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ESTRATÉGIA VESTIBULARES – Dyonélio Machado

INTRODUÇÃO
Sejam todos bem-vindos, sejam todas bem-vindas a mais uma análise de obra literária
aqui na Coruja, que sempre quer preparar o melhor material para que você possa ter um
desempenho perfeito na sua prova. Hoje, tive a oportunidade de analisar uma das obras mais
importantes e influentes do século XX, lançada durante a segunda geração do Modernismo
brasileiro e funcionando, por assim dizer, como representação plena do pensamento dessa
geração e do próprio Modernismo.
Uma obra repleta de seres palpáveis e próximos à realidade daqueles que decidem ler a
obra, representando o que sempre se pensou acerca da Literatura: a construção de um retrato
palpável e próximo daqueles que leem o que lhes é proposto por meio da escrita. É uma
maravilha pensar que podemos ter uma relação tão próxima e clara entre a Literatura e a
Sociedade, construindo-se uma simbiose que somente valoriza aqueles que se propõem a se
entregar à difícil arte da palavra. Os ratos, de Dyonélio Machado, é exatamente aquilo que o
autor sonhou, uma análise nada superficial da sociedade e de suas nuances que não se
modificam, mas se repetem em meio à sociedade capitalista de consumo e de importância social
atrelada ao dinheiro e à capacidade de compra.
Assim, ainda que de forma superficial, vale à pena falarmos sobre aquilo que nos espera
durante essa viagem pelo mundo de Dyonélio Machado. Naziazeno é a representação “heroica”
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do homem comum. Aquele que trabalha, mas que não consegue, em muitos momentos, pagar
todas as suas dívidas. É um homem como qualquer outro que lida com as contas e, hoje, os
boletos, se acumulando em meio à tentativa de manter a sua família e de fazê-la feliz. O leite,
nesse caso, é a representação do sustento, da alimentação mais básica. O que demonstra que
a vida não é fácil nem justa com aqueles que se predispõem a vivê-la.
Sua jornada de um dia, não necessariamente 24h exatas, é a odisseia do homem de
família em busca de sustentar-se e sustentar aqueles que o cercam. A vitória da conquista do
dinheiro necessário ao pagamento da dívida não existe de fato: os ratos sempre estão à espreita
para levar aquilo que ele conseguiu conquistar em meio ao desespero e à humilhação em muitos
momentos. Tudo será explorado em nossa análise, permitindo que você, nosso estrategista,
consiga resolver todas as questões referentes à obra, independente do caminho apresentado
pela banca nessa construção.
Dessa forma, organizamos a análise de Os ratos da seguinte maneira:
Análise de elementos externos à obra, mas importantíssimos à construção de
sentidos dessa mesma obra: o contexto histórico e o autor. Seguimos, aqui, uma
vertente de análise literária muito forte do século XX, com viés discursivo, em que
se compreende de forma mais clara que não há como separar uma obra de seu
contexto individual, o autor; e de seu contexto histórico.
Análise da obra quanto à sua formação, levando em consideração a construção de
uma análise realmente próxima à estrutura da obra, para que possamos entender
os aspectos mais amplos dessa obra, também auxiliando na construção de saberes
sobre a própria obra.

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Análise dos elementos da obra, tais como personagens, enredo, tempo, espaço e
elementos que fazem parte dessa construção ficcional empreendida por Dyonélio
Machado. Essa é uma das partes mais importantes desta análise, porque temos a
construção, nela, da efetividade da obra de Dyonélio.
Antes de entrarmos nos exercícios, que precisam ser feitos para uma melhor
compreensão e aproximação com relação à obra, teremos uma pequena análise
de elementos transversais à obra, tais como intertextualidades e possibilidades de
análise textual.
Por fim, partimos para os exercícios. Neles, podemos treinar a nossa leitura e,
principalmente, a compreensão da obra. Recomendamos que vocês, nossos
estrategistas, primeiramente façam as questões, para somente em seguida ler os
comentários de cada uma das questões.

Assim, podemos começar a nossa análise. Vamos juntos nesse aprendizado.

1 Elementos externos à obra


Nessa primeira seção, analisaremos a estética literária em que se insere a obra analisada
nesta aula, no caso, Os Ratos, bem como analisaremos características do autor, determinantes,
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em muitos momentos, para a construção da obra em questão. É claro que não estamos
afirmando que essas duas ideias são suficientes para uma análise da própria obra, mas
contribuem de forma importante à compreensão completa da própria obra.

1.1 A estética literária: Modernismo de 30


O Modernismo de 30, também chamado de Segunda Geração Modernista, é uma das
estéticas mais importantes da Literatura brasileira de todos os tempos. Ocorrida em meio a uma
“loucura” histórica, divide-se em prosa e poesia, com influência importante do momento histórico
e com construção ligada ao que se propõe o Modernismo desde sua primeira geração. Assim,
compreende-se a construção dessas duas expressões de escrita da seguinte forma:

A prosa dedica-se às preocupações sociais, com o homem em sociedade, preocupado


com a vida prática e a sua própria sobrevivência. No caso, é a aplicação de uma das
importantes características da Literatura: o retrato de época, com descrição de
acontecimentos que, futuramente, poderão ser reconstruídos por meio da Literatura.
Por isso, considera-se que os aspectos da sociedade são essenciais à Literatura
desse momento, bem como a supervalorização das regiões. É a temática social a
partir de uma pegada mais regional, analisando a importância do espaço em meio à
construção de crítica e de denúncia.

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A poesia, por sua vez, dedica-se à análise do homem a partir de seus sentimentos,
não necessariamente bons, mas com relação à forma como o homem se comporta
em meio a uma sociedade extremamente voltada para a tecnologia, por exemplo, e,
em outro momento, assolada pela barbárie da guerra. É uma poesia emocional e
propositalmente emocional. Ela abarca o homem em suas relações mais pessoais,
por intermédio de sua relação direta com o mundo que o cerca.

É nessa geração em que produzem autores essenciais à nossa Literatura, como


Graciliano Ramos e Carlos Drummond de Andrade, cada um em um lado literário, a prosa e a
poesia, respectivamente. No caso, consideramos que é uma das mais importantes produções de
nossa Literatura exatamente por termos tantos autores de renome em meio à construção literária.
É a geração em que o regionalismo nasce realmente, fazendo com que aquele que sempre foi
pouco explorado, consiga ser.
Nessa estética, o espaço ganha importância, exatamente porque temos a construção de
valorização regional. Veremos, inclusive, que a ambientação de Os sapos em Porto Alegre não
se dá por acaso. Dyonélio, como veremos a seguir, é natural do Rio Grande do Sul e, por isso,
conhecia completamente a cidade. Esse conhecimento não é desperdiçado por ele, fazendo com
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que tenhamos a exploração da cidade íntima do autor. Mas isso será explorado mais para frente.
Com relação à estética, para que possamos arrematar essa seção, destaca-se a
importância da Literatura como forma de política, independente de perspectiva. Essa forma de
ver a obra literária sempre foi extremamente forte entre aqueles que analisam a estética dessa
época. É uma relação de junção extrema entre a Política e a Literatura, como ocorreu durante
toda a história literária universal, mas com a primeira grande construção em termos de
quantidade e de importância no Brasil.

