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Sphan atuou como o arquiteto de um estado modernista alicerçado no passado, o qual é legitimado

como fonte da força e da unidade necessárias ao que chamava de “marcha impetuosa para o futuro".

De acordo com Maria Stella Bresciani, a formação da identidade nacional era baseada em uma
visão negativa, retratando o país como uma entidade fragmentada e com uma identidade reprimida,
ressentida e recalcada. A análise dos observadores do país era influenciada pela percepção da
desconexão entre as ideias liberais importadas e a realidade brasileira desfavorável, além de uma
visão pessimista da história nacional que atribuía a falta de identidade ao impacto deformador da
cultura europeia

Nesse momento, a década de 1930 foi um período crucial para a preservação do patrimônio no
Brasil, pois a Semana de Arte Moderna de 1922 gerou uma efervescência cultural que trouxe novos
questionamentos, demandas e desafios. Nesse momento, muitos intelectuais buscaram justificar
suas ações e obras como uma missão civilizatória ou nacional.

Diante disso, o ideário do patrimônio passou a integrar o projeto de construção da nação durante o
Estado Novo, o que levou à escolha do modernismo como uma expressão artística que assumiu o
papel principal no projeto de Vargas. Foi nesse momento que os intelectuais se aproximaram do
Estado, estabelecendo uma relação próxima, porém complexa. Havia a prevalência da ideia de
modernidade, que colocava o Estado como mais moderno do que a própria sociedade, atuando
como mediador de conflitos e organizador da vontade nacional.

Os intelectuais estavam unidos em prol da ideia de "redescobrimento do país", que vem desde os
anos 20, trazendo a tona suas características originais que iriam remeter à “brasilidade”, procurando
ícones da arquitetura e da arte que estabelecessem nossa identidade e fornecessem a substância
necessária para sua afirmação e, ao mesmo tempo, permitissem o avanço para a modernidade.

E, nesse contexto, trabalhavam em perfeita harmonia com os interesses e as práticas do Estado


Novo, pois o regime necessitava não apenas construir a identidade nacional, mas também projetar o
país que almejava. E o novo seria materializado através da arquitetura modernista, defendida pelo
grupo de arquitetos do SPHAN, que se tornaria a principal representante no país. Assim, o SPHAN
assumiu o papel de guardião da memória e da história nacional, ao mesmo tempo em que permitia a
construção de um discurso em prol do novo, do moderno e do futuro, a partir do legado do passado.

Na perspectiva do psicanalista Jacques Lacan, podemos relacionar a discussão em torno da


identidade nacional com seu conceito de "Imagem do Outro" (Autre Image). Segundo Lacan, a
identidade do sujeito é formada a partir de uma relação com o outro, uma imagem construída a
partir das representações culturais que são internalizadas por meio das interações com o mundo
material.

No contexto da construção da identidade nacional, essa "Imagem do Outro" desempenha um papel


fundamental e pode ser "domada" quando se contro-la o mundo material, ao que se extraí as
experiências dos símbolos, tais quais os monumentos tombados pelo spham, como se fossem um
ideal da materialidade brasileira. Neste sentido, essas construções podem ser consideradas como
"textos" que comunicam e transmitem uma ideologia através de sua forma, estilo arquitetônico,
localização geográfica e relação com a comunidade e a história local.

Então, a busca pela criação do "genuíno brasileiro" implica em uma procura por uma imagem
idealizada de fundamentos matetiais, tais quais estes monumentos, que se tornam uma narrativas
coletivas que são construídas e difundidas na sociedade. É nesse processo que o Sphan desempenha
um papel central, pois é por meio dele que se busca estabelecer o Brasil ideal, em que a identidade
coletiva transcenda as diferenças individuais e participe na formação de um sentido de
pertencimento e coesão social, definidos como o grau de consenso dos membros de um grupo social
sobre a percepção de pertencer a um projeto ou situação comum.

Nesse contexto, a nomeação de Gustavo Capanema para o Ministério da Educação e Saúde Pública
se torna importante, pois era um político forte no governo de Getúlio Vargas e próximo aos
intelectuais modernistas. Então, em 1936, Capanema pediu ao escritor Mário de Andrade para
realizar um anteprojeto, que formulou pela primeira vez um órgão voltado para a preservação do
patrimônio histórico e artísticos. O SPHAN passa a existir oficialmente em 1936 com a lei nº378,
de 13/01/1937, quando Mário de Andrade foi solicitado a preparar a criação de uma instituição
nacional de proteção do patrimônio.

