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O Museu de Folclore Edison Carneiro e a Casa do

Pontal: os discursos sobre o folclore e a arte popular


PATRICIA REINHEIMER

resumo A etnografia de duas instituições de para uma forma de particularização da cultura


preservação cultural evidencia diferentes formas brasileira1.
de reproduzir as relações sociais referidas à cons- Bourdieu (2000, p. 12) apontou para o
trução de campos intelectuais distintos a partir fato de que a busca por critérios “objetivos” de
dos tratamentos dispensados às suas coleções. As identidade “regional” ou “étnica” não se limita
noções de cultura popular e arte popular são ob- a uma construção histórica, mas também torna
servadas a partir das formas de inserção dos ato- esses critérios objetos de estratégias interessadas
res sociais envolvidos na organização das coleções de manipulação simbólica. Na prática social,
dessas instituições. Os objetos expostos suscitam esses critérios são acionados através de “atos de
formas diferenciadas de apreensão da produção percepção e de apreciação, de conhecimento e
classificada como popular: 1) um campo de estu- reconhecimento em que os agentes investem os
dos no qual o artista e sua arte estão integrados na seus interesses e os seus pressupostos”.
vida cotidiana, ou 2) como consagração do valor Assim, a cultura popular ou a arte popular,
estético dos objetos para o mercado nacional e in- dependendo da instituição referencial, é apre-
ternacional. sentada/representada de acordo com os dis-
palavras-chave Folclore. Cultura popular. tintos interesses dos grupos que contribuíram
Museu. Modernidade. Tradição. para sua constituição, participando na constru-
ção de representações diversas a respeito desses
fenômenos sociais.
Introdução Os contextos de formação diferenciados das
duas instituições pesquisadas, apesar da crono-
Esse artigo pretende discutir a noção de logia coincidente, determinaram abordagens
cultura popular e arte popular a partir de um díspares com relação ao tema a que se dedicam,
estudo comparativo entre duas instituições evidenciando a história dos dois museus como
de preservação cultural, o Museu de Folclore momentos complementares na constituição
Edison Carneiro e a Casa do Pontal. A partir de um discurso (Foucault, 2003) a respeito do
da experiência etnográfica de visitação a am-
bas instituições, procurou-se observar em que 1. Vilhena (1997) explorou a relação entre folclore
medida os objetos expostos, a classificação dos e identidade nacional, mostrando como os inte-
mesmos, as formas de exposição, acesso e outros lectuais considerados precursores dos folcloristas
contribuíram para a associação entre as manifesta-
elementos apreendidos apontam para diferen-
ções identificadas com o povo e uma origem para
ças relacionadas a diferentes formas de inserção uma cultura autenticamente nacional. Em grande
no campo intelectual. A comparação entre as medida influenciado pelas tradições românticas
duas instituições apontou para dois processos alemãs, esse processo denotava o que Burke de-
diferentes de construção do folclore ou do “po- nunciou como um “purismo” que associava essas
pular” como um campo privilegiado para in- manifestações à idéia de espontaneidade e/ou
“antiguidade”, conferindo a esses fenômenos uma
vestimento intelectual e financeiro, assim como
aura de autenticidade.

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popular brasileiro: um confirmando a cultura tados nacionais e invenção de suas tradições


como um campo de estudos e o outro consa- (Hobsbawm, 1984).
grando seu valor artístico para o mercado na- Anderson mostrou como, junto com o mu-
cional e internacional. Entretanto, ambas as seu, o censo e o mapa foram fundamentais para
instituições estão relacionadas ao contexto de o processo de construção das identidades dos
inserção do Brasil em um mercado interna- domínios coloniais. Essas instituições “regula-
cional no qual cultura e arte eram os termos vam a natureza do ser humano, a geografia de
através dos quais a desigualdade de poder pro- seus domínios e a legitimidade de sua ancestra-
curava ser obliterada para que as transações em lidade” (Anderson, 1991, p. 164).
outras dimensões fossem articuladas em um A memória, no que deveria ser preservado
patamar de pretensa igualdade. e, também no que precisava ser esquecido,
foi importante mecanismo nesse processo de
constituição das nações modernas (Renan,
O museu e seu papel na criação 1990). Os museus, enquanto instituições de
e manutenção de representações memória, estavam relacionados com a preo-
sociais cupação a respeito da preservação de um pas-
sado, muitas vezes forjado, a partir da idéia
A partir do século XVII, houve uma cres- de uma identidade coletiva, contribuindo ao
cente institucionalização dos valores científicos mesmo tempo para a construção do presen-
através da organização de um mercado simbó- te dessa mesma identidade que pretendiam
lico, em torno dos cientistas, dos objetos cien- conservar.
tíficos e de uma linguagem científica, que Os gabinetes de curiosidade, embriões
dos museus modernos, classificavam o mun-
sustentavam – mesmo que não linearmente – do representando o “outro”, o desconhecido,
uma continuada progressão das inovações tec- o antigo, o raro, o excepcional. Os museus
nológicas e das expectativas de esclarecimento dos séculos XVIII, XIX e início do XX, dan-
dos mistérios do mundo e de superação dos do continuidade a esse processo de classifica-
limites tradicionais da intervenção sobre a natu- ção, criaram visões hegemônicas a respeito das
reza (Duarte, 2001, p. 2). identidades das nações através da manipulação
de significados culturais. Esse era um jogo de
Os conhecimentos históricos e científi- poder, que não passava apenas pela violência
cos e os pressupostos ideológicos que elabo- explícita, mas principalmente por negociações
raram técnicas de investigação e classificação em forma de técnicas e dispositivos (Foucault,
configuraram importantes mecanismos de 2003), numa tentativa de fortalecer a domina-
atribuição de valor. Esses mecanismos trans- ção colonial. Nesse sentido, o museu é, desde
formavam os objetos em bens simbólicos sua origem, uma instituição profundamente
(Bourdieu, 1987), traduzindo-os em valor política, engajada em um mercado de trocas
econômico e em significado. As coleções simbólicas, cuja autoridade tem o poder de
eram, em grande medida, resultado de novos criar representações legítimas a respeito dos
grupos sociais e de sua busca pelo domínio fenômenos sociais.
dos conhecimentos que se instituíam. Os A classificação dos grupos que uma co-
museus que abrigaram essas coleções foram leção engendra é uma forma de objetificar e
essenciais no processo de instituição dos Es- manipular representações sociais, sendo um

