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144 ROBERT SCHOLES/ROBER.

T KELLOGG

irmandade tanto de Emma woodhouse como de santa Teresa. Isabel Archer


ganha porque podernos encontrar nela uma semelhança não só com Dorothea
Brooke e a Diana Vernon de Scott, mas com a deusa romana Diana (a virgem
do arco), cuja lernbrança ela desperta com a mesma ceÍteza da Diana das
Encruzilhadas de Meredith, embora a pista no nome da heroína de James
seja a mais sutil. O leitor ideal de narrativas ou modernas
- antigas
deve estar,preparado para reagir à ênfase da narrativa -
com respeito ao perso-
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nagem, colocando a individualidade ou a relação "típica" à frente na medida


eÍn que a própria narrativa requer essa prioridade; mas, acima de tudo, ele O ENEEDO NA NARRATIVA
deve impregnar sua análise do personagem de uma versatilidade de reação
proporcional à infinita variedade da caracterização narrativa. Podemos não
precisar de grandes públicos para produzir grandes narrativas, mas não há O enredo pode ser definido como oçlemento dinâmico, seqüencial da
dúvida que precisamos de grandes públicos para que as narrativas possam literalura narrativa. Na medida em que o personagem, ou qualquer outro
ser compreendidas e valorizadas em grande estilo. elemento da narrativa, torna-se dinâmico, ele torna-se parte do enredo. A
arte espacial, que apresenta seus materiais simultaneamente ou numa ordem
* í. ,1.
fortuita, não tem enredo; mas uma sucessão de quadros semelhantes que
podem ser dispostos numa ordem significativa (como o Rake's Progress,
de Hogarth) começa a ter enredo porque começa a ter uma *e_x_iqfênçia çe-:
-celulóide
qüencial dinâmica.- As imagehs nüma tira de de üm filme de
cinema sáo um desenvolvimento extremo deste potencial-de-enredo na forma
espacial. Aristóteles, que tinhe o drama trágico principalmente na mentên
dizia que enredo era a alma das obras literárias miméticas. Ao discutir o
romance, E. M. Forster discordou cortesmente de Aristóteles, dando prio-
ridade ao personagem sobre o enredo. As razões disto serão analisadas
quando chegarrnos aos enredos característicos da ficção realista. Não são
muito diferentes dos rnotivos que levaram Henry James a procurar toldar a
distinçáo entre enredo e personagem no trecho transcrito acirna, no começo
do capitulo 5. Mas Aristóteles estava pensando ern termos absohrtos. Eie
ccrnceberia uma tragédia sern muito estudo de personagem (ethos), mas
uunca seÍn açáo (praxis). Ernbora a arte narrativa difira da dramática de
inuitas rnaneiras, inclusive aigumas que Aristóteles desconhecia, não ltá
dúvida de que ele estava certo ao insistir ern qlle, nurna forma de arte tem-
poral,, .o elernento dinârnico e seqüencial é o principal., E isto, a que ele
chama às vezes praxis, às vezes ntylhos, e aquilo que nós designamos conro
enredo. De tempos err ternpos forarn feitas distinções entre estória, enredo
e ação. Aqui, fazemos apenas a sirnples distinção entre estória como
termo genérico para personagem e ação na forrna narrativa, e enredo corno
terrno mais específico, visando a referir unicamente a ação, com a mínima
referência possível ao personagerx.
A narrativa épica primitiva acha-se no rneio-termo entre o mundo do
ritual e da lenda, por um lado, e o mundo da história e da ficção pelo
outro. Como tal, seus enredos acham-se num estágio interrnediário entre o
enredr: inartístico da tradição popuiar e o conscientemente artístico ou cons-
çientemente empírico do "romance" e da história. Esses enrerÍos são epí-
sódicos e apresentarn feitos (ou gestas) de un: herói nurna certa segi:ência
cronológica, começando possivelmente por seu nascimenlo e terrninarrrlo
lrrovavclurente corr sua rnorte. l§a Epopéia de Gilgames&, que é a mais
rrrrlilia dal epopóias ocirtentais irreserriada por escrito e Í.ambefit uma das
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rnais primitivâs, a sequôncia toda acha-se presente" Em Beowulf, muito l