Esse documento foi utilizado nas discussões preliminares sobre a estrutura e os objetivos do
SPHAN, que foi criado por meio de um decreto presidencial assinado em 30 de novembro de 1937.
O decreto de criação do SPHAN definiu o patrimônio histórico e artístico nacional como "o
conjunto de bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja do interesse público
quer por sua vinculação a fatos memoráveis da História do Brasil, quer por seu excepcional valor
arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico". Eram também classificados como
patrimônio "monumentos naturais, bem como sítios e paisagens que importe conservar e proteger
pela feição notável com que tenham sido dotados pela natureza ou agenciados pela indústria
humana".

O surgimento do SPHAN refletiu o ideal da época de construir uma identidade nacional, buscando
superar o atraso do país e adentrar na modernidade. Essa busca levou a uma tendência de procurar
uma independência cultural e uma autenticidade nacional genuína. Como resultado, surgiu a
necessidade de preservar o patrimônio cultural, conciliando o antigo com o novo. De acordo com a
historiadora Tatiana Sena, professora do Instituto Federal do Norte de Minas Gerais e autora de uma
dissertação de mestrado sobre a proteção do patrimônio cultural, a criação do Sphan fez parte das
estratégias de poder de Vargas:

— Getúlio Vargas se dedicou a criar o moderno Estado brasileiro [em contraposição ao que se
considerava atraso da Primeira República]. Para forjar a imagem de um governo revolucionário e
construtor da modernidade, ele entendeu que seria preciso elaborar uma nova narrativa a respeito da
nação. Essa narrativa seria escrita a partir de uma seleção de monumentos históricos e artísticos que
representassem um passado heroico e glorioso e, ao mesmo tempo, reforçassem a identidade
nacional. Com a mesma estratégia, povos europeus haviam criado suas leis de proteção do
patrimônio no século anterior, no momento em que se constituíam como Estados nacionais.

O papel exercido pelo SPHAN no alicerce para a constituição da memória social e de uma
identidade coletiva a partir da cultura era claro, uma vez que era a cultura que, na ausência da
participação política, seria utilizada para unificar uma nação marcada por diferenças culturais,
econômicas e políticas. Durante a participação de Lúcio Costa no SPHAN, o serviço defendia a
causa da defesa do patrimônio arquitetônico tradicional do país, e desconsiderando as obras
representativas do ecletismo do final do século XIX e início do século XX e do movimento
neocolonial, pois, o esforço do Sphan centrava-se no paradigma de nação, numa busca de vestígios
simbólicos da pátria em formação. "nesse sentido o SPHAN é um capítulo da história intelectual e
institucional da geração modernista, um passo decisivo da intervenção governamental no campo da
cultura e o lance acertado de um regime autoritário empenhado em construir a “identidade nacional”
iluminista no trópico dependente." (MICELI, 1987, p.44)

De acordo com José Reginaldo Santos Gonçalves, os objetos culturais que compõem as narrativas
históricas, quando preservados como monumentos, desempenham o papel de possibilitar a criação
de uma realidade coerente e auto-identificável. Nesse sentido, o SPHAN tem a responsabilidade de
preservar os monumentos selecionados para a construção da materialidade de seu tempo.

Onde a narrativa predominante em relação ao patrimônio era a da construção de um novo estado a


partir de elementos verdadeiramentes brasileiros do passado estava em conformidade com Josep
Ballart, "o passado nos provê de um marco de referências para que reconheçamos o entorno e nos
reconheçamos a nós mesmos. [...] É o ingrediente necessário ao sentido de identidade [...] graças a
que põe em evidência o fio ininterrupto da passagem do tempo e a noção mesmo de continuidade",
em que passado nos fornece um referencial para reconhecer o ambiente e reconhecer a nós mesmos,
sendo um ingrediente essencial para o senso de identidade. Ele destaca a importância de destacar a
passagem do tempo e a noção de continuidade.

Nesse sentido, as medidas do SPHAN tomam corpo como uma medida alienadora, em que a
recuperação dos centros históricos, acaba por estetizar e congelar transformando a arquitetura de
uma cultura dominante e escravocravata restaurada em um exemplar simbólico de um tempo
"desprovido de conflitos" para os homens que herdam em seu sangue às dores daquele tempo, como
adoradores dos algozes de seus antepassados. Jérômme Monnet considera que esse “passadismo” é
“uma das utopias fundadoras da ação urbanística contemporânea”, pois para ele “a proteção cria
uma representação idealizada do passado urbano, em que as violências de toda natureza são
excluídas”, apresentando uma “imagem simples e gentil da cidade de antes da crise”

Nesse sentido, a proteção do patrimônio cultural dos grupos dominantes pode imobilizar a
população em relação aos problemas atuais e do passado, evitando interferências de propostas
inovadoras. Isso pode transforma Estado Novo em um Estado contrário à novidade, em que o
patrimônio representa um tempo que nunca existiu, porém que fornece segurança e a conexão com
falsas origens diante das incertezas de novos começos. Françoise Choay afirma que a imagem do
patrimônio, na qual as diferenças e fraturas são eliminadas, nos tranquiliza e exerce uma função
protetora ao reduzir e suprimir ficticiamente os conflitos e questões que tememos enfrentar.

