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Os museus históricos selecionam narrativas que dão sentido ao passado, por meio
do que Jörn Rüsen (2014) chama de narrativas-mestras. Essas narrativas, além de
comunicar às pessoas quem elas são enquanto indivíduos, mobilizam operações mentais
para interpretar as experiências dentro de uma evolução temporal. Assim, as narrativas-
mestras permitem orientar, intencionalmente, a vida prática no tempo presente, ou seja,
são “uma atividade criadora da mente humana funcionando no processo do pensamento
e do reconhecimento histórico” (RÜSEN, 2014, p. 94).
Com os mesmos preceitos dos museus históricos, os museus nacionais têm como
função preservar e celebrar o patrimônio constituinte da composição cultural da nação. O
surgimento dessa tipologia museal teve origem no final do século XVIII, no contexto da
formação do conceito de Estado Nação, cujo princípio pedagógico estava em educar o
povo com valores nacionalistas. Myriam Santos (2000) explica que, naquele momento,
houve uma corrida das nações europeias para compor coleções museológicas com objetos
da antiguidade clássica e objetos arqueológicos, botânicos, zoológicos e etnográficos
originários dos territórios colonizados. Segundo a autora, essa concepção museal visava
fixar os ideais imperialistas das nações colonizadoras, pois expunham “não apenas a
riqueza de cada nação, mas o poder de cada nação em mostrar as riquezas trazidas de
outras civilizações como parte de sua história” (SANTOS, 2000, p. 278).
No campo museal brasileiro, Leticia Julião (2010) explica que o surgimento do
Museu Histórico Nacional estava em consonância com a historiografia consolidada pelo
Instituto Histórico Geográfico Brasileiro - que, conforme Lilia Schwarcz (1998), foi criado
no Brasil Império, pela dita “boa elite” e por alguns literatos selecionados. A missão do
instituto se pautava na invenção de mitos nacionais por meio das literaturas romântica e
naturalista, que consideravam os negros como seres primitivos impedidos de evoluir; e os
índios, como os habitantes primitivos mais autênticos.
Foi nesse contexto que, no dia 11 de outubro de 1922, o presidente da República
dos Estados Unidos do Brasil, Epitácio Pessoa (1919-1922) inaugurou o Museu Histórico
Nacional, em celebração do Centenário da Independência do Brasil. José Bittencourt
(2006) destaca que, nas seis primeiras décadas do MHN, o acervo manteve-se nas
concepções museais do seu primeiro diretor/curador Gustavo Barroso e sua equipe de
técnicos denominados de “os conservadores”, que valorizavam como digno de ser
histórico e ser preservado objetos antigos, relacionados com algum fato histórico -
1Doutor em História pela FAFICH/UFMG. Professor do curso de graduação em museologia e do Programa de Pós-
graduação em Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Núcleo de Estudos
Interdisciplinares do Patrimônio Cultural (ESTOPIM). E-mail: luhen_asgar@yahoo.com.br
2Doutoranda da linha de pesquisa Memória social, patrimônio e produção do conhecimento do Programa de Pós-
Mario Chagas (1995) declara que essa nova concepção museal foi interessante,
pois possibilitava estabelecer uma museografia que colocava em cena os “esquecidos” e
“subalternos”, não mais como personagens excluídos ou representados
equivocadamente, e sim como elementos participantes da formação da sociedade
brasileira, inseridos dentro de contextos histórico-sociais. E foi a partir desse movimento
de revitalização que o MHN
Deixou de ser um produto das elites do Segundo Reinado e passou a ser
palco de uma multiplicidade de interações dinâmicas entre agentes em
posições diversas, índios ainda que desenhados pelo romantismo
entraram na exposição, escravos ganharam cara e tiveram explicitadas as
torturas que sofreram ao longo dos 300 anos,os brasileiros pobres,
naturais da terra ou oriundos de outras passaram a povoar as grandes
salas do Arsenal de Guerra (BITTENCOURT, 2006, p.14).
Desse modo, para alcançar a meta, a Política Nacional de Museus trabalha com sete
eixos fundamentais:
1) Gestão e configuração do campo museológico, 2) Democratização e
acesso aos bens culturais, 3) Formação e capacitação de recursos humanos,
4) Informatização de museus, 5) Modernização de infraestruturas
museológicas, 6) Financiamento e fomento para museus e 7) Aquisição e
gerenciamento de acervos museológicos (IBRAM, 2009, p. 1).
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Para uma reflexão mais aprofundada, destacamos o tópico dois, que garante a
democratização e acesso aos bens culturais. Esse item nos leva a refletir sobre como os
museus recebem a normativa de possibilitar não apenas o acesso ao acervo museológico
já estabelecido, mas também oferecer a participação ativa dos sujeitos das diferentes
classes como emissores culturais. Concordamos com Mario Chagas e Inês Gouveia (2014),
quando dizem que, no século XXI, “estamos radicalmente marcando a diferença entre uma
museologia de ancoragem conservadora, burguesa, neoliberal, capitalista e uma
museologia de perspectiva libertária” (CHAGAS & GOUVEIA, 2014, p.17).