portarnento, Homero não nos está apresentando uma narrativa tão mítica
mais recente rnas muito p<luco meltos priraitivo, os episódios acham-se tlrurnto os poetas de Gilgamesh au Beowulf. A idéia de começar uma estó-
reduzidos a dois principais, sendo que o último deles inclui a morte do ria com um mergulho in medias re.Í, que chegou a ser considerado corno
herói. Na Ílísda fiçamos reduzidos a um único episódio desenvolvido em scrrdo um reclrrso "épico" típico na literatura ocidental, não significa sim-
detaihe, sendo que nem o nascimento nem a rnorte do herói acham-se in- I plesmente para Homero nem para Horácio, que apontou o artifício
cluídos no espaço de tempo abrangido pela ação. Nestas três obras (que comecar pelo meio e depois- preencher as duas extremidades da vida dcr -
reprÊsentaÍR trôs estágios seqüenciais clo pro,cesso evolutivo ernbora náo lrcrói. Na medida em que a vida de Aquiles é a "coisa" em questão, esta
fossem cornpostas em seqüência cronoltigica), podemos reconstituir urn rrarrativa ao contrário de Gilgarnesh, Eeowulf, a Chanson de Roland ou
enorme desenvolvimento uo enredo narrativo. A epopéia começa como lil Cid termina no meio assiÍn como ali começou. As façanhas de Aqui-
urna espécie de antologia de façanhas heróicas em ordem cronológica. Sua les, ou -a vida de Aquiles, ou mesmo a morte de Aquiles não são ú temâ
unidade é a unidade simples oferecida por seu protagonista, que liga os rlcssa narrativa. O enredo da llíada focaliza um episódio na vida do herói,
eventos cronologicamente rnovendo-sÊ no trmpo de um para outro e tema- assim como sua caracterização focaliza um elemento de sua psique; e o
ticamente pelos elementos cont{nuos em seu caráter e as situações seme- lcma é o mesmo em ambos a ira. O enredo da llíadaé a estória de Aqui-
lhantes que inevitavelmente precipitarn. A epopéia quando se vai roman- o corno e o- l'rorque desta ira
- e do
trcs irando-se apaziguamento de sua
tizando, pode expandir-se nrirna infinita proliferação de façanhas heróicas, ira -- também - com seu respectivo como e porque" A narrativa terrnina corn
corno fizeram na ldade Média os çiclos arturianos e carolíngios ^ Da Chan- o funeral de Heitor, não com a rnorte de Aquiles nem a queda de Tróia;
son de Roland para üriarcdo F-urioso, podemos reconstituir uma evolução porque esse funeral representa o triunfo de Aquiles sobre seu maior anta-
desta natureza, sendo o simples enr€do linear da epopéia suplantado pelo gonista, ele próprio. Representa a purificação final de sua ira acumulada"
enredo rnultifolheado do romance. Ou então a epopéia pode expandir-se Clorifica seu menor antagonista, Heitor, mas por fuzê-\o unicarnente atra-
numa narrativa hermética, girando em torno de urna única façanha" O vés de seu sofrimento, glorifica mais a Aquiles. Com a ajuda dos deuses,
ciclo arturiano leva ao primoroso Sir Gatvairu arul the Green Knigh, e tam- vrlltou a ser ele mesmo; a narrativa alcançou o equilíbrio. A voz do çan-
bérn a uma antologia relativarnente vaga cümo a hllorte D'Arthur, de Ma- tador de estórias cessa o seu canto.
lory" Tanto OyÍandc Fwrioset corno §rr Gawsin and the Green Knight sáo Grandes esforços têm sido envidados pelos críticos pare estabelecer a
manifestaçóes dc impulso romântico para fazer uma bonita estória, mâs a "unidade" de Beowuff, o que significa a qualidade artística de sua narrativa"
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belezu de Ariosto é a beleza do adcrno e da variação elegante, ao passo Mas, a sua unidade ,como narrativa foi fixada para sempre pc,r sua própria
que a beleza do poeta de Gawqin é a do equilíbrio e da reserva. concepção. Contérn muitos dos tipos óbvios de unidade qtre qualquer nar-
A sirnplicidade }iaear da epopéia prirnitiva rativa heróica sobre um único protagonista deve conter. Entretanto, urna
- a picaresca anti-heróica.
crônica das façanhas Co
herói *.proporciona o plano trásieo pârâ a narrativa trnidade como a que encontrarnos na llíada estir alérn das aspirações do
() picaresco relata as façanhas de um anti-herói, uni vagabundo, visto atra- poeta de Beowulf. Sua tradição não havia progredido até o ponto em que
vés de seus próprios olhos e, consdqüenternente, localizado no mundo real: urn conceito tão essencialmente ficcional lhe estava disponível. E este é
rnas €m seu enredo, a narrativa picaresca é muito semelhante ao canto épico o ponto principal a ser frisado quanto ao enrerÍo da IlísC&. Nela, a ficção
de façanhas, unificado por s€u único protagonista mas não situado entre desernpenhou urn papel de grande importância, talvez tão forte quanto lhe
seu nascimento e suâ üxorte, de vez que a figr:ra picâresca nornralmente
foi possível sern projetar toda a narrativa pâra & área do "rortrlance". Nas
grandes epopéias como nos grandes rornances, ó precário o equilíbrio entre
conta a estória de sua própria vida, nãc estando er,l condições de empregar
seu próprio nascirnento e sua ffrcrte *«:mo liruites nítidos para a sua estória.
os diversos extremos da narrativa.
O enr*do episódicc picaresco é a forrna mais prirnitir.'a de enredo ernpregada
no romance, mas quil conservou sua vitalidade, florescendo até aos dias de
hoje. C) rclmance, não tendo forma própria, tomou-a emprestado a todos A medida que a forma ,r*" -**anal se subdivide em seus elemen-
os seus antecessores, e procuraremos conservar isto em mente ao analisar- Ios empíricos e ficcionais, os tipos de enredo adequados a estes elementos
mos o enredo característico das formas narrativas prirnitivas, voltando agora Ícnclem a ser refinados e desenvolvidos. Formas históricas surgem com bas-
à epopéia propriarnente dita. trnte facilidade, de vez que estão bem próximas às formas da narrativa he-
O enredo épico é" ató certo ponto, indicado pela caracterizaqão épica. rr'rica primitiva. Na narrativa histórica, o enredo é uma questão cronológica,
O enredo está inererrte no ,conceito clo protagonista, mas esse conceito não irbrangendo qualquer periodo de tempo que seu tema exija. As formas
é compreendido na nalrafrv'a Énquanto o personageni não é expresso por rrrais sirnples de narrativa histórica, aparecendo numa cultura que tem â
rneic de ação. Fodenius ver Êüx FI*mero urn distanciamento da narração I ('scrita e um conceito linear de tempo mas à qual falta uma teoria desen-
épii:a tradicional das f.açanhas dc; herói. Embora o problerna de Aquiles volvida de liistoriografia * como üa Idade Média européia ._ são crônicas
como hr:mern-d*us faça parte cie sua csrârtterizaçã*. inflxe*ciand* seu cô[n* c arrâis. A ,crônica geralmente coÍneça em qualquer postô em que o cronista
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crê que a vida tenha começado, ou que sua civilização haja sido fundada, e Ilr;rrrrr':r rrrrrr calma de espírito, estando toda a paixão gasta. Na medida
vai trabalhando na clireção do presente contínuo, onde então se funde com í nr (Ju(' t;rralrlucr narrativa deixa no leitor esta sensação, pode-se dizer que
os anais, que nada mais são do que um registro anual de acontecimentos. i:;:ra niullrliva tem um enredo.
Esse tipo de relato histórico está para a verdadeira história narrativa como
urn diário está para a verdadeira biografia ou autobiografia narrativa. Em
N. rrrtrndo antigo, a constante tendência da literatura narrativa à frag-
rrrr'rÍlrt'iio ó vivamente ilustrada pela maneira de as narrativas empíricas ie
registros dessa natureza, sentimos geralmente a falta de dois elementos 1 i)rrcL'nlrilrcln na caracterização
essenciais à arte narrativa: seletividade e movimento. Os dois são relacio-
e as ficcionais se concentrarem em aventu-
r:rs. n rncdida que a historiografia moderna foi se desenvolvendo nos
nados entre si. Na crônica, nos anais e no diário, a falta de seletividade ';i'trrlos xvl[I e XIX, uma nova fragmentação fez-se notar entre os his-
impede o movimento e inibe o crescimento de qualquer coisa que se asse- I.rirrrlorcs "científicos" e os "artísticos". O historiador artístico insiste em
melhe a um enredo. Mas o diarista hábil que sente uma espécie de enredo (r)nsclvâr cnredo e personagem em sua obra, conservando assim seu lugar
em sua vida estará, semi-inconscientemente, selecionando materiais adequa- rr;r:rr'íc narrativa. o historiador "científico" suborclina essas qualidades
dos, como o fazem Pepys e Boswell. E o mesmo se dará com a analista rilrrftrlivas à consideração impessoal de forças sociais e econômicas. A Re-
ou cronista artista. rt,1111.'7,, I;roncesa, de Carlyle. pode servir-como exemplo de uma história
Conforme observou Aristóteles, que não tinha medo de pronunciar i ottscicntcmente artística. O início da história científica é paralelo ao início
uma banalidade necessária, o enredo requer um começo, um meio- e um fim. rkr lornance como forma. A narrativa histórica artística está entre o hiper-
Na narrativa histórica, isto significa que um tema precisa ser discernido no crrrpirismo da história científica e o empirismo romantizado do romance, ten-
passado e separado dos assuntos irrelevantes com os quais só tem ligação tl. tlc dcfender-se contra a usurpação por ambos os lados. pode-se argumen-
provisória: o conflito entre a Pérsia e a Crécia, a Guerra do Peloponeso, a tirr (luc o livro de carlyle é uma obra de arte narrativa pelo menos táo boa
Marcha dos Dez Mil, a Guerra Judaica ou algo semelhante, Esses temas tlrrrrrÍo o romance de Dickens, uma Hist<íria em Duas cktçdes, que derivou
proporcionam começos, meios e fins para enredos narrativos, prontos pare rcconhecidamente de uma leitura de carlyle; e que é, em sua quaie totalida-
serem usados. E assim, da mesma forma, a vida de um só homem propor- rlc, unra obra histórica exata. Entretanto, o estudante sério cle hoje, que pre-
ciona uma fórmula nítida para construir um enredo. Que começo mais t isa concentrar-se nos fatos, não tem tempo para carlyle e o estudante menos
perfeito pode existir do que o nascimento, ou que final mais perfeito do s['rio ou mais jovem lô Dckens porque a pílula histórica tem uma camada
que a morte? Trata-se muito simplesrnente da velha fórrnula épica avan- rrrais espessa de ficção no romance. uma Hístória em Duas cidqdes ainda
çando bem para o dornínio da narrativa empirica. Esse tipo de enredo . rrr-n material compulsório do ,currículo ginasial, enquanto já quase não se
pode tarnbém ser idealizado e adaptado às neçessidades da narrativa ficcio- lc Á Revolução Francesa.
nal como na Ciropédia de Xenofonte, que é urn n'roiltrânce" rÍidâtico orga- A esta altura, nosso estudo da forma literária nos leva próximos a cer-
nizado ao longo de linhas biográficas, corno o são a maioria dos rornances í.s problemas práticos na educação, lembrando-nos que a tiadição literária
de Alexandre e as Vidas de Santos, que descendern da cornbinação fecunda i' a tradição educacional são interdependentes. os currículos pãdronizados
feita por Xenofonte da forrna biográfica cc,rn a matéria didática e do "tro- tlos colégios modernos e a difusa influência desses currículos em estabelecer
mance". ,,s preconceitos do leitor "comum" determinam, em grande parte, as obras
A velha tendência épica consistia em apresentar a vida de urn herói em tkr passado e os gêneros literários que continuam fazendo parte de nossa
termos de suas reaiizações mais heróicas, mas o biógrafo procura ns epi- trarlição literária contemporânea. Por bem ou mal, a mente acadêmica hoje
sódios que melhor revelam o caráter de seu sujeito. Nas narrativâs qiJe rrrllucncia a transmissão da literatura para a posteridade com mais força do
são ficcionais tanto em rnatéria de enredc, quanto de seu espírito, a tendên- (luc vcm fazendo desde os dias de Alexandria. são bem poucas as obras
cia é focalizar ou um único episódio na vida do trerói (a llíada, Sir Gawaín rlrrc tôm probabilidade de sobreviver por muito tempo, quando são excluí-
qnd the Green KnighÍ) ou uma única seqüência de episódios, tais corno as tllrs rlos currículos colegiais. E os próprios currículos visam cada vez mais
intermináveis interrupções que separâm arnante de arnado no "romance" ir lrrrrcza e facilidade de manuseio e não a apresentação mais proveitosa
grego, todas interi:oladas entre o momento de apaixonar-se, quando a estó- rle srra n.ratória. o aproveitamento mais eficiente das instalações e não a
ria propriarnente dita começa, e a consumação deste amor no casamento, ;rPrcscntação mais eficãz da literatura é o que leva as instituiçõés acadêmicas
onde a estória inevitavelmente termina. Todos os enredos dependem de ir fccursos como o do sistema trimestral. vemos os cursos serem cada vez
tensão e resolução. Na narrativa, os enredos rnais comuns são os biográficos rrrrris picados em nítidos segmentos históricos ou comprimidos em reduzidas
(nascirnento à rnorte) e os românticos (desejo à ,consumação) por serem r':rÍt'golias genéricas. Ai da obra literária que não é romance nem drama,
estes os correlativos mais óbvios para a tensão e a resolução que o enredo rrcrrr rorrrânlica nem vitoriana. Uma grande deficiência em nosso ensino,
requer. Urna das razóes por que as estórias têrn atraído o hornem há tanto t'sPt't'irrlnrents da literatura narrativa, decorre da ônfase que damos ao ro-
tempo reside na sua pureza. 0 leitor c'la narrativa espera poder terminar nr;rn('c, à ctrsta de Íodas as outras formas narrativas. Pelo fato de nos con-
sua leitura tendo alcançado um estaclo de equiiihrio -- algurna çoisa serne- (('nlnrrnr()s Íanto no romance, Derdemos grandes realizações em outras for_
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Ei..âsde narrâtivír. Como certas formas não se enquadram em nossos cur- :r ('\(r('v('r lrt'vilavclnrente, quando uma autobiografia conticuut além dr.t
