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Revista

Brasileira fa s e i x
• OUTUBRO-NOVEMBRO-DEZEMBRO 2018 •

a no i • n . ° 9 7
A c a d e m i a B ra s i l e i ra R e v i s ta B ra s i l e i ra
d e L e t ra s 2 0 1 8
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Padilha, Zuenir Ventura. ISSN 0103707-2

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Os artigos refletem exclusivamente a opinião dos autores, sendo eles também responsáveis
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Transcrições feitas pela Secretaria Geral da ABL.

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Sumário
A pr esentaç ão
Cicero Sandroni  7

CI CLO Poesia e fil o s o f ia


Alberto Pucheu  Espantografias: Entre Poesia e Filosofia 9
Antonio Cicero  A Poesia e a Filosofia no mundo contemporâneo 21
Evando Nascimento  Uma literatura pensante: Pessoa, Clarice e as plantas 27

D os siê Heli o Jag u a ri b e


Antonio Cicero  Helio Jaguaribe 33
Arnaldo Niskier  A trajetória brilhante de Helio Jaguaribe 35
Arno Wehling  Helio Jaguaribe 37
Candido Mendes  O recado de Helio Jaguaribe 38
Celso Lafer  Homenagem a Helio Jaguaribe 39
Cicero Sandroni  Helio Jaguaribe 41
Edmar Bacha  Em memória de Helio Jaguaribe 43
José Murilo de Carvalho  Helio Jaguaribe 44
José Sarney  Nota sobre Helio Jaguaribe 45
Marco Lucchesi  Helio Jaguaribe 46
Sergio Paulo Rouanet  A filosofia de Helio Jaguaribe 48
Zuenir Ventura  O Helio jornalista 52

En trevista
Maria Amélia Mello  Lygia Fagundes Telles 55

Me s a-redondA Ot ávi o F rias Filh o


Sérgio Dávila  Homenagem ao jornalista Otávio Frias Filho 61
Cícero Sandroni  Folha  65
Joaquim Falcão  Otávio Frias Filho: o jornalismo como arte combinatória 69

ENSAIO
Arno Wehling  Oliveira Lima – história e interpretações 75
Arnaldo Niskier  Homo Deus – educação humanista 87
Sebastião Velasco e Cruz  A presença da tradição: o populismo nos EUA 89

POESIA
Sergio Luiz Moreira  101
Ronaldo Cagiano  107

CONTO
Graciliano Ramos  Um ladrão 121
Ernest Hemingway  Pais e filhos 129
A Poesia e a Filosofia no mundo
contemporâneo

Antonio Cicero
Ocupante da Cadeira 27 na Academia Brasileira de Letras

E
stou convencido não apenas de que que não passam de caminhos para aquela,
a poesia e a filosofia são empreendi- é nos discursos poéticos, isto é, nos poe-
mentos diferentes um do outro, mas mas, que a poesia se realiza plenamente.
também de que se encontram em polos Mesmo etimologicamente isso é verdadei-
opostos, embora não antagônicos, mas an- ro, pois, enquanto “filosofia” significa o
tes complementares, do pensamento. puro amor à sabedoria, o que não implica
Um sinal evidente da diferença entre fazer coisa alguma, “poesia” significa feitu­
poesia e filosofia é o seguinte. Ao contrário ra, e o poema é o feito. É que, enquanto o
do que ocorre com os poetas, é perfeita- poema é a finalidade da poesia, a finalidade
mente concebível que um filósofo jamais da filosofia – e dos textos filosóficos – é a
tenha produzido obra nenhuma. O filóso- própria filosofia.
fo Sócrates, por exemplo, jamais escreveu Essa diferença é extremamente signi-
coisa alguma. No entanto, ninguém duvida
ficativa. Lembro que, ao final do diálogo
que ele tenha sido um grande filósofo. Com
Fedro (277d5ss.),1 Platão faz Sócrates (não,
efeito, existe, desde a Grécia Antiga, uma
evidentemente, o de carne e osso, mas o
vasta e crescente bibliografia sobre a filoso-
personagem platônico) deixar claro que a
fia de Sócrates.
verdadeira filosofia está escrita na alma do
Pois bem, não há poeta que não tenha
filósofo, e não nos livros. De acordo com
ao menos uma obra poética. Não se consi-
o Sócrates de Platão, a filosofia que o verda-
dera poeta quem não tenha composto ao
deiro filósofo escreveu ou inscreveu na sua
menos um poema. Além disso, é impossível
alma manifesta-se, em primeiro lugar, no
escrever um livro sobre a poesia de um poe-
seu modo de viver.
ta do qual não haja sobrevivido ao menos
um poema ou um fragmento considerável Ao contrário disso, pode-se dizer que a
de um poema. verdadeira poesia não se encontra na alma
É que, enquanto a filosofia não se rea- dos poetas, mas nos poemas que escrevem.
liza plenamente nos discursos filosóficos, 1 PLATÃO. Fedro, 277d5ss.
Conferência pronunciada na Academia Brasileira de Letras em 12 de julho de 2018.
22  •  Antonio Cicero