É nesse contexto, onde se tece uma história portadora de elementos que demonstrem alteridade e
alicerça subsídios necessarios à segurança de projetar o futuro, que o patrimônio histórico nacional
passa a receber maior atenção, cuja importância reside na prova da existência de vínculos com o
passado através de sua permanência material dos elementos de pedra e cal, que fornece o que José
Reginaldo Santos Gonçalves denomina de “garantia da continuidade da trajetória histórica da
nação”

o desafio que se colocava aos pensadores na definição de nossa identidade era o de demonstrar a
originalidade da nação brasileira através da valorização das tradições culturais, apresentadas como
um conjunto que legitimava a autenticidade e unidade de nossa cultura, ao mesmo tempo em que
continham referências universais. Era necessário cruzar esses elementos - regional e nacional,
tradição e modernidade - para compor a identidade nacional desejada pelo Estado Novo,
proporcionando uma imagem de um país moderno, capaz de fazer parte do mundo industrializado,
ao mesmo tempo em que se mantinha unificado por meio de suas tradições culturais.

Nesse sentido, Mário de Andrade propunha um conhecimento aprofundado do passado com o


objetivo de encontrar traços que possibilitassem a coesão e identificação nacional, fundamentais
para a inovação desejada e para a inserção do país na modernidade. Segundo o autor, esses traços
eram encontrados nos elementos materiais e simbólicos da cultura nacional. Assim, a criação do
SPHAN atendia aos interesses políticos do regime, que via na cultura um instrumento importante de
unificação para garantir a coesão nacional. No entanto, a identidade construída durante o Estado
Novo necessitava de um suporte material para se efetivar, pois o conceito de identidade é uma
construção social que se ancora em elementos que a tornem inquestionável. Segundo Lauro
Cavalcanti, o SPHAN “Ao operar mesclando padrões estéticos com conceitos de nacionalismo e
identidade, logra atingir a inquestionabilidade e um tom ético-emocional que confere certo ar
perene e absoluto a regras visuais e noções de memória [...]”

No entanto, mesmo entre os modernistas, havia divergências em relação à preservação do


patrimônio. O anteprojeto de Mário de Andrade de 1936, por exemplo, possuía uma visão
abrangente do patrimônio para a época, incluindo manifestações culturais eruditas e populares,
definindo a arte como "a habilidade com que o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e
dos fatos."

Por fim, prática do SPHAN diferiu da proposta de Mário de Andrade, pois oficializou uma
concepção restrita de patrimônio, associada à hierarquia da cultura e ao critério de seleção dos bens
culturais com base na representatividade histórica, considerada a partir de uma história da
civilização material. Portanto, os tombamentos realizados pelo SPHAN priorizavam a arte colonial
brasileira e a arquitetura religiosa.

De acordo com Silvana Rubinho (1996), os primeiros registros no Livro de Tombo apresentavam
uma perspectiva predominantemente estética e estavam concentrados em um período histórico
restrito, focados em fatos e personagens memoráveis. Durante os primeiros trinta anos da
instituição, a atuação do Iphan foi guiada por uma maioria de profissionais ligados ao Movimento
Modernista, que viam na arte e na arquitetura colonial a expressão de uma verdadeira "identidade
nacional" (MOTTA; SILVA, 1998).

Ao longo de 40 anos, o SPHAN foi responsável pelo processo de "entronização" do barroco como
símbolo da identidade nacional. Dessa época surgiram o Museu da Inconfidência (1938) e a
elevação de Ouro Preto a monumento nacional (1933). Apesar de o foco desse órgão estar no
tombamento de bens edificados, surgiram diversos museus nesse período, como o Museu Nacional
de Belas Artes (1937), Museu das Missões (1940), Museu Imperial (1940) e outros.

A política adotada pelo SPHAN revela sua faceta elitista, pois negligenciou o ecletismo, período em
que predominavam os mestres de obra, detentores das técnicas construtivas, mas sem um diploma
acadêmico. Além disso, foram valorizadas apenas as tendências ligadas às características da classe
dominante em seus diversos ramos de representatividade.