rículos aerodinâmicos, geraçôes de estudantes se matriculam e se formam nr()ur('nÍ() r'Ín (lu('o irrrtor chega a um acordo com a sua vocaçâo, seu lnfe-
sem ;amais tomar conhecimento de que essas formas são dignas de nota. rt'r;i,'volt;r s('l)iuír Íora e sua forma passa a ser de final aberto" Â autc..
Realiz ções brilhantes como os contos curtos em prosa de Yeats e a Auto- 1r1,,1,r;rlr;r rk (i'llirri lcrnrina com sua partida para Pisa, em 1562" O Fortrsít
biogra|ía de sean o'casey definham virtualmente sem leitores ou críticos, tlt' l.y.t' (r;rrc i'rrirtohiográfico em questão de enredo e conteúdo rnas nãrt
enquanto os versos de Yeats e os dramas de o'Casey são lecionados e lidos rlt'porrto tlt'visla) lcrmina com a partida de Stephen para Paris, ern 1902.
em toda parte. Precisamos saber mais a fundo do que sabemos agora, e l.rl:rvr:r. t.rrro sllr) diferentes estas duas partidas em terrnos de enredo.
esse conhecimento precisa ser mais diftrndido, que o romance, embora possa ('t'llirri t'st:i corn (r2 anos de idade. Sua narrativa teve o final aberto desde
ser a rnaior das formas narrativas até hoje desenvolvidas, ainda é apenas surr visrro rlc l)crrs aprovando sua pessoa e sua obra, o que se deu lá pelo
uma entre muitas, antigas e modernas, que merecem nossa atenção e nossa rrrt'io rlr t:slriria. Mas a narrativa de Joyce termina depois que Stepheir
simpática.eompreensão, tanto pelo que são quanto pelo que nos podem ;rtt'itou srra vocação e está aceitando o exílio voluntário que ela impÕe.
revelar sobre a natuÍeza do próprio romance. Obscrvar esta característica das autobiografias é uma coisa; querer que
t'l:rs Íorlas tcrminem no lugar esteticamente mais satisfatório é outra. A esta
,f:**
rrllrrrr, a diferença entre a atitude do leitor para com uma clbra que eie
As principais formas de enredo da narrativa empírica que analisamos srrbe scr ficcional e uma obra que ele sabe ser real funciona de modo a ativar
até aqui são: (a) a forma histórica, baseada num aconteciÀento do pas- rlrÍclcrrtcs princípios estéticos. Quando Joyce apresenta sua autobiografia
sado com suas causas e conseqüências, arrancada de seus ambientes iriele- t'rrr lirrnra ficcional, dando ao seu personagem ,central o nome de Dedalus,
vantes e ,:asuais e isolada em forma de narrativa, ou baseada numa seqüên- cslri n«rs avisando de que poderá tomar certas liberdads poéticas cúüt os
cia afim de acontecimentos tratados desta maneira; e (b) a forma biôgrá- ,l'irlos rlc sua vida. Também se compromete a dissolver sua narrativa num
fica, tirando seu molde do nascimento, vida e morte de um indivíduo real. ponlo csteticamente satisfatório e significativo. Quando Wordsworth dá a
Até certo ponto, a forma autobiográfica é a mesma que a forma biográfica srrir r:arrativa autobiográfica o subtítulo de "o crescimento da Írente de
em termos de enredo, sendo a diferença mais óbvia entre as duas uma ques- urrr lroc[a", também está se comprometendo a apresentar uma narrativa rnol-
tão de ponto de vista. Mas, a diferença de ponto de vista está inegàvel- rl;rtla e ordenada. Mas o escritor de um autobiografia fatual não tem a
mente ligada a uma diferença de enredo. A resolução de uma forma auto- nrurinrál obrigação de moldar sua história. Sean O'Casey dá-nos um brilhau-
biográfica não pode vir da morte do protagonista. Este equilíbrio, que é íc rclrato de si mesmo acercando-se de sua vocação nos dois priineirus vu-
lrrrrrcs do que é hoje uma obra em seis volumes. Depois disso, sua narra-
9 mqis simples de alcançar na arte narrativa, está bloqueado ao autobiógra-
fo. Ele precisa encontrar uma outra espécie de estase sobre a qual descan- liva passa a ser mais memória do que autobiografia. Seu interesse volta-
sar sua narrativa ou abandoná-la em suspenso, "a ser continuada". Isto sc pârit fora e ele enche páginas com brilhantes retratos de figuras tais corno
significa a necessidade de encontrar outra ordem de resoluçáo para uma Ycals, Lady Gregory e AE. Os primeiros dois volumes são urn exercício
narrativa autobiográfica concluir seu enredo com um final- estéticamente tlc unra forma autobiográfica bastante densa e controlada. Depois que a
satisfatório. Na prática, isto não tem sido freqüente. A maioria dos auto- vocação do jovem Sean se acha garantida e assumida, a forma se afrouxa
bióg::afos continua além de seus pontos de conclusão naturais, visando aque- e abrc. Mas é sempre narrativa e sempre arte. É arte não só porque seus
le âxtase inatingível da morte do narrador. Mas na medida em que a auto- relratos de figuras como Lady Gregory e AE beiram a caricatura, rilas dada
biografia é uma história da vida interior do autor, seu ponto natural de a stra seletividade de detalhe, dada a maneira corno ele molda seus capítulos
çonctrusão não é sua morte mas o ponto em que o aútor chega a um l)ara uma conclusão incisiva que lembra o pano que cai ao fim de um aLsl
ac0rdo consigo mesmo, dá-se conta de sua natureza, assume sua vocaçáo. lcatral e devido ao estilo de sua prosa, que varia desde a gíria das sarjetas
A narrativa propriamente dita de sto. Agostinho termina com sua conver- atc! trechos rebuscados mas sempre artísticos. E é narrativa devido ao plann
são ao final do Livro vIII das confissões, embora os frutos dessa conver- cron«rlirgico que invariavelmente proporciona uma estrutura frouxa de epi-
são na forma de discussáo teológica e comentário bíblico encham mais di- s«'tclios e resoluções para fortalecer, através de articulação narra-
versos livros" A narrativa de Rousseau também atinge seu clímax e sua re- elementos frouxos e-jornalísticos da obra. 0 enredo, na parte rtra
liva, os-,crises
solução no clitavo livro, quando ele encontra no Mercure de France a notí- rrarraliva de O'Casey que é típica da autobiografia em escala integral, ó o
tll cia clo prêmio concedido pela Academia de Dijon. Conta-nos ele que "no sirrtples enredo cronológico do gênero histórico da narrativa empírica. Mas
mornento em que li isto, vi outro universo e tornei-me outro homem", () cnrcclo da parte inicial desta autobiografia baseia-se nurn padrão l.radi-
ill acrescentando mais tarde, "todo o resto de minha vida e de minhas des- ciorral que lhe proporciona urna articulação narrativa muito mais firrrr:.
8reça§ .seguiram-se inevitavelmente como resultado daquele momento de I.rsla cstória cristã de redenção e expiação, que Sto. Agostinho viu corno o
I-q*!qlu". A segunda parte das Confissões prossegue aie ao final de um prrrlrão refletido em sua própria história, foi secularizado para dar forma
I?.'livrçr, sendo que Rousseau planejou umíterceiia parte que não chegou i história do artista ou escritor. Este padrão havia sido delineado no breve
l*
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O ENREDO NA NARRATIVA 153
relato arrtobiográfico de Luciano de como tornar-se um homem <le letras,
mas a demonstração de Agostinho de como padrão e introspecção podiam terísticas tradicionais por completo, os enredos ficcionais têm uma maneira
ser combinados numa narrativa em escala natural foi o que iealmenie esta- cle estabelecer-se como mitos, assim como os mitos têm uma maneira de
beleceu a forma. um escritor como Joyce, conhecedor dã natureza da tra- se tornarem ficcionalizados. Embora já tenhamos tocado neste assunto ante-
dição autobiográfica, tinha condições de explorar mais completamente as riorrnente, convém provavelmente esclarecer aqui o que entendemos por
várias facetas desta tradição do que costuma ser o caso. Fazendo com quc mito. Podernos fazer isto apontando as maneiras pelas quais o nosso em-
a verdadeira tradição de stephen seja a do "padre da eterna imaginaçãà,,, prego desse termo difere da influente definição dada por Northrop Frye em
ele explora toda a tradição da alegoria cristã iom a qual AgostinÀ'o e sta. Ánatomy of Criticism (Anato'mia da Crítica). "Em termos de narrativa",
Teresa haviam vestido a forma e toda a tradição da maioridade do artista, diz trrye, "mito é a imitação de ações perto ou nos limites concebíveis do
que tem seus antecedentes igualmente veneráveis em l-uciano e cellini. desejo humano"" No mito, os personagens são deuses que "possue,n belas
Assim, J,oyce pode apresentar uma narrativa que dá a impressão de uma mulheres, lutam uns contra os outros com força prodigiosa, confortam e
coleção de episódios vagamente cronológica mas que na verdàde é tão formal ajudam o homem ou então observam suas desgraças do alto de sua liber-
e padronizada quanto a liturgia católica. Em Ulisses e Finnegans Wake, ilade imortal" (p. 136). Esta definição de mito conduz a uma certa nitidez
Joyce partiu para novos padrões e grandes experimentos narràtivos. Em na cliscussão mas comete certa violência contra os fatos da história narra-
Retrato, satisfez-se em realizar mais do que jamais se realizara anteriormen- tiva. Os deuses das Metamorloses de Ovídio respondem a esta descrição,
te numa estrutura tradicional. nras, e os denses das narrativas mitológicas mais primitivas? A destruição
A relação entre narrativa padronizada e meramente cronológica que de Ásgard paira pesadamente sobre os deuses da mitologia nórdica. Assim
estivemos analisando como um aspecto de esboço autobiográfico serve para c()nl() os homens, eles devem aceitar seu destino. Mitos como os de Attis,
ilustrar a situação geral da narrativa histórica. A história científica tende Atlônis, Osíris e Tammuz, clue figuram com tanto destaque em The Golden
a afastar-se dos padrões da narrativa artisti,ca, o mesmo se aplicando à bio- llottgh, não aprcscnta os deuses como estando envolvidos em ações "nos
grafia científica. A impossibilidade da autobiografia tornar-se científica orr pcrlo rlos linrilcs concebívcis do descjo humano". Estes mitos não sáo
combina corn a não-disponibilidade da morte como forma de resolução unir';rrrrcrrlc projcçfics clc aspiraçCrcs humanas. Sho também projeções do
satisfatória para conservar a autobiografia dentro dos limites da arte narra- nrt'rlrr lrrrrrr:rrro. () pscrrrlo-rrri(o. c()nro () conto de Cupidct e Psique, de Apu-
tiva. As histórias e biografias que aspiram a uma condição artística tendern Icio. csl;i rrrris lrlr\xinrrl à dcfiniçlio dc lrryc do que muitas narrativas Íeal-
a afastar-se da narratiya meramente cronológica na direção de padrões rnais lrrclrlc rrrílictrs.
satisfatórios esteticamente. Isto significâ, com efeito, que a narrativa his- Ao corrÍriirio da dcfiniçiro cle Frye, que realça as qualidades sobrena-
tórica tomará emprestados meios de articulação rníti,cos ou ficçionais na a definiçãro que estivemos empregando realça suas qualida-
lr.rrais clo nrito,
medida em que está disposta a sacrificar a ciência em prol da arte. O histo- rlcs tradicionais. Estivemos usando os termos "rnito" e "narrativa tradicio-
l
riador ou biógrafo dotado de mentalidade artística, mesmo antes de escre- nal" corr.ro sinônimos, porque mltthos em grego tinha exatamente este sig-
ver uma palavra, procurará padrões esteticamente satisfatórios nas pessoas nificado" É possível porém, refinar ainda mais o nosso significado e dis-
e acontecimentos que considera temas potenciais para sua obra. {inguir muito nitidamente pelo menos três espécies distintas de narrativa tra-
E todo historiador ou biógrafo que espera atingir um público além clicional primitiva, que surgem na maioria das culturas, e das quais às vezes
l
de seus colegas profissionais é, até certo ponto, dotado de mentalidade cvolve aquilo que conhecemos por poesia épica. Bronislaw Malinowski,
artística. No mundo antigo, esse público genérico era só o que havia e cm seu estudo da sociedade primitiva contemporânea na Nova Guiné, des-
todas as narrativas históricas e biográficas eram hábeis. Com o advento dos cobriu que os próprios nativos faziam distinção entre trôs desses tipos de
públicos cativos profissionais e acadêmicos, a necessidade de cativar dimi- conto: o kukwanebu ou conto popular imaginativo, destil,o.,.' riivertir uma
nuiu, permitindo ao livro-texto crescer e o inirnigo ferrenho de Carlyle, o platéia; o libwogo ou lenda, um conto quase-histórico i{e ',.'.tlcirnentos
Dryasdust, receber sua justa recompensa. O historiador que consegue aliar cromuns ou fantásticos, considerados história verdadeira pela pkitóia; e o
ciência com arte com os menores sacrifícios de ambas as partes é sem liliu ov mito sacro, que é uma expressão e justificativa para a teologia, ma-
dtivida o que mais agrada a Clio, Musa da história. Mas, como seu pa- neiras e moralidades primitivas. Podemos ver as manqiras pelas quais a
rente mais jovem, o romance, a narrativa histórica é um composto instável, narrativa épica representa um amálgama de gêneros de narração primitivos
sempre ameaçando ceder mais para uma ou outra das pressões ficcionais e como estes, e podemos ver como a distinção entre a lenda, consideracla ver-
empíricas opostas que a envolvem continuamente. r'laileira, e o conto popular, considerado como diversão, antecipa a tendência
Assim como o esboço histórico está propenso a ser menos hábil do que rla narrativa pós-épica para separar-se em ramos ficcionais e empíricos.
o esboço da epopéia tradicional, o esforço fic,cional está propenso a ser Ncsta cultura primitiva, entretanto, todos os três tipos de literatura são
mais hábil. Mas, a linha entre esboço ficcional e tradicional ou mítico nem lradicionais; as estórias são passadas de um "proprietário" reconhecido para
sempre é fá,c1l de delinear; e como a arte narrativa nunca perde suas carac- scrr herdeiro. Numa cultura como essa, as estórias recentemente inventadas
dcorem ser apenas urn pouco menos raras do que a narrativa histórica exata.
O ENREDO NA NARRATWA 155
154 ROBERT SCHOLES/ROBERT KELLOGG

