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NATAL/RN
2018
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NATAL/RN
2018
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BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Camila Maria Grazielle Freitas
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
_______________________________________________
Prof.º Dr.º Alex Beigui de Paiva Cavalcante
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)
_______________________________________________
Prof.ª Dr.ª Nara Neide Ciotti
Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
5
AGRADECIMENTOS
À minha mãe, Waneide, por nunca me deixar desistir, por ser meu porto seguro,
por ter sido a mãe de minha filha no período em que eu mais precisava, por me fazer
acreditar que conseguiria e por ter me dado as melhores irmãs do mundo.
À minha irmã Wanessa, por ter sido minha mãe nos anos em que mainha
precisava nos deixar para trabalhar; eu reconheço cada esforço seu. Por me acolher em
seu mundo encantado que é o Monte do Sol, juntamente com seu companheiro Bico.
Pelas conversas, pelos conselhos e pela referência que és para mim.
À minha irmã Marcely, por me mostrar sempre o lado bom das coisas e que,
apesar de tudo, foi você que me ensinou sobre a aceitação, me fazendo sentir felicidade
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por ser do jeitinho que eu sou. Por me mostrar a possibilidade de olhar o mundo com
sensibilidade e humanidade. Eu te amo muito.
À minha querida irmã Paloma, que é meu espelho, meu ombro amigo, meu
aconchego, minha força pra continuar. Cuidou e olhou para minha filha com os meus
olhos de mãe, me mostrando a força da amizade em cada lágrima que escorria por sua
bochecha, que inclusive é mais fofinha que a minha. Deu-me a mão como uma criança
abraça a outra.
À minha irmã caçula Acácia, que apesar de ter sido a última a chegar em casa,
me mostra a cada dia o poder da justiça e da coerência, da calma e da pureza, da
generosidade e do carinho. E, ainda mima minha filha como ninguém. Não perde nem
pra mainha.
Ao meu companheiro Adilis, por cuidar, junto comigo, tão bem de minha filha e
com muita sabedoria, principalmente nos momentos turbulentos desta jornada. Por ter
me mostrado sua sensibilidade e que, apesar disso, diariamente, tenta amolecer suas
verdades endurecidas pela sociedade. Por caminhar junto a mim nessa eterna
desconstrução da vida. Por me apoiar, por me ajudar nas indecisões geminianas, por me
levantar quando o autoboicote da preguiça reina sobre meu corpo. Obrigada, eu te amo.
RESUMO
Esta pesquisa tem como objetivo apresentar uma reflexão teórica e prática acerca do
meu percurso durante o curso de Licenciatura em Teatro (2014-2018) e da construção
das quatro figuras intituladas: Tuberosa, Malambo, Prenhe e Salito, desenvolvidas nas
disciplinas de Elementos de Treinamentos Pré-expressivos (2016.2), Estudos da
Performance (2016.2) e TCC I: Espetáculo (2017.1). O trabalho baseou-se nos aspectos
da memória voltados para a infância, em vista da elaboração de imagens mentais,
oníricas e imaginárias permeadas pela ideia do feminino em desconstrução, tendo como
resultado a produção do fragmento performático Bálsamo. O extrato narra, através das
ações da persona central Aurita, os fatos existentes em minhas experiências de forma
hibrida e ressignificativa, transformando a subjetividade do memorável em poética
pessoal.
ABSTRACT
This research aims to present a theoretical reflection and practice about my journey
during the course of degree in theater (2014-2018) and the construction of four pictures
titled: Tuberosa, Malambo, Prenhe and Salito, developed in disciplines of
Preexpressive Training Elements (2016.2), Performance Studies (2016.2) and TCC I:
Show (2017.1). The work was based on aspects of memory for childhood, in view of the
development of mental images, dreamy and imaginary permeated by the idea of the
female in deconstruction, resulting in the production of the performance fragment called
Bálsamo. The extract tells, through the actions of the central persona Aurita, the facts
that exist in my experiences of hybrid form and remeaned, transforming the subjectivity
of the memorable in personal poetic.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................12
REFERÊNCIAS ............................................................................................................60
12
INTRODUÇÃO
Para tanto, o trabalho está dividido em dois capítulos, dentre os quais o primeiro
apresenta uma contextualização sobre a memória enquanto potência para a resistência
artística e o segundo tenta esmiuçar o extrato performático a partir da espacialidade e
das ações, além de analisar o aspecto feminino que diz respeito às manifestações das
imagens da memória e sua materialidade cênica.
e como preencher o vazio, numa perspectiva da inventividade, que tende a nos puxar
para trás com intuito de nos fazer desacreditar no processo de criação artística.