Para quem quer apreciar um poema en- proposições e conceitos, mesmo quando para
quanto poema (e não como documento tanto se torne necessário traduzir os enuncia­
arqueológico, sociológico, político, psicoló- dos dele mesmo para outra “língua” (in eine
andere “Sprache”).4
gico etc.), o poema consiste numa obra de
arte. Ora, assim como não se pode modi- Como a palavra “língua” (“Sprache”) se
ficar uma obra de arte sem que ela deixe encontra entre aspas, nesse texto, Heideg-
de ser o que é, considera-se em geral que, ger está certamente a falar aqui não apenas
em última análise, um poema é intraduzí- de versões para idiomas estrangeiros, mas a
vel e imparafraseável. O poeta Robert Frost, qualquer tipo de versão ou paráfrase.
por exemplo, dizia que “a poesia é o que Para quem se interessa por filosofia,
se perde na tradução. É também o que se o importante, num texto filosófico, são as
perde na interpretação”.2 É por essa razão teses ou proposições filosófica que ele afir-
que o grande poeta Haroldo de Campos ma ou nega. Um texto filosófico empirista,
considerava que a tradução da poesia não por exemplo, é capaz de afirmar que todo
deve ser literalmente uma tradução, mas conhecimento provém da experiência. Um
sim uma transcriação do original. Observe- texto filosófico racionalista, por outro lado,
-se que Haroldo foi, ele mesmo, um grande é capaz de afirmar que nem todo conheci-
transcriador de poemas. mento provém da experiência, pois há coi-
Já um texto filosófico pode perfeitamen- sas que podemos conhecer a priori. Portan-
te ser parafraseado não somente pelo seu to, a afirmação dos empiristas contradiz a
autor, mas também por outros. Na verdade, dos racionalistas e vice-versa. Já um texto
o discurso filosófico é tão traduzível e pa- filosófico que contradiga o que ele próprio
rafraseável que Kant se sente autorizado a afirma destrói-se a si próprio. Como diz
afirmar que Ludwig Wittgenstein, “a verdade da contra-
não é nada incomum, através da comparação
dição [...] é impossível”.5
dos pensamentos que um autor exprime sobre
Diferentemente disso, um poema, na
seus pensamentos, compreendê-lo até melhor
do que ele mesmo se compreende, na medi­ medida em que é fruído enquanto poema,
da em que não determinou suficientemente não precisa afirmar tese alguma. Não é pela
o seu conceito e, com isso, ocasionalmente verdade ou falsidade das proposições que
falou, ou mesmo pensou, contra sua própria contém que se considera um poema seja
intenção.3 bom ou ruim. Assim, por exemplo, o poe-
ma mais famoso de Carlos Drummond de
É assim que, no que toca ao filósofo Des-
Andrade diz, em primeiro lugar, que “Tinha
cartes, Heidegger tem razão ao afirmar que
uma pedra no meio do caminho”. Não se
a consciência histórica da questão autên­
tica deve esforçar-se por pensar o sentido trata de uma tese, mas, aparentemente, de
que Descartes mesmo tencionou para suas uma proposição. Na verdade, trata-se de
2 UNTERMEYER, Louis. Robert Frost: a backward look.
uma pseudoproposição. Por quê?
Ann Arbor, U. of Michigan Library, 1964, p.18
3 KANT, I. Kritik der reinen Vernunft. In: ___ Werke, vols. 4 HEIDEGGER, “Der europäische Nihilismus.” In: ___.
3-4. Berlim: Preussische Akademie der Wissenschaften, Nietzsche, vol. 2. Pfullingen: Neske, 1961b, p.163.
1902ss.a. Reimpressão, Berlim: Walter de Gruyter, 5 WITTGENSTEIN, L. Tractatus logico-philosophicus.