De torÍas as formas de narrativa em qualquer cultura, a que mais se atém culação de materiais literários. O ritual da fertilidade baseia'se antes num
à tradição é naturalmente o mito sacro; e nesses mitos, encontramos as ,or..ito cíclico de tempo do que num conceito linear ou progressivo. Nas
revelaçÕes maig profundas de condições culturais e antigas atitudes e cren-
sociedades primitivas, ó tempo é encarado antes que_ tudo como uma ma'
neira de aiviair o ano indiviãual em lugar de um acúmulo de anos sucessi-
ças hurrnanas. vos. O ano é dividido pelos equinócios e solstícios qu€ marcam a evolução
No começo, o mito sacro abre seu caminho sem sofrer o desafio de anual do sol através dôs céus e servem como indicadores de variaçôes sa-
rnêtodos racionais ou empíricos para responder pelos fenômenos naturais.
zonâis na chuva, temperatura e outros fenômenos naturais associados ao
Freucupa-se pelo sobrenatural e, dadas as suas características sacras, é es-
ci,clo da vida vegetativa. em diferentes partes, do mundo, estes p-ontos de-
pecialmente r{gid,: e tradicional. Como corporificação da verdade religiosa,
signados astronúicamente no ciclo anual podem referir'se a condições va-
ele não deve ser adulterado nem ornamentado. Confrontado pela crítica
riãdas de clima, mas inevitavelmente chegam a ser vi§tos como estágios
racionalista, como acontoceu na Grécia, o mito tende a perder o caráter
marcantes no combate anual entre as forças da fertilidade e da esterilidade,
especial que lhe é dado pela rigidez e preocupação com o sobrenatural. Seus
da vida e da morte e finalmente do bem e do mal. Os rituais ligados a este
elementos scbrenaturais definham ou apresentam-se conscientemente ficcio-
conflito assumem uma variedade de formas. Mas, virtualrnente, todas as
nais ou atregóricos. Suas estórias tradicionais e rigidamente preservadas em-
formas do ritual destinam-Se a expressar um ou mais dos quatro principais
elementos do Padrão sazonal. oi elementos são, na terminologia de Gas'
prestâÍn-se à alteração e adaptação; tornam-se racionalizadas e humanizadas
clu fantasticamente exageradas. Um vez que uma cultura perca sua ino- ter, ritos de "mortificação, purificação, avigoramento e júbilo". Estes ritos
cência com respeito ao mito, não poderá nunca mais reayê-la. Mas o mito,
muitas vezes encgntram expressão em mitos saCros que apresentam em
ao abrir mão de suas características especiais, só morre para renascer. Como puit" ou no todo este padrãõ em forma de narrativa cósmica, traduzindo o
a uarrativa rnítica é a expressão, em forma de estória, de preocupações, te- iitual mágico anual num formato infinito e transcendental'
rnores e aspirações hurnanos profundarnente enraigados, os enredos dos
eúütrls rníticos são urn armazém de correlativos narrativos chaves para Para nossa análise de enredo na literatura narrativa, dois aspectos do ri-
a psique humana em forma de estória certos de alcançar- um público e tual de fertilidade e dos mitos sacÍos a ele relácionados são de importância
de coniovê-lo profundamente. Embora- os ataques racionalistas contra o crucial. Ambos têm a ver com os processos de desenvolvimento que afetam
mitc eomo falsidade tenham a tendência de invalidá-lo historicamente, são o mito. um tem a ver com a mudança que o mito sofre à rnedida que o
impotentes çontra sua potência psicológica. conceito de tempo prevalecente numa óultúra passa de uma visão
primitiva,
Embnra os fatos se encontrem encobertos pela névoa da pré-história, cíclica, para um conceito linear mais sofisticado' O outro tem a ver corn
poelernos especular que o rnito sacro é a forma mais antiga de narrativa. as mudangas que o mito sofre quando é separado d-o ritual, ficando sujeito
mudanças devern ser vistas
Antes que o relato de estórias houvesse alcançado um grau de sofisticação a exigências meramente literáriai. Ambas ãstas
o principal padrão for'
"';uficiente para fazer da diversão ou o registro histórico sua alçada, deve em comparação com aquilo a que podemos chamar
ter estado a serviço da teologia primitiva. Os mitos sacros acham-se arrai- mal do iitrut O, fertilidade. Nesta seqüência mortificação,..purificação,
gados na eelebração ritual dos mais vitais interesses da raça humana. A -
temos um processo cíclico' O júbilo podg- t:t
avigoramento e júbilo
função do nrito, conforme sugeriu convincentemente Theodore H. Gaster, -
considerado como o alto do círculo, que é alcançado quando
a fertilidade
consiste e.m projetar "as normas do ritual para o plano de situações ideais, quando a preo'
está garantida, mas que leva inevitavelmente à mortificaçáo
que r{epois são levados a objetivar e reproduzir". O mito sacro é um elo que a fertilidade não
.rrpu[ao passa de um ano findo para o próximo, em
entre rnágica e religião. Não é uma "explicação" de fenômenos naturais em qualquer
mas urn polimento de rituais que, estes sim, evoluíram da adoração de fenô-
,"'u.hu larantida. Mas é rr*.i"lo qué pode ser rompido
menosi r.ratnrais" Estes rituais se desenvolveram como representações imi- ponto. drituat tende a ser associado a um ou dois destes quatro elementos
tativas dos processos cíclicos da natureza; destinadas a proporcionar estí- ào padrao sazonal, ,rrm o mito pode lidar com um, dois ou com o ciclo
nrulo mágico il esses processos. Embora haja muitos tipos de mito sacro, todo. Tanto o mito na forma nãrrativa como o drama mítico surgem de
o nlais importante é aquele que está relacionado aos rituais que comemo- rituais como estes. Mas, devido às inerentes diferenças iiterárias entre nar'
rarn o ciclo anual da vida vegetativa. rativa e drama, os matê iais sacros chegam a ser tratados diferentemente
nas duas formas. Ambas são sujeitas a u.t a certa porçáo daquilo a
que
Este tipo cle ritual é tão importante para o conceito de enredo na pejorativas) contaminação de outras
narrativa que precisarnos fazer um momento de pausa para analisá-lo. Nos- ;;d;;; charnar (sem implicaçóes
so üorlhecirnento destes assuntos é um desenvolvimento mais ou menos re- formas literárias.
ceints fio sstudo iiterário e a compreensão qne temos deles está longe de O mito narrativo, semelhante em sua forma ao conto popular üarra-
ser eompleta; mas Sir James Frazer e os antropólogos e eruditos literários que tivo e à lenda, e separado do ritual que em.ii é dramático
derarn prosseguimento a sua obra deram-nos uma idéia muito clara e po- necessariamente riais suscetível a eita espécie de "conta-
em sua forma, é "o.nplãt"*.rte
úeros* ctra natureza de tal ritual e do tipo de papel que desempenha na arti- minação"; e a literatura narrativa adquire assim seu ntaior desenvolvimento
r56 ROBERT SCHOLES/ROBERT KELLOGG
O ENREDO NA NARRATIVA 157