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dispositivo de poder que define e legitima resultado de classificações que estabelecem


identidades, servindo, portanto, a diferentes uma representação da realidade de acor-
grupos como forma de instituição de dimen- do com as disputas de poder em questão:
sões de poder. Durante o período de domina- a nação, o antropólogo, a direção do mu-
ção colonial, essa prática servia inclusive aos seu, o acervo, as instituições financiadoras,
propósitos do controle social. A construção o momento político no qual se encontram
das identidades nacionais fez parte de um pro- etc. Como participantes desse processo, os
cesso de determinação, codificação, controle museus não apresentam ingenuamente seus
e representação social, no qual as diferentes acervos, mas possuem linhas políticas e ideo-
nações definiram suas identidades mutua- lógicas subjacentes que podem ser apreendi-
mente com participação ativa das instituições das a partir dos diferentes aspectos implícitos
museais. A consagração dos Estados nacionais ou explícitos nas abordagens educativas, for-
fez com que, no final do século XIX e início mas expositivas (catálogos, composição da
do XX, os museus se multiplicassem como exposição etc.), assim como no discurso dos
instituição privilegiada para fornecer leituras profissionais ligados às instituições.
dessas novas entidades.
Vários atores estão envolvidos na organiza-
ção das instituições museais e na formação de O museu de arte
coleções. Os objetivos dessas instituições são,
em grande parte, definidos pela interação entre Somente a partir do século XVIII, com a
os profissionais que delas participam e suas ex- instituição da estética como disciplina autôno-
pectativas mútuas, tendo como parâmetro de ma, a arte ganhou uma instituição de divulga-
atuação uma hierarquia de papéis previamente ção própria, no bojo da separação entre ciência
definidos e a função da instituição como uma e religião. Pode-se reservar a esse século o sur-
instituição de preservação, difusão e transfor- gimento do que se concebe hoje como museu
mação de memória. de arte. A influência dessas instituições foi de-
No século XX, o contexto social foi in- cisiva na mudança de valores estéticos ao pos-
corporado às exposições como forma de de- sibilitar o acesso a grupos sociais com valores
monstrar a relatividade dos fenômenos. Esse diversificados a coleções antes reservadas a gru-
deslocamento foi possibilitado pelo surgi- pos restritos. É importante também considerar
mento de novas abordagens que pensavam sua contribuição para o processo de institui-
as culturas como resultado de conjuntos de ção de normas de comportamento e conduta
fenômenos demarcadores de identidades. A relacionados às ideologias vigentes. Duncan
ênfase deslocou-se dos objetos para os fatos (1995, p. 2) argumenta a respeito do caráter
e processos sociais inseridos em seus contex- ritualístico dos museus de arte que, através da
tos. Os museus passaram a ser considerados experiência estética, apresentavam os valores
categorias históricas, culturalmente relativas, e crenças que serviram, no século XVIII, “às
passíveis de serem influenciadas por disputas necessidades ideológicas do emergente Estado-
políticas, portanto, sujeitas a transformações nação burguês, proporcionando um novo tipo
intelectuais e institucionais. de ritual cívico” (1995, p. 2).
Essa modificação no estatuto da insti- Com a Independência, institui-se no Bra-
tuição permitiu perceber as exposições não sil uma discussão sobre a constituição de uma
como verdades inquestionáveis, mas como “cultura autenticamente brasileira” a partir da

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produção literária e plástica. Na década de modernos costumam ser instituídos em edifí-


1920, esse debate se transformou com os em- cios de linhas arquitetônicas que dialogam com
bates entre os artistas que participavam de um a modernidade, assim como museus de folclore
circuito legítimo de produção e consagração ou de arte popular podem estar relacionados a
artística e aqueles que reclamavam pela auto- prédios mais simples em relação aos tipos an-
nomia frente às normas instituídas nesses cir- teriores.
cuitos. Essa discussão, que tem como marco As rupturas que a arte moderna havia
histórico a Semana de Arte Moderna de 1922, efetuado com as tradições clássicas e com o
procurou em um momento a redefinição da academicismo, assim como a crescente auto-
produção artística a partir da temática indus- nomização do campo artístico, com a expan-
trial, mas, logo em seguida, viu a necessidade são dos grupos sociais relacionados à discussão,
de recorrer a definições que construíssem uma divulgação e financiamento de artistas e movi-
“identidade” por oposição às manifestações eu- mentos contribuíram para o surgimento dessa
ropéias (Moraes, 1988). Um dos recursos foi a nova concepção museológica. Esse processo
exaltação da apropriação de “temas” e “cores” promoveu a mudança das representações sobre
considerados “autenticamente nacionais”. Foi as próprias instituições de preservação cultu-
nesse processo, em parte pela influência da tra- ral, que adquiriam uma característica histó-
dição romântica alemã, que as noções de fol- rica, não mais essencialmente de conservação
clore e cultura popular surgiram como uma das de um passado, mas também de construção
possibilidades de particularização da arte e da do presente. Assim como os museus de arte, a
“cultura brasileira”. partir de meados do século XX, todos os tipos
Durante a década de 1950, com a crise nos de museus passaram por uma crise no inte-
países destruídos pela Segunda Guerra Mun- rior da qual o papel dessa instituição tem sido
dial e a conseqüente queda de preços no mer- questionado.
cado artístico, houve facilidade para aquisição
pelos países periféricos de obras de arte de ar-
tistas estrangeiros consagrados. No Brasil, essa Um breve histórico do Museu de
possibilidade constituiu uma importante opor- Folclore Edison Carneiro e de seus
tunidade para colecionadores que instituíram processos de transformação
os primeiros museus de arte moderna a partir
de suas coleções particulares. Nesses novos O Museu de Folclore é o único museu que
museus, a museologia utilizada abandonava a pertence à Fundação Nacional de Arte e não
linha expositiva que recorria às “origens” greco- ao Instituto do Patrimônio Histórico e Artís-
romanas da arte, em prol da exposição de mo- tico Nacional (IPHAN), órgão do Ministério
vimentos modernos específicos. da Cultura que reúne o conjunto dos grandes
A arquitetura dos prédios que abrigam as museus brasileiros2. Em 1968, no âmbito da
coleções museológicas é uma parte importante Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro,
das representações que essas instituições contri- órgão criado em 1958 e subordinado ao Mi-
buem para construir. Há assim uma tendência nistério da Educação e Cultura, o Museu de
para que museus que adotam uma linha histó-
rica apresentem-se em prédios nos quais predo- 2. Este artigo foi produzido a partir das reflexões desen-
minam linhas arquitetônicas que remetem aos volvidas no âmbito de um trabalho de final de curso,
estilos greco-romanos e suas variações, museus durante o mestrado, em 2000. Hoje o museu perten-
ce ao IPHAN.

