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RIBEIRO, Ana Paula.

A mídia e o lugar da história

“Qualquer manifestação da vida social do homem pode, em princípio, ser um fato


histórico. O termo não se refere apenas a acontecimentos particulares da vida [...]
mas a qualquer categoria de fenômenos: um acontecimento singular (alguma coisa
que aconteceu alguma vez), um processo (no qual se manifestam certas
regularidades), uma instituição, um produto da cultura, um costuma, uma crença,
etc. Ora isto, significa que qualquer fato pode ser um fato histórico.” (p. 63)

“A relação que um acontecimento mantém com outros acontecimentos não é, no


entanto, dada, não é intrínseca. Nenhum fato é em essência histórico, porque
nenhum traz consigo um sentido já dado. ‘É comum dizer que os fatos falam por si.
Naturalmente isso não é verdade. (...) Acho que foi um dos personagens de
Pirandello que disse que um fato é como um saco – não fica em pé até que se
ponha algo dentro’ [...] Não existe fato histórico ‘bruto’. Ele é sempre produto de
algum tipo de elaboração teórica, que o promove à categoria de histórico. ” (p. 64)

“Tal concepção, apesar de uma certa dose de positivismo, tem o mérito de enfocar o
conhecimento não como um ato cognitivo, mas como um processo prático, no qual o
sujeito desempenha um papel ativo. O termo infinito reveste-se aí de um caráter
fundamental porque o homem, sendo um ser histórico, não consegue jamais livrar-
se dos condicionamentos socioculturais. A superação da subjetividade, sob a
perspectiva do conhecimento como processo, não implica, de fato, na remoção das
‘mediações’ entre a realidade e a consciência dos indivíduos ou, em outras palavras,
entre a realidade dos fatos e o significado que esta assume nos discursos dos
agentes sociais. Aliás, não existe, na verdade, separação entre essas duas ordens
de coisas: o universo social e o discursivo não constituem duas realidades
estaques.” (p. 65)

“Toda ciência pressupõe uma ‘escritura’. A disciplina História sempre cria relatos
escritos (descritivos e/ou explicativos): são as obras históricas, que produzem
sentidos e instauram inteligibilidade sobre o passado. A sua prática científica é,
portanto, também uma prática discursiva, na qual o sujeito exerce um papel ativo.
[...] O historiador (como qualquer enunciador) é um homem de seu tempo e, por
isso, dialoga com certos "textos" e não com outros. No seu discurso estão presentes
algumas vozes, organizadas de determinada maneira, por meio da qual certos
efeitos de sentido são produzidos e ofertados.” (p. 65)
“O fazer histórico é também definido como uma prática. O historiador trabalha
sempre a partir de um objeto material (as fontes) para construir o seu objeto teórico:
os fatos históricos. Ele transforma as matérias-primas (já socialmente trabalhadas)
em produtos, obras da historiografia. Desloca, assim, as informações de uma região
da cultura (os arquivos, as coleções, as recordações pessoais, etc.) para uma outra
(a História). Esse deslocamento, entretanto, não é apenas efeito de um "olhar"; é
resultado também de uma operação técnica. O historiador manipula as matérias
significantes, transforma-as em fontes (ao mudá-las de lugar e de estatuto) e,
depois, em fatos históricos, mas não faz isso a seu bel prazer, e sim segundo certas
regras específicas, inerentes a sua profissão.” (p. 66)

“Mais do que a ciência que estuda os fatos do passado ou a ciência que estuda os
fatos históricos, a História deve ser definida como a ciência que estuda o processo
de transformação da realidade social. A partir da ideia de mudança, a História pode
mostrar as diferenças entre o que foi e o que é, simbolizando os limites e
demarcando as fronteiras entre o passado e o presente.” (p. 67)

“Na ideia da multiplicidade de níveis e ritmos de temporalidade está implícita a


concepção do tempo, não como algo em si, mas como uma forma de existência das
coisas. O tempo social, concebido desta forma, permite ordenar – em uma
sequência causal qualquer – as ações passadas e as presentes. E é esse tempo
cheio de conteúdos que constitui a substância da memória. A temporalidade serve
como ponto de referência que estrutura a memória dos indivíduos e que os insere na
memória da coletividade a que pertencem. O passado é a referência comum que
mantém a coesão interna dos grupos, permitindo a formação de quadros de
representação simbólica que lhes permitem significar o presente, a atualidade. A
memória não é, entretanto, exclusividade da disciplina História. Exatamente por
estar intrinsecamente ligada às representações coletivas, a memória social funciona
e se constitui como instrumento de poder.” (p. 68)

“Pode-se, a partir disso, postular a existência de duas formas de estruturação da


memória coletiva. Há, de um lado, uma memória oficial, que, ao selecionar e ordenar
os fatos segundo certos critérios, se constrói sobre zonas de sombras, silêncios,
esquecimentos e repressões. De outro lado, há, opondo-se à oficial, várias
memórias coletivas subterrâneas, que, seja nos quadros familiares, em associações
ou em grupos étnicos, culturais ou políticos, transmitem e conservam lembranças
proibidas ou simplesmente ignoradas pela visão dominante.” (p. 68)
“A História sempre teve um papel central no trabalho de constituição e de
formalização da memória social. Desde a época dos cronistas medievais (membros
do clero contratados pelas casas reais para escrever suas histórias) até a das
produções historiográficas propriamente ditas (que se realizaram, a partir do século
XIX, no âmbito das universidades), a História sempre manteve uma certa
cumplicidade com o discurso do poder, o que nos permite caracterizá-la como uma
memória de caráter oficial. [...] a História desempenhou um papel fundamental na
legitimação do poder do Estado e na consolidação de uma identidade nacional [...]
Os novos estados unificados investiam na centralização e no fortalecimento do
poder real. Nesse momento, a História comprometeu-se profundamente com a
elaboração de uma representação oficial do Estado e do poder político.” (p. 69)