CAPÍTULO I
TRAJETÓRIA (IN)DISCIPLINAR
1
Apresentado na mostra de composições coreográficas no início de 2017, no evento Tudo à Mostra,
organizado pelos alunos e pela coordenação do curso de teatro, no final do ano de 2017 e no Congresso
Reperformar o Afeto no início de 2018.
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Diante desse fato, considerando as figuras que surgia repetitivamente através das
minhas memórias, pude sondar esta reflexão que explica a interpretação no contexto
deste trabalho. As matrizes desenvolvidas são femininas, de aspectos velhos ou
relacionadas com o sofrimento, com a dor e com a loucura. Por trás de certa
obscuridade, observei que os reflexos contidos nessas aparições expunham revelações
que falavam muito sobre as figuras femininas existentes na minha família. Assim,
tracei um paralelo entre as fantasias da memória que prefiguram as vivências maternais
da minha realidade. O encontro entre as fantasias e as experiências da realidade, bem
como figuras reais e fictícias, compuseram o fragmento Bálsamo.
aparição que persiste e sobrevive diante da feroz luz do poder. As grandes luzes tentam
apagar o brilho do pensamento supostamente ínfero das luzes pequenas. E é justamente
nesse brilho efêmero que incide a ideia da resistência poética retratada aqui.
A partir da ideia dos vaga-lumes trazida pelo autor, me aproprio dos pequenos
lampejos de contraposição que fazem jus às imagens evocadas pela criança ou pelo
poeta, que geralmente apagam-se diante da imensa luz dos convictos. Entretanto, a
mesma luz que se apaga, reacende-se através de sua perseverança e intuição ingênua. O
brilho passageiro em movimentos de compressão e de expansão se condensa durante a
infância tornando-se política do ser. Estes passos contemplaram o processo de criação
de Bálsamo, que resiste a um diálogo com as memórias do passado, pautado na sua
ressignificação através da imaginação, e retornam-me impulsionando o meu processo de
criação artística.
Antes mesmo de ter contato com estudos sobre o teatro, já questionava a relação
entre o imaginário do ser e sua existência no universo. E nisto, posso incluir fortemente
fases da infância, nas quais eu e minhas irmãs, longe da proteção de nossa mãe que
precisava nos deixar pra trabalhar, inventávamos nosso mundo diante de toda aquela
liberdade.
Em nossa antiga casa não havia quartos ou se quer cantos da casa que pudéssemos
nos resguardar. Nas minhas mais distantes lembranças, vivíamos num único ambiente
até meados dos meus 10 anos de idade. Nos momentos de angústia, me trancava em
meu mundo e, coberta por um lençol, protegia-me dos sentimentos ruins. Nas ocasiões
de solidão, repugnava a mim e aos meus pensamentos, reforçando o desejo e a
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Houve momentos, até alcançar algum entendimento sobre a experiência poética, nos
quais meu corpo embalsamado de memórias me possibilitava a consciência de acessar
visões e aparições de imagens mentais. As imagens que me surgiam em sonhos da
infância deslocavam-me para outro sentido: o imaginário. Estagnada diante da
necessidade de fuga, encontrava nesses sonhos um estado confortável. Eu não sabia
exatamente o que isso tudo significava, quase sempre eu findava por escrever sobre as
imagens num caderno e até então isso já me satisfazia.
Em um dos sonhos, uma voz intuitiva me ordenara que eu corresse até chegar ao pé
de uma ladeira longa e escura, que alcançava o interior de uma casinha pequenina, com
suas paredes feitas de escuridão. Chegando a casa, me dei conta de que o dia era escuro
e a noite clara. Então me indaguei: de que ou de quem eu corro? Para onde? Por quê?
Corria do rosto “feminino” do céu, um rosto forte com cara de chuva e vento molhado,
como se estivesse segurando uma mangueira furada que rega o espaço. Eu sempre
conseguia chegar até a casa para proteger meu corpo e meus olhos em seu interior. Isto
me retornara constantemente ao longo da minha infância.
