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A Ilha de Moçambique na poesia moçambicana

Nazir Can
UFRJ_PPGLEV_25-08-2020

CARTAS A UMA SENHORA

Minha Senhora,

Quando em Goa fui despedir-me de V. Exª na véspera da minha partida para


Moçambique, pediu-me, ou antes, ordenou-me V. Exª que lhe escrevesse daqui dando
notícias minhas e que também lhe descrevesse sítios, edifícios e usos e costumes do
meu país. Eu prometi. Após a promessa ainda me lembro de que V. Exª acrescentou:
«Eu não espero; a cabeça do Campos Oliveira anda sempre baralhada, e chegando a
Moçambique não se lembra de mim e muito menos do meu pedido». A estas palavras
que longe de encerrarem uma ofensa, continham um favor porque eram ditadas pelo
afecto, renovei a minha promessa e por um triz que não jurei que havia de a realizar.
A primeira parte do desejo de V. Exª cumpri-a logo que cheguei à minha terra, e a
segunda ficou largo tempo em adiamentos. Hoje porém venho pagar esta dívida ainda
que em exíguas prestações. «Antes tarde do que nunca», dirá talvez V. Exª, e eu me
consolo com isto.
Escrevo estas linhas na Cabaceira, sob a ramagem de duas robustas e copadas acácias,
sentinelas permanentes postadas junto à porta principal da minha humilde e muito
pequena vivenda. Vim hoje passar o dia que é feriado no campo. Eu amo
desassombradamente o campo, e se não tivesse prendido o meu futuro numa repartição
de Estado, não me viam na cidade senão duas vezes, quando muito, em cada ano. Este
inútil bulício da cidade produz em mim um aborrecimento que incomoda.
Como estou na Cabaceira, vou falar a V. Exª desta aldeola garrida e viridente e,
porventura, a mais bonita da minha terra.
Eu creio que V. Exª não se esqueceu de que tenho a mania de fazer versos e que, por
isso, gosto de tudo quanto é poético e romanesco. Soltemos pois as asas à poesia.
Permita-me que devaneie um pouco.
Ora imagine agora V. Exª que está na Cabaceira; imagine que vai rompendo a manhã.
Eu ofereço-lhe o meu braço e peço que vamos dar um passeio.
Como encanta o frescor da manhã! Que suaves e cadentes modilhos não se escutam
dessas avezinhas que ali saltitam nos verdes laranjais em flor! Quando não apraz o bater
das folhas do coqueiro, sempre verdes e trementes!
Admire aqueles cafezeiros tão cheios de flores! Contemple aquele arménio que está aí a
pascer tão sossegado! Escute agora este plangente gemer de rola!
Não enleva tudo isto?
Adiante há caminhos tapetados de pequenas e lindas flores silvestres, vêem-se cravadas
aqui e ali singelas casinhas de pretos feitas de pequenos paus e cobertas de folhas de
coqueiro, como em Goa.
Depois... imagine V. Exª que é noite, e que a lua brilha no firmamento. Em poucos
climas, ou em nenhum talvez, o astro da noite se mostra tão lindo e refulgente como
aqui. Vamos à beira-mar. Gosto deste marulhar das ondas e destes arbustos, que imitam
salgueiros. Essas luzes que se distinguem à distância, estão acesas na cidade, que fica
defronte. Sente-se o som da música, vê por isso que não é grande a distância que nos
separa da ilha.
Aquele clarão imenso, olho de gigante, que estamos a ver a poucos passos, é o farol que
há dois anos pouco mais ou menos, fora aqui construído para utilidade dos navios que
quisessem entrar o porto de noite.
Ia-me esquecendo de dizer a V. Exª que a Cabaceira faz parte do continente fronteiro da
cidade, antecedendo-se na ordem à Cabaceira Pequena; e ficando-lhe em seguida
Mossuril, Ampapa, Lumbo, Sancul e Chaça. Todos esses pontos são pitorescos, e
podiam ser mais lindos e mais profícuos, se no meu país, com mágoa o digo, se desse
mais apreço e mais atenção à agricultura.
Eu disse a V. Exª que a Cabaceira era o ponto mais lindo do continente, uns porém dão
preferência ao Mossuril. Não questiono sobre o gosto. Acho Mossuril muito fechado, e
muito habitado de feras, e eu me esquivo sempre de ter relações com tigres e leões.
Da Igreja, que é dedicada a Nossa Senhora dos Remédios, hei-de falar quando descrever
os outros templos cristãos da cidade.
Brevemente hei-de enviar a V. Exª outra carta, e afianço desde já que irá com menos
poesia, e com mais assunto.
Agora... peço que não imagine, mas acredite na sincera amizade e justo respeito que lhe
dedica