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Folclore, junto com o Museu Histórico Na- um enredo que contasse a história da cultura
cional, foi idealizado a partir da questão da popular nacional. O Museu de Folclore cons-
“leitura da produção das culturas populares” tituiu-se como um complemento à construção
(Ferreira, 1997, p. 163). De 1969 a 1974, o do folclore como campo de atuação profissio-
Museu de Folclore funcionou junto ao Museu nal a partir dos objetos coletados por diversas
da República e ao Museu Histórico Nacional, pessoas: pesquisadores, intelectuais e diletantes.
no Palácio do Catete. As questões levantadas no Livro de Opiniões do
O período de 1976 a 1980 foi marcado pela Museu, durante os onze anos em que a exposi-
organização do acervo, na direção de docu- ção anterior esteve montada, levou à formula-
mentação básica e difusão maciça das coleções ção de títulos menos acadêmicos para as etapas
em vários espaços: escolas públicas, feiras livres do “roteiro” da exposição. A exposição passou
e outros, onde foram montadas exposições iti- então a ter os títulos atualmente apresentados:
nerantes. Em 1980, recebeu do Departamento vida, técnica, religião, festa e arte, dispostos
de Assuntos Culturais o prédio 179, da rua do nessa ordem.
Catete. Em 1980, inaugurou-se uma exposição Uma das preocupações que orientou a for-
permanente com a seguinte estrutura: brin- mulação do espaço museológico foi a relação
quedos; medicina popular; danças e folguedos; espaço-tempo, para que o visitante pudesse
literatura de cordel; instrumentos musicais e compreender que a cultura popular é o que se
artesanato. A maior parte das peças era disposta encontra em cada esquina a cada dia e não algo
em vitrines fechadas com iluminação interna, e que está sempre em algum lugar distante e em
somente a área central, dedicada ao artesanato, um tempo remoto. Na reformulação prestou-
era composta de bases abertas. se atenção para a “relação entre os usos e sig-
Em 1982, Lélia Coelho Frota assumiu a di- nificados das peças e aqueles que as produziam
reção da instituição sob influência de Aloísio e consumiam”. A atenção se voltou para uma
Magalhães e instituiu uma mudança conceitu- tentativa de “falar através dos objetos” (Ferrei-
al. A cultura popular passou a ser vista como ra, 1997, p. 167).
integrante do campo antropológico e o Institu- Teoricamente, nessa abordagem o que in-
to passou a dialogar com as universidades e os teressa é o contexto e significados dos objetos,
centros de pesquisa do país. A exposição per- ressignificados tanto no processo de produção
manente foi reformulada e a linha conceitual como de fruição. Entretanto, a falta de textos
passou a focalizar o homem brasileiro produtor explicativos, assim como a baixa luminosida-
de cultura, relacionando-o a quatro aspectos da de das salas de exposição acabam dificultando
vida que se organizavam sobre os seguintes tí- a leitura dos textos do guia do museu e apro-
tulos: ritos de passagem; o mundo ritualizado ximando a experiência daquela adotada pelos
das festas; o homem na transformação da natu- museus de arte de cunho meramente estético
reza e na produção de cultura e o indivíduo e a no qual se espera que os visitantes tenham uma
coletividade. O uso de vitrines foi parcialmente relação com as obras sem mediação. Nesses
abolido, a não ser no conjunto de Mestre Vi- museus, pressupõe-se que os objetos tenham
talino, cujas peças possuem alto valor no mer- um significado intrínseco, uma essência passí-
cado artístico. vel de ser apreendida diretamente pelo olhar do
Em 1984, foi inaugurada a exposição que observador “apto” a vê-lo. Essa acaba sendo a
pode ser hoje (2000) observada. Essa mostra relação que o visitante tende a estabelecer tam-
foi organizada com a preocupação de se criar bém com os objetos do Museu do Folclore.