1.2 Dyonélio Carvalho: o analisador de comportamentos


Da análise de Dyonélio, destaca-se a sua origem e sua posição política. Sua origem é
extremamente importante, porque, como sabemos, esse período estético se preocupava com o
regionalismo, normalmente pensando em um aspecto social, com preocupações que podiam
variar da forma à obsolescência das pessoas. No caso, percebe-se que a obra de Dyonélio se
prende à construção de análise da vida urbana, em que temos a análise da modernização
constante das cidades, locais de recebimento de moradores do interior.
Segundo a crítica, é da experiência de Dyonélio com a cidade que nasce a sua
necessidade de analisar como as relações sociais se davam, levando em consideração as
classes sociais dos personagens e sua análise psicológica. Pode-se dizer, inclusive, que há
muito do neorrealismo na construção dessas obras, exatamente pela preferência de análise
social e psicológica dos personagens.
Amigo de Erico Verissimo, Dyonélio inicia a sua vida de escrita por meio de um livro de
contos, em que já se percebe essa necessidade de compreensão do homem da cidade em meio
a uma vida completamente modificada pela modernidade. Destacamos, claro, que estamos

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falando do momento em que o Brasil “flerta” com a industrialização, fazendo com que muitas
pessoas sejam excluídas socialmente e, principalmente, aquelas que se sentem obsoletas em
meio à sociedade. Na realidade, podemos dizer que Naziazeno, que você já conheceu da leitura
de Os ratos, é, sem dúvida, a representatividade dos personagens de Dyonélio e, possivelmente,
de toda essa segunda geração urbana: um homem que vive para sobreviver, pagando uma conta
em cada momento, ainda que trabalhando de forma intensa.
É interessante notar, ainda, que Dyonélio se envolve, assim como Erico, com o
pensamento comunista da época, o que faz com que tenhamos a construção específica de uma
obra voltada para a crítica do capitalismo. Ao analisarmos essa relação da segunda geração,
nota-se que o capitalismo é criticado pela exploração do proletariado, no caso dos romances
regionalistas que se centram no campo e interior, enquanto entendemos que temos, nas cidades,
a crítica à modernização e ao “abandono” que as pessoas sentem em meio ao Capitalismo.
Assim, entendemos que, em Os ratos, temos a construção de uma crítica às relações
sociais que se fundamentam exclusivamente no capital. Ou seja, percebe-se que a vida na
cidade grande, envolta em uma aura de relação exclusivamente capitalista tende a colocar os
cidadãos em uma forma de exclusão que não será somente aos mais pobres, mas a todos
aqueles que vivem em meio à sociedade.
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2 Os Ratos: análise da obra


A obra Os ratos, aqui em análise, foi publicada em primeira edição em 1935 e foi
considerada um divisor de águas para a análise da condição urbana das cidades. Contrariando
claramente a perspectiva regional com foco no interior, Dyonélio centra na cidade a sua obra de
análise do homem moderno, em meio à sociedade cada vez mais automatizada, inclusive com
substituição do homem pela máquina e da vida mais pacata pela loucura da velocidade moderna.
São 28 capítulos estruturados de forma contínua, mas cada um deles com sua construção
de suspense, que nos leva a buscar a solução do problema de Naziazeno. Claro que, da leitura
do texto, se depreende a solução do suspense, no máximo, no capítulo seguinte, como é de se
esperar nas construções com pequenos momentos de complicação em direção ao clímax mais
complexo.
Se considerarmos que já somos apresentados, de primeira, ao problema que gerará todo
o enredo, somos também convidados a viver o suspense de esperar para saber se Naziazeno
pagará, ou não, a sua dívida ao leiteiro, reestabelecendo o fornecimento e podendo manter seu
filho alimentado. Essa técnica de narrativa é extremamente importante para o acompanhamento
dessa história que se desenrola sempre em direção a não sabermos o que acontecerá com
Naziazeno.
Quanto à linguagem, é importante destacar que a consideramos simples e direta, ligada à
ideia Modernista de que é possível escrever de forma culta, mas sem complicar as ideias
apresentadas durante o texto. Notem, ainda, que a cadência do texto é bastante tranquila para
o leitor, que consegue entender rapidamente o que se desenrola em cada um desses capítulos.

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Destacamos, ainda, como forma de reforço, que a crítica reconhece claramente a relação
entre o dinheiro e os pares sociais. Podemos afirmar, na realidade, que temos o dinheiro como
a mola propulsora da sociedade e das relações sociais. Na realidade, o que vemos é a
construção de uma relação completamente centrada na importância do dinheiro. Dyonélio nos
mostra que tudo é corroído pelo dinheiro, fazendo com que notemos que as relações realmente
se degradaram na modernidade exatamente pela supervalorização monetária.
Não se esqueça, para que possamos passar à análise dos elementos da narrativa, que
estamos diante de um romance realmente urbano-social, na acepção dessa palavra e dessa
nomenclatura. É o drama da modernidade e sua dependência plena pelo dinheiro. Tudo girando
em torno dele. A partir da análise dos elementos da narrativa, que fazemos a seguir, poderemos
perceber como se desenrola essa ideia em meio à obra. A celeridade das 24 horas, assim como
a pressa em resolver o problema, em meio à doença, à dívida e à fome, é determinante para
nossa construção narrativa.

3 Elementos da narrativa
Neste capítulo, conforme prometido, teremos a construção de uma análise interessante
sobre os elementos da narrativa. Na realidade, a depender da visão da banca com relação ao
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texto, essa se torna a parte mais importante desta nossa aula, porque é nela que encontraremos
a construção necessária daquilo que pode ser cobrado. Essas características são consideradas
extremamente importantes para a compreensão da obra, uma vez que são elas que fazem com
que essa obra se encaixe na tipologia narrativa.
Inclusive, como vimos, pela extensão dessa obra, a classificação não será de um
romance, mas de uma novela, dado que há centralidade de enredo somente na pessoa de
Naziazeno, sendo tudo concentrado nele e na forma como ele lidará com a crise. Essa crise,
como sabemos, é a representação do que o povo passa com frequência. Mas isso analisaremos
no capítulo 4.