1968, p.B 371. London: Routledge & Kegan Paul, 1969, p.68, §4.464.
A P o es i a e a F i l oso f i a n o m u n d o c o n t e mp o r â n e o   •  23

Em primeiro lugar porque o leitor não Ou seja, como diz um poema de Walt
pode saber exatamente o que é que essa Whitman:
pretensa proposição afirma e, consequen-
Do I contradict myself?
temente, não pode saber se o que ela é ver- Very well then I contradict myself
dadeira ou falsa. Tinha uma pedra? Onde? (I am large, I contain multitudes.)
Quando? Trata-se de uma pedra real ou
metafórica? O próprio poema não explica. Ou, transcriado para o português:
Em segundo lugar porque, de todo modo, Contradigo-me?
ainda que fosse verdadeira ou falsa, sua ver- Pois bem, eu me contradigo,
dade ou falsidade não teria a menor impor- (Sou vasto, contenho multidões)7
tância para a apreciação do poema. Que
Os poemas são feitos para que pense-
pensaríamos de alguém que nos dissesse, por
mos sobre eles e, principalmente, a partir
exemplo, que esse poema de Drummond é
deles, com todas as faculdades que ele
ruim porque, na verdade, não havia pedra
solicitar: razão, imaginação, memória, sen­
nenhuma no caminho do poeta? Acharíamos
sitividade, intelecto, experiência, emoção,
tal pessoa imbecil ou louca; ou, pelo menos,
sensibilidade, sensualidade, intuição, sen-
ignorante, no que diz respeito à poesia.
so de humor, memória, cultura, crítica e
Em terceiro lugar, digamos que alguém
até mesmo, de certo modo, com nossos
escreva um poema afirmando o oposto do
corpos. O que pensa, no poema, não são
que esse diz, isto é: “Não tinha nenhuma pe-
apenas as noções correntes, mas também
dra no meio do caminho”. Ainda que se trate
a materialidade linguística que o constitui:
de um bom poema, não acharemos que ele
sua sonoridade, seu ritmo, suas rimas, suas
desminta o poema do Drummond. É que po-
aliterações etc., isto é, não apenas os seus
demos apreciar igualmente um poema que,
significados, mas os seus significantes; e
aparentemente, afirme X (seja lá o que for
estes não se separam, no poema, daque-
X) e um poema que, aparentemente, afirme
les. O verdadeiro leitor de poesia deleita-
não-X. E isso significa que, na verdade, nem
-se a flanar pelas linhas dos poemas que
um nem o outro afirma coisa alguma: nem
mereçam uma leitura ao mesmo tempo
um nem outro é, no fundo, proposicional.
vagarosa e ligeira, reflexiva e intuitiva,
Acima observamos que, para um pen-
auscultativa e conotativa, prospectiva e
samento filosófico, a autocontradição é au-
retrospectiva, linear e não linear, imanen-
todestrutiva. Pois bem, a autocontradição
te e transcendente, imaginativa e precisa,
pode ser o próprio motivo do poema. É o
intelectual e sensual, ingênua e informada.
que ocorre, por exemplo, no seguinte poe-
“O poeta”, como diz o filósofo Jean-
ma de Anacreonte:
-Paul Sartre,
De novo amo e não amo retirou-se de uma só vez da linguagem-ins­
Estou louco e não estou.6 trumento; ele escolheu de uma vez por todas

6 e)re/w te dhuÅte kou)k e)re/w

kaiì mai¿nomai kou) mai¿nomai. 7WHITMAN, Walt. “Song of myself”, §51. In:____.
ANACREON. Fragmentum 83.1. In: Page, D.L. (org.). “Leaves of grass”. In:_____. The complete poems. Har-
Poetae melici Graeci. Oxford: Clarendon Press, 1967. mondsworth: Penguin, 1977, p.123. Trad. minha.
24  •  Antonio Cicero