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A seleção das peças se deu com essas museu – um livreto com informações sobre a
questões em mente, de forma a garantir que exposição – que pode ser usado durante a visita
os objetos e temas estivessem colocados em e devolvido no final, mas que está disponível
seu contexto para possibilitar uma refle- para compra.
xão a respeito do valor da cultura popular, Logo que se entra, a luminosidade é radical-
para além do “puro e genuíno” ou exótico. mente diminuída. As paredes pretas, a ausência
A pesquisa para essa nova montagem levou de janelas e os focos de luz direcionados para as
em conta o tipo de público freqüentador do peças criam uma atmosfera intimista. Ao fun-
Museu. A intenção era despertar a curiosi- do, músicas diversas tocam ao longo da visita:
dade das pessoas em saber mais a respeito cantigas de roda, cantochões e rezas. Toda essa
do tema. cenografia parece nos remeter para um tempo
Segundo Cláudia Márcia Ferreira, coorde- etnográfico, indeterminado, onde o popular ou
nadora de folclore e cultura popular e curadora o folclórico poderia ser encontrado. O mun-
do Museu de Folclore, e Ricardo Gomes Lima, do cotidiano fica, literalmente, de fora. As fo-
curador do Museu, tos, pinturas cenográficas e ambientações em
uma área específica da exposição transportam
na constituição de seu acervo, o MFEC entende o visitante um pouco mais para dentro desse
os produtos da cultura em seu sentido antropo- mundo distanciado da vida cotidiana e dos te-
lógico contemporâneo, isto é, não como meros mas simples que as obras expostas reproduzem,
objetos cuja função se esgota na matéria de que atribuindo ao folclore, à cultura popular, uma
são feitos, mas sim como formas concretas que, aura de espetáculo que a torna, em grande me-
em sua materialidade, comportam e expressam dida, distanciada da experiência do dia-a-dia e
sistemas de significação que lhes são permanen- do tempo atual.
temente atribuídos e, portanto, constitutivos Além da iluminação escassa e dos pedestais
de nossa humanidade. São bens culturais que pretos, a visibilidade das peças é, de certa for-
participam do patrimônio de toda a nação e es- ma, prejudicada devido à sua disposição numa
tão disponíveis ao público, sobretudo por meio altura bem abaixo da linha de visão. Entretanto,
das mostras permanentes, temporárias e itine- a atmosfera criada por essas condições, além do
rantes que o museu organiza (Ferreira; Lima, fato das obras estarem expostas sem nenhum
1999, p. 107) tipo de anteparo diante dos visitantes, como no
caso das caixas de vidro, convidam a uma visita
mais atenta, conduzida pelos textos – peque-
Observações etnográficas nos resumos do guia do museu – espalhados
pelas paredes que dão ao visitante orientações
O Museu de Folclore Edison Carneiro está teóricas, escritas de maneira acessível, sobre a
localizado no Catete, bairro de fácil acesso de interpretação do enredo criado para organiza-
metrô ou de ônibus, no primeiro quarteirão de ção da exposição. A altura das bases/suportes
um conjunto arquitetônico de sobrados tom- das peças também favorece as crianças, o que
bados pelo Instituto do Patrimônio Histórico e indica uma preocupação com a dimensão edu-
Artístico Nacional. Na entrada, um segurança cativa do Museu.
faz a recepção dos visitantes, informando so- Seguranças acompanham os visitantes do
bre a obrigatoriedade de deixarmos as bolsas início ao fim do roteiro, acionando e desligando
num guarda-volumes e nos indica o “guia” do as peças que dispõem de engrenagens para que

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os visitantes as vejam em funcionamento3. Por- etapa da exposição5. As informações oferecidas


tanto, as peças, mesmo estando ao alcance das sobre as peças se restringem ao tipo de objeto,
mãos, não podem ser tocadas, o que, em certa local de proveniência e, na maioria das vezes, o
medida, parece contraditório com a idéia de nome do autor, sendo a data de confecção res-
aproximação do visitante em relação à produ- trita apenas às peças de artistas populares consa-
ção popular a partir do uso de vitrines abertas, grados no mercado artístico.
mas ao mesmo tempo denota o valor da coleção A estrutura do Museu comporta uma
através de um processo que visa a preservação biblioteca, área de documentação sonora e
das mesmas. visual, área de difusão cultural e o núcleo ad-
Em uma sala anexa, está a Sala do Ar- ministrativo, além de uma sala para exposi-
tista Popular, onde são organizadas diversas ções itinerantes e várias salas para a exposição
exposições nas quais artistas atuais podem permanente. O ingresso no Museu e uso dos
apresentar seus trabalhos, oferencendo suas espaços de pesquisa e dos programas educati-
explicações sobre eles e estipulando seus pre- vos é gratuito.
ços. Essas exposições são acompanhadas por Os programas educativos preparam profes-
uma apresentação fotográfica, resultado de sores, monitores e animadores culturais para
uma pesquisa por parte dos profissionais do orientarem seus alunos ao longo da exposição.
Museu sobre o contexto de produção do ar- A preparação pode ser feita de duas formas di-
tista e seu meio social. Essas exposições são ferentes, uma lidando com a questão do folclo-
organizadas a partir da seleção das diferentes re propriamente dita e outra com a questão da
propostas recebidas. linguagem museológica. Depois de encontros
A exposição permanente conta com aproxi- com os educadores do Museu, nos quais os
madamente 1.200 itens, que constituem cerca profissionais recebem textos teóricos, quando
de 10% do acervo total do museu, dispostos em são acompanhados numa visita pelo Museu e
1.600 m2. Essa mostra divide-se em cinco gran- incentivados a debater questões levantadas, os
des temas, além de uma ante-sala com algumas profissionais trazem seus alunos para conhecer
peças que, antes da exposição propriamente a exposição e eles próprios orientam suas tur-
dita, “saúdam” o visitante atualizando (ou re- mas durante a visita.
lativizando, dependo da leitura que se faça) o Outros dois programas educativos do Mu-
mito de formação do Brasil através da mistura seu levam a questão do folclore para dentro das
das três raças4. Nenhuma das peças possui iden- escolas. São eles: “De mala e cuia” e “Olhando
tificação, que precisa ser feita através do “guia” em volta”. O primeiro leva o material educati-
do Museu, que possui desenhos esquemáticos vo sobre folclore e cultura popular para dentro
referentes ao posicionamento das peças em cada da escola para que os professores explorem o
tema com seus alunos. No segundo, é oferecido
temporariamente um material para se montar
3. Hoje, 2007, o Museu dispõe também de um áudio- uma exposição com curadoria de alunos e pro-
guia em português, espanhol, francês e inglês com in- fessores. Ambos os projetos prevêem a prepa-
formações mais substanciais sobre o acervo exposto. ração do professor antes do empréstimo dos
4. Se há uma intenção crítica de tratar o tema do mito
de formação da nação, talvez fosse mais proveitoso
deixar explícita a participação de diferentes povos, 5. O guia então era uma publicação pequena que podia
etnias e grupos que integram essa “nação”, além do ser adquirida pelo visitante, mas que estava disponí-
significado da própria noção de mito. vel para empréstimo durante a visita.