Nessa ressonância, no Plano Museológico do MHN de 2019, fica anunciada uma
concepção de Museu que procura afinar sua vocação com as mudanças epistemológicas
do campo da História e das Ciências Sociais. Além disso, nessa compreensão, busca-se
incorporar e colocar em exposição permanente objetos que “contemplem a vida cotidiana
e a diversidade dos grupos sociais, valorizando materiais de épocas recentes para enfatizar
o diálogo dos tempos históricos mais antigos e recentes” (PM, 2019). Sob esse ponto de
vista, “os museus não são somente fontes de informação ou instrumentos de educação,
mas espaços e meios de comunicação que servem ao estabelecimento da interação da
comunidade com o processo e com os produtos culturais” (DC, 1999, p. 251).
Com esses princípios, a reflexão aqui exposta se baseia na busca por destacar, no
circuito expositivo de longa duração, objetos referentes à representação da categoria
trabalho, em específico aos trabalhadores(as) brasileiros(as) enquanto sujeitos políticos,
históricos e sociais.
Nabuco afirma que “o trabalhador livre não tinha lugar na sociedade, sendo um nômade,
um mendigo, e, por isso, em parte nenhuma achava ocupação fixa” (NABUCO, 2000, p. 69).
Nesse contexto, ainda havia o lavrador sem-terra, que “trabalhava a meias” em sistema
de colonato, ou seja, produzia para o senhor da propriedade; mas, em uma parte separada
da terra, produzia para subsistência de sua família.
No início do século XX, aconteceu transferência da economia baseada na
agricultura, para expansão do parque industrial urbano no Brasil, sobretudo por meio dos
ramos têxtil, metalurgia, alimentício e produtos diversos para o mercado interno. No viés
do trabalhismo – movimento organizado que visava à melhoria das condições existenciais
da classe trabalhadora, o sindicalismo passou a lutar por direitos trabalhistas, tais como
férias, redução da jornada de trabalho, descanso semanal remunerado, direito à greve,
entre outras pautas. E assim, essa luta se concretizou na Constituição de 1934 e com
caráter progressista imprimiu, pela primeira vez, leis trabalhistas e sociais (ANTUNES,
2019). Além disso, no período entre 1930-1945, o parque industrial brasileiro, além do
setor produtivo de bens de consumo, expandiu-se, passando a existir um setor industrial
de base gestado pelo Estado como a Companhia Siderúrgica Nacional (1940), a Companhia
Vale do Rio Doce (1942), e a Fábrica Nacional de Motores (1943).
Sônia Mendonça (1995) destaca que outro momento importante para construção
da identidade do trabalhador brasileiro foi o período 1956-1961, quando o governo de
Juscelino Kubitschek optou por desenvolver, com livre participação do capital estrangeiro,
o setor de bens de consumo duráveis - automóveis, eletrodomésticos e similares – criando,
assim, postos de trabalhos para mão de obra não qualificada e qualificada. A autora
explica que
O grande crescimento urbano-industrial atraíra para as cidades um
número cada vez maior de novos habitantes vindos do campo, que iam
engrossar a massa dos trabalhadores urbanos. Por esse motivo, ainda
que a média dos salários fosse baixa, o poder total de consumo da
população havia crescido (MENDONÇA, 1995, p.67).
Com o fim do governo militar, a chamada Nova República, em 1985, permitiu que
a legalidade da força sindical viesse à tona. Nesse sentido, desde os anos 1970, os
sindicatos já vinham protagonizando ciclos de greves em diferentes polos industriais,
liderando quatro greves gerais nacionais. Em 1983, é fundada a Central Única dos
Trabalhadores (CUT), que tem como principal demanda o aumento dos salários e o
controle das altas taxas inflacionarias, sobretudo, dos produtos alimentícios. Vários planos
econômicos foram elaborados, resultando todos em sucessivos fracassos. A privatização
das indústrias estatais foi vista como saída para alavancar capital estrangeiro e diminuir a
dívida externa. Contudo, pouco trouxe de efetivo para qualificar a vida dos trabalhadores.
A década dos anos de 1990 pode ser condensada na fala de Sônia Mendonça
(1995):
A política neoliberal praticada no Brasil dos anos de 1990 produziu a
desindustrialização e a desnacionalização da sua economia. Extinguindo
o setor produtivo estatal e freando o crescimento econômico, a "era
FHC" legou ao país taxas brutais de desemprego, além do
empobrecimento dos trabalhadores, privados de direitos sociais básicos
(MENDONÇA, 1995).
abertura de oferta de trabalho no mercado, o que um ano depois não se confirmou (AS,
2019). Nos anos que se seguiram até a atualidade, assistimos à ascensão de uma direita
elitista, privatista, financista e fascista, representada pelo governo de Jair Bolsonaro, que
extinguiu o Ministério do Trabalho, em 2019, após 88 anos de atuação. E vemos, em curso,
propostas de continuidade da Reforma Trabalhista com intenção de remover direitos já
adquiridos, com o argumento de flexibilizar para garantir aumento de vagas de emprego.