2
Neste sentido, Segundo Peter Brook, “Para que alguma coisa relevante ocorra, é preciso criar um espaço
vazio. O espaço vazio permite que surja um fenômeno novo, porque tudo que diz respeito ao conteúdo,
significado, expressão, linguagem e música, só pode existir se a expressão for nova e original. Mas
nenhuma experiência nova e original é possível se não houver um espaço puro, virgem, pronto para
recebê-la.” (BROOK, 2010, p. 4).
3
Obras psicológicas completas de Sigmund Freud (FREUD, 1996).
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elemento familiar reprimido. Quando esse elemento explode, ele desvela-se como uma
realidade estranha. Portanto, a condição de renascimento do impulso primitivo reflete
no sujeito o estranho, já que o mesmo viveu repressão em sua origem. Minhas imagens
espelhavam anseios pequeninos e inocentes que latejavam diante do vasto mundo
prestes a me engolir. E como foi insuportável conseguir deixá-los sobreviver até o
momento em que alcançassem sua menor virtude no presente.
Em sua obra Produção de Presença (2010), Hans Ulrich Gumbrecht elucida que
a presença está ligada à sensação de ser a corporificação de algo. A intensidade da
presença pressupõe uma oposição à procura por sentidos (explicações) que instaura a
distância e desvia o estado de presença à sua redução. A serenidade do corpo advém da
vontade de querer ser e de estar ali, fazendo possível a ação da experiência diante da
presença. No entanto, há uma alternância entre intensidade e apaziguamento perfeito,
são nesses instantes que conseguimos viver momentos de presença; quando os
pensamentos que nos trazem as lembranças relacionadas aos nossos sentimentos
individuais, sejam eles alegrias ou tristezas, já não interferem ou distanciam nossa
relação com os aspectos externos. Desse modo, isolamos esses pensamentos particulares
no corpo e a distância se transforma em estado de presença, cuja experiência alcança a
virtude de estar-no-mundo.
Diante disto, Lopes traz ainda, nos seus discursos sobre o aspecto da repetição
que atravessa o mito de Sísifo, a potência que está por trás deste ato e as questões que
resistiram ao meu processo de sobrevivência. Sísifo como reflexo do poeta, ao empurrar
o rochedo até o alto da montanha e repetir incansavelmente a ação, nos revela um tom
irônico que transforma a inutilidade do gesto, a princípio tratada como infernal, numa
poética do fazer como expressão de vontade e de desejo. Assim, a ação que se apresenta
como um fardo a ser cumprido por Sísifo torna-se ensejo de libertação.
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4
Utilizarei grafias distintas para diferenciar as “Auritas”, as quais representam a personagem fictícia e a
personagem real. Sendo em itálico para referir-me à figura de Bálsamo e sem destaque a Aurita que
existiu na vida real.
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nessas quatro faces e está presente como inspiração primordial para condensação das
figuras que reexistiram no meu imaginário.
Na disciplina de Elementos de Treinamentos Pré-expressivos, ministrada pelo
professor Robson Haderspeck, no segundo período do ano de 2016, tive a oportunidade
de iniciar um trabalho voltado para imagens concretas. Nessa ocasião, pude perceber
que minhas escolhas dialogavam, intrinsecamente, com momentos da infância nos quais
eu me encerrava em forma de caixa. A princípio, foi solicitado pelo professor que
trouxéssemos duas imagens que nos representassem ou nos emocionassem. Assim,
ficou estabelecido que partiríamos das imagens de uma árvore e de uma pintura.
A árvore escolhida por mim foi o Umbuzeiro, de nome científico Spondia Tuberosa.
5
Umbuzeiro (Spondias Tuberosa) de Rosa Melo. Disponível em <https://olhares.sapo.pt/umbuzeiro-
spondias-tuberosa-foto8016827.html> Acesso em: 23 de novembro de 2018.
26
6
“The Combing of Grand-daughter” do pintor grego Georgios Iakividis, 1886. Disponível em:
<http://wiki.cultured.com/people/Georgios_Jakob> Acesso em 02 de outubro de 2018.
7
“Há um barco esquecido na praia” de Padre Zezinho.