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materiais à escola. Em 1999, o Museu recebeu Na década de 1960, a questão da autoria


70.316 visitantes, distribuídos entre seus dife- coletiva ou anônima passou a ser problema-
rentes eventos e salas. tizada sob a nova perspectiva norteadora dos
Segundo Cláudia Márcia Ferreira (1997, p. estudos sobre o folclore. Visto pelo viés ar-
164), o museu é “o palco privilegiado de vei- tístico, a idéia renascentista de gênio autoral
culação de novas idéias” e suas exposições de- contribuía para a constituição de uma nova
vem estar alicerçadas no trabalho de pesquisa e abordagem, na qual integrantes das camadas
documentação. Os profissionais da instituição menos privilegiadas, com suas características
vão a campo investigar o contexto de onde vêm individuais e pensamento original, poderiam
as peças e os temas que são objetos de exposi- ser vistos como autores. Durante essa década e
ções. A instituição oferece também consultoria a próxima, ganhou força a concepção de povo
para outros profissionais na montagem de ex- autor e instituições consagradas da arte erudi-
posições sobre assuntos de conhecimento da ta promoveram exposições de arte popular.
equipe. Assim, todo o trabalho realizado pelo Observado a partir do contexto internacio-
Museu, seja de caráter educativo, curatorial ou nal, as convenções artísticas encontravam-se,
documentação, está apoiado em pesquisas. após o final da Primeira Guerra Mundial, em
processo de transformação. A percepção de que
para entrar no mercado internacional era neces-
Resumo histórico da Casa do Pontal sário compartilhar alguns critérios da história
da arte hegemônica fez com que a noção de arte
A Casa foi idealizada pelo artista plástico, moderna se construísse nas nações coloniais a
designer e arquiteto de exposições promocio- partir de uma união entre a idéia de modernida-
nais francês Jacques Van de Beuque, que che- de e suas particularidades locais, suas tradições.
gou ao Brasil em meados da década de 1940. No Brasil, essas particularidades recaíram sobre
Recomendado por Portinari, a quem conheceu a ideologia da formação racial a partir da qual a
em Paris, Van de Beuque iniciou sua trajetória noção de cultura popular era então pensada.
brasileira trabalhando com o paisagista Rober- A separação entre a idéia de uma arte eru-
to Burle Marx. Ao ser contratado para projetar dita e uma arte popular era parte constitutiva
as vitrines de uma companhia aérea, conheceu da ideologia da arte pela arte e do processo de
a cidade de Recife, onde pela primeira vez teve constituição de uma linguagem específica a par-
contato com as produções populares no Mer- tir da qual construir um discurso próprio para o
cado São José. campo artístico, separado de outras dimensões
Quando começou a adquirir suas primei- da vida social. Esse processo intensificou-se em
ras peças, na década de 1950, a discussão so- meados do século XX, mais especificamente a
bre cultura popular centrava-se na busca das partir da contenda entre a idéia de represen-
raízes “autênticas e genuínas”, que “permi- tação abstrata e representação figurativa e do
tissem definir uma identidade nacional”. Se- engajamento do artista nas décadas de 1940
gundo Mascelani (1999, p. 128), entretanto, a 1960. O processo de estetização da cultura
o interesse de Van de Beuque estava voltado popular foi parte desse processo mais amplo
para “as qualidades estéticas das obras”. Sua que incluía a constituição de uma linguagem
coleção foi então constituída a partir do “gos- artística relativamente autônoma e de represen-
to” do colecionador e de sua relação com os tações nacionalistas que utilizavam fenômenos
artistas populares. considerados particulares à região simbólica e