a atitude poética que considera as palavras filosofia tão primária que, inconsciente-
como coisas e não como signos”.8 mente, nega-se a si própria.
A verdadeira filosofia não apenas não
É importante lembrar que isso não sig-
se reduz à apreensão instrumental do ser,
nifica, porém – como, aliás, o próprio Sar-
mas demonstra que tal modo de apreensão
tre observa adiante – que, para o poeta, as
do ser não é o único possível. Com efeito,
palavras tenham perdido toda significação.
ao fazê-lo, a verdadeira filosofia não argu-
Longe disso, são as palavras enquanto ao
menta apenas em defesa de si própria, mas
mesmo tempo significantes e significados
também da poesia, mesmo embora seja in-
que lhe aparecem como coisas.
teiramente diferente desta.
Tentemos entender melhor qual é o sen-
A própria poesia não poderia, sem deixar
tido da afirmação de Sartre. Na vida prática
de ser poesia, defender-se com argumentos.
e cotidiana, empregamos a linguagem so-
O que a poesia faz é perverter ou subver-
bretudo como um instrumento. Ela nos ser-
ter a apreensão instrumental do ser. De que
ve não apenas para a comunicação com os
demais seres humanos, mas para o nosso modo? Abrindo outro modo de apreensão de
pensamento descrever, classificar, qualificar apreensão do ser. Trata-se da apreensão po­
etc. as diferentes coisas e pessoas, tendo ética do ser. Podemos dizer que, ao assimilar
em vista instrumentalizá-las para nossos um poema, abandonamos temporariamen-
próprios fins. Com efeito, na vida prática, te a apreensão instrumental do ser e temos
cada coisa e cada pessoa é considerada acesso a outra dimensão do ser, que é a poé-
principalmente enquanto meio para outras tica. Com isso, a poesia enriquece nossa vida.
coisas. Essa atitude faz parte do que pode- Costumo dar como exemplo evidente
mos chamar de apreensão instrumental do dessa perversão da linguagem da apreen-
ser, e é, na verdade, indispensável para a são instrumental do ser o poema de Vinicius
condução da nossa vida. de Moraes intitulado “Poética 1”. Ele diz:
No mundo contemporâneo, a tecnolo- Poética 1
gia parece ter levado a apreensão instru-
De manhã escureço
mental do ser a tal ponto que, para muita De dia tardo
gente, nenhum outro modo de apreensão De tarde anoiteço
do ser parece racional. Para quem pensa as- De noite ardo.
sim, não há lugar neste mundo nem para
A oeste a morte
a poesia, nem para a filosofia. De fato, há
Contra quem vivo
pouco tempo li um artigo de um médico e Do sul cativo
imunologista que afirmava que a filosofia, O este é meu norte.
não sendo ciência, está fadada a desapa-
Outros que contem
recer. Ele obviamente não se deu conta de
Passo por passo:
que seu próprio juízo sobre a filosofia não
Eu morro ontem
faz parte de ciência alguma, mas de uma
Nasço amanhã
8SARTRE, J.P. Qu’est-ce que la littérature? Paris: Galli- Ando onde há espaço:
mard, 1948, p.18. – Meu tempo é quando.
A P o es i a e a F i l oso f i a n o m u n d o c o n t e mp o r â n e o   •  25

Aparentemente, o eu lírico está, nesse ‘o enunciado a porta da sala está aberta é


poema, a falar de si mesmo. De fato, en- composto de seis palavras’”, então o que
contram-se na primeira pessoa os versos era antes um metadiscurso é agora um
“De manhã escureço/ De dia tardo/ De tar- discurso-objeto em relação ao discurso que
de anoiteço/ De noite ardo...” etc. Entretan- começa com (2) “traduzi para o inglês...”.
to, devemos levar em conta, em primeiro Pois bem, denomino discurso-objeto
lugar, o próprio nome do poema. Pois bem, terminal aquele cujo verdadeiro sentido não
“Poética” ou “Arte poética”, é o nome que é nem falar sobre discurso algum nem fa-
se dá aos tratados que pretendem mostrar lar sobre coisa alguma. Assim é o objeto da
exatamente o que é a poesia e como ela língua que é o poema enquanto poema, tal
deve ser feita. como o mostrei aqui.
Na verdade, esse poema nos mostra o Por outro lado, denomino metadiscurso
estado do poeta enquanto poeta, isto é, terminal aquele que pode ter por objeto ou-
enquanto escreve um poema: é o poeta tros discursos e outras coisas, mas que não
que abandona o estado cotidiano, conven- pode, ele mesmo, ser objeto de nenhum
cional, instrumental de se relacionar com discurso fora de si, pois o único discurso
as pessoas, as coisas, o tempo e o espaço. que o tem por objeto é ele mesmo. Assim
Também a pessoa que deseje fruir um poe- é o ato de fala que é a filosofia. Em ou-
ma deve deixar que ele a retire do estado tras palavras, não é possível falar sobre – ou
convencional e a transporte para esse outro mesmo falar contra – a filosofia enquanto
estado. Trata-se precisamente do que deno- filosofia a partir de um discurso que não
minei “apreensão poética do ser”. seja, ele mesmo, filosofia.
Para concluir, proponho, a partir das con- Alguém talvez objete que um gramático,
siderações expostas, adaptar dois conceitos por exemplo, poderia estudar o Discours de la
lógicos para explicar melhor a diferença en- méthode, de Descartes, sem que o seu estu-
tre a poesia e a filosofia. Refiro-me aos con- do seja considerado filosofia. É verdade, mas
ceitos de discurso-objeto e metadiscurso. então o seu objeto não seria o Discours de
Discurso-objeto é aquele sobre o qual outro la méthode enquanto filosofia. O seu objeto
discurso fala, e se opõe a metadiscurso, que não seria filosófico. Na medida em que fosse,
é aquele que toma outro discurso como seu então também o seu estudo seria filosófico.
objeto. Consideremos um enunciado como Enquanto o valor da poesia não é dado
(1) “a porta da sala está aberta”. Se digo ou pelo que fale sobre coisa alguma, pois,
escrevo, por exemplo, (2) “o enunciado ‘a como mostrei acima, o seu sentido, en-
porta da sala está aberta’ é composto de seis quanto poema, não é em primeiro lugar
palavras”, o que acabo de dizer ou escrever falar sobre coisa alguma, mas ser uma obra
é um metadiscurso em relação ao discurso- de arte sobre a qual seremos levados a pen-
-objeto (1) “a porta está aberta”. sar e falar, o valor do discurso filosófico está
Mas um metadiscurso pode vir a ser um no que fala sobre as coisas, ainda que a coi-
discurso-objeto em relação a outro discurso sa de que fale seja a própria filosofia.
que fale dele. Se digo ou escrevo, por exem- Quando lemos um poema enquanto
plo, (3) “traduzi para o inglês o enunciado metadiscurso, deixamos de lê-lo enquanto
26  •  Antonio Cicero