3.1 Resumo do enredo


A obra se desenrola em 24 horas, ou seja, em representação de um dia. Não mais que
isso, corroborando a ideia de que estamos diante de uma novela, pelo curto espaço de tempo
em que tudo se desenrola. No centro das ações, temos Naziazeno, um funcionário de repartição
que não ganha o suficiente para quitar todas as suas contas. Dentre elas, destaca-se a compra
diária de leite, que serve para alimentar seu filho. Esse é o começo de tudo: falta dinheiro para
pagar a conta do leiteiro, que entrega à mulher de Naziazeno o aviso de que seu fornecimento
de leite seria cortado no dia seguinte, caso não seja efetuado o pagamento.

Os bem vizinhos de Naziazeno Barbosa assistem ao “pega” com o leiteiro. Por


detrás das cercas, mudos, com a mulher e um que outro filho espantado já de pé
àquela hora, ouvem. Todos aqueles quintais conhecidos têm o mesmo silêncio.

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Noutras ocasiões, quando era apenas a “briga” com a mulher, esta, como um último
desaforo de vítima, dizia-lhe: “Olha, que os vizinhos estão ouvindo”. Depois, à hora da
saída, eram aquelas caras curiosas às janelas, com os olhos fitos nele, enquanto ele
cumprimentava.
O leiteiro diz-lhe aquelas coisas, despenca-se pela escadinha que vai do portão
até à rua, toma as rédeas do burro e sai a galope, fustigando o animal, furioso, sem
olhar para nada. Naziazeno ainda fica um instante ali sozinho. (A mulher havia
entrado.) Um ou outro olhar de criança fuzila através das frestas das cercas. As
sombras têm uma frescura que cheira a ervas úmidas. A luz é doirada e anda ainda
por longe, na copa das árvores, no meio da estrada avermelhada.

Antes de buscar a resolução do problema efetivamente, temos a análise das pessoas ao


redor de Naziazeno, já configurando o que se entende como neorrealismo e a ênfase na
microestrutura dos elementos, ou seja, com a ideia de que os pequeninos detalhes, quase como
um inventário, como dizia Machado de Assis com relação ao Realismo, enquanto estética. No
caso, cumpre-se a necessidade descritiva dessa estética de Os ratos. Destaca-se, ainda, no
segundo capítulo da obra, a construção de um enredo completamente voltado para a cidade e
seu andamento, com a construção do enredo completamente envolvido com a modernização da
cidade grade. Porto Alegre é o ponto em que se desenrola essa história.
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O Fraga não viu “nada”, naturalmente. Lá está ele na porta da casa, do outro
lado da rua. Parece que tem os olhos nele. Cumprimentar? não cumprimentar? O que
o incomoda é que ele lhe vai responder o cumprimento com uma saudação entusiasta,
saudação manhã-cedo.
Dá a impressão, o Fraga, de ter uma vida bem arrumada. O padeiro, o leiteiro,
quando “voltam”, depois de feita a distribuição, ficam algum tempo ainda conversando
com ele. O mês já vai em meio e ele interrompe a palestra, chama a mulher: “– Não
seria bom pagar esse homem hoje?” “– Não tem pressa, seu Fraga: ele aí está
guardado...”

Tendo essa dívida a ser quitada de forma tão urgente, Naziazeno decide apelar para seu
chefe, o Sr. Romeiro, que já havia ajudado o personagem em outros momentos, quando o filho
desse estava doente. Esperou o dia inteiro pelo direto que não apareceu na repartição,
procurando-o em todos os lugares, começa a se desesperar e a se preocupar ainda mais, dado
que, segundo o leiteiro, se o cliente não deixasse o dinheiro da dívida em cima da mesa para a
manhã do dia seguinte, não haveria mais leite para alimentar o filho. O diretor recusa o
empréstimo e deixa Naziazeno sem ter o que fazer para conseguir o dinheiro de forma mais fácil.
Esse é o ponto que gera maior desespero em Naziazeno: não ser capaz de ser o provedor da
casa por meio de seu emprego e com seu salário. A espera pelo chefe se mostra ineficaz e
Naziazeno não sabe mais o que fazer para conseguir o dinheiro.

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Sim, Naziazeno sabe que os empregados mais graduados troçaram


respeitosamente o diretor, que este (que é um moço) meio encabulou, alegando que
não conhecia o caso, que era ainda estranho ao meio, que “noutra” não cairia, pois
era realmente qualquer coisa assim como censurável estar cultivando esses exemplos
de desregramento ou de perdularismo sistemáticos...
Isso disse o diretor, mas pra safar-se daquele momento um tanto crítico.
“— Fico ainda lhe restando cinco mil-réis, doutor.”
“— Estamos quites!” havia-lhe respondido o outro, tomando o dinheiro,
precipitadamente, sem fitá-lo, a cara mergulhada no vão da sua secretária de cortina.
“— Não sei como lhe agradecer, doutor. Eu já lhe disse, o médico exigia umas
injeções. O seu dinheiro foi uma providência pra o meu filhinho.”
“— Sim! está bem! pode retirar-se! — Já sabe: não me deve mais nada. Fique
com esses cinco.”
“— Oh! muito obrigado, doutor...”
Ele estava certo, certíssimo, que era só “agarrar-se” com o diretor.

(...)

À medida que se aproxima o “momento decisivo”, cresce o desejo de “resolver


de um todo” aquele negócio. Já cansou bastante a cabeça desde que saiu da cama.
O dinheiro no bolso, desde agora, é o descanso, que ele bem merece, pra o resto do
dia.
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Cinco, dez, quinze minutos mais e se acaba essa preocupação torturante. Ele
tem experimentado muitas vezes essa mudança brusca de sensações: a volta à vida
do filho, quando esperava a sua morte... E outras. Está num momento desses. O
dinheiro do diretor vai trazer-lhe uma enorme “descompressão”. Solucionará tudo,
porque — é o seu feitio ou o seu mal — ele faz (desta vez, como de outras) deste
negócio — o ponto único, exclusivo, o tudo concentrado da sua vida. Pago o leiteiro,
o mundo recomeçará, novo, diferente. Assim foi quando da volta do filho à saúde.
“— Eu já saí vinte e duas vezes a barra!” — O sujeito dizia isto como testemunho
da sua experiência. Sair a barra... Depois, o mistério do oceano... Os marinheiros do
grande cargueiro alemão, debruçados lá em cima na amurada, olham para o sujeito
cá embaixo e para a “estranha luzinha”, alternativamente. Têm um sorriso sereno. O
indivíduo fala com eles em alemão. Está certamente em “visita”. Naziazeno viu-se
inopinadamente interpelado ao passar: “— Não pode me dizer o que é aquilo lá no
céu?” — Uma luz, uma estrelinha um pouco acima da Igreja das Dores; parece um
contato de fios. “— Naquela altura!... Olhe, aqui onde estou já saí vinte e duas vezes
a barra. Não penso que seja um simples contato.” — A luzinha às vezes se apaga. É
lívida, na manhã luminosa. — Que será mesmo?