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política em questão para construir suas simbo- Para Mascelani, Van de Beuque aos poucos
logias nacionais6. se percebeu como mediador entre diferentes
Em 1947, Augusto Rodrigues, criador da segmentos e camadas sociais.
Escolinha de Arte do Brasil, organizou a pri- O imóvel comprado em 1975 só foi conclu-
meira exposição de arte popular com obras ído e inaugurado para o público em janeiro de
do Mestre Vitalino. Esse evento tornou-se um 1993. O texto que recebe os visitantes na en-
marco na história da arte popular por ter atra- trada se refere à exposição como um álbum de
ído a atenção para um gênero produzido nos família, apresentando a coleção como um pro-
meios periféricos, nos quais “prevalecem os jeto pessoal, resultado da “relação de intimida-
modos de vida e cultura tradicionais” (Masce- de com os artistas e a arte popular” (Mascelani,
lani, 1999, p. 133). Após a Semana de Arte de 1999, p. 122). A denominação do espaço Casa
São Paulo, em 1922, e o fim do Estado Novo, do Pontal teria sido o resultado do desejo de
a idealização de um tema abstrato, o popular, apresentar a arte popular como parte de um
cedeu lugar a personagens vivos, atores sociais tempo presente. Ainda segundo a diretora da
desses estilos de vida e protagonistas dos confli- instituição, a negação da caracterização desse
tos retratados em suas obras. espaço como um museu está relacionado a uma
Segundo Mascelani (1999, p. 140) percepção dessas instituições como espaços que
manipulam uma memória, em grande medida,
como integrante do amplo grupo formado pelos referida a um passado cristalizado no tempo.
artistas que partilham da norma culta, Jacques Em 1989, a Casa foi tombada pelo Conse-
Van de Beuque põe em contato mundos de dife- lho de Defesa do Patrimônio Artístico e Cul-
renças, dando visibilidade de conjunto à variada tural do Rio de Janeiro, e em 1996, recebeu
produção que compõe seu acervo. o prêmio Rodrigo Melo Franco de Andrade,
reconhecendo-a como a “melhor iniciativa no
Ainda segundo a diretora de pesquisa do país em prol da preservação histórica e artística
Museu de bens móveis e imóveis” (Mascelani, 1999, p.
122), concedido pelo IPHAN.
no exame da trajetória de Jacques Van de Beu- Nos últimos anos, o museu realizou 22
que, fica evidente que é o gosto pessoal, ou a exposições parciais de seu acervo pelo Brasil e
curiosidade, que conduz inicialmente ao pro- em outros dez países. Maria Ângela Mascelani
cesso. Mas com o passar do tempo, esse gosto (1999) comentou a importância da rede de re-
pessoal articula-se intimamente com o pulsar e lações que articula pessoas e iniciativas para que
as pressões sociais. (Mascelani, 1999, p. 141) essa coleção adquirisse internamente significa-
do como arte e seu pertencimento no mundo
6. Vilhena (1997) procurou compreender o proces- artístico (Becker, 1982) brasileiro. Mascelani
so de institucionalização do folclore enquanto uma (1999) destacou entre os diversos profissionais
disciplina acadêmica, entre 1940 e 1960, a partir da envolvidos nesse processo, a presença de artistas
formação de um mercado de trabalho e da organiza-
e intelectuais que ela destaca não pela pesquisa,
ção de instituições. Esse processo contribuía para a
produção de identidades intelectuais específicas, além mas pela mediação “entre as elites conservado-
de definir um campo de estudos, sua abrangência e ras do país e os artistas populares”.
limites, a partir da exclusão de uma série de mani- Mascelani (1999, p. 153) lembra que, a
festações que passaram a não ser consideradas como Casa do Pontal com sua história e coleções,
objeto dessa nova disciplina por não se encaixarem mostra que
nos critérios institucionalizados.

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No sistema arte/cultura as interações entre assim como um artigo sobre o Museu de Fol-
grupos e pessoas são fundamentais. É através clore Edison Carneiro. O museólogo informou
dessas interações, conflituosas ou não, que se sobre as publicações assim que se interou do
articulam interesses convergentes ou divergen- caráter investigativo da minha visita.
tes que resultam na criação de novas categorias Expostas em vitrines fechadas com ilumina-
e conceitos para o entendimento da realidade. ção interna – alguns módulos expositivos em
Portanto, o reconhecimento e a legitimação da formatos e cores vibrantes –, quase todas as pe-
Casa do Pontal e de suas coleções mostram que ças são identificadas quanto a autoria e técnica,
o interesse pela expressão plástica popular tem não constando data de produção em nenhu-
uma trajetória que vem sendo tecida por grupos ma delas. No total, cerca de cinco mil peças
e pessoas pertencentes a diferentes segmentos estão expostas e outras três mil se encontram
sócio-culturais. E também que, nesta trama, na reserva técnica para formação de exposições
legitimação e criação caminham juntas e se in- temporárias que são emprestadas para outros
fluenciam mutuamente. museus7.
A mostra é dividida tematicamente em doze
setores: profissões; Mestre Vitalino; Ciclo da
Etnografia da Casa vida (casamento, nascimento, infância, noiva-
do, morte); Jogos e diversões (jogos de adultos
A Casa do Pontal fica em um sítio de doze e crianças); Bichos e areias; Arte. Esses setores
mil metros quadrados no Recreio dos Bandei- se subdividem em outros assuntos específicos
rantes, zona oeste do Rio de Janeiro, em uma como: realejo, banda de pífaros, casa de fari-
área sem nenhum serviço de transporte públi- nha, rendeiras, atividades domésticas etc. Cada
co. A arquitetura da Casa é “moderna”. Seus vitrine apresenta em média vinte peças de ar-
espaços, externo e interno, são amplos e bem tistas e procedências variadas sobre o mesmo
iluminados. Muitas janelas, grandes e peque- tema.
nas, exibem, durante a visita, toda a vegetação O programa educativo da Casa é basica-
que abunda ao redor da casa, localizada entre o mente restrito a escolas particulares, pois além
maciço da Pedra Branca e a Prainha. Entretan- da dificuldade de acesso ao museu, cobra-se
to, nem a iluminação farta, nem todo o verde uma taxa de R$ 12,00 por aluno para a reali-
da vegetação são capazes de “roubar” a atenção zação da visita guiada, exigindo-se um mínimo
que insiste em voltar para as peças expostas. de 35 alunos, o que torna quase inviável a visita
O museólogo responsável pela manutenção de escolas públicas. A visita é orientada por um
e restauro das peças recebe os visitantes de forma grupo de contadores de história que preparou
polida. O ingresso custa R$ 5,00 para adultos e um enredo para explicar o significado da expo-
é grátis para idosos e estudantes uniformizados sição e a história da Casa. O museu recebeu,
da rede pública. Quando da visita etnográfica, em 1999, quatro mil visitantes, tendo esse nú-
catálogos de exibições montadas com o acervo mero sido contabilizado a partir dos ingressos
da Casa estavam prestes a ser lançados, junto cobrados.
com a Revista do Patrimônio Histórico e Artís- Os poucos textos espalhados pelo museu se
tico Nacional: Arte e Cultura Popular (1999), referem a artistas específicos (Mestre Vitalino,
que apresenta um artigo da diretora de pesqui-
sa do museu, Maria Ângela Mascelani, sobre o 7. Informação concedida pelo museólogo responsá-
acervo da Casa e o colecionador responsável, vel pela manutenção e restauro das peças do acer-
vo, Sérgio Santos.