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iam surgindo. Com a construção corporal, vieram os trabalhos dos ressonadores para
encontrar as vozes das figuras. Minhas matrizes quase não falavam, mas foi na
repetição de seus próprios nomes que encontrei o impulso da vibração grave em suas
vozes. Elas são como o barro denso e pesado, rachando-se de sede, sem nem se quer
haver saliva em suas bocas. Mas são como o fogo também, inconstante e leve diante de
suas existências, disparando uma luta contra as cinzas que confundem com o que as
aprisionam.
A floresta estava posta, e as figuras também. Elas ativavam-se como se
brotassem das gotas de suor que escorriam pelos corpos até chegar ao chão. Algumas
me traziam mensagens das falecidas carnes de meus familiares que morreram afogados
no álcool, me traduzindo o cheiro das paredes do quarto pequeno, nos fundos da casa de
minha avó materna, que servia de túmulo todas as vezes que seus filhos morriam. Ah, e
como morriam. Constantemente. Incessantemente.
Aurita se concebe aqui em mulher árvore, vinda das raízes do profundo solo e
destinada a contaminar o espaço com seus frutos que de tanto comerem, ardiam os
dentes e quebravam-se as gengivas alheias. O umbu de casca plana, com as veias a
explodirem, guardava dentro de si toda força materna de várias gerações. Os cadeados
de minha caixa, ao menos, foram rompidos e a memória se refez na constante
metamorfose de presentificação. A caixa, através de sua ressignificação, já não
interrompe ou esfuma o processo de experiência, pois contem frestas de luzes que
surgem em decorrência do contato com o espaço e se colocam disponíveis para intervir
e interagir na memória.
Nesse percurso, ainda no segundo período do ano de 2016, em paralelo a
Tuberosa e Malambo, surgem rastros da Figura Prenhe.
31
Saflate (2016) discute sobre o salto no vazio como redenção e abertura às possibilidades
de afetos que a queda está disposta a nos causar, onde a impotência se coloca como
obstáculo que esconde o impossível. No entanto, há nisso, os perigos a quem se propõe
a esse encontro com o chão. Segundo o autor, o poder reside nos corpos que se sujeitam
a quebrarem-se diante da dureza do asfalto, decompondo-se e despossuindo-se para que
surjam novos circuitos de afetos. O desamparo, inesperadamente, trata de nos mostrar o
impossível através do papel da arte, pois a situação do sujeito desamparado implica no
reconhecimento de sua impotência, em contrapartida, ao ajuste pela necessidade de
transformação que desvia dessa condição revelando-se em criação.
Recorro, aqui, aos meus sonhos de criança, quando, por vezes eu adormecia
vigiando o teto e contando suas telhas. Ao chegar o sono, o teto se derretia diante de
meu corpo com sua voz suave, quase calando, gritando silêncios ao meu ouvido e me
dando forças para voar. Durante o voo, eu me desviava das árvores, dos fios dos postes
e das nuvens que cruzavam o meu caminho. Justo no momento que eu estava possuída
da certeza de estar no ar, eu despertava estagnada, com meu corpo estático após a
sensação de queda. E um vazio tomava conta de mim. A certeza pura de ter vivido
aquilo entrava em conflito com o choque que a realidade provocara.
Portanto, o vazio nesse processo não é inerte, mesmo surgindo em detrimento de um
fim, ele suscita no sujeito uma possibilidade de recomeço. A arte é responsável pelo
acesso ao impossível, que nos faz transformar o nada em brechas que vazam múltiplas
alternativas possíveis. O vazio é um espaço infinito onde se morrem e se renascem
saídas e caminhos manipulados pela criação.
O processo de decomposição de Aurita, instaurado com a presença de Salito,
direcionou-me à ideia que compreende esse estado, onde o que eu sentia resumia-se no
vazio que repercutiu na ação do corpo que se entrega e se desmonta, e enrijece seus
movimentos como o cimento secando na parede. No entanto, é nesse momento que
Aurita se firma em Bálsamo. A partir disso, a experiência volta-se para o renascimento
ou para sua lucidez que desperta existência.
Na obra A Procura da Lucidez em Artaud (1996), Vera Lúcia explica que, para
Artaud, o nascer significa reconhecer uma alteridade que está dentro de si e que não
pode nascer porque é como outro independentemente, enxergando nessa falha a
possibilidade da poesia como liberdade. Portanto, deseja-se o relato verídico da
fragmentação que se unifica pela força da alma. O poema, então, possibilitaria a
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CAPÍTULO II
BÁLSAMO
2.1 A espacialidade
8
“Literalmente poderíamos traduzir por “trabalho em processo”, procedimento este que tem por matriz a
noção de processo, feitura, iteratividade, retro-alimentação, distinguindo-se de outros procedimentos que
partem de apreensões apriorísticas, de variáveis fechadas ou de sistemas não-iterativos.” (COHEN, 2006,
p. 17)
41
O espaço cênico, antes disposto em caixa (como mostra a Imagem 6), agora se
configura em labirinto no qual as saídas e entrecruzamentos assimilam a conduta
memorial e a multiplicidade do contexto performático. Assim, a perspectiva pedagógica
da criação se caracteriza pelo aspecto processual manifestando nos saberes e nas
descobertas voltados tanto para os elementos cênicos quanto para as experiências
pessoais da memória.
expelidos ou retirados de lá, como por exemplo, as bilocas no sutiã e uma redinha de
náilon (utilizada geralmente para embrulhar frutas) próxima ao umbigo e preso na meia.
A maquiagem sugere a mesma ideia, em que é basicamente toda na cor bege clara,
na qual uniformiza o rosto, dando aspecto doentio ou fantasmagórico, objetivando a
ressignificação e a desconstrução do corpo feminino. No entanto, nas primeiras
apresentações, além da segunda pele, o corpo enrolado com fita isolante preta
complementava o figurino, e a maquiagem demarcava os traços do rosto e sombreava as
profundidades, adquirindo um aspecto sombrio à persona. No geral, a caracterização
traduz as figuras mentais que quase sempre se camuflam pela espacialidade do
imaginário e do corpo, apresentando-se como uma desconfiguração do corpo feminino
em virtude dos padrões impostos pela sociedade.
2.2 As ações
Em Bálsamo, permito-me um diálogo com Aurita que expressa muito mais uma
perspectiva do olhar transparecido e contagiado pelo instante, do que qualquer tentativa
de mostrar/apresentar uma relação do passado fidedigno. As lembranças do passado,
impregnadas em mim, passaram pelo processo de ressignificação no momento da
criação no qual se relacionaram com o meu corpo e com as minhas experiências do
agora. A performance me abriu as portas para experimentação, onde é possível se
conectar com as causas híbridas das ações, permeadas pelo tempo/espaço do passado e
revigora-se no tempo/espaço presente.
Para começar a pontuar sobre as ações, gostaria de deixar claro que não,
necessariamente, existe uma ordem ou linearidade na execução dos movimentos de
Aurita. Contudo, utilizarei um roteiro9 que compreende quatro atos identificados pelas
ações principais (como mostram as fotografias a seguir: imagens 6, 7, 8 e 9) nas quais
se desmembram em outras, por meio da necessidade de improvisação relacionada às
circunstâncias reperformáticas.
Ato I
9
Os atos serão separados e identificados pelas quatro ações: pentear, parir, violar e orar, somente na
escrita do trabalho, com intuito de melhor transmitir as simbologias e significados voltados para cada
ação, adquirindo mais clareza ao leitor.
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Inspirada na performance Art Must Be Beautiful (1975) - (A arte deve ser bela/ O
artista deve ser bonito) de Marina Abramovich, a primeira ação que irei mencionar diz
respeito ao gesto de pentear os cabelos (representada na imagem 7, p. 46). Aurita se
penteia em movimentos que se alternam em rapidez ou lentidão, através da mão que
pesa ou flutua sob a cabeça no decorrer da repetição. Contudo, o gesto reflete a imagem
da pintura (imagem 2, p. 25) precursora da figura de Malambo, manifestando sua
colheita dos fios desprendidos e dispersos pelo ar. A relação entre a performance de
Abramovich e a pintura de Iakividis refletiu, nesta ação, como um sentimento de
melancolia e/ou de nostalgia no que diz respeito à sensação de encontro, o qual coloca o
eu criança frente ao eu adulto. A criança com seu efeito de criação partindo da ausência
de experiências e o adulto em perspectiva de desconstrução e de desvio assumindo o
erro como parte da experiência. Busco com a ação representar a libertação dos anseios
que Aurita carrega. Ela penteia para se purificar da peste manifestada pela sociedade
machista e limpar as impurezas que afetam seu corpo. Os cabelos são da avó que foi
maltratada pelo avô, são da mãe, assediada pelo próprio pai, são das irmãs, da filha, das
sobrinhas, meus e de Aurita. Os fios que caem ao chão são apanhados, acolhidos e
retirados deles os piolhos, as mazelas. Aurita passa pelo seu corpo, contorcido e
espremido, os cabelos que com o auxílio das mãos viram um ninho depositado no
umbigo.