(José Pedro Campos de Oliveira, África Oriental, Ilha de Moçambique, nº 79, 11 de


Agosto de 1878)
Ilha dourada

A fortaleza mergulha no mar


os cansados flancos
e sonha com impossíveis
naves moiras
Tudo mais são ruas prisioneiras
e casas velhas a mirar o tédio
As gentes calam na
voz
uma vontade antiga de lágrimas
e um riquexó de sono
desce a Travessa da “Amizade”
Em pleno dia claro
vejo-te adormecer na distância,
Ilha de Moçambique,
e faço-te estes versos
de sal e esquecimento

(Rui Knopfli, O País dos Outros, 1959)


Muipíti

Ilha, velha ilha, metal remanchado,


minha paixão adolescente,
que doloridas lembranças do tempo
em que, do alto do minarete,
Alá - o grande sacana! – sorria
aos tímidos versos bem comportados
que eu te fazia.

Eis-te, cartaz, convertida em p uta histórica,


minha pachacha pseudo-oriental
a rescender a canela e açafrão,
maquilhada de espesso m'siro
e a mimar, pro turismo labrego,
trejeitos torpes de cortesã decrépita.

Meu Sitting Bull de carapinha e cofió,


têm-te de cócoras na sopa melancólica
de uma arena limosa e marinha,
gaivota tonta a adejar inutilmente
ao lume de água contra a amarra
que te cinge para sempre
ao bojo ventrudo do continente.

De teu, cultivam-te a vénia e a submissão


solícitas, trazidas nos pangaios
lá do distante Katiavar,
expondo-te apenas no que tens de vil,
razão talvez para que ao longe, de troça,
pisquem mortiças as luzes do Mossuril
ou sangre no meu peito esta mágoa incurável.

Mas retomo devagarinho as tuas ruas vagarosas,


caminhos sempre abertos para o mar,
brancos e amarelos filigranados
de tempo e sal, uma lentura
brâmane (ou muçulmana?) durando no ar,
no sangue, ou no modo oblíquo como o sol
tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho
com a luz da eternidade.

Primeiro a ternura da mão que modulou


esta parede emprestando-lhe a curva hesitante
de uma carícia tosca mas porfiada,
logo o cheiro do sândalo, o madeiramento
corroído da porta súbito entreaberta,
o refulgir da prata na sombra mais densa:
assim descubro subtil e cúmplice,
que a dura linha do teu perfil autêntico
te vai, aos poucos, fissurando a máscara.
(Rui Knopfli, A Ilha de Próspero, 1972)
M’siros na menstruação
dos ventos
no desafiar das pedras
e corais,
nos desventrados barcos
és nova equação, índica, swahili,
das bocas de fome
e afiados punhais
de prata.

(Virgílio de Lemos, A invenção das ilhas, 2009.)


Por ali estiveram Camões das amarguras itinerantes
e Gonzaga da Inconfidência no desterro em lado oposto.
Era a rota dos gemidos e das raivas putrefactas
E dos partos que haviam de povoar as Américas
com braços marcados a ferro nas lavras e colheitas.

(Orlando Mendes. In: SAÚTE, Nelson e SOPA, António. A Ilha de Moçambique pela
voz dos poetas. Lisboa : Edições 70, 1992. p. 39).
Canto do nosso amor sem fronteira

Estamos juntos.
E moçambicanas mãos nossas
dão-se
e olhamos a paisagem e sorrimos.

Não sabemos de áreas de esterlino


de câmbios
vistos de fronteira
zonas de marco e dólar
portagem do Limpopo
canais de Suez e do Panamá.

Amamo-nos hoje numa praia das Honduras


estamos amanhã sob o céu azul da Birmânia
e na madrugada do dia dos teus anos
despertamos nos braços um do outro
baloiçando na rede da nossa casa na Nicarágua.

Ou
com os olhos incendiados
nos poentes do Mediterrâneo
recordamos as noites mornas da praia da Polana
e a beijos sorvo a tua boca no Senegal
e depois tingimos mutuamente
os lábios com as negras amoras de Jerusalém
ambos entristecidos ao galope dos pés humanos
sem ferraduras mas puxando riquexós
só de ver puxar nós também puxamos
nas transpiradas ruelas antigas
da ilha de Moçambique.

Oh, beijemo-nos, amor


teus cabelos sussurrantes
na esplêndida nudez morena do meu peito
que são nossos os céus sulcados de xiricos e aviões
e nossos irmãos os povos de outros paralelos
até mesmo os pobres «boers» solitários
na cruzada de amor em que me abraças numa rua
principal da cidade de Pretória descontraidamente
como se fosse no bairro de Xipamanine.