(...)

— O sr. pensa que eu tenho alguma fábrica de dinheiro? (O diretor diz essas
coisas a ele, mas olha para todos, como que a dar uma explicação a todos. Todas as
caras sorriem.) Quando o seu filho esteve doente, eu o ajudei como pude. Não me
peça mais nada. Não me encarregue de pagar as suas contas: já tenho as minhas, e
é o que me basta... (Risos.)
O diretor tem o rosto escanhoado, a camisa limpa. A palavra possui um tom
educado, de pessoa que convive com gente inteligente, causeuse. O rosto do Dr. Rist

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resplandece, vermelho e glabro. Um que outro tem os olhos no chão, a atitude


discreta.
Naziazeno espera que ele lhe dê as costas, vá reatar a palestra interrompida,
aquelas observações sobre a questão social, comunismo e integralismo.

Em meio a esse desespero, Naziazeno confidencia o problema a Alcides, colega de


repartição, que lhe diz que é possível que ele consiga o dinheiro do empréstimo, bastando que
Naziazeno cobre uma comissão vencida e devida por Andrade. Quando isso acontece, é
impressionante a força narrativa de mostrar que o problema se resolverá. É claro destacar que
a leitura do texto, por tratar-se de uma relação que pode afetar uma criança, gera uma empatia
imediata com Naziazeno e uma crescente preocupação com seu filho, que precisa do leite para
se alimentar.
Já com a esperança tomando conta de si, Naziazeno parte em busca de Andrade,
andando por vários quarteirões embaixo do sol escaldante do final da manhã em Porto Alegre.
Ao chegar à rua 15, em que morava Andrade (inclusive já como demonstração da intimidade de
Dyonélio com a cidade), Naziazeno recebe a notícia de que deveria buscar o gerente do New
York Bank, que seria o real devedor de Alcides. Nesse ponto, já se percebe o desespero
crescente de Naziazeno.
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Alcides está um tanto vivo. Só ele fala. Nos intervalos da conversa, tem
pequenos movimentos, muda o corpo, os braços, a cabeça de posição.
Naziazeno não quer decifrá-lo, faz esforços por se conservar à margem daquilo...
Quer imobilidade, só imobilidade. Mas já o viu muitas vezes no Duque. É um primeiro
mobilizar de forças, que se intensifica mais e mais, toma vulto e direção, e, no fim das
horas, é uma carga.
Alcides quer lhe dizer qualquer coisa.
— Eu estava pensando que você podia dar por mim uma batida no Andrade.
— Que Andrade?
— Aquele corretor da rua Quinze.
Faz-se um silêncio.
— Você podia dar uma chegada agora na casa dele. Ele está almoçando.
Novo silêncio.
Alcides prossegue:
— Ele ficou me devendo o resto duma comissão... Cem mil-réis...
Frouxamente Naziazeno pergunta:
— E onde ele mora?
— Na rua Coronel Carvalho, número 357. (Perto da Independência.) Alcides
entusiasmara-se:
— Procure trazer nem que seja a metade. Ele vem me prometendo liquidar há
muito tempo.
Naziazeno conserva-se silencioso. Ele não pensa na “empresa” propriamente:
pensa no Andrade; vê a sua figura robusta, azafamada, decidida de patrão. Ela lhe
lembra o Gonçalves, o dono duma engraxataria que existiu ali naquela praça. Era
também assim. Decidia-se como um general, entre os engraxates. No fim do dia

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liquidava as contas dele, o aluguel das cadeiras. Fechava tudo, rasgava papéis,
limpava a mesa. “— Pronto! Não tenho mais loteria, não tenho mais bicho, mais nada.”
— E vinha até à porta, agitando as mãos, sem casaco, a camisa limpa, com o ar
mesmo de quem se desembaraçara de qualquer coisa verdadeiramente pesada. Num
dos banquinhos, um engraxate (um negrinho de cara cínica) sujo e suarento, olhava
pra palma da mão, pra os níqueis que lhe haviam restado. E tinha um comentário pra
o companheiro mais próximo — um comentário de moleque desconsolado... —
Andrade não se aperta, não, por cem mil-réis...

De posse dessa nova informação, o personagem-principal decide procurar Alcides, em


lugar do subgerente. Procura por muitos lugares, incluindo praticamente todos os cafés do centro
da cidade, e não o encontra em lugar nenhum. O desespero aumenta e surge um outro problema:
a fome, uma vez que a hora do almoço já chegara. Agora, além da dívida martelando a cabeça
de Naziazeno, agora a fome serve como lembrete de que não tem dinheiro nem para se
alimentar, o que reforça o seu sentimento de impotência diante do mundo.
Com fome, ele busca Otávio Conti, com quem tinha certeza de que conseguiria o dinheiro,
mas só consegue encontrar Costa Miranda, a quem pede 10 mil réis, recebendo somente 5 mil
e já carregando um recado para Alcides, de que esse deveria pagar ao agiota a letra que lhe
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devia, para que limpasse seu nome. Mais uma vez, percebe-se que Dyonélio constrói uma série
de ações que sempre desembocam na parte financeira da vida de todos: parece que todas as
relações são realmente motivadas por dinheiro.

Alcides com toda certeza o espera num dos cafés.


Já há de ser seguramente uma hora. Levantou cedo, tomou o café mais ou
menos às sete horas. Daí essa fome.
A primeira coisa que teriam feito com aqueles cem mil-réis seria comer. Iriam ao
Restaurante dos Operários, a essa hora já quase vazio. Instalados no seu canto,
defronte da mesinha com a toalha branca bem estendida, palestrariam. Enquanto
esperam, ele come pão — um pãozinho de pão d’água, de casca lisa e cantante como
louça tenra.
Ficariam grande parte da tarde ali, repousando. Ao vinho nacional, o coração
amolecido, já Naziazeno teria esquecido tudo... Trataria de ir se tocando pra casa. Na
rua, no bonde, se confundiria com os demais. Era o mais agradável dessas
sensações...
Não se animou a pedir ao Alcides o níquel pra o bonde, e está lhe saindo bem
puxada aquela caminhada com o sol. Tem confiança com o Alcides — muita mesmo!
— mas não se animou. Não sabe por que, mas acha que Alcides não lho daria com
boa vontade — ele que lhe vai emprestar dezenas de mil-réis!... Não se financia um
sujeito um dia inteiro e pra todas as coisas...
A cidade não tem árvores. A rua é um bloco inteiriço de granito escaldante.
Terão de esperar pelo expediente da tarde pra falar com o subgerente no banco.
Parece-lhe agora um tanto estranho aquele equívoco do Alcides... Entretanto, a cara
do Andrade tinha um ar de surpresa e de sinceridade. Mas, se ainda tinham falado