“O comprometimento direto da História com o poder de Estado manteve-se até o


início do século XIX, quando, sob a influência do positivismo, o relato histórico
deixou de confundir-se com mera genealogia. Mas demorou ainda um bom tempo
para que a História reduzisse os contatos com o mundo do poder. Se foi no século
passado que a disciplina entrou para a universidade, tornando-se acadêmica, foi
somente no século XX que, sob a influência do marxismo e da Escola dos Annales,
ela procurou práticas mais autônomas.” (p. 69)

“A História, no entanto, não exerceu o papel central na constituição e na


formalização da memória oficial simplesmente por estar próxima do poder; ocupou
esse papel sobretudo porque sempre se apresentou (e conseguiu se legitimar) como
o principal discurso semantizador das ações e das transformações da realidade
social. Acreditamos, no entanto, que a História foi perdendo esse papel central na
construção da memória oficial com a inserção das tecnologias de comunicação no
tecido das sociedades industriais. Hoje, cada vez mais, são os meios de
comunicação o locus principal em que se realiza o trabalho sobre as representações
sociais. A mídia é o principal lugar de memória e/ou de história das sociedades
contemporâneas.” (p. 69)

“A História passou a ser aquilo que aparece nos meios de comunicação de massa,
que detêm o poder de elevar os acontecimentos à condição de históricos. O que
passa ao largo da mídia é considerado, pelo conjunto da sociedade, como sem
importância.” (p. 70)
“Acreditamos que isso se deve essencialmente ao mito da neutralidade e da
imparcialidade que surgiu, em meados do século XIX, com a ideia do jornalismo
informativo, e que se fortaleceu, no século XX, com o desenvolvimento nos Estados
Unidos, nas décadas de 20 e 30, do conceito de objetividade. No Brasil, o conceito
se consolidou com as reformas editoriais da década de 50, quando se introduziu no
País o modelo norte-americano de jornalismo.” (p.70)

“O mito da objetividade, por mais que já tenha sido exaustivamente criticado pelos
próprios jornalistas e pelos teóricos da comunicação, é um dos grandes
responsáveis pela acolhida que o jornalismo tem. Ainda hoje, o seu discurso se
reveste de uma aura de fidelidade aos fatos que nos leva a acreditar que o que "deu
no jornal" é a verdade.” (p. 71)

“A mídia é elevada, assim, ao estatuto de porta-voz oficial dos acontecimentos e da


transformação do social, o que lhe confere, enquanto registro da realidade, uma
certa "aura". O jornalismo não só retrata a realidade e as suas transformações, mas
também as registra e as deixa como legado às sociedades futuras. A mídia é a
testemunha ocular da história.” (p. 72)

“A semiologia dos discursos sociais, ao introduzir os princípios da polifonia e do


dialogismo, permite ultrapassar a problemática da análise dos discursos como mero
instrumento técnico de descrição de textos. Ao retomar a idéia bakhtiniana do
discurso como uma arena, a análise visa a dar conta não do conteúdo das
mensagens, mas das estratégias discursivas ligadas às relações de força de uma
conjuntura dada. Os discursos de determinadas épocas históricas – principalmente
os discursos midiáticos – são espaços privilegiados, nos quais se travam as lutas
sociais. É o campo por excelência do ideológico, em que várias vozes disputam a
hegemonia das representações. Uma página de jornal é um reflexo vivo das
contradições da realidade social no corte de um dia. [...] Não existe discurso da
classe dominante que não seja permeado por contradições. Não existe discurso
puro, monológico, seja burguês ou popular. O discurso é uma zona tensional, na
qual o sentido não é nunca dado.” (p. 77)
“A distinção entre a grande imprensa e a imprensa nanica pode se mostrar, além
disso, totalmente ilusória. Verón já nos chamou a atenção para o fato de que muitos
dos jornais ditos alternativos são algumas vezes propriedade dos mesmos grupos
que produzem os jornais "burgueses". As suas diferenças se devem, nesses casos,
muito menos aos conteúdos do que aos dispositivos de enunciação que eles
mobilizam e que cristalizam na forma dos contratos de leitura, visando a conquistar e
manter diferentes fatias do mercado de leitores. É necessário desmistificar as
categorias abstratas imprensa e discurso jornalístico. Estes termos, na realidade,
deveriam ser usados no plural. Cada órgão de comunicação (seja da grande
imprensa ou da dita nanica) possui um mecanismo ideológico próprio. Cada um
possui uma economia discursiva própria e produz um campo de efeito discursivo
também específico. Mas, apesar de cada veículo construir um ‘real’ diferente, é bom
não esquecer que há neles um fundo comum de referência. A coerência da mídia é
exatamente o que lhes dá credibilidade e aceitação.” (p. 78)

“Os discursos jornalísticos produzem, no interior de seu campo de efeitos de sentido,


uma certa ideia de objetividade, que é o que lhes confere nas sociedades
contemporâneas ocidentais o estatuto de porta-vozes das verdades factuais. E
fazem isso segundo operações específicas, próprias a cada veículo-suporte.
Identificar e descrever tais operações é fundamental para o historiador que trabalha
com esse tipo de material. O seu interesse não pode estacionar nos conteúdos dos
discursos; trata-se de descrever também as suas formas de funcionamento.” (p. 78)

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