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Nhô Caboclo e alguns outros), às festas (Boi como parte de uma comunidade “artesanal”
bumbá, Bumba-meu-boi, festa do Divino en- organizada e seus trabalhos refletem os cons-
tre outras), à técnica de fazer garrafas de areia, trangimentos e oportunidades da comunidade
aos mamulengos, ex-votos e alguma coisa so- onde são produzidos. A arte popular, assim
bre religião e sincretismo religioso. Não pare- existe dentro de uma noção de alteridade, por
ce haver um esforço de exibir uma erudição oposição à arte erudita que, apesar dos discur-
acadêmica quanto à pesquisa sobre cultura sos de autonomia, se produz e reproduz a partir
popular, mas percebe-se o esforço de constru- de certas regras, instituições e discursos.
ção de um mito em torno do colecionador. Ambas as instituições aqui tratadas apre-
Exalta-se o processo de construção da coleção sentaram uma representação de arte popular
forjado em torno da curiosidade do mesmo, que, apesar dos discursos de pertencimento
assim como sua condição de estrangeiro e de dessas manifestações ao mundo contemporâ-
suas relações sociais. Todos esses fatores con- neo, constituem-se a partir de um conjunto
tribuem para legitimar o critério de qualidade de pares de oposição que trabalham a noção
estética dos objetos colecionados de modo a de alteridade em diversas dimensões: urbano
caracterizá-los como uma forma específica de e rural, próximo e distante (no tempo ou no
arte: “arte popular”. espaço), excepcional e ordinário, rústico e ela-
Como todas as peças pequenas se encon- borado. Essas oposições ainda podem ser in-
tram em vitrines fechadas, a visita pode ser terpretadas a partir de categorias como “arte
feita sem o acompanhamento de seguranças. popular” e “arte erudita”, “cultura popular” e
Isso possibilita o estabelecimento de uma re- “cultura erudita” ou ainda através da relação
lação mais pessoal com as obras, na medida entre pesquisa acadêmica e “gosto” que pode
em que se encontram “a sós” o visitante e suas ser relacionada ao binômio reflexão e espon-
impressões sobre elas. O tempo dispensado taneidade.
em cada vitrine é dado exclusivamente pelo Nesse sentido, ao abdicar das informações
interesse na mesma, não há a sensação de ser- cronológicas quanto a produção das obras ex-
mos observados quanto à nossa reação frente postas – com exceção das obras dos artistas
a cada peça. Tampouco há música no local, o individuais que tenham conquistado valor no
único som que acompanha os visitantes é o mercado de arte – perde-se a oportunidade de
dos pássaros que cantam do lado de fora da discutir as várias temporalidades, isto é, as re-
Casa. O acervo estava, no período da pesqui- lações diferenciadas com a tecnologia, a vida
sa, sendo digitalmente catalogado no intuito social e as concepções de mundo implícitas em
de que o banco de dados fosse disponibilizado cada uma. Apesar de os profissionais do Museu
para pesquisa e comercialização das imagens do Folclore argumentarem que a cristalização
das obras. da cultura não pode ser resumida à sua relação
com o museu e sua imagem de depositário do
passado, seus esforços para apresentar aquelas
Considerações finais manifestações culturais como dinâmicas aca-
bam por reforçar a idéia de que os objetos estão
Howard Becker (1982) define o artista po- fora do tempo e do espaço.
pular como aquele que trabalha totalmente O fato de as peças serem apresentadas sem
alheio aos cânones dos mundos artísticos. Es- data de produção, assim como a atmosfera cons-
ses artistas geralmente produzem seus trabalhos truída pela cenografia da exposição contribuem