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havia pouco no tal Mister Rees, na parte que lhe cabia pagar, como era possível ter
Alcides se enganado?...
Ele lhe vai explicar tudo isso.
Alcides o espera certamente no Nacional.
O silêncio da cidade já se quebrou. Outra vez rola, em direção ao centro, a onda
dos automóveis e dos bondes. A tira mesmo de sombra junto à parede já é mais larga
e mais disputada.
Mister Rees — um alto funcionário bancário — há de ser pessoa séria. Não há
de pôr dúvida em pagar. Talvez exija um entendimento com o Andrade, uma
explicação. Andrade estará pronto em dar todas as explicações: ele lhe deixou a
impressão de sujeito solícito, prestadio.
Vai-lhe parecer uma mentira, quando entrar nesses cobres.
Talvez Alcides o esteja mesmo esperando pra almoçarem juntos. Lembra-se
uma vez que acompanhou Alcides a um frege do mercado. Ele comeu o seu almoço
de assobio — um prato de mingau, média com empadinhas. Depois meteu um palito
na boca, chupou um pouco de ar sibilante através dos dentes num lado e noutro,
limpando-os. Cuspiu um que outro farelo de comida. Puxou um cigarro, deu tragadas
grandes. Convidou:
— Vamos?
Naziazeno sabia que ele estava sem dinheiro.
Sobre a porta, o dono do frege, sem casaco. Alcides chega-se bem perto dele,
canta-lhe qualquer coisa. O outro ouve, com os olhos baixos e de vez em quando um
movimento de aquiescência com a cabeça.
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— Então, até logo — diz-lhe Alcides.


— Até logo...
— Olha: e muito obrigado...

Na dúvida se deve ou não comer, porque não encontraria nada de bom àquela hora, ficou
rodando pela cidade olhando para os cinco mil réis e decidindo o que fazer. Ao passar por uma
tabacaria famosa da cidade, vê uma roleta e decide jogar para tentar ganhar o dinheiro do leiteiro
a partir dos cinco mil réis. Toma uma água somente, ficando meio zonzo ainda pela fome. Como
não poderia deixar de ser, após começar as apostas, ganhando algumas e perdendo outras, fica
sem os cinco mil réis, com fome e com menos possibilidade de resolver o problema.

Mete no fundo dum dos bolsos duas fichas grandes, de cinco mil-réis, e fica
combatendo com um punhado de fichas menores.
Não se sabe quanto está ganhando. Nem ao menos quer pensar nisso, porque
não lhe seria difícil calcular, mesmo sem contar, pela simples vista das fichas, e ele
não quer saber... não quer saber...
Já joga há muito tempo.
Ao seu redor aquela multidão tem-se renovado, sem se alterar todavia. A cada
momento espera ver entrar o Alcides ou o Duque.
Sobre um dos lados, sentado numa cadeira (na única cadeira que talvez exista
ali) está um sujeito com o ar imbecilizado, um pobre-diabo que ele conhece muito por
ver constantemente na rua, nos cafés. Nunca pôde entretanto saber quem seja. O

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sujeito olha muito pra ele, com a expressão de conhecido, de quem está prestes a
entabular uma conversa. Ele não joga. Que estará fazendo aí?...
Já duas bolas seguidas que não tira nada. Vai mudar de tática: vai perseguir um
número, botando também alguma coisa na dúzia correspondente.
O “seu” número já tem jogo na ocasião em que faz o seu. Pouco jogo. O chuveiro
das fichas prossegue... prossegue... estendendo uma toalha multicor sobre a
superfície luzidia do oleado... De quando em quando cai uma sobre o número que
jogou. A sua ficha meio que se oculta já debaixo de outras que vieram depois.
Extinguem-se pouco a pouco os passos, a crepitação fininha. Agora, é um
pequeno martelar, suave e claro, com pequenas intermitências, sem ritmo certo da
bolinha que salta na bacia. Depois, ela encontra a sua loja, a sua casa. Pronto! e a
cara do croupier é um oráculo prestes a despejar sobre todos a decifração do
mistério...
Os ancinhos de novo... De novo os montes de fichas... Mais um número no
quadro-negro que registra a sucessão de bolas... Depois, o recomeçar.

Nesse momento, Naziazeno se encontra com um homem mais velho, com quem já tinha
conseguido um empréstimo anteriormente. Ele o cerca e pede novamente o empréstimo para
que possa quitar a dívida, repetindo diversas vezes o pedido e sendo negado em todos eles. É
interessante notar que, nessa hora, percebemos que o decorrer do dia deixa Naziazeno
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desesperado por resolver o problema de sua família, mas sem uma “luz” para entender o que
aconteceria ali e como conseguiria resolver o problema. É impressionante como Dyonélio
constrói essa tensão no livro, parecendo que estamos em meio a uma real loucura. Todos nós
somos levados a sentir pena de Naziazeno, provavelmente por nos identificarmos, em algum
ponto, com ele. Esse ponto da obra termina com o homem subindo no metrô e finalmente se
separando de seu perseguidor.

O indivíduo volta-se lentamente, ao mesmo tempo que dá um puxão enérgico na


meia folha entreaberta. Vê Naziazeno. Responde-lhe o cumprimento e passa duas
voltas de chave na porta.
Acomoda o chaveiro no lugar. Tem os olhos fixos no outro:
— Deseja alguma coisa?
— Queria falar com o sr.
— Comigo?
— Sim.
Há uma pequena pausa.
— O que é que deseja?
— Queria pedir-lhe mais um favor — diz Naziazeno.
O indivíduo espera que ele fale, explique.
— Só a grande necessidade me traz aqui na sua casa, antes de resgatar aquele
vale.
— O vale resgatará quando puder — responde-lhe o indivíduo. Tem uma leve
impaciência. Olha para os lados. Parece que tem necessidade de se ir embora.
— Agora, no fim do mês — diz-lhe Naziazeno. — Vai ser o meu primeiro
pagamento.

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O indivíduo não faz nenhuma observação.


— O sr. não imagina o que tem sido ultimamente a minha vida... As dificuldades...
— Imagino.
— Hoje, aqui onde me vê — diz-lhe Naziazeno, numa confissão — ainda não
almocei.
— Como?! Não tem o que comer?...
Um vermelhão cobre a cara de Naziazeno.
— Não é isso — acrescenta ele, justificando-se: — tive de ficar na cidade... pra
conduzir um negócio... Não pude voltar pra casa pra almoçar. (Não diz: “— E não tive
dinheiro pra almoçar na cidade.”)
O outro ouve calado.
Naziazeno:
— Não tenho a quem recorrer, e preciso com urgência de... (Vai dizer “cem”, mas
detém-se. Acha uma quantia despropositada.)... de... sessenta mil-réis...
O indivíduo faz um movimento com a cabeça:
— Não me é possível.
Naziazeno torna-se instante:
— Assino-lhe um vale. Venho pagar no fim do mês.