Os intelectuais ligados ao SPHAN careciam da percepção do popular, da maneira como a história é


construída por diversos setores, por meio de conflitos, experiências de grupos e processos históricos
heterogêneos que geram diversas realidades. Para o SPHAN, a ostentação da riqueza, o
monumental, as técnicas ornamentais que refletiam a primazia elitista de uma organização espacial
estavam em primeiro plano, justificando os critérios autônomos adotados pelo órgão. O interesse
pelo barroco mineiro como símbolo de brasilidade pode ser entendido como uma invenção de
tradição, na qual, por meio do discurso de continuidade, busca-se estabelecer um vínculo com um
determinado passado histórico.

Apesar da ótica modernista, a atuação do SPHAN na área da Museologia tinha como características
iniciais a abordagem de personagens e eventos excepcionais, a predominância de critérios estéticos
e de raridade na formação das coleções e a história abordada sob a perspectiva das elites e do
Estado — "Não obstante, o SPHAN acabou assumindo a feição de uma agência de política cultural
empenhada em salvar do abandono os exemplares arquitetônicos considerados esteticamente
significativos para uma história das formas e estilos da classe dirigente brasileira. (MICELI, 1987,
p.45)

Conforme mencionado, a cultura popular começou a ser abarcada pelo SPHAN a partir de 1968,
quando o Museu do Folclore foi inaugurado, dentro de uma concepção binária que atribuía ao povo
as singularidades da cultura nacional, enquanto à elite cabia a construção da história nacional. Nesse
instante, a prioridade de pedra e cal passa a sofrer diversas críticas, obrigando o Iphan a uma
renovação do seu conceito de patrimônio, dando início ao que se habituou chamar de fase moderna.

Em 1979, com a direção de Aloísio Magalhães, o Iphan retomou a proposta de um patrimônio mais
abrangente feita por Mário de Andrade, reconhecendo a diversidade cultural do país e os produtos
do fazer popular. A partir dos anos 80, grupos negros e indígenas passaram a ser incorporados na
ótica preservacionista como produtores de cultura e agentes da história, com uma nova política de
patrimônio cultural brasileiro com um viés mais antropológico, buscando dar visibilidade à
diversidade cultural do Brasil e estabelecendo vínculos com as populações locais do presente.

Essa ampliação do conceito de patrimônio acompanhou uma tendência mundial de democratização


da cultura que surgiu nos anos 70. Os museus passaram a reformular suas estruturas, incorporando
questões da vida cotidiana das comunidades. As novas práticas e teorias, como a Nova Museologia,
deram origem à função social dos museus, atribuindo-lhes uma função crítica e transformadora na
sociedade. As novas orientações teóricas ampliaram o conceito de patrimônio, adotando uma
concepção antropológica de cultura.
Apesar do alargamento do conceito de patrimônio histórico para patrimônio cultural, o IPHAN
ainda mantém todas as prerrogativas estabelecidas por Lúcio Costa e seus técnicos na fase inicial do
Instituto, evidenciando o extenso legado deixado pelo Estado Novo nas relações entre cultura e
política. Esse legado é amplamente reconhecido pelos meios intelectuais e políticos, especialmente
em relação à tradição preservacionista fundada pelo antigo SPHAN.

Embora nas últimas décadas a política patrimonial tenha alcançado horizontes mais democráticos, a
concepção herdada dos anos 1930 e 40 de um patrimônio circunscrito aos referentes de uma cultura
ilustrada, concebida no singular, deixou vestígios que sobrevivem ainda nos meandros do
aparelho#burocrático, disputando a hegemonia na agenda das políticas de memória no país.
(JULIÃO, 2009, p.141)

Após sete décadas de sua criação, o IPHAN ainda privilegia o passado sobre o presente nas
políticas públicas relacionadas a tombamento, restauração e valorização do patrimônio histórico
nacional. Essas políticas buscam reconstituir a tradição por meio de monumentos que estabelecem
uma relação com o passado, tentando com isso “reconstituir esse fio partido da tradição [...] através
de monumentos por meio dos quais se pode estabelecer uma relação com o passado"

Nesse contexto, Cecília Londres aponta que o IPHAN ainda mantém algumas das estratégias de
atuação de 1937, especialmente em relação aos critérios de tombamento e ao poder de escolha do
que deve ser preservado. Para a autora, enquanto persistirem formas fechadas e altamente
centralizadoras na tomada de decisões, “dificilmente o universo do patrimônio se tornará realmente
representativo da diversidade cultural brasileira"

Portanto, mesmo com avanços recentes, é necessário revisar e atualizar as políticas e práticas do
IPHAN, a fim de promover uma abordagem mais inclusiva e representativa da diversidade cultural
do Brasil. Neste sentido, devemos buscar este "futuro ideal" aos brasileiros no presente, não no
passado, enquanto construído na materialidade, não no idealismo.

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