poema. Enquanto poema, o que ele diz so- eles mesmos não chegaram a exprimir ade-
bre alguma coisa não é um fim, mas me- quadamente.
ramente um meio. Os discursos sobre um Essas são as principais razões pelas quais
texto poético se multiplicam justamente penso que esses dois polos do pensamento,
porque o que ele diz não pode ser separa- poesia e filosofia, não podem ser reduzi-
do das palavras através das quais o diz, de dos um ao outro. Já Platão falava da “ve-
modo que todas as demais palavras com lha querela” entre a filosofia e a poesia, e
as quais tentamos exprimi-lo ou explicá-lo dela participou, ao lado da filosofia.9 Hoje,
resultam sempre insuficientes; já os discur- é mais frequente tentar-se reduzir os discur-
sos sobre um texto filosófico se multiplicam sos filosóficos a espécies de poemas que se
porque o que ele tenciona dizer não é in- desconhecem enquanto tal. Mas é neces-
teiramente expresso pelas palavras com as sário que haja tanto o discurso-objeto ter-
quais o diz, de modo que sempre pode e minal – a poesia – quanto o metadiscurso
deve ser expresso e explicado melhor por terminal: a filosofia. É esta que ambiciona
outras palavras. conhecer a verdade. Como todo discurso
As grandes intuições filosóficas são sobre a filosofia é filosófico, de modo que
poucas e aqueles que as têm são grandes toda tentativa de negar à filosofia a possi-
pensadores. São essas intuições que pro- bilidade de conhecer a verdade é uma ten-
curamos captar, quando voltamos aos tex- tativa filosófica de negar-se a filosofia, essa
tos originais e primários, ainda que textos tentativa incorre no que se convencionou
posteriores e secundários já os tenham ex- chamar de autocontradição performativa.
plicado melhor, no todo ou em alguns dos Desse modo, a filosofia que negue a si pró-
seus aspectos. É que não voltamos àqueles pria a possibilidade de conhecer a verdade
textos como a um poema que sabemos ser está, ipso facto, negando a si própria a pos-
insubstituível e para o qual cada uma das sibilidade de enunciar tal “verdade”. Logi-
nossas leituras é sempre inadequada ou in- camente, não resta à filosofia senão rejeitar
suficiente, mas, ao contrário, como a um esse suicídio e afirmar sua própria potên-
texto que é ele mesmo possivelmente ina- cia. É importante que o faça, tanto para si
dequado ao que tenciona dizer, mas que, mesma quanto para a poesia, pois, se esta
ainda que inadequado, é, de todo modo, o constitui a afirmação radical e imanente do
texto de um grande pensador, isto é, de al- mundo fenomenal, aleatório, finito, aquela
guém que supomos ter ido muito longe em é o núcleo do empreendimento moderno
pensamento, ainda mais longe do que aqui- de crítica radical e sistemática das ilusões e
lo que conseguiu exprimir por escrito e do das ideologias que pretendem congelar ou
que aquilo que, inadequadamente expresso cercear a vida e, consequentemente, con-
por escrito, possa ter sido melhor explicado gelar e cercear a própria poesia.
por outros. Relemos tais textos como indi-
cações, indícios ou sintomas de algo que 9 PLATÃO. República, 607b.4.

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