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para uma leitura da produção cultural popular das lida com a parcela de seu acervo selecionada
como se esta estivesse inserida em um tempo para constituir as diversas exposições como
etnográfico indeterminado, tema amplamente sistemas “possuidores de códigos carregados de
tratado em trabalhos antropológicos da segun- significados próprios” (catálogo Arte do povo,
da metade do século XX. Entretanto, o caráter 1982, p. 8, grifo no original). Entretanto, ape-
de pesquisa do Museu Edison Carneiro é ainda sar de se constituírem de peças, em grande me-
evidente na atualidade das diversas exposições dida, de mesma procedência, esses “sistemas”
que são frequentemente renovadas na Sala do adquirem códigos e significados diferenciados
Artista Popular. Essa sala rompe com a pers- para cada uma das instituições, devido à for-
pectiva atemporal da produção popular, apesar ma de apresentação e manipulação dos dados
de não retirar a exposição permanente de sua referentes aos signos e a diferença no propósito
“redoma cronológica”. constitutivo das duas instituições e do caráter
A Sala do Artista Popular contrasta ainda dos colecionadores.
com o processo de digitalização das obras da As duas coleções possuem também valores
Casa do Pontal. O museu Edison Carneiro, em campos diversos construídos por critérios
através da proposta de exposições temporárias, diferentes. A coleção de Jacque Van de Beuque
coloca o artista em contato com o público, possui valor no mercado de museus e galerias
cria uma oportunidade de transformação do de arte devido à sua rede de relações no mundo
significado de sua produção a partir da parti- artístico e ao discurso do critério de valor esté-
cipação em uma exposição em um museu pú- tico para a seleção das obras. A coleção do Mu-
blico, apresentando ainda uma possibilidade seu de Folclore, por sua vez, enfatiza seu valor
de inserção desses artistas em novos mercados. de documento, baseada nos esforços de pesqui-
Por sua vez, a Casa do Pontal preocupa-se em sa de diversos profissionais. O valor “estético”
digitalizar ela mesma as imagens de suas obras é então um critério subjetivo que contribuiria
para comercializá-las e captar recursos para de forma quase negativa para a valoração des-
o museu. As diferenças entre as instituições sas coleções. Tratando a “alta” cultura como
podem ser compreendidas, também, a partir um sistema de classificação, Bourdieu procura
do contraste entre o caráter público que conta mostrar como “o modo de expressão caracterís-
com recursos estatais, de uma delas, enquanto tico da produção cultural depende sempre das
a outra é uma instituição privada que depende leis do mercado no qual ele é oferecido” (1998,
de arrecadamento para se manter. xiii).
Os contextos de formação diferenciados das Os programas educativos dos dois museus
duas instituições, apesar da cronologia coinci- diferem em sua forma e conteúdo. O Museu
dente, determinou abordagens díspares com de Folclore preza pela formação do professor,
relação ao tema a que se dedicam, evidencian- com base no conteúdo anteriormente trazido
do a história dos dois museus como momentos pelo aluno e deixa que o professor descubra
complementares na constituição da noção de junto com os alunos a cultura popular. A Casa
cultura popular: um confirma as manifestações do Pontal, por sua vez, oferece a leitura da co-
populares como um campo de estudos e, o ou- leção a partir dos parâmetros que orientaram
tro, consagra seu valor artístico para o mercado seu proprietário na constituição da mesma,
nacional e internacional. oferecendo aos visitantes uma leitura pronta
Na tentativa de dar conta do que se pro- das peças. A equipe do departamento de Ação
põem, cada uma das duas instituições observa- Educativa do Museu de Folclore se preocupa

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em preparar o professor para que ele perceba a Museum Edison Carneiro and Casa do

cultura popular como parte integrante do co- Pontal: discourses on folklore and popular

tidiano de cada um. O programa educativo da culture

Casa do Pontal trabalha mais com as noções


plásticas – forma, cor, textura – das peças e os abstract An ethnography of two institutions

dados empíricos a respeito das obras – quem of cultural preservation shows that the different tre-
fez, onde e com que material. atments of their collections reproduces the social re-
Ao utilizar os projetos educativos de cada lations inherent in the construction of two distinct
um como metáfora de suas relações com o intellectual fields. “Popular culture” and “folk art”
campo da cultura popular, percebe-se que are observed from the point of view of the parti-
enquanto um procura integrar o artista e sua cipation of involved social actors in the organiza-
produção na vida cotidiana – em consonância tion of the institutionalized collections. included in
com o olhar antropológico –, o outro man- these collections salient different forms of the ways
tém um distanciamento entre a arte popular in which art is understood : 1) a field of study in
e o cotidiano de seus visitantes – em sintonia which the artist and his art are integrated into daily
com a forma como o campo artístico mantém life, or 2) as a consecration of the value of aesthetic
hierarquizados o artista, ser especial dotado de objects in national and international markets.
habilidades incomuns, e o público que aprecia keywords Folklore. Popular culture. Museum.

e consome sua arte. São formas diferentes de Modernity. Tradition.


perceber e reproduzir as relações sociais.
Entretanto, as duas instituições fazem parte
do mesmo processo de construção de nação a Referências bibliográficas
partir da institucionalização de uma gama de
entidades que estabeleciam uma base de signos ANDERSON, Benedict. Imagined communities. London
and New York: Verso, 1991. 256 p.
comuns. Noções como modernidade e tradi-
ARTE DO POVO. Catálogo do projeto para a promo-
ção, erudito e popular, entre muitas outras fo- ção da arte popular brasileira com exposições em Re-
ram transformadas em rótulos que portavam cife e no Rio de Janeiro. Edição conjunta da Fundação
também significados políticos. Assim, essas Roberto Marinho, Esso Brasileira e Legião Brasileira
noções funcionam como símbolos que podem de Assistência. Rio de Janeiro, 1982. 36p.
ser acionados por atores e grupos diversos que, BECKER, Howard S. Art worlds. Los Angeles: University
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pensando compreender a mesma coisa, preten-
BOURDIEU, Pierre. O mercado dos bens simbólicos. A
dem sentidos distintos. As noções de folclore economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva,
e arte popular fizeram parte desse processo de 1987, p. 136-137.
instituição de signos que são, ao mesmo tempo, ______. Distinction: a social critique of the judgment of
linguagens a partir das quais as trocas interna- taste. Cambridge: Harvard University Press, 1998.
cionais em outras esferas econômicas e simbó- 613p.
______. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Bra-
licas foram facilitadas, pois, apesar dos sentidos
sil, 2000. 311 p.
múltiplos implícitos nessas noções, a classifica- DUARTE, Luiz Fernando Dias. Uma natureza nacional:
ção e atribuição de valor às culturas materiais entre a universalização científica e a particularização
dos estados nacionais em formação pareciam simbólica das nações. 2001. 15p. Mimeo.
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FERREIRA, Cláudia Márcia. Museu de Folclore Edison
Carneiro. In: ARNAUT, Jurema Kopke Eis (Org).

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IPHAN, 1997. p. 162-179 MORAES, Eduardo Jardim de. Modernismo Revisitado
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MASCELANI, Maria Ângela. A Casa do Pontal e suas
coleções de arte popular brasileira. Revista do Patrimô-

autor Patricia Reinheimer


Doutoranda em Antropologia Social/MN-UFRJ

Recebido em 03/11/2006
Aceito para publicação em 29/11/2007

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