Mas bem fundo das almas


e dos corpos tatuados de esperança
o clítoris das montanhas nos sexos das nuvens
pátria do nosso desespero mais desesperado
pátria dos pés descalços na brancura do algodão
pátria de beijos e promessas de mais beijos
é o nosso genuíno grito mais gritado
a levantar no cosmos a beleza do nome
não renegável de Moçambique.

(José Craveirinha, Karingana ua karingana. 1974).


Muhipiti

Para ti, com a ilha, a Rui Knopfli

É onde deponho todas as armas. Uma palmeira


harmonizando-nos o sonho. A sombra.
Onde eu mesmo estou: Devagar e nu. Sobre
as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos
brincam aos barcos com livros como mãos.
Onde comemos o acidulado último gomo
das retóricas inúteis. É onde somos inúteis.
Puros objetos naturais. Uma palmeira
de miçangas com o sol. Cantando.
Onde na noite a ilha recolhe todos os istmos
e marulham as vozes. A estatuária nas virilhas.
Golfando. Maconde não petrificada.
É onde estou neste poema e nunca fui.
O teu nome que grito a rir do nome.
Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam.
E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo.
Uma palmeira abrindo-se para o silêncio.
É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos
naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar
nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha.
É onde me confundo de ti. Um menino vergado
ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul
humedecido sobre a fronte. A memória do infinito.
O repouso que a si mesmo interroga. Ouve.
A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos.
Onde os pássaros são pássaros e tu dormes.
E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde
Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo.
Na ilha. Incendiando-nos o nome.

(Luís Carlos Patraquim. Vinte e tal novas formulações e uma elegia carnívora. 2011).
Sou ao Norte a minha Ilha, os sinais e as sedas que ali se trocaram e nessa beleza busco-
te e para mim algum percurso, alguma linguagem submarina e pulsional, busco-te por
entre negras enroladas em suas capulanas arrepiadas, altas, magras, frágeis e belas como
as missangas e vejo-te pelos seus absurdos olhos azuis. Que viagens eu viajo, meu
amor, para tocar-te esses búzios, esses peixes vulneráveis que são as tuas mãos e
também como me sonho de turbantes e filigranas e uma navalha que arredondada já não
mata (...) Amo-te sem recusas e o meu amor é esta fortaleza, esta Ilha encantada, estas
memórias sobre as paredes e ninguém sabe deste pangaio que a Norte e na Ilha traz um
amante inconfortado. Em tudo habita ainda a tua imagem, o m’siro purificado da tua
beleza.

(Eduardo White. Os Materiais do Amor seguido de O Desafio à Tristeza. Maputo:


Ndjira, 1996, p. 24-25)
Pequena borboleta
com asas de corais vermelhos
a nossa ilha
não foi criada para cela
onde morrem os meus irmãos
o nosso mar
não foi feito para grades
onde se ensombram os olhos,
os olhos negros dos meus irmãos. (...)
Assim me contaram
os que sobreviveram.
Dizem ainda que eram os pescadores
que remando entre a fome
e a ilha da fortaleza
traziam a lua perto das marimbas
cujo canto se espalhava
sobre as ondas inquietas
e sossegava o peito cansado
dos meus irmãos. (…)
e a ilha-prisão submergiu
levando consigo
um tempo manchado de sangue
de sangue dos meus irmãos.

(Mia Couto. In: SAÚTE, Nelson; SOPA, António. Antologia da nova poesia
moçambicana. Lisboa : Edições 70, 1992).
Mulher de m’siro feitiço do Oriente
os poemas do irredimível encantamento
levantam-se sobre as ruínas.
Na proa da memória a evocação das velas
sonolentas na imaginária romaria (...)
A odisséia celebra o nome da pátria
Na errância das naus pelo Índico.
Os homens a terra e o tempo:
suas vozes descubro na História

(Nelson Saúte. In: SAÚTE, Nelson e SOPA, António. A Ilha de Moçambique pela voz
dos poetas. Lisboa : Edições 70, 1992. p. 39).
Resgatasse o Índico o que do oriente com o tempo soube sufragar.
Os barcos todos com as velas hirtas e as gentes.
Suas as pérolas mais os rubis. O aljôfar. Luzindo no ar.
Minha fracturada chávena árabe persa na cal
ou resplandecente a missanga cravada no ventre d’água,
qual sinal dos que de além mar chegaram
e partiram com baús fartos...
Fobia dos que ficamos. Mas herdeiros.

(Sangare Okapi, Mesmos barcos ou poemas de revisitação do corpo, 2007).