E assim, no século XXI - tempo presente, a situação da classe trabalhadora
encontra-se em expressivo aumento dos índices de informalidade, precarização e
desemprego. Novas tendências trabalhistas se fortalecem com o aumento das propostas
de caráter intermitente, ocasional e flexível, em que o trabalhador, muitas vezes, é
convencido a ser um empreendedor dentro de um fenômeno chamado de “uberização”
das relações trabalhistas. Contudo, todo esse fenômeno está forjado nos ideais
neoliberais, que contribuem diretamente para o aumento da desigualdade, do
empobrecimento e da miserabilidade social.
nível de escolarização formal. De acordo com Celso Furtado (1999), vivem condicionados
pela lógica capitalista em que “os assalariados transformam a totalidade ou quase
totalidade de sua renda em gastos de consumo. A classe proprietária, cujo nível de
consumo é muito superior, retém parte de sua renda para aumentar seu capital, fonte
dessa mesma renda” (FURTADO, 1999, p. 119).
A lógica perversa do capital, fortalecida pelo projeto capital neoliberal, encontra
espaço nas regras trabalhistas vigentes - uma vez que as leis trabalhistas estão afinadas
com a hegemonia capitalista e com os ideais de estado mínimo e de mercado livre, pois
permitem a acumulação de capital por longos períodos sem controle estatal. Assim, para
aumentar os lucros dos grupos financeiros, a classe trabalhadora fica exposta a situações
de precariedade e flexibilização de direitos que, em tempos anteriores, já haviam sido
aplicados. Concomitantemente, em um contínuo processo de burocratização, os
sindicatos vêm transformando-se em instituições que buscam acordos com os interesses
capitalistas; abandonando, assim, a posição “de suas bases nos locais de trabalho em favor
de um projeto político orientado pela eleição de seus dirigentes para cargos políticos”
(BRAGA, 2014, p.31). Nesse contexto, a precarização do sentido de trabalho opõe-se ao
conceito trabalho como categoria ontológica fundante, já que foge das finalidades básicas
da sociabilidade existencial, reduzindo o trabalhador à servidão moderna, empobrecido e
com o mínimo para sobreviver.
Ruy Braga (2012) tem utilizado o termo “precariados” para definir os envolvidos
pelo mercado informal, subemprego ou desemprego disfarçado em novas modalidades de
trabalhos sem garantias de direitos trabalhistas. Ou seja, o precariado é a camada da classe
trabalhadora mais despojada dos direitos trabalhistas. São os que vivem submetidos a
rendimentos incertos, carentes de uma identidade coletiva no mundo do trabalho,
necessitados de ajuda financeira e apoio da assistência social para acessar o mínimo
comum. Ricardo Antunes (2011), em análise aos tempos contemporâneos, diz que há
Clivagens entre trabalhadores estáveis e precários; de gênero,
geracionais e étnicas; entre trabalhadores qualificados e desqualificados;
empregados e desempregados; além da necessidade imperiosa de
superar o produtivismo por uma concepção ambiental que articule
ecologia e socialismo, temos ainda as estratificações e fragmentações
que se acentuam em função do processo crescente de
internacionalização do capital, entre tantos outros desafios (ANTUNES,
2011, p.88)
Guy Standing (2013), sociólogo inglês, alerta para o fato que o grupo dos
precariados seja forjado pelo próprio sistema capitalista neoliberal, que os mantêm com
pouca ou nenhuma expectativa de romperem com o ciclo perverso de empobrecimento.
E, por ser assim, para o sociólogo representam uma nova classe perigosa, por estarem em
constante processo de frustração e revoltados e, por não possuírem organização
trabalhista social, são facilmente seduzidos por ideais extremistas (STANDING, 2013).
Por fim, concluímos que a construção ontológica identitária do trabalhador, no
século XXI, fica marcada pelo desemprego, flexibilização das leis trabalhistas, reforma da
previdência, desigualdade salarial, terceirização de serviços, aumento da femininização da
força de trabalho nos segmentos mais precarizados e o aumento da informalidade.
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Figuras 01 a 06
A memória nacional é composta por homens e mulheres que, por meio de suas
forças de trabalho, construíram a nação e a república brasileira. O autor Pedro Leite (2016)
fortalece esse argumento ao defender:
Outra função social dos museus é a sua contribuição para a construção
de parcerias entre grupos de cidadãos das mais diversas origens. Esta é
mais uma forma de construção de uma sociedade inclusiva e solidária em
que os museus são apenas um entre outros parceiros. Trata-se de um
hábito de pensar que deve penetrar toda a sociedade num espectro largo
de representatividade de grupos de todo o tipo (LEITE, 2016, p.1).
Considerações finais
Referências
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