na literatura antiga na forma da epopéia que é, conforme vimos insistindo,


deste conflito com os conceitos de tempo em desenvolvimento é estabeleci-
um amálgarna de mito, Ienda e conto popular. Mas o drama, em sua forma,
está rnuiÍo próximo ao ritual e sempre êsteve propenso a surgir como uma
da por Gaster com tanta nitidez que o melhor que temos a fazer é trans-
forma^sob auspícios teológicos, seja-na Grécia-arfiga o, ,u Éuropa medie- crevê-lo diretamente:
yu!. conseqüentemente, era inevitável _que o dramã retivesse -uis do pa- A luta de deus (Baal) com o dragão (Yam) uma contro-
drão ritualíssimo do que a narrativa. Oi rituais qr" pu....* ter tido mais parte da que loi represenlada no rítual para fazer- entrar o novo
profunda influência sobre o drama grego e, conseqüentemente, sobre a arrendamento de vida é um constante nos mitos sazonais
tura
cul-
em todo o mundo. Além - disto, tema
.oçidental, são quatro tipos especificados po. F. M. cornford em The
à medida que o conceiÍo de tempo
origins of Attic comedy (Ãs_ori§ens da comédía Ática): rj A Execuçao se desenvolve do cíclico para o progressívo, esta luta chega a ser
da Morte,2) A Batalha de verão e Inverno, 3) o Rei Íou"- e velho,'4) projetada ao mesmo tempo atrâs na cosmogonia e à frente nq
Morte.e Ressurreição. Gilbert Murray e cornfórd ligaram o-ãru.u trágico escatologia; poís aquilo que no pensnmento mais primitivo era
e cômico na Grécia a estes mesmos tipos rituais. A-diferença entre drama considerado o prelimínar necesstirio Dara cada arrendqme.nto su-
trágico e cômico começa com uma diierença na atitude puà .o- os ma- cessivo de vida chega agora a ser considerado o preliminar neces-
teriais sacros, associada a-uma,diferença na ênfase. A medida que a evo- sário para toda a série e igualmente pura instituir uma nova rela-
lução do ritual vai trazendo o drama câd,u vrr. rnais para o terreno de con- ção ao Íinal da ordem presente. Na linguagem familiar da cosmo-
siderações estéticas, o_ impulso estético para a nitidàz de forma (que gonia e do apocalipse judeu-cristtio., o Deus que emuenhou e
no
drama domina o impulso de adornar e elàborar) reforça a tendência óriginal venceu Leviatã no princípio dos diss voltará lorçosamente a fa-
do- drama Írágico e cômico para con,centrar-se nos aspectos opostos" do zê-lo ao linal deles para anunciar a Nova Era.
ciclo herdados do ritual. A tràgédia tende a especializar-se em màrtificação Toda a jornada do homem no mito sacro judeu-cristão cai entre o
e purificação, enquanto a comédia tende a espêcializar-se em avigoru*"nto Gênesis e o Ápocalípse, primeiro e último livros da Bíblia; entre o nasci-
e. júbilo. A tragédia esquiliana muitas vezes tomava a forma dé trilogias mento e aquela morte que constitui o renascer; entre a vida da perfeição
cíclicas que compreendiam boa parte do padrão sazonal completo, áas scrn morte no Jardim do Éden seguida pela expulsão e sujeição à morte e
os dramaturgos posteriores tendiam a afastar-se dos ciclos trágicoi para dra- a absolvição da morte na Cidade de Deus, a Nova Jerusalém. Com o con-
mas individuais que se concentravam no lado temível ao pãarao sazonal, ceito progressivo de tempo que instrui o mito sacro judaico e cristão, o
desenvolvendo um esboço de enredo típico baseado numà seqüência dé ciclo anual do ritual de fertilidade torna-se uma espiral linear com um
acontecimentos levando à morte ou expulsão da sociedade. Na comédia é começo e um fim: a morte-que-é-nascimento no fim da espiral sendo a
realçado o lado alegre do padrão sazonal, sendo que seus enredos típicos contraparte do nascimento-que-é-morte que lhe dá início.
levam ao casamento, celebiação e reunião ou recônciliação com a socie- O padrão narrativo completo do mito sacro que estivemos discutindo
dade' Estas formulações, originalmente dramáticas, inevitávelmente influen- envolve tanto a decadência da perfeição, que corresponde à mortificação e
craram a lrteratura narratil,a numa série de maneiras: a tragédia afetando purificação no ritual quanto a ascensão para um novo estado ideal, que
diretamente o enredo na história narrativa; a comédia afetanão diretamente corresponde ao avigoramento e ao júbilo do ritual. O padrão de declínio,
o enredo no romance; e por fim o romance, valendo-se tanto das formula- ou queda, corresponde ao padrão trágico no drama; o padrão de ascensão,
ções trágicas quanto das cômicas, muitas vezes simultaneamente. ou escalada, corresponde ao padrão cômico no drama. Mas podemos, até
certo ponto, distinguir entre as formas de tragédia e comédia da maneira
. Esta .evolução e separação de enredos cômicos e trágicos é a mudança
mais significativa sofrida peios materiais míticos quando-separados da teó_ como evoluíram no drama grego e o amplo padrão de ascensão-queda do
trogia ritual. A outra mito narrativo. Tanto a comédia como a tragédia na Grécia evoluíram
-udurç* nos materiais mítiôos qr. e àe grande im-
portância pàrâ, a literatura íarrativa tem a ver com mudançà distanciando-se da mitologia sacra na direção de uma espécie de perfeição
à do mito literária de suas formas. Esta evolução envolvia nm deslocamento do padrão
visto no contexto de um conceito cíclico do tempo para o mito visto
contra ritualístico por outros tipos de padrão, à medida que a estrutura de refe-
um conceito linear ou progressivo. Esta mudan(a no conceito humano do
tempo é um aspecto dáquele movimento univerial para uma compreensão rência tornoll-se menos cósmica e mais humana. A medida que a tragédia
racional e a comédia foram caminhando para sua realizaçáo estética, a tragédia en-
.do cosmo que tênde a fazer-se sentir na maioria das curturas mas
que e vrrtualmente controu sua área de interesse localizada no tempo passado, uma era mais
a característica identificadora de nossa cultura ociden- primitiva e heróica, encontrando os materiais específicos de sua estória cris-
tal' ponto çrucial a ser frisado ao discutir a relação deste conceito tem-
poral-o.om o mito e a literatura foi frisado por Gaster talizados na literatura narrativa tal como a epopéia homérica, que em si
ao discutir o signifi- incluiu no amálgama épico elementos de mito sacro deslocado. O fato de o
cado da Iuta entre Baar e yam no 'rurorur canaanita. Nesta ruta,
Baai re,presenta as forças que devem -itotriunfar para que o ciclo anual seja
dramaturgo trágico separar o material mais mítico de suas origens narrati-
renovado e a fertilidade dá natur-eza garantida por àutro vas não é uma coincidência mas uma inevitabilidade. Na Grécia, a tra-
ano. A relaçáo gódia veio a ser dominada por uma gama relativamente estreita de possibi-
lt ROBERT SCHOTES/ROBERT KELI.OGG
ls8 O ENREDO NA NARRATIVA 159