De longe esta Ilha parece pequena
Esta Ilha é grande.
Tem longa história desde os habitantes aos seus monumentos
Não nos é possível contar-vos tudo quanto temos
Pois há outros que querem também falar-vos
Se ainda quereis ouvir algo nosso
Ficais muito tempo nesta Ilha.
Assim mostrar-vos-íamos a rua de fogo
aonde vós nunca chegastes

Canção popular. Versão livre em português a partir de uma transcrição em macua,


publicada na antologia A Ilha de Moçambique Pela Voz dos Poetas, organizada por
António Sopa e Nelson Saúte (Lisboa : Edições 70, 1992)
A Moçambique aqui vim deportado.
Descoberta a cabeça ao sol ardente;
Trouxe por irrisão duro castigo
Ante a africana, pia, boa gente.
Graças, Alcino amigo,
Graças à nossa estrela!
Não esmolei, aqui não se mendiga;
Os africanos peitos caridosos
Antes que a mão infeliz lhe estenda,
A socorrê-lo correm pressurosos.
Graças, Alcino amigo,
Graças à nossa estrela!

Tomás António Gonzaga (poema escrito provavelmente em 1809)


Esta ilha pequena, que habitamos,
em toda esta terra certa escala
De todos os que as ondas navegamos
De Quíloa, de Mombaça e de Sofala;
E, por ser necessária, procuramos,
Como próprios da terra, de habitá-la;
E por que tudo enfim vos notifique,
Chama-se a pequena ilha Moçambique.

Luís de Camões (Os Lusíadas, Canto I)


Camões na Ilha de Moçambique

É pobre e já foi rica. Era mais pobre


quando Camões aqui passou primeiro,
cheia de livros a cabeça e lendas
e muita estúrdia de Lisboa reles.
Quando passados nele os Orientes
e o amargor dos vis sempre tão ricos,
aqui ficou, isto crescera, mas
a fortaleza ainda estava em obras,
as casas eram poucas, e o terreno
passeio descampado ao vento e ao sol
desta alavanca mínima, em coral,
de onde saltavam para Goa as naus,
que dela vinham cheias de pecados
e de bagagens ricas e pimentas podres.
Como nau nos baixios que aos Sepúlvedas
deram no amor corte primeiro à vida,
aqui ficou sem nada senão versos.
Mas antes dele, como depois dele,
aqui passaram todos: almirantes,
ladrões e vice-reis, poetas e cobardes,
os santos e os heróis, mais a canalha
sem nome e sem memória, que serviu
de lastro, marujagem, e de carne
para os canhões e os peixes, como os outros.
Tudo passou aqui ─ Almeidas e Gonzagas,
Bocages e Albuquerques, desde o Gama.
Naqueles tempos se fazia o espanto
desta pequena aldeia citadina
de brancos, negros, indianos e cristãos,
e muçulmanos, brâmanes, e ateus.
Europa e África, o Brasil e as Índias,
cruzou-se tudo aqui neste calor tão branco
como do forte a cal no pátio, e tão cruzado
como a elegância das nervuras simples
da capela pequena do baluarte.
Jazem aqui em lápides perdidas
os nomes todos dessa gente que,
como hoje os negros, se chegava às rochas,
baixava as calças e largava ao mar
a mal-cheirosa escória de estar vivo.
Não é de bronze, louros na cabeça,
nem no escrever parnasos, que te vejo aqui.
Mas num recanto em cócoras marinhas,
soltando às ninfas que lambiam rochas
o quanto a fome e a glória da epopeia
em ti se digeriam. Pendendo para as pedras
teu membro se lembrava e estremecia
de recordar na brisa as cróias mais as damas,
e versos de soneto perpassavam
junto de um cheiro a merda lá na sombra,
de onde n’alma fervia quanto nem pensavas.
Depois, aliviado, tu subias
aos baluartes e fitando as águas
sonhavas de outra Ilha, a Ilha única,
enquanto a mão se te pousava lusa,
em franca distracção, no que te era a pátria
por ser a ponta da semente dela.
E de zarolho não podias ver
distâncias separadas: tudo te era uma
e nada mais: o Paraíso e as Ilhas,
heróis, mulheres, o amor que mais se inventa,
e uma grandeza que não há em nada.
Pousavas n’água o olhar e te sorrias
─ mas não amargamente, só de alívio,
como se te limparas de miséria,
e de desgraça e de injustiça e dor
de ver que eram tão poucos os melhores,
enquanto a caca ia-se na brisa esbelta,
igual ao que se esquece e se lançou de nós.

(Jorge de Sena, Camões Dirige-se aos seus Contemporâneos, 1973)

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