A partir desse ponto, a passagem do tempo, como era de se esperar, torna-se cada vez
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mais densa e, porque não dizer, tensa. Dessa forma, conseguimos entender que a tensão da
obra crescerá de forma proporcional à passagem do tempo que, como veremos, será
marcadamente cronológico, porque essa relação entre tempo e dinheiro é essencial aos
objetivos de Dyonélio. Assim, a tarde chega e, com essa chegada, se esvai a esperança de
Naziazeno e cresce a tensão.
Desesperado, o personagem-principal consegue uma joia de um amigo emprestada e
consegue penhorá-la, finalmente alcançando seu objetivo. Feliz momentaneamente, ele compra
presentes para sua esposa e seu filho e volta para casa. Contudo, não temos o momento de
descanso de Naziazeno, porque, ao deitar-se, não consegue dormir, dado que sonha que os
ratos estão roendo o dinheiro colocado em cima da mesa para o leiteiro. Mais à frente,
analisamos essa significação, que inclusive dá nome ao livro.

Segue-se um silêncio.
— Me lembrei duma coisa — diz Duque depois: — O Alcides tem um penhor, um
anel... (Interrompe-se; dirige-se a Alcides: — Você já levantou esse penhor? — E
diante da sua resposta, prossegue:) — ... um anel, que está empenhado por um preço
muito aquém do que se poderia conseguir por ele, sem grande esforço.
— Cento e oitenta mil-réis — informa Alcides.
— Um anel? — pergunta Mondina.
— Um anel de bacharel, desses antigos, com chuveiro — acrescenta Alcides.
— O sr. é bacharel? — indaga o outro com uma grande surpresa.
Alcides sorri. Não. É uma joia de família, que vem do seu avô.
— Mas qual é o seu plano? — pergunta Mondina ao Duque.

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— Podia-se melhorar o penhor. Mas pra isso é necessário desempenhar o anel.


São quase duzentos mil-réis. E empenhá-lo noutra parte.
Mondina reflete um momento.
— Este plano não me desagrada — diz ele, por fim. — Isto é possível. Ainda
haverá tempo hoje?
Todos olham para a rua. A sombra cresce, cresce...
— Dá — garante Alcides. — No verão eles não hão de fechar antes das sete...
sete menos um quarto.

O enredo é fechado pela solução de um problema imediato, mas não de todo o problema,
dado que entendemos que logo Naziazeno precisará de mais um empréstimo e sua odisseia em
busca de dinheiro nunca acabará. É a ciclicidade da necessidade que se avizinha por ali.

3.2 Narrador
O narrador de Os ratos é considerado um elemento que beira a genialidade segundo a
crítica: é um narrador em terceira pessoa, onisciente, mas que mascara a sua onisciência
deixando-se levar pelo próprio personagem, com a ideia de que o desconhecimento do futuro
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por parte do personagem também se aplica a ele. Ou seja, é um narrador onisciente, como deixa
antever em vários momentos. Contudo, não temos o uso dessa onisciência. Podemos dizer,
então, que propositalmente o narrador é construído como um mero observador.
Essa estratégia serve para que temos uma construção mais próxima realmente do
mistério. Podemos afirmar que, ao lermos uma obra como essa, temos a construção de um
suposto desconhecimento com relação ao que acontecerá no desenrolar da história. Assim,
nossa impressão é de que todos, inclusive o narrador se comporta como nós.
Contudo, como temos a construção de um narrador que descreve, com detalhes a relação
de Naziazeno consigo mesmo, revelando o seu íntimo e analisando-o psicologicamente de forma
completa, como é de se esperar em uma obra com influência realista. Assim, podemos afirmar
que a onisciência é somente disfarçada em meio à obra.

— Antes de me resolver a vir incomodar o sr. esgotei todos os outros meios —


acrescentou Naziazeno.
O indivíduo tem o ar cândido de quem acredita em tudo, em tudo.
— Bem, eu vou indo — diz ele. E espicha a mão para Naziazeno, ao mesmo
tempo que esboça um movimento de fuga.
— Eu também vou pra esse lado — diz Naziazeno. — Eu o acompanho até à
esquina.
Naziazeno, caminhando à sua esquerda, vai-lhe cantando, cantando.
Chegam à esquina. O indivíduo olha pra todos os lados, impaciente. Lá longe,
pouco pra cá da estação da estrada de ferro, vem vindo um bonde. A rua está vazia.
O indivíduo começa a olhar naquela direção. Parece não estar ouvindo as
palavras instantes do outro.

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O bonde vem parando em todas as esquinas.


O sujeito move os pés, muda de lugar. Ergue a cabeça como para furtá-la àquilo,
àquelas súplicas. Mas Naziazeno continua, continua...
Eis o bonde! Já se lhe ouve o barulho, que retumba na rua deserta.
— Aí vem o meu bonde...
Diante daquela ameaça de escapar-lhe a presa, Naziazeno tem uma derradeira
imploração. Fala-lhe com desespero, com angústia.
— Mas o sr. é imprudente — retruca-lhe o outro. — Já lhe disse que não me é
possível.
Corre. Pega o bonde mesmo caminhando.

3.3 Personagens
Em Os ratos, é imprescindível perceber que temos a construção de uma Vicência
completamente diferente com relação aos personagens, principalmente se considerarmos que
há dois que se destacam no desenrolar da história: Alcides e Naziazeno. Claro que, além deles,
há outros elementos que mereceriam esse destaque se não fosse o tamanho que tomam dentro
da obra. Assim, apresentamos a seguir os dois já apresentados, além da esposa de Naziazeno
e o diretor da repartição do personagem-principal.
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Naziazeno
Esse é o personagem-principal da obra, em que temos a construção de um homem que
precisa, o tempo inteiro, lutar pela sobrevivência, entendendo-se, em meio à sociedade, como
uma representação épica de um herói real, não mais imaginado e inexistente, não só dentro da
mitologia, mas dentro do Romantismo por si só. É uma construção diferente do que
imaginaríamos como herói em uma obra literária. É um herói do povo, por assim dizer, que nos
representa em todo o nosso desespero em pagar contas e manter a família.

