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MAURO BASTOS GONÇALVES

Três interpretações estéticas: o “Íon” e “A República” de


Platão e “O mundo como vontade e representação” de
Schopenhauer

Trabalho apresentado na
disciplina Estética I

Rio de Janeiro
2009-1
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1. Introdução ....................................................................................................................... 2
2. A arte no Íon ................................................................................................................... 3
3. A arte em A República .................................................................................................... 6
4. A concepção estética de Schopenhauer ........................................................................ 11
4.1 A influência de Platão........................................................................................... 11
4.2 O mundo como vontade e representação .............................................................. 12
5. Referências bibliográficas ............................................................................................ 16
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1. Introdução

Este trabalho visa apresentar três interpretações estéticas quais sejam aquelas
propostas nos diálogos Íon e A República de Platão, bem como na obra O mundo como
vontade e representação de Schopenhauer.
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2. A arte no Íon

Neste diálogo se encontram dois personagens: Sócrates, o mestre perguntador, e


Íon, um rapsodo, porta-voz dos poetas, transmissor da poesia.

Íon está chegando de Epidauro, cidade onde teria obtido a vitória nos concursos
entre rapsodos que lá se organizavam. O rapsodo lisonjeado com os elogios de Sócrates,
responde: “Mas assim será, se o deus quiser!”. É justamente esta frase que o rapsodo
pronuncia sem maiores pretensões que vai mover o diálogo.

Sócrates prossegue sua lisonja dizendo invejar o “aspecto externo” dos rapsodos,
sempre muito bem alinhados. Mas é também invejável a capacidade dos rapsodos para,
além das palavras do poeta, penetrar-lhe o pensamento. Aqui um primeiro ponto fica
estabelecido. O rapsodo, pelo menos o bom rapsodo, é aquele que, além de dizer o que o
disse o poeta, sabe dizer sobre o que o poeta disse. É o seu interprete. Com o que Íon
prontamente concorda. Pelo menos no que diz respeito a Homero, que é a sua
especialidade, diz ser a maior autoridade, tanto declamativa quanto interpretativa. Sócrates
prossegue tentando estabelecer novos pontos, premissas com as quais pretende enredar seu
companheiro.

Seria Íon capaz de falar sobre outros poetas que não Homero? Desde os primeiros
passos do diálogo, seu autor, Platão, parece querer deixar claro que não se quer discutir
Homero, apenas. Ainda que Íon seja declaradamente um especialista em Homero, a questão
a ser discutida de fato vai aos poucos se revelando. Mas o rapsodo só se sente capaz nas
questões homéricas.

Ora, mas se a respeito de muitas coisas estão de acordo os poetas, se tanto Homero
quanto Hesíodo, sobre determinadas coisas, dizem o mesmo, nosso rapsodo, pelo menos,
no que diz respeito a essas coisas sobre as quais dizem o mesmo os poetas, deverá sair-se
bem ao falar sobre o que disseram os dois. Estabelecida a proposição, Sócrates pergunta a
Íon o que se passa no caso contrário, quando os poetas a respeito do mesmo não dizem o
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mesmo. Só que antes mesmo de ser esboçada uma resposta, muda a argumentação,
introduzindo um elemento particular. Um exemplo concreto.

O objeto agora é a arte de predizer o futuro, sobre a qual falaram ambos os poetas.
A respeito da arte, quem é o mais apto para julgá-la, o rapsodo ou o poeta? Íon concorda
que é o poeta detentor de tal arte. Nesta passagem fica claro que o alvo do diálogo não é
Homero mas sim a própria poesia. No momento a pergunta não declarada mas feita é pelo
objeto da poesia.

