despertou-me
a potência criativa relacionada à infância e ao resgate da memória de quem eu fui numa
espacialidade vista com outros olhos. O conceito de presença (GUMBRECHT, 2010)
direcionou o eu passado no processo de ressignificação para um diálogo com o eu de
agora, suscitando as virtudes do “corpo-vida” (GROTOWSKI, 2010).

A condição da repetição imposta a Sísifo como destaca Lopes (1999) se


manifestou num contexto em que a perseverança e o desejo fizeram moradia,
preenchendo o vazio de impulso, através da inventividade, que se tornou objeto de
criação poética. A performance se mostrou como condutora na relação entre ficção e
realidade, me mostrando como posso parir outras de mim e vivenciar essas novas
existências.
59

As quatro figuras, Tuberosa, Malambo, Prenhe e Salito, manifestaram a


multiplicidade de Aurita e, consequentemente, a minha. Estas faces permitiram um
confronto individual que diz respeito à relação entre a minha memória e a reflexão sobre
a mesma, meu interno e meu externo, meu ‘eu’ passado e meu ‘eu’ no presente.

O eterno retorno e a perspectiva da mudança, situações diretamente associadas ao


labirinto (CHEVALIER; et al. 2018), permearam por todo processo desta pesquisa pelas
quais esclarecem as virtudes da criação, em busca da singularidade que permite o
encontro com as possibilidades de alteridade e multiplicidade, diante do ensejo da
presentificação cênica. Por conseguinte, o processual se manifestou num contexto
pedagógico, em que culmina a aprendizagem e reverbera nas experiências da realidade.

A desconstrução da imagem da mulher me permite revigorar a aspiração pela


liberdade, levando em consideração as questões que a sociedade associa ao feminino,
voltadas para o aspecto do mito do “eterno feminino” (Beauvoir, 1967), cujas
características nos colocam em condição inferior e aprisionadora. Refletir sobre a
condição em que estamos inseridas, permite olhar o mundo de forma transparente, em
vista das sutilezas que se camuflam pelas atitudes e escondem a real agressividade dos
fatos.

O fragmento performático Bálsamo transitou entre os aspectos do experimento


como possibilidade de descoberta pelo eu criança e da experiência como desconstrução
através do erro do eu adulto. O caminho se pautou na descoberta e no erro como
potencialidades do processo criativo na perspectiva híbrida que une as mulheres
relacionadas à memória e as mulheres relacionadas à ficção. A minha transformação
enquanto artista baseou-se na unificação das histórias que entrelaçaram pelas veias do
labirinto, o qual abandonou, em suas esquinas, algumas faces para ressurgirem outras.
Aurita é o embalsamamento dos fragmentos da memória, que advém do olhar cultivado
de uma criança e que permaneceu brilhando até a chegada de uma longa trajetória,
encontrando potência em sua imaginação para dar continuidade a sua existência
enquanto artista.
60

REFERÊNCIAS

ALBERT, Camus. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de
Janeiro: Record, 2018.

AUERBACH, Eric. Figura. São Paulo: Ática, 1997.

AUGÉ, Marc. Não Lugares. Tradução: Maria Lúcia Pereira. Campinas/SP: Papirus,
2012.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. Tradução de Antônio de Pádua
Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

__________. A Poética do Espaço. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo:


Abril Cultural, 1978.

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo – A experiência vivida. Tradução de Sérgio


Milliet. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967.

BROOK, Peter. A Porta Aberta: Reflexões sobre a Interpretação e o Teatro.


Tradução de Antonio Mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

CALVINO, Italo. Seis propostas para próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.

CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de
Janeiro: Record, 2018.

CHEVALIER, Jean. et al. O Dicionário de Símbolos. Florianópolis: Jose Olympio,


2018.

COHEM, Renato. Performance como Linguagem. São Paulo: Perspectiva, 2006.

__________. Work in Progress na Cena Contemporânea: criação, encenação e


recepção. São Paulo: Perspectiva, 1998.
61

DIDI-HUBERMAN, Georges. Sobrevivência dos Vaga-lumes. Tradução de Vera Casa


Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011.

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. Tradução de Rogério Fernandes. São Paulo:


Martins Fontes, 1992.

ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Tradução: Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro:


Zahar Editores, 1968.

FERRACINI, Renato. A Arte de Não Interpretar Como Poesia Corpórea do Ator.


Campinas/SP: UNICAMP, 2003.

FREUD. Sigmund. Obras Completas de Sigmund Freud. Tradução sob a direção


geral de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996.

GREINER, Christine. O Corpo: pistas para estudos indisciplinares. São Paulo:


Annablume, 2006.

GROTOWSKI, Jerzy. O Teatro Laboratório de Jerzy Grotowski 1959 – 1969. São


Paulo: Perspectiva, 2002.

GUMBRECHT, Hans Ulrich. Produção de Presença. São Paulo: contraponto, 2010.

JACOBY, Sissa. A infância ou a arte de andar e Ler: uma leitura de José [de]
Rubem Fonseca; KRALIK ANGELINI, P.R. Eu sou uma saudade do que fui:
vestígios do narrador em exercício autobiográfico na narrativa portuguesa
contemporânea. In: MELLO, Ana Maria Lisboa de. Escritas do eu: introspecção,
memória, ficção. Rio de Janeiro: Viveiros de Castro Editora Ltda, 2013. parte 2, p. 115-
131; parte 3, p.203-230.

JARRY, Alfred. Alguns Textos Teóricos de 1896. Seleção e tradução de Eugénia


Vasques. Portugal: Amadora, 2011.

__________. Gestas y Opiniones Del Doctor Faustroll, Patafisico. Argentina:


Editorial Atuel, 2004.
62

KASTRUP, Virgínia. O Funcionamento da atenção no trabalho do cartógrafo. In:


PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (Orgs.) Pistas do método da cartografia:
pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2015.

LOPES, Cássia. Um Olhar na Neblina. Salvador: Empresa Gráfica da Bahia, 1999.

LÚCIA, Vera. A Procura da Lucidez em Artaud. São Paulo: Perspectiva, 1996.

RIAUDEL, Michel. Devemos temer a antropofagia? In: Revista Periferia. [online].


2011. vol.3, n.1. ISSN 1984-9549. Disponível em:
<http://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/periferia/article/view/3406/2333> Acesso
em: 02 de novembro de 2018.

SAFATLE, Vladimir. O circuito dos afetos: corpos políticos, desamparo e o fim do


indivíduo. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

SOUSA, D. D., PRADO, L. C. & PICCININI , C. A. Representações Acerca da


Maternidade no Contexto da Depressão Pós-Parto. In: Psicologia: Reflexão e
Crítica. [online]. 2011, vol. 24, n.2, pp. 335-343. ISSN 0102-7972. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722011000200015> Acesso em: 02 de novembro
de 2018.

SOUZA, Eneida Maria de. Janelas Indiscretas: Ensaios de crítica biográfica. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011.

UCHÔA, M. Darcy. Psicopatologia da despersonalização. In: Arquivo de Neuro-


Psiquiatria. [online]. 1959, vol.17, n.3, pp. 267-284. ISSN 0004-282X. Disponível em:
<http://dx.doi.org/10.1590/S0004-282X1959000300003> Acesso em: 02 de novembro
de 2018.

Você também pode gostar