O moço seu vizinho, que espera o bonde quase a seu lado, relanceia-lhe às
vezes um pequeno olhar. Sempre Naziazeno se intrigou muito com esse rapaz
silencioso com cara de quem não vê e não compreende. Só muito tempo depois foi
que soube que ele é empregado de escritório na “Importadora”.
Talvez ele não compreenda “aquilo”. Talvez não saiba o que imaginar. São tão
diferentes... Ele nunca briga com a mulher, nunca levanta a voz... Talvez não
compreenda... Naziazeno se sente mais a gosto. Passa-lhe pela cabeça que vai
assumir uma atitude de cínico e isto um pouco o perturba. Mas quando o rapaz o fita
de novo (ele já o fez várias vezes com regularidade naqueles poucos momentos) ele
se firma naquela ideia, diante do seu olhar sereno e vazio, e ergue um pouco a cabeça,
embebe-a no ar fresco da manhã.
Ele teme dar com os olhos no outro seu vizinho, o dos fundos. É um amanuense
da Prefeitura, tem mulher e filhos, anda sempre barbado. Quando Naziazeno foi morar
ali, logo soube da fama que acompanha esse sujeito: “— Não paga ninguém!” Se ele

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agora aparecesse ali, lá viriam aqueles dois olhos, sabidos, de verruma, olhos
devassadores...

Alcides
Podemos considerar Alcides como o melhor amigo de Naziazeno, pelo menos para
resolver esses problemas. Contudo, dele, se destaca a proximidade de atuação e de
comportamento com o próprio Naziazeno, dado que o amigo, assim como o personagem-
principal, também é endividado e também “vende o almoço para comprar a janta”, como
costumam dizer. É outro homem do povo e, por isso, é identificado com o amigo, auxiliando,
inclusive, na resolução do problema.

Alcides ali à sua frente, ele não se sente tão só. A cara deslavada e ausente do
outro bem podia passar por ingênua. Ele curvava um pouco o tórax para diante, olhava
em frente, as feições iguais, como de quem dorme. Quando tirava o olhar dum foco
para colocá-lo num outro, fechava habitualmente os olhos, como quem faz um
“entreato” entre as duas visadas. Isto repetido várias vezes dava-lhe um ar de sono,
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que o tornava mais ausente e ingênuo.


E o Duque, que não aparece...
Põe outra vez um olho perquiridor sobre o Alcides, que, à sua frente, olhando a
rua com a sua cara de sono, parece um menino grande, distraindo-se.
O Alcides “está diferente”, com aquele casaco marrom. Naziazeno já pensou
nisso, horrorizado! Não teria coragem de envergar um casaco assim. Porque esses
judeus parece que arranjam sempre umas “coisas” incríveis, que nunca ninguém
usou, que a custo a gente admite que alguém as tenha feito. Um dia o Carlos apareceu
com um desses casacos desemparceirados sem chapéu, como é seu costume. “—
Os ladrões bateram essa noite no meu quarto. — Me deixaram limpo. Tive de arranjar
este casaco emprestado.” Como ele é amigo dum repórter, o roubo “veio” mesmo no
jornal, nessa tarde.

A esposa de Naziazeno, assim como o diretor, parecem ter mais importância do que
realmente têm, porque, ao analisarmos esses personagens, vemos que há uma construção
extremamente periférica para eles. Contudo, a mulher destaca-se pela construção da cobrança
do marido para a resolução do problema. Por outro lado, compreendemos que o diretor, ainda
que construído como um possível salvador da pátria, não pode ser visto assim, dado que não se
preocupa efetivamente com o funcionário e, inclusive, chega a dizer que não tinha nada a ver
com as preocupações do empregado, porque já tinha preocupações suficientes. É um homem
que não se comporta de forma ética e amistosa.

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A mulher receia também que o leiteiro lhes faça algum mal. Ele é um “índio” mal-
encarado e quando chega, de manhã muito cedo, ainda os encontra dormindo.
— Não, nesse ponto não há o que temer.
— Mas, e se nos deixa sem leite...
Ele tinha acabado o café, o ar preocupado.
— Também tu fazes um escarcéu com as menores coisas.
Levanta-se. Tem o olhar inquieto. A mulher fita-o atentamente, como quem
procura alguma coisa no seu rosto. Ele tem um relance de olhos para ela:
— Olha, já seria uma vantagem não ter nada que ver com “essa gente”.
— Despachar o leiteiro?!
— Tu te assustas?
A mulher baixa os olhos; mexe com a ponta do dedo qualquer coisinha na tábua
da mesa.

3.4 Tempo
O tempo do texto é claramente mesclado entre o psicológico e o cronológico, dado que
temos a construção de análise do próprio personagem-principal, principalmente por meio de suas
reflexões e relações de pensamentos, como ocorre nos fluxos de consciência contínua. É
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importante, então, entender que há relação de mescla temporal.


Destacamos, inclusive, que a duração de um dia é importantíssima para a significação do
texto, uma vez que é a demonstração da rotina, do que ocorre no dia a dia daqueles que são
somente engrenagens em meio à construção da máquina capitalista. Além dessa ideia, temos a
construção da ideia de que tudo se repetirá sempre da mesma forma. São 24 horas de luta
eterna, sem perspectiva de melhora.
Essa ideia fica muito clara com a quantidade de referências a outros momentos em que
os personagens, em especial Naziazeno e Alcides, já precisaram recorrer a empréstimos para
sobreviver somente um dia. É a repetição da seca, mas com a ideia de que temos essa seca
com relação à forma como a vida dos menos afortunados é.

3.5 Espaço
O espaço é considerado como claramente urbano, sendo extremamente importante para
a obra. Inclusive, se quiséssemos aprofundar a análise, teríamos a ideia de um espaço, a cidade
de Porto Alegre, comportando-se como um elemento que modifica a visão das pessoas e
participa de forma ativa dessa modificação.
Isso é claro quando analisamos que há uma construção clara de cenário em que fica mais
evidente a relação mais capitalizada, tendo em vista que temos a construção de uma cidade
grande movida pelas relações capitalistas. É essa a visão que Dyonélio quer nos dar: há
capitalismo instalado em todas as relações, inclusive dentro da cidade.

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Naziazeno toma a grande artéria onde se concentra todo o grosso comércio da


cidade. Ao chegar ao meio da quadra, mais ou menos, atravessa a rua, enveredando
pra uma grande casa atacadista, assinalada por duas enormes placas metálicas
colocadas dum lado e doutro da porta principal.
Só uma meia folha aberta.
Na ocasião em que Naziazeno vai chegando à porta, sai de lá de dentro um
indivíduo de cara de pedra e rugas de concentração em torno dos olhos, na testa.
Vem saindo meio de costas, ocupado em meter na fechadura uma das chaves, do
chaveiro que uma longa corrente de ferro branco prende no cinto.
— Boa tarde.