Iidades de enredo. Conforme alega Cornford, "o trágico tinha de tomar uma maior desenvolvimento ao fim da Idade Média e na Renascença. Alego-
estória tradicional ("mito") com seus personagens quase-históricos e, em- risias como Dante e Spenser edificam suas narrativas deliberadamente sobre
bora pudesse modificar detalhes e até mesmo inventar peÍsonagens novos, o pluro bíblico, e m"riro sto. Agostinho apresenta a história de §ua própria
ele náo podia atrterar os incidentes mais importantes". A medida que a viàa na forma de grande arquétipo cristão. A Bíblia, como grande e invio-
comédia ev6luiu no drama grego, ela veio a concentrar-se mais nos mate- Iável compêndio dó mito sacro cristão, é um armazem PaLa arti.stas nalra'
riais contemporâneos do que nos do passado, ordenando-os tematicamente tivos que desejam reforçar suas estórias com materiais tradicionalmente sig-
na estrutura vaga herdada do ritual. Enquanto a tragédia tem um mythos, nificativos ou que desejam tomar emprestados padrões para a articulaçâo
a coméclia tem um logos ou idéia informante. O domínio do enredo herdado de suas narrativas.
na tragédia forçou os dramaturgos trágicos a excepcionais exercícios de ca- os conceitos do Jardim do Éden e da Nova Jerusalém influenciam a
racterização criativa. Como o enredo permanecia quase que inalterável e literatura ocidental de maneiras mais sutis do que padrões de enredo. O
era a "alma" dorninante do drama trágico, os dramaturgos trágicos viam-se conceito da quedo, a visão do homem como sendo inferior aos seus an-
forçados a criar personagens individuais de extraordinária intensidade para cestrais que viviam na Era de Ouro, influenciou o tom das narrativAs desde
criár a rn«rtivação que o enredo exigia mas não fornocia, necessariamente. as Metamorfoses, Ce Ovídio, até O Pioneersl, de Willa Cather. E igualmen-
Os dramaturgoi cômicos, por outro lado, voltaram-se para uma caracteri- te, o conceiio da Nova Jerusalém, a visão do homem avançando na direção
zaçãt quase-realista, baseada em figuras copiadas da vida contemporânea. da Cidade de Deus, teve uma enorme influência especialmente na forma
Coinfoid cliscrimipa no progresso da cornédia "um culso constante do Mis- secularizada da narrativa utópica. A possibilidade de a humanidade atin'
tério para o Mimo", no qual a caracterização tende a mudar de tipos gir a sociedade ideal na terra é pré-cristá, alcançando - uma p-ersonificação
profisiionais (o soldado Gabolas e o Médico Erudito) para tipos baseados
ãlaborada na República de Platãó; mas no mundo cristão, ela inevitavel-
numa elaborada classificação de acordo com idade, sexo e disposição. A
"perfeição" da forma cômica consiste na combinação de personagens ge- mente entra .* óhoq.r" ou se funde com a Cidade de Deus cristã. Conce-
ber a cidade ideal cómo possivelmente realizável na terra, da Nova Jerusa-
nàraiizados típicos da vida contemporânea com uma fórmula de enredo
flexível baseada na intriga e conduzindo ao matrimônio. Esta é a forma lém construída, como diise Blake, "na terra verde e agradável da Ingla'
terta,,, é heresia e no entanto é fundamental a todo pensamento liberal e
assumida pela Nova Comédia na Grécia e todos seus descendentes. A "per-
prográssista. Uma visão diferente desta questão crucial é uma das grandes
feição" da forma trágica consiste na descoberta ou adaptaçáo de.persona-
gem e enredos específicos ao padrão muito rígido de orgulho, mácula, queda da hostilidade entre a Igreja e o marxismo. Na narrativa didática,
as ficções a que hoje chamamos utópicas aceitam essa possibilidade
"uuru, progres-
e reconhecimento que Aristóteles discerniu e instituiu como o padrão trá- que ficções
gico ideal' ,iui (WAa"i Two" de B. F. Skinner, por exemplo) as
f! a rejeitam, Toda
passo.
!r * {. u qr. t o1. chamamos anti-utópicas QeAl, ae Orwell) a
iaeia ae irojetar uma narrativã para o futuro é terrivelmente ousada e é
O "rontance", com seu desejo de agradar a um público, assume o uma das últimas possibilidades naÍÍatiYas a ser descoberta e explorada na
literatura ocidentaf. A jornada no espaço, que seja, tem
padrão alegre do drama cômico, dá-lhe a produção ampla, cinemascópica -no por mais fantástica
jornada
iao tacil de conseguir na narrativa e substitui a riqueza de retórica e a des- antecedentes qr" r."*ootu- a Lucianà, mínimo; m§-? à frente
crição luxuriante pela tolice do drama cômico. O desejo romântico de ador- ,à t.*po é réalmente um desenvolvimento do século XIx. A possibilidade
nar, de ernbelezar e de induzir um agradável suspense resulta na supressão jí .**t" desde que o conceito progressivo do tempo se expandiu e a Nova
dos eiementos puramente engraçados da comédia, que não estão realmente ierusalém foi estabelecida como divisa futura da existência humana, para
no esboço mas no tratamento do mesmo. Em Tom lones, podemos ver combinar com a divisa passada da criação. Mas, até muito recentemente,
Fielding colocando os elementos engraçados de volta no enredo do roman- a literatura narrativa nãõ tinha condições de fazer grande a-oisa com esse
ce, onde naturalrnente se enquadram muito bem. E podemos discernir em fuiuro. A grande proliferação da narrativa de ficção científica em nossos
L,ongo, ancestral literário de Fielding, uma disposição semelhante, embora tempos devã-se à a-bertura deste território virgem; .e a luta .PgI tua ocupa-
este não a tenha levado tão longe, para trazer o romance de volta à terra çáo'*oiu", escritores geralmente interessados no "romance" ficcional, bem
cômica de onde surgiu originalmente. ôo*o or interessados ná ficçao didática. Pelo menos três formas encontra-
Se, no romance puro, podemos ver um aspecto refinado e deslocado ram seu território verdadeirá e natural. Assim como o mito e a história
do ritual da fertilidade, podemos encontrar na ficção didática ou fábula ;;;i.;; ao passado eque a mimese ao presente, 9 nyro,"romance" na verda-
urna busca dos materiais do mito sacro do passado. O padrão bíblico de ãe pertence aó futur;, está absolutamente deiligado de qualquer possí-
ascensão e queda, expulsão do Éden e ascensão à Nova Jerusalém, morte vel'referôncia à verdade do fato ou à verdade da sensação' Este fragmento
e ressurreiçãô é, por si só, conforme sugerimos, uma projeção do velho Oa evotuçao narrativa, tão recentemente alcalçado, deveria dar-nos uma
cicio sazonãl para um esquema de tempo progressivo. A narrativa didática certa sensação do grande, contínuo e inexorável proces.so -em. que a- arte
no ocidente tem sido principalmente uma conservação cristã, atingindo seu narrativa se acha envolvida. As escolas e os profiÀsionais das letras demo-
T