A respeito do que falam os poetas? De uma forma geral todos os poetas falam das
mesmas coisas. Mas se falam do mesmo por que não dizem o mesmo a respeito de tais
coisas? Surge a questão de saber por que é então que Íon é incapaz de compreender a
poesia dos outros poetas. Chegamos ao argumento central. Que Íon de uma forma sintética,
meio que sem querer, já havia enunciado: “... se o deus quiser”. O rapsodo não possui arte
(techne) nem conhecimento (episteme). Sem técnica, sem ciência, está sujeito à vontade das
musas. Ora se Íon houvesse chegado a ser um dos melhores intérpretes de Homero por
meio de uma arte determinada, o que o impediria de interpretar os outros poetas? Isso se de
fato as obras inspiradas pelas diversas musas constituírem uma poética. Sócrates lança a
dúvida. Íon afirma a existência de uma poética.

A musa entusiasma o poeta que, por sua vez entusiasma o rapsodo e este a
audiência. Toda relação efetiva que se mantém com a poesia. Para participar dessa corrente
é preciso não estar consciente de si mesmo, não agindo de acordo com a própria capacidade
intelectiva e tornando-se assim um meio através do qual possa fluir a presença das musas.

Dentro desta cadeia o rapsodo ocupa uma posição intermediária entre o poeta e o
espectador. Ele é aquele que traz aquilo que o poeta trouxe da musa.

Parece então estar mais do que evidente que não é por meio de uma arte específica
que alguém se torna poeta ou rapsodo. Só o dom divino é capaz de engendrar o poeta.
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Sócrates vai então através da lembrança de vários trechos da Ilíada e da Odisséia


mostrar que o poeta na maior parte dos casos não está habilitado a falar a respeito daquilo
que fala. Com o que o poeta não se torna mais que uma espécie de embusteiro e seus
poemas vazios.

Aos poucos os temas homéricos vão se mostrando alheios ao saber do rapsodo.


Sócrates insiste: qual seria então o saber específico de Íon? Este já completamente
emaranhado na lógica socrática prossegue afirmando que sua techne diz respeito a todas as
passagens das obras de Homero. Com esta resposta Íon põe por água abaixo aquilo que já
havia concordado. Múltiplos e diversos são os temas homéricos e para cada qual se
pronuncia com maior propriedade aquele que detém o conhecimento específico relativo a
cada tema. Portanto não pode a arte do rapsodo referir-se a todas as coisas.

Ao porta-voz dos poetas refugiar-se no seio da linguagem. Sua arte se situa no


âmbito do dizer humano. Mas o filósofo mostra que nem aí o rapsodo pode esconder-se. A
linguagem é um ser no mundo, ou mais, é expressão da mundaneidade daquele que dela se
utiliza e, como tal, está desde sempre misturada com o fazer humano. Não há arte que não
se instaure linguisticamente.

Sócrates tentou mostrar ao rapsodo que o seu fazer e o seu saber, a rapsódica, não
pode ser fruto de uma arte e de uma ciência, sendo antes oriundas de uma espécie de
predisposição divina. O rapsodo possuído, no caso por Homero, como que partilha a
inspiração divina que antes moveu o poeta. O que Platão chama de arte e ciência é algo que
deve estar à disposição. Ele pressupõe um saber que pode ser acessado a qualquer momento
pelo detentor desse saber. No diálogo ficou claro que o rapsodo não possui essa sabedoria
sendo antes possuído pela sabedoria do poeta, que por sua vez, é possuído pela sabedoria
dos deuses.
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3. A arte em A República

Na República, Platão descreve o diálogo no qual Sócrates pesquisa a natureza da


justiça e da injustiça. Para isso, transferindo a análise do individual ao coletivo, procura a
justiça “em letras grandes”, imaginando a constituição de uma cidade ideal. À medida que
essa cidade vai sendo construída, desde sua forma mais primitiva até se tornar mais
complexa, há a necessidade de uma especialização de tarefas cada vez maior. Essa cidade
terá então uma classe de guardiões para defendê-la e estes deverão receber uma boa
educação para que sejam, segundo Sócrates, “brandos para os compatriotas embora acerbos
para os inimigos; caso contrário não terão de esperar que outros a destruam, mas eles
mesmos se anteciparão a fazê-lo” (PLATÃO, República, 375c). Sendo assim, uma grande
parte do diálogo se dedica a decidir qual seria a educação mais adequada para se formar
homens “com uma certa natureza filosófica” que terão a função de proteger e governar essa
cidade imaginada como perfeita e justa. Os livros II e III da República descrevem com
detalhes essa educação destinada aos guardiões que serão os melhores entre os cidadãos.
Sua educação será à maneira tradicional grega, isto é, através da ginástica para o
aprimoramento do corpo e da música para gerar harmonia na alma. Será portanto nessa
discussão sobre qual seria a educação mais adequada para se formar homens com uma certa
natureza filosófica que surge pela primeira vez o tema da poesia na República.