3.6 Discurso
Como é muito comum nesse tipo de construção, dentro do Modernismo, o discurso
encontrado na obra é misto. Há momentos em que o narrador apresenta discurso direto, em
outro, encontramos o moderno discurso indireto livre. Entendemos, na realidade, que esses tipos
de discurso apresentam diferentes objetivos dentro da obra, dado que temos construções
intencionais por parte do autor, usando o narrador, com objetivos de dar maior ou menor
participação dos personagens.
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Como já discorremos na hora de analisar o narrador dessa obra, podemos entender que
o uso dos diversos tipos de discurso cumpre funções diferentes dentro da obra. Ao usarmos um
discurso direto, temos a construção de uma visão mais próxima da realidade dos personagens,
ainda que limitadamente. Ao utilizarmos o discurso indireto, temos a noção de que o narrador
toma para si o controle pleno da narrativa, dizendo ele o que deve ser dito em meio à construção
da história. Por fim, quando temos o uso do discurso indireto livre, há uma tentativa de tornar
a narrativa mais rápida.
Inclusive, nesse terceiro tipo de discurso, temos a inserção, em muitos momentos, do
chamado Fluxo de Consciência Contínua, em que temos a ideia de uma construção direta de
pensamento do próprio personagem. Essa é a visão que temos de Os ratos, em que há
construção de Fluxo mesmo que em meio à narração em terceira pessoa, distanciada do
personagem como mostrado anteriormente. Veja, no exemplo a seguir, em vermelho o discurso
indireto livre e, em preto, o discurso direto.

Levanta-se. Tem o olhar inquieto. A mulher fita-o atentamente, como quem


procura alguma coisa no seu rosto. Ele tem um relance de olhos para ela:
— Olha, já seria uma vantagem não ter nada que ver com “essa gente”.
— Despachar o leiteiro?!
— Tu te assustas?
A mulher baixa os olhos; mexe com a ponta do dedo qualquer coisinha na tábua
da mesa. Ele se anima:
— Quando foi da manteiga, a mesma coisa, como se fosse uma lei da
polícia comer manteiga. Fica sabendo que eu quando pequeno, na minha

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cidadezinha, só sabia que comiam manteiga os ricos, uma manteiga de lata,


amarela. O que não me admirava, porque era voz geral que eles ainda comiam
coisa pior.
Um silêncio.
Mexe nos bolsos; dá a volta à peça; vai até ao cabide de parede, onde havia
colocado o chapéu.
— Me dá o dinheiro — diz, num tom seco, torcendo-se para a mulher,
enquanto pega o chapéu.
E voltando ao “seu ponto”, depois de pôr no bolso os níqueis que a mulher lhe
trouxera:
— Aqui não! É a disciplina. É a uniformidade. Nem se deixa lugar para o
gosto de cada um. Pois fica sabendo que não se há de fazer aqui cegamente o
que os outros querem.
A mulher não diz nada. Voltara a esfregar uma qualquer coisinha na tábua da
mesa.
Ele se para bem defronte dela e a interpela:
— Me diz uma coisa: o que é que se perdeu não comendo manteiga, isso,
que é mais um pirão de batatas do que manteiga?

(...)

O Fraga não viu “nada”, naturalmente. Lá está ele na porta da casa, do outro
lado da rua. Parece que tem os olhos nele. Cumprimentar? não cumprimentar? O
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que o incomoda é que ele lhe vai responder o cumprimento com uma saudação
entusiasta, saudação manhã-cedo.
Dá a impressão, o Fraga, de ter uma vida bem arrumada. O padeiro, o leiteiro,
quando “voltam”, depois de feita a distribuição, ficam algum tempo ainda conversando
com ele. O mês já vai em meio e ele interrompe a palestra, chama a mulher: “– Não
seria bom pagar esse homem hoje?” “– Não tem pressa, seu Fraga: ele aí está
guardado...”

4 Análise da obra

Para que possamos terminar essa aula sobre Os ratos, essa construção sensacional e
seminal, como vimos durante toda essa aula, é interessante que olhemos para uma pequena
análise da obra, levando em consideração as significações múltiplas da obra e dos símbolos nela
encontrados. Assim, podemos destacar as seguintes representações:

A estrutura da obra simula uma odisseia moderna, representada, segundo a crítica


pela obra Ulysses, de James Joyce, em que temos a representação de uma jornada
do novo herói, o homem moderno, desenrolada em 24h. Nessa esteira, Naziazeno
é o novo Stephen, personagem principal de Ulysses, que representa o herói
moderno, que encara a vida a partir de suas dificuldades e, principalmente, das
agruras da vida. É moderno pensar que a simbologia do heroísmo, principalmente
o grego, perdeu-se em meio à confusão que a modernidade traz.

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O título da obra, como podemos perceber, faz referência ao sonho de Naziazeno


com relação aos ratos que roeriam o dinheiro conseguido por ele com tamanho
esforço. Na realidade, podemos entender que esses ratos são, na verdade, o
próprio sistema, que corrói o dinheiro das pessoas. É a crítica feita por Dyonélio
por meio dessa obra.

5 QUESTÕES DE PROVAS ANTERIORES


1. (UFMG/2012)
Leia este trecho:
“— Meu filho, tu estiveste às portas da morte. A mãe fez uma promessa, se tu sarasses...” Era
andar um ano vestido de Santo Antônio. — E ele se recorda bem daquela figurinha marrom, no
colo da mãe, encolhida, debulhada num pranto impotente e trágico... No meio da rua, rodeado
de espaço e de sol por todos os lados, seria a suprema vergonha... Como ter coragem?...
como?... “— Mas tu não vês que é pior o sofrimento que tu dás a essa criança com semelhante
coisa? Olha se fosse meu filho, eu tirava já-já essa roupa. Deus que me perdoasse...”
MACHADO, Dyonelio. Os ratos. 2. ed. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. p.36.
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É CORRETO afirmar que, nesse trecho, o autor


a) foca algumas lembranças de Naziazeno.
b) sugere o caráter falso do protagonista.
c) transcreve um diálogo entre pai e mãe.
d) utiliza apenas o discurso direto.

2. (UFMG/2012)
Segundo o narrador da obra, “Naziazeno se julga ‘em débito’ com os homens, desde que vai ser
salvo pela bondade dos homens. Ele é todo humanidade, solidariedade”. MACHADO, Dyonelio.
Os ratos. 2. ed. São Paulo: Planeta do Brasil, 2010. p. 27. Assinale a alternativa em que o fato
apontado CONTRADIZ essa afirmativa.
a) A concessão de empréstimo a Naziazeno pelo Dr. Mondina.
b) A ignorância do diretor da repartição em que Naziazeno trabalha.
c) O engano do Fraga sobre os ratos de que fala Naziazeno.
d) O fato de Naziazeno jogar com dinheiro alheio.

3. (UFMG/2012)

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