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Então, ela puxa a redinha escondida na meia e coloca na cabeça, sufocando-a. Aqui
há uma sensação de fuga, onde o próprio corpo se mostra para Aurita como algo
estranho. Ela tenta através das contorções e do sufocamento se dissociar de si mesma, se
livrar de sua condição no mundo. A persona carrega várias realidades em si, mas nesse
momento nenhuma surge. A redinha parece fatiar a cabeça, cujos pedaços não
ultrapassam os fios de náilon que se comportam como grades. O corpo selado aponta
para a tentativa de fuga, pois as linhas são como grades que a aprisionam. Aurita vive
neste ato a circunstância de sua despersonalização.
Ato II
Após este ato, inicia-se uma caminhada de dores. Aurita percorre pelo corredor de
pessoas em movimentos de equilíbrios e desequilíbrios, causados pela dor do parto. Aos
poucos, seu corpo expele as bilocas que estão impregnadas e que representam tanto os
nascidos daquela mãe, quanto o leite pedrado pesando nos seios. Os objetos são
10
Paul Ferdinand Schieder psiquiatra, psicanalista e pesquisador Austríaco (1886-1940).
49
espremidos e expulsos através das mãos que mastigam o peito e a vagina, em busca do
livramento da dor. Ao caírem pelo chão, as estruturas esféricas provocam barulhos que
despertam sentidos de quebra, de incômodo.
Aurita, após a proliferação de Prenhe, veste a saia feita com tiras de elásticos
brancos de Salito e entrega as pontas ao público continuando seu percurso. Sempre
contrariando a força que a puxa para trás e provoca um peso maior nos movimentos do
corpo. O elástico representa a mobilidade com que o corpo da persona se entrega à dor,
ao esquecimento, acentuando a incerta direção entre a vida e a morte.
e escreve sua passagem pela vida. O vento se corta a facadas, enquanto os cabelos
derramam no chão a secreção produzida no colo. Seu ventre é um molambo que se
alimenta da fome. Finaliza-se oca, vazia. Seus órgãos estão fora de si. É uma carcaça de
vento.
Ato III
Ao chegar a determinada esquina do labirinto, inicia-se a relação com o objeto
vermelho, feito com uma beterraba e certa quantidade de água dentro de uma camisinha
feminina, cuja amarração sugere diferentes significações. Aurita movimenta-se
51
A ação, à primeira vista, indica uma relação com o canibalismo, com a antropofagia
que exprimem o ato de comer carne humana e faz parte de alguns rituais indígenas, cuja
característica resulta na apropriação das qualidades e virtudes pertencentes ao sujeito a
ser comido, pelo sujeito que o deglute. Neste ensejo, durante a pesquisa sobre o assunto,
encontro a questão que impulsiona a expressão do desejo revelado pelo terceiro ato. Em
seu artigo Devemos Temer a Antropofagia?, Michel Riaudel (2011) ressalta a
polissemia relacionada à palavra antropofagia no contexto do Movimento
Antropofágico, fundado pelo escritor Oswald de Andrade, na década de 1920.
Ato IV11
11
Este ato pressupõe a ideia do eterno retorno e instaura, tanto em aspecto prático quanto em aspecto
teórico dramatúrgico, a descoberta de uma poética voltada para a repetição que passo a passo se depara
com o início do ciclo que diz respeito à criação e a vida.
53
12
do mundo à areia do sertão. Me faço vermelha, sangrenta, facão” . A ladainha
repetitiva e incessante parece acalentar sua existência, assim como seu corpo. O manto
branco que descansa sobre suas costas aos poucos se mostra com sintomas da caixa de
minha infância, que me protege, me guarde e me ilumina. Enquanto passa as mãos por
cada conta do colar, seu corpo, começando pelo centro (umbigo) vai amufinando até
que sua imagem some por dentro do véu branco. Seu corpo, agora externamente intacto,
embalsama todas suas memórias que pulsam internamente.
Os atos: pentear, parir, violar e orar norteam o trajeto pelo labirindo que visa
mostrar-lhes o extrato de minha memória na perspectiva performática e criativa, onde
há a possibillidade de vivenciar experiências e ressignificar a nós próprios, em um
contexto em que o corpo age e expressa a política que acreditamos. A experimentação
sempre estará presente em Bálsamo, e o diálogo com o externo é essencial para minha
transformação e aprendizagem. Aurita carrega em si muitas marcas, dentre elas a
12
Escrita desenvolvida por mim durante um exercício de descrição de imagem, vivenciado na disciplina
de Expressão Corporal IV, ministrada pela professora Carla Martins (UFRN).
54
cicatriz em seu corpo de mulher que pulsa a dor de outras. Seu caminho não é linear,
muito menos fácil, ele surge como surgem as esquinas do labirinto, onde e cada mulher
se depara com uma diferente, ou mesmo fases de si mesma. E acolhe-as, tomando pra si
aquelas dores. Encontra-se com o cabelos soltos ao vento, sofridos, mas firmes, como a
raíz de uma árvore, que mesmo ao adentrar no solo de uma casa não se parte nem se
quebra. Em cada esquina há uma biloca, batendo e catucando o chão com sua firmeza.
Estas são as crianças que, mesmo ouvindo a fala dos adultos, não absorve sua
negatividade.
2.3 O feminino
“Em um lapso de memória, minha mãe era uma velhinha com a face marcada
por traços esqueléticos adquiridos durante o tempo de vida. Ela se balançava numa
rede que acolhia seu corpo intacto exceto, seus olhos e os punhos feitos de cordão
retorcido rangindo ao fissurarem-se nos tornos, que por ora fazia parte de si. Havia
mulheres presas dentro de suas casas e homens soltos na rua que eu vigiava pela
brecha da janela, vendo-os dançar mundo afora. Quando não, eles espiavam também,
de fora pra dentro, invadindo nosso mundo particular. Eu me lembro de ficar embaixo
da rede surrada de minha mãe, balançando nas alturas. Nós, filhas, nunca poderíamos
encostar a pele de nossa mãe. Os homens lá fora pareciam famintos, gritavam e
tentavam nos arrancar de dentro de casa. Nesse momento (ainda dormindo) tentei
pegar um papel e escrever tudo aquilo, porém meus passos eram muito lentos e eu não
tinha força para chegar até a cômoda que comportava a caneta e o papel. Enquanto
isso, uma de minhas irmãs, sem querer, acabou encostando em mainha que em
instantes, transformou-se em bolhinhas pesadas e molhadas que caiam no chão como
espécie de sabão e nos engolia pouco a pouco. Os homens logo invadiram a casa e com
seus próprios pés, estouraram as bolhas que jazia nossa mãe. Depois de um tempo,
compreendi que ela já havia falecido, na rede restava só seu corpo sem vida, sem
alma.13”
13
Sonho (ou pesadelo) vivenciado no ano de 2005 (quando eu tinha 12 anos de idade). O mesmo foi
retirado do papel e escrito em arquivo virtual em meados de 2012 (quando eu tinha 19 anos de idade),
55
pois o caderno já estava se despedaçando. A escrita foi também reestruturada em vista das necessidades
de adequação à ortografia e aos aspectos da estrutura textual.
56
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALBERT, Camus. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de
Janeiro: Record, 2018.
AUGÉ, Marc. Não Lugares. Tradução: Maria Lúcia Pereira. Campinas/SP: Papirus,
2012.
BACHELARD, Gaston. A Poética do Devaneio. Tradução de Antônio de Pádua
Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CALVINO, Italo. Seis propostas para próximo milênio. Tradução de Ivo Barroso. São
Paulo: Companhia das Letras, 1990.
CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. Tradução de Ari Roitman e Paulina Watch. Rio de
Janeiro: Record, 2018.
JACOBY, Sissa. A infância ou a arte de andar e Ler: uma leitura de José [de]
Rubem Fonseca; KRALIK ANGELINI, P.R. Eu sou uma saudade do que fui:
vestígios do narrador em exercício autobiográfico na narrativa portuguesa
contemporânea. In: MELLO, Ana Maria Lisboa de. Escritas do eu: introspecção,
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131; parte 3, p.203-230.
SOUZA, Eneida Maria de. Janelas Indiscretas: Ensaios de crítica biográfica. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2011.