A poesia é tratada nos livros II e III como parte da educação musical que deveria ser
destinada aos guardiões da cidade. Essa poesia da qual Sócrates fala são os mitos ou as
histórias sobre os deuses, que eram contadas às crianças desde cedo e que também serviram
de base para o surgimento da tragédia e da comédia. Mas Sócrates irá dizer que “das
(fábulas) que agora se contam, a maioria deve rejeitar-se” (República, 377c), pois para ele
elas estão cheias de mentiras e não deveriam mostrar os seres mais elevados lutando e se
odiando uns aos outros.

Sócrates passa, assim, todo livro II e III prescrevendo regulamentos à criação


poética e, após analisar os conteúdos das histórias, passa a discutir a maneira como essas
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eram contadas e qual seria a forma mais adequada. Sócrates expõe então três formas de
narrativa que podem ser utilizadas ao se contar uma história: a simples narrativa na qual o
poeta fala de seu ponto de vista sem representar ser outra pessoa; a imitação ou mímese
que é pura representação e na qual o poeta se omite; e uma terceira mista, constituída pela
mistura de ambas ( República, 392d). Mais à frente, Sócrates irá identificar cada um desses
tipos de narrativa da seguinte forma: “em poesia e em prosa há uma espécie que é toda
imitação, como tu dizes que é a tragédia e a comédia; outra, de narração pelo próprio poeta
– é nos ditirambos que se pode encontrar de preferência; e outra ainda constituída por
ambas, que se usa na composição da epopéia e de muitos outros gêneros” (394d). No livro
III da República, a conclusão é que o uso da mímese deverá ser limitado, destinando-se
apenas à imitação dos homens de bem, pois, segundo Sócrates, “a baixeza, não devem ser
capaz de praticá-la nem ser capazes de a imitar, nem nenhum dos outros vícios, a fim de
que, partindo da imitação, passem ao gozo da realidade” (395c).

A partir daí, o tema da poesia irá reaparecer no diálogo somente no livro X, após o
assunto principal da República, que é a definição da justiça na cidade, estar aparentemente
concluído.

Quais seriam as razões para esse deslocado retorno ao tema? Vários comentadores
consideram o livro X como um apêndice 1, e ainda que haja quem o considere até mesmo
como um epílogo 2 em relação ao restante da obra, o fato é que o que é dito sobre a poesia
e a mímese no livro X não parece se encaixar muito bem com o que havia sido dito antes.

Se nos livros II e III, como vimos, o objetivo de Sócrates é tratar dos regulamentos
que deveriam ser impostos à poesia como um todo, fazendo parte dela suas modalidades
imitativa e não imitativa, no livro X há um deslocamento do foco da discussão e esta
recairá unicamente sobre a poesia imitativa ou mimética. Outro ponto é que se antes a
aceitação da poesia imitativa era parcial, ou seja, deveria ser utilizada apenas para imitar o
homem de bem, no livro X Sócrates declara a necessidade de a recusar em absoluto
(República, 595a). Há aqui, portanto, um isolamento da mímese como tema principal,
enquanto a discussão sobre os guardiões e a função educativa da poesia é deixada de lado.
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Sendo assim, o problema do livro X não é mais o de determinar se a poesia imitativa seria
ou não adequada à educação dos jovens daquela cidade ideal, mas o de mostrar por que ela
não deveria mais ser executada nem ouvida, ao que parece, por ninguém dessa cidade justa.

As razões dadas por Sócrates no começo do livro X para o retorno ao tema são duas:
primeiro o fato de ter se definido anteriormente cada parte da alma e depois diz que: “todas
as obras dessa espécie se me afiguram ser a destruição da inteligência (dianoia) dos
ouvintes, de quantos não tiverem como antídoto (farmacon) o conhecimento da sua
verdadeira natureza” (República, 595b).

O livro X tem basicamente três objetivos: o de esclarecer qual a natureza da


mímese que é a base da poesia imitativa ( República, 595a-598d); o de mostrar que os
poetas não têm conhecimentos (episteme) verdadeiros sobre os assuntos de que parecem
falar tão bem, iludindo a inteligência dos espectadores através do encanto da poesia (598d–
602c); e, por fim, o de associar a poesia à pior parte da alma em detrimento da parte mais
sábia e racional que deveria governar as demais (602c- 608b).

Mas parece que o principal motivo do descompasso entre o livro X e o resto da obra
está na flutuação do sentido da palavra mímese, a qual passa a ser concebida como a
própria poesia e não mais como apenas um de seus modos.

Enquanto no livro III a mímese era caracterizada no contexto das artes dramáticas
como modo de expressão ou representação, no livro X a mímese será caracterizada, de um
modo mais geral, como o modo através do qual o homem pode produzir qualquer coisa:
artefatos, pintura ou poesia. A diferença entre modo de expressão e modo de produção se
expressa no fato de que na primeira acepção da palavra mímese o poeta assume em si a
forma do que imita, enquanto na segunda, ele produz algo exterior a si.

Isso implica em que, se antes a mímese não era totalmente admitida em virtude de
um julgamento moral sobre bons ou maus modos de conduta, agora a mímese deverá ser
completamente rejeitada em virtude de seu estatuto ontológico, ou seja, por um julgamento
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acerca da realidade de seus produtos. E é isso que define a mímese no livro X, uma forma
de produzir coisas que serão sempre inferiores em realidade em relação aos modelos dos
quais partiram. Não interessa aqui se os modelos são moralmente bons ou maus, o que
condena a imitação é sua natureza ontologicamente inferior.

No livro X, o conceito de mímese a ser aplicado à produção dos poetas é sempre


retirado da comparação com a atividade do pintor que imita visualmente coisas particulares.
Mas entre poeta e pintor há ainda a figura do artesão. O exemplo dado por Sócrates para
explicar as relações entre as cópias e os modelos será aquele dos três tipos de cama. Há
uma cama que é a cama natural ou a Idéia de cama, única e essencial, da qual deus é o
criador; uma segunda, a cama particular feita pelo artesão a partir da Idéia de cama anterior;
e, por fim, a cama do pintor que imitou não a Idéia de cama, mas a cama particular tal como
ela aparece. É importante observar o fato de que o pintor procurará sempre imitar a
aparência da cama e não o Ser mesmo da cama. A conclusão será que as obras dos pintores
e, por conseqüência, as obras dos poetas, “são objetos aparentes, desprovidos de existência
real” (República, 596e), por serem feitos através da mímese.

Chegamos então ao primeiro objetivo do livro X, que é definir a natureza da


mímese. Ela é definida como algo que produz coisas “afastadas três graus da realidade”,
segundo o modo grego de contar os extremos; e se ela é utilizada por pintores e poetas
trágicos, estes não são criadores de nada, mas apenas imitadores ou mimetés. Nesse
sentido, o conceito de mímese exposto nessa primeira etapa do livro X se liga intimamente
com a teoria das Formas, sendo uma explicação ou imagem da ligação entre as Idéias e as
coisas particulares, entre o plano sensível e o inteligível.

Mas de que modo a metáfora da imitação visual pode servir ao segundo objetivo do
livro X, que é determinar qual o estatuto do conhecimento dos poetas, se um pintor não
precisa necessariamente ter conhecimentos verdadeiros sobre aquilo que imita?

Dizer que os pintores são produtores de algo que se encontra “três graus afastado da
realidade” só faz sentido a partir da descrição metafísica da Forma dos particulares e da
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pintura, mas para explicar por que faltam conhecimentos ao poeta será necessário outro
argumento.

O exemplo dado por Sócrates para explicar esse ponto será o das três artes relativas
ao mesmo objeto (República, 601c-602b). Segundo ele, há “a de o utilizar, a de o
confeccionar, e a de o imitar” (601d), sendo que quem utiliza o objeto possui sua ciência
(episteme), quem fabrica pode ter no máximo uma opinião (doxa) verdadeira pelo contato
com quem utiliza, ao passo que, quem imita não possui nem ciência, nem opinião
verdadeira e, nesse sentido, podemos dizer que Platão nega o valor das artes como base
para o conhecimento.

A principal diferença entre esse argumento das três artes e o anterior da analogia
entre a pintura e a poesia é que nesse caso não se discutem os níveis de realidade dos
objetos envolvidos, pois o que se utiliza, o que se produz e o que se imita se encontram
num mesmo nível de realidade. O poeta é um imitador enquanto não utiliza nem fabrica
aquilo que fala, mas não enquanto não tem nenhum conhecimento das Formas ou Idéias.

Portanto, devemos considerar que temos aqui dois argumentos completamente


independentes: por um lado o argumento metafísico utilizado por Sócrates, com base nas
semelhanças entre a pintura e a poesia, que serve para mostrar que a mímese produz obras
“três vezes afastadas da realidade”; e, por outro, o argumento que mostra que aqueles que
utilizam a mímese não possuem conhecimentos, ou a ciência do que imitam.

Se são argumentações diferentes, então só podemos entender essa lógica


argumentativa buscando auxílio em outra parte. Essa seqüência na verdade se explica pela
estreita ligação entre as noções de Idéia e episteme na obra de Platão. De fato, somente a
Idéia ou o Ser mesmo das coisas pode ser a base do verdadeiro conhecimento, enquanto a
opinião (doxa) se liga ao sensível e se funda nas aparências das coisas e não no que elas
realmente são (PLATÃO, República, 476c).
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4. A concepção estética de Schopenhauer

4.1 A influência de Platão

Platão afirma no Livro X da República, via Sócrates e Glauco, que há Idéias eternas
das coisas. Assim, haveria uma Idéia única de cadeira ou mesa, à qual se referem todos os
outros exemplares desses objetos. Quando o artista pinta, apenas imita a cadeira do artífice,
o qual, por sua vez, imita a cadeira divina. O artista, portanto, é definido como o imitador
de uma imitação.

Segue-se portanto, diz Sócrates, que há as três seguintes cadeiras: uma que está na
natureza e da qual nós, segundo a minha opinião, podemos muito bem dizer que foi feita por Deus ... Outra
que foi feita pelo carpinteiro ... E outra que foi feita pelo pintor.

Essa subavaliação do ofício do pintor estende-se ao do poeta (este a situar-se


também na “terceira posição” a partir do rei e da verdade) bem como a todos os imitadores
artistas, que lidam somente com as coisas tais que se dão em sua imagem aparente, não
como são para sempre. A arte “está portanto bem distante da verdade” e, em suas
produções, nos “ilude”, especialmente às crianças e pessoas insensatas, ao apresentar
objetos que provocam a impressão de que são reais. No caso específico da poesia, como as
de Homero, temos “cópias das excelências humanas e das outras coisas de que falam,
porém sem tocarem a verdade”. O poeta age como o pintor e narra coisas que ele mesmo
não entende, discursando para pessoas também leigas. Suas obras são meramente a
apresentação de um produto de técnica apurada. Tais obras são impostas ao leitor como
belas devido à “grande magia natural” que exerce a linguagem. Porém, caso se dispa a sua
roupagem, afirma Sócrates, nota-se que se “assemelham às faces de adolescentes, jovens
mas não belos, quando o sangue da juventude os abandona”.

Pintor e poeta criam algo de menor valor em relação à realidade e, no exemplo de


uma cadeira ou mesa, algo de menor valor em relação ao artesão, comerciando com o lado
inferior da alma. Os imitadores de toda espécie apresentam uma simples “brincadeira, não
algo sério” (Platão, 602 ac). Sócrates diz que há motivos sólidos para que o poeta “não seja
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admitido num Estado que tenha boas leis”, pois estimula e alimenta justamente esse lado
[inferior] da alma, fortificando-o e tendendo a destruir o racional” (Platão, 604e-605c). A
poesia faz de regente aquilo que deveria ser regido e fomenta o que “tinha de extinguir-se,
para que, ao fim, nos tornássemos melhors e mais felizes, em vez de piores e mais
miseráveis”. A sentença de Sócrates é inclemente: “Deixe-nos, portanto, concluir o nosso
retorno ao tópico da poesia e à nossa apologia e afirmar que temos bons motivos para
desterrá-la de nosso Estado, em virtude do seu caráter” (Platão, 606d-607c).

Nota-se que Platão despreza por completo seja o valor cognitivo, seja o de
experiência vital das artes, três vezes mais distante do rei e da verdade. Das Idéias, elas não
passam de imitação e, mais grave, comerciam com o lado ruim da alma, excitando-o, razão
por que não pode ser cidadão da boa república. Numa palavra, Platão, apesar de a sua
doutrina das Idéias operar aquele vôo da pomba de que fala Kant, não funda uma teoria das
artes enquanto lugar estético da verdade e de uma profunda experiência acerca do conteúdo
da vida e da experiência.

4.2 O mundo como vontade e representação

Ao elaborar a sua “metafísica do belo” no terceiro livro de O mundo como vontade e


representação, Schopenhauer presta tributo aos sistemas de Platão e Kant. Para os “dois
maiores filósofos do Ocidente” busca uma harmonização dos seus dois “grandes e obscuros
paradoxos”, ou seja, a coisa-em-si e a Idéia.

Em Schopenhauer há uma íntima ligação entre a metafísica na natureza e a


metafísica do belo, onde a arte está no centro de sua exposição. O leitor, então, é conduzido
ao universo da beleza exclusivamente com a ajuda dos conceitos-chave de Platão e Kant.

Apesar de não haver identidade entre coisa-em-si kantiana e Idéia platônica, para
Schopenhauer elas são assemelhadas. Cada uma é o melhor comentário da outra na medida
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em que se assemelham a “dois caminhos completamente diversos que conduzem a um


mesmo fim” (§ 31).

Platão, segundo Schopenhauer, elabora uma concepção semelhante da consciência


finita, pois para o autor grego as coisas do mundo apreendidas pelos sentidos não possuem
nenhum ser verdadeiro, sempre vêm-a-ser e nunca são. O seu ser é constituído de múltiplas
relações alteráveis, de modo que se pode chamar a sua existência de não-existência. Nessas
condições, jamais se tornam objetos de um conhecimento profundo, como o das coisas que
são em e para si, inalteradamente. Ora, enquanto nos limitamos a esse tipo comum de
percepção, somos, conforme a famosa alegoria enunciada na República, como prisioneiros
de uma caverna que não podem girar a cabeça para a luz de um fogo que arde atrás deles,
vendo só sombras na parede à sua frente de coisas verdadeiras situadas entre eles e o fogo.
As coisas verdadeiras que são sempre, sem nascer nem perecer, significam justamente as
Idéias , formas primordiais unívocas de tudo o que aparece. Já os objetos do mundo são
suas sombras, às quais cabe a pluralidade, que marca o devir incessante no tempo. Por
conseguinte, diz Schopenhauer, se as Idéias não nascem nem perecem, segue-se que
“tempo, espaço e causalidade não têm nenhuma significação nem validade” para elas (§31).

Schopenhauer expressa-se contra a avaliação depreciativa de Platão acerca do poder


cognitivo das artes. Denuncia o “grande e reconhecido erro” deste “grande homem”, a sua
“depreciação da arte, em especial a poesia”. Almejando a correção deste erro,
Schopenhauer pergunta: qual modo de conhecimento considera
unicamente o essencial propriamente dito do mundo, alheio e independente de toda
relação, o conteúdo verdadeiro dos fenômenos, não submetido a mudança alguma e, por conseguinte,
conhecido com igual verdade por todo o tempo, numa palavra, as IDÉIAS ...?

E responde: “É a arte, a obra do gênio” (§36). Os objetos do gênio são as Idéias,


apreendidas na medida em que ele “abandona o modo de conhecimento orientado pelo
princípio de razão, pois justamente este princípio é aquele que espraia o essencial de todas
as coisas, a Idéia, em indivíduos incontáveis no tempo e no espaço” (§36).
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Primariamente, portanto, a arte pode ser definida como o modo de consideração das
coisas independentes do princípio de razão, em oposição ao que o segue, caminho da
experiência e da ciência. A arte, como exposição de Idéias, significa a visibilidade perfeita
da objetidade adequada da Vontade. A faculdade genial intui e reproduz do modo mais
perfeito possível essa beleza exemplar, aquele primeiro átimo de aparecimento da forma
objetal da espécie. Ela expõe esteticamente a verdade dos objetos, os quais na efetividade
são imperfeitos.

Absorvido na rotina cotidiana, o homem comum aplica rapidamente conceitos ao


que lhe é apresentado, mantendo uma relação instrumental com o conhecimento, marcada
pelo modo como tais objetos particulares afetam sua vontade individual. "Ele não se
demora: procura apenas seu caminho na vida" (MVR § 36, p.242, p.196).

Na experiência estética, o sujeito puro do conhecimento contempla objetivamente a


Idéia, liberto das condições de temporalidade, espacialidade, causalidade, bem como liberto
de sua vontade individual. "Este modo de conhecimento é a arte, é a obra do gênio" (MVR
§ 36, p.239, p.194). A finalidade da arte é precisamente expressar as Idéias eternas
concebidas pelo gênio, por meio da contemplação. Mas cabe destacar que a Idéia é objeto
de um conhecimento intuitivo e não pode ser confundida com uma representação
conceitual:

O conceito é abstrato e discursivo; completamente indeterminado, quanto a seu conteúdo,


nada nele é preciso a não ser os seus limites; o entendimento é suficiente para compreendê-
lo e para concebê-lo; as palavras, sem outro intermediário, são suficientes para exprimi-lo; a
sua própria definição, enfim, esgota-o completamente (MVR § 49, p.300, p.246).

A Idéia não pode ser apresentada discursivamente ou definida: é acessível, apenas,


como objeto de contemplação intuitiva. Para Schopenhauer, na medida em que
considerarmos que qualquer um é capaz de algum prazer estético, "devemos conceder a
todos os homens este poder de separar as idéias das coisas e por esse fato elevarem-se
momentaneamente acima de sua personalidade" (MVR § 37, p.251, p.204). O que
caracteriza o gênio e o distingue dos outros homens é a presença dessa faculdade em um
grau muito mais intenso – o que o qualifica não somente para a criação artística, como
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também para sua fruição estética. É por intermédio do artista que a Idéia torna-se
"inteligível [intuitivamente] mesmo para uma inteligência de fraca receptividade e de uma
esterilidade completa" (MVR § 50, p.304, p.249). Deste modo, o artista assume o papel de
um "facilitador" dessa contemplação, pois "o artista empresta-nos os seus olhos para ver o
mundo" (MVR § 47, p.251, p.205).
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5. Referências bibliográficas

PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, 11ª edição.

PLATÃO. Íon. Trad. André Malta. São Paulo: L&PM Editores,


2005.

SCHOPENHAUER, Arthur. O mundo como vontade e representação. Trad. M. F. Sá


Correia. Rio de Janeiro. Contraponto Editora, 2004.

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