160 ROBERT SCHOLES/ROBERT KELLOGG O ENREDO NA NARRÁ,TIVA 161

raram para chegar a um acordo com o conceito cla ficção futurista, mas ,rm indivíduo, mas um representante de uma cleformidade social, sendo em
inevitavelmente chegarão a adaptar-se. O "romance" do fufuro é uma i:onseqüência corretamente apresentado de maneira cômica e exposto a um
literatura muito nossa e precisamos começar a entendê-la. Seus enredos riciículo baseado em normas sociais. A qualidade problemática que marca
podem ser derivados dos antigos enredos do "romance" grego de separação, r)s grandes romaflces sérios é, em considerável parte, resultado dá insistên-
perigo e reunião; ou do simples e antigo plano de viagem cia do romancista em inserir personagens indiviclualizados em situações tipi-
- a narraÍiva
de esÍrada o_u, jornada; ou das várias fórmulas utópicaÀ e anti-utópicas já cas, ou -- dizendo de ontra maneira personagens trágicos em iituaç8es
abordadas. Mas suas possibilidades de variação de aventuras e eipressáo cômicas. Poclemos ver isto acontecendo - no drama antei de acontecer no
de idéais são limitadas apenas pelas limitações da mente humana em con- romance. um dos grandes dons de Shakespeare como criador de persona-
cebê-las. Para a crítica, porém, o futuro é fechado e precisamos voltar gens é sua capacidade de encher de individualidade o molde do tipo-. Como
agora a analisar um dos padrões de enredo mais freqüentemente empregados os grandes romancistas que tanto aprenderam dele, shakespeare é um desses
no "romance". escritores que se projetam em seus personagens, vendo as coisas do ponto
A jornada para uma meta distante (como na Eneida) e a volta ao lar de vista deles. A crítica que Rhymer faz dele baseia-se em seu insucesso
(como na Odisséia) e a busca, que envolve a viagem, a realização e o re- cm construir da velha maneira retórica, de fora, de acordo com o tipo. Todos
gresso (como na Argoniiutica) sáo enredos tipicos do rornance heróico nós sabemos que Rhymer enganou-se em seu julgamento sobre a caracteri-
situado entre o épico primitivo e o romance erótico. As tradicionais narra- zação de shakespeare, porém estamos menos cientes de que a observação
tivas românticas da Renascença, desde orlqndo Furioso no início até o em que baseou este julgamento era sagaz. shakespeare não cria seus per-
Grand cyrus no final, tendem a combinar os materiais heróicos e eróticos so,nagens pelo tipo, da velha maneira retórica. O personagem Shylock do
num equilíbrio mais perfeito do que o "romance" grego, que realça o erótico, Mert'ador de Veneza é o exemplo de um tipo socia[ (o judeu ávido, usurá-
ou a epopéia literária antiga, que realça o heróico. Mas de Apolônio de rio), individualizado além do ponto apropriado para merecer tratamento
Rodes paÍa a frente, a combinação de busca e amor na narrativa havia cômico. A poesia de algumas das falas de Shylock ("Acaso judeu não tem
sido estabelecida e estava disponivel. o ideal cavalheiresco e o ideal do olhos?") tende a impelir este personagem do setor cômico para o problemá-
amor palaciano, ambos tão importantes mais para o fim da Idade Média, tico, senão trágico. Da mesma forma, no Mísantrozo, Môfiàre apresentava
ofereciam o alicerce intelectual perfeito paÍa a combinação de "rornance" um tipo social com mais individualidade do que uma figura vulgàr, o ..ho-
heróico e erótico. Aliado ao mito sacro cristão, com suás tendências espi- mem misantrópico" de um mimo ou personagem, deveria por certo possuir.
ritualizantes, este tipo de ambiente intelectual produziu "romances" huma- Rousseau poderia levar Alceste da peça de Moliàre a sérià demáis, até;
nísticos como a Gerusslemme LiberqÍa de Tasso e a Faerie Queene de e shylock, no século XIX, poderia ser interpretado como uma- figura
spenser. * outro exagero; mas estes exageros eram possíveis somente devido trágica
à qua-
+ ,r. ,( Iidade problemática derivada da presença die "sapos" individuais ou trãgi-
c-os em "jardins" sociais ou cômicos. Que são iufien sorel, Raskolnikõv,
Discutimos as formas histórica, mítica e ficcional de enredo. Resta Emma Bovary e Ana Karenina senão indivíduos num mundo mimético
agora analisar as formas de enredo geralmente adotadas pela narrativa mi- interpretando o padrão de seus destinos míticos?
mética. com respeito a enredo, o mimético é a antítese do mítico. Isto pocle
ser visto claramente no drama antigo, que desenvolveu o rnimo, uma fórma
Os romancistas que criaram estes personagens não estavam tomando
emprestado o velho padrão trágico só para a articulação de seus enredos;
de representação dramática muito diferente tanto da tragédia como da Nova
comédia na construção de seu enredo. cornford deicreve-o da seguinte rnuitas vezes eles conseguiram riscos e complexos efeitos irônicos dada a
incongruência do padrão mítico no mundo do século XIX. A queixa de
maneira: "conforme era praticado pelos escritores alexandrinos o rnimo é
George Eliot de que para Dorothea Brooke não existia vida tãó heróica
completamente destituído de ação; representa personagens numa situação
quanto a de Sta. Teresa é um eco mais suave da queixa de Stendhal sobre
que não muda. o interesse acha-se inteiramente centralizado no estudo do ,] a banalidade do século XIX e o ódio de Flaubert pela burguesia que pare-
personagem, sendo que nenhuma preocupação com assuntos de maior im-
portância impede o extremo realismo". É claro que o mimo antigo, como cia tipificar a sua epoca. Por volta do século XIX, o decoro de formula-
o caráter teofrastiano, interessava-se por tipos de personagens genéricos e ções trágicas e cômicas separadas dera lugar a um novo e poderoso impulso
não por indivíduos isolados. A principal lição de Mím,ese, de Auerbach para encontrar um veiculo comum que viesse unir o realismo neoclássico do
a parte mais inabalável e valiosa desta excelente obra - tipo social ao realismo romântico da individualidade isolada. A grande
é que as grandes
narrativas realistas combinam o interesse trágico pelo -indivíduo com o in- virtude do romance residia em encontrar um rnodo de combinar o interesse
teresse cômico pela sociedade, para produzir urna representação da realida-
trágico peio indivíduo com o interesse cômico pela sociedade. Não nos
deixemos iludir pelo fato de os romancistas chamarem a este impulso "rea-
de que é um reflexo justo das condições reais e ao mesmo tempo demonstra
um interesse trágico e problemático pelo indivíduo, independente de seu |ismo", pensando haverern alcançado a maneira definitiva de representar a
"realidade". o que tinham era simplesmente um novo decoro, mais fácil
lugar na hierarquia social. A figura típica do caráter teõfrastiano não é
162 ROBERT SCHOLESiROBERT KELLOGG O ENREDO NA NÂRRATIVA 163

de alcançar na narrativa do que no drama, ele próprio passível de altera- plr'lrrrrrr'nlc rlt'sirrlcrcssante a um leitor adulto. Em algurnas estórias infantis
ção à medida que foram ficando disponíveis novas maneiras de conceber l;r.,:,r'u:,, rlcss;r inlinidade de inanidade. Mas em geral, os artistas narra-
o indivíduo e a sociedade. As novas ciências da psicologia e sociologia Irvri:,:,r'rrlrrirnr ()s perigos da pureza em sua arte e recuaram diante dela,
tiveram seu efeito inevitável sobre a representação artística do indivÍduo e r ()r,!( r('nlrnt('nlt' orr niro. As narrativas que os hornens mais admiraram são
da sociedade, proporcionando novos esquemas de significado e novas ma- .ri1rr,'l:r:; tlrrc conrlrirrirram da maneira rnais poderosa e copiosa os diverso§
neiras para os artistas narrativos usarem na elaboração de seus enredos; lrr,., tl;r lr:rrrrr:r rrirn-irliva: a epopéia e o roÍnance, A epopeia, dominada por
mas disputavam também com a arte pelo controle da representação da rea- '.rr,r lr,'rrrrrt;rr rrrilicac tradicional, contudo inclui materiais ficcionais, his-
lidade, afastando a arte tanto narrativa quanto dramática definitivamente tr'rrrr,., t' rrrirri'li,r.s enr seu vigoroso amálgama. O romance, dominado por
das formulações essencialmente mimóticas ou realistas. ,Antes de surgirem ',ilir rr('s(('nl(' c()ncLrPçho realista do indivíduo numa sociedade verídica,
os últimos ramos da ciência, a literatura controiava o presente; assim como , r,rrtrrrl. virlt'rr sc tlc padrões míticos, históricos e românticos para sua arti-

controlava o passado antes de surgir a historiografia científica. No mundo ,,l:r(r.rr) rr;ur:rlivr. As grandes narrativas históricas e os grandes romances
antigo, a história era tão nitidamente uma arte porque a historiografia não ;rl,-1,,'v, lrurrlli'rrr cornhinaram muitos fios
',,:;rtl.s () r'orrrarrcc vale-se da alegoriados da trama narrativa ern seus
se havia ainda tornado bastante cientifica para a história científica disputar rrr r", t.r didática ou da caracterização
com a história artistica. Da mesma forma, no século XIX o romance con- rrrrrrrl'trr;r Irrrrr t'rrr.irilrcccr-se. A história vale-se do enredo mítico ou d-a
trolava o campo da atual realidade social e psicológica, enquanto as ciên- rr'r'rrlr!!:r pirra clrlivar e comover seu público. Mito, mimese,
'.rrr:lrrlicrr
cias da sociedade e a psique nasciam lenta e laboriosamente. Agora, porém, 1il.,1('rr It, toilrilil( (. c l':ihtrlil, loclos frrnci<tnam de maneira a se enaltecefem
essas ciências estão fortes e ativas, forçando os artistas narrativos a abra- rrrrrllrirrlr('nl(', l('(()ntlx'nslnltlo o arlisla narrativo cuja mente e arte são vigo-
çá-las e escrever uma ficção que acomode a verdade científica da psicologia rír"i):i il;rorrlo rlt'clt'Potlcr c:orrtcr c conlrolar a mais rica combinação de
e sociologia para serem "realistas", ou entáo abrir mão inteiramente do lr,,:,r,rlrrlrrlrrtlt.r ntrr rrtl ivrrs.
"realismo", como o discerniram Proust e Joyce, a fim de encontrar um novo A', p.r,rilrtltrlrrtlcs prrlu o Ittlttrrl cla liÍcratrtra narrativa residem nas no-
regime sob o qual a arte narrativa poderá prosperar. Mas, estamos nos ante- vrr! (.rnl)urrt;t'rt's rpur Irotlcriio scr tlcsctrvolviclas cntre o romance, hoje clara-
cipando. A ascensão da ficção realista começa pelo reconhecimento de lrr'rrlr r.\i,lirlrlrr r ()nr() l()urrtt, c ltlttttil5 tttais arrtigas c()mo o "romance" e a
tipos sociais, intelectuais e emocionais e sua apresentação com finalidades Irr',lrjr rrr ( ',rrrlrrr rrrc cxPlrr'orr llcrrri I,ircillon cnt Thc Lif e ol Forms in Art
cômicas e satíricas. 1.1 l'r,l,r tlrtt l:tttrttrr,r ttrt ..lrlt),lorltrs its forrrras artísticas tendem a seguir um
O reflorescimento dos caracteres teofrastianos no século XVII é um prrrlr:ro clclir'o t;rrc porlc scl rlcsc:rilrl crn quatro estágios: primitivo, clássico,
prelúdio, talvez indispensável, para a ascensão de romancistas como Fiel- rrrrrnt'irislir c lrirrroco. () rorrrancc alcançou sua forma clássica no período de
ãing, interessados principalmente na representação de tipos genéricos de '-li'rrtllrirl ir'l'olsloi; scgrriu runro ao ntaneirismo com os eduardianos, quan-
personagens. Fielding podia empregar com enorme sucesso esses persona- rlo t'st'rilorcs conro (illsworthy, Bennett e Proust alongaram a forma na
gens generalizados em seu gênero de ficçáo, que era dominada pelo enredo, ,lrrcç:ro tlc lrnranccs em série como as que estão sendo hoje escritas por
mas a caracterizaçáo definitiva e mimética requer maior desprendimento Srrow c I'owcll «ru as intermináveis narrativas das revistas em quadrinhos ou
do enredo do que Fielding se permitiu em Tom lones. A forma definitiva rlirs rrovclas radiofônicas ou de televisão; seguiu rumo ao barroco com Joyce,
do enredo mirnético é a "fatia de vida", virtualmente um "não-enredo". l;lrrlkrrcr c Bcckett, que torceram e forçaram a norma realista até o ponto
Era comum os romancistas naturalistas visarem este tipo de forma, mas na tlt: r'rrprlura. Depois do barroco, segundo Focillon, vem a volta ao primiti
verdade sua realização leva a narrativa ao terreno do sociólogo que, com visrrro, r;uc podemos encontrar no recuo contemporâneo à narração picaresca.
seu gravador de fita, é capaz de produzir um livro como Os Filhos de San- Mlrs as l«rrmas literárias não são precisamente as mesmas das artes plásticas
chez poderoso, víüdo e mais fiel aos fatos da vida do que pode esperar e,rrrro l'irsillon tinha em mente e a volta do romance para o barroco significa
- narrativa inventada.
qualquer Todas as formas narrativas, quando levadas rrrrr letorno ao romance narrativo, assim como um renovado interesse pelo
às últimas conseqüências e purgadas de "impurezas", desaparecem nas orlas rrrilrl primitivo.
externas do mundo da arte ou do mundo real. A narrativa histórica passa
a ser científica e sem sangue. A narrativa mimética torna-se sociológica ou
psicológica, transformando-se num relatório médico. A narrativa didática O rornance, forma domir"U" ,rt *nu*o mimético, sempre tomou os
torna-se exortativa ou metafísica. O "romance", a única forma narrativa rnateriais de seus enredos emprestados a outras formas. Podemos Yer uma
inelutavelmente artística, uma vez que é produto do impulso contador-de- nrtrdança gradativa nas origens dos enredos de romance desde os primórdios
estórias na sua forma mais pura, diminuiu de interesse à medida que sua tlir forma no século XVII até a época atual. Dom Quixote, o maior proge-
.i perfeição o leva longe demais do mundo de idéias ou do mundo real. Uma nilor da forma é, em seu enredo, um ajuste entre o padrão romântico da
estória pura, sem idéias ou imitação de realidade para ligáJa a interesses
:
I lrrrsca e o padrão vida-à-morte da biografia histórica. Lazarillo de Tormes,
il
l, e experiências humanos seria, caso fosse realizável essa possibilidade, com- o progenitor menos importante, mais antigo mas nem por isso menos in-
ll ..À ?dlÀr..I tlbeillnofr
1\

164 ROBERT SCHOLES/ROBERT KELLOGG () lr.NRtr.DO NA l"Jdl{RATIVÀ r 6,\,

fluente do romance, exibe em sua forma picaresca os elementos da simples ,rl,r',1.u ,('(l:r lr)unulir lr'rigica que conduzia à catástrofe violenta. Bennett re-
narrativa de estrada ou viagem e o padião cronológico da autobiografia ( r,r.u ;r unr ;,ir(lt;ro lrislririctt baseado em cronologia, à medida que a-s velha§
histórica. Estas duas- combinações (biógrafia-busca e ãutobiografia-vifiem) ,rlrrrtl.rrl,,, r'rrlrt' rrrrlo c lristtiria se reafirmavam. A visão atr-iár'ia que Bennett
dominam o avanço do romance. Git Blas e seus imitadores iepresentam o l, nr (l:l lrrrrrr;rrrrrl;rtle volll a introduzir, atraves de pura perspectiyâ. cronotró-
padlãg autobiografia-viagem; Tom Jones e seus sucessores, o padrão bio- l,r,,r, llu ,r,,|)r'Llo tlclrrrrrirrisla na arte narrativA, COm 0 temp0 e nãO O deStinO
grafia-busca. É claro que ambas correm juntas. smollett em Roclerick Ran- r ur,ur, l;u ;r t;rl:isllolc. llennett procura criar reações trágicas e cômicas às
dom, por exemplo, enxerta casualmente nm enredo romântico de amor-busca r ril,r', rlr Solrlrirr c ('orrstance baseando-se não nos padrões míticos de tragé-
em seu padrão essencialmente picaresco. Mas de um modo geral, os ro- ,lr;r ,' , onr(!(lrir rlirri nrntl plano cronológico que conduz o leitor atraves dç
mances do século xvIII se atôm às formulações de enredo picãresco, histó- l',rlr,l;r:, r r'lrrorlrrçocs clc avigoramento e mortificação.
rico-biográfico e erótico. o que eles evitam, mas ao que os romancistas rea- ( irrrr o rrtlvcnto c1o século XX, a construção de enredos na narrâtiva
Iistas do século XIX muitas vezes recorrem em suâs maiores obras, é a
l);lr,r.(iu rr st'r'rlornirtada, como nunca dantes, pelo tempo. Primeircl as velhâs
fórmula do enredo trágico conduzindo a morte violenta e/ou expulsáo da lr'rrrrrrrlrs r'r'orrolr'rgicas dos diversos gêneros de narrativa histórica foram em-
sociedade. Tentativas neste sentido no século xvIII, como a Clar{ssa de Ri-
I'r,'1,;rrlos nr:ris quc nllnca na narrativa não-histórica; depois,começou-se a de-
chardson e Manon Lescaut do Abbé Prévost, sobressaem em virtude de sua ',( n\/()lv('r' crrrcclos que se baseavarn nLlm novo arranjo do tempo de modo
singularidade. Mas os romances que consideramos representativos do gran- (lri( ir rcsolrrçao passou a ser não tanto uma estase de ação conciuída como
--
{9 ngrigdo da ficção realista no continente europeu The Recl anã the rrrrr;r t':;trsc rlc iluminação, quando as peças faltantes do quebra-cabeça tem-
Blork, Madame Bovary, crime and Ruishment, Ánna Karenina, Fathers Ir.r:ur() t'slrrvarn finalmente todas no lugar e portanto o quadro se apresentava
and sons geralmente refletem uma cuidadosa adesão (proposital ou não) t rr1;11r11'f 1v. l:;n Á Crônica dos Fo'rsyte, Galsworthy revivificou o velho plano
à fórmula -trágica antiga. Estes grandes romances realistás geram sua força , r,,rroltilr,ico cla saga familiar islandesa, continuando a estória dos Forsyte
pela tensão que exploram entre suas características miméticis e míticas. ós p,r \r;'uirrs gclações. E,ste tipo de narrativa tende para o final aberto. Nãc
personagens são versões altamente individualizadas de tipos sociais reconhe- Ir(.( r\:r scr resolvido nunca, podendo continuar indefinidarrente como as
civeis e os padrões pelos quais se movimentam são tecidos com o mythos rrrl:r'; rlos pcrsonagens em revistas em quadrinhos ou noYelas radiofônicas e
do drama trágico. As ações são heróicas mas os personagens em si são-nos ,1,'ltlL'vislio. D. H. Lawrence usou qualquer coisa semelhante a este plano
revelados mais intimamente do que as criaturas monolíticãs que associamos ,'t r () .lr(()-lris e Mulheres Ap'aixonadas e seus elementos ainda aparecenr
às narrativas heróicas; são mais penetráveis até do que os pôrsonagens cui- r-nr r()nriurcos em série como Strangers And Brothers de C. P. Snow e Mwsic
dadosamente esculpidos do drama euripideano. ,,1 I'iurc, rle Anthony Powell. O movimentc em direção ao enredo cronoló-
Quando, no romance, a narrativa mimética se propõe a expandir e dàl ltir'o rrir narrativa rnoderna faz parte do movimento geral para dar ênfase ao
senvolver seu tratamento das vidas interiores dos personagens, o persona- I)r'r's()nagcm na narrativa. o vago enredo cronológico libera a caractefizaçáo
gem mais trágico passa a ser aquele capaz dos sentimentos mais intensos. A tlrrs e xigôncias dramáticas, permitindo que seja desenvolvida sem ser prensada
tragédia moderna é sempre tragédia de intensidade. Quando a tragédia de pclos prcparativos necessários para um final mítico. Uma fornra de romarice
intensidade começou a ser tomada pela alternativa mimética do velho padrão ,;irrrplcs c rclativamente primitivo como o picaresco conservou sua vitalidade
mítico que exigia violência de catástrofe, os romancistas realistas começaram ;rrsllrnrcrrtc porque seu padrão episódico permite um desenYolvinlento iivre *
a criar um caso teórico para aquilo que julgavam ser um tipo de trágédia ,'r,rrr;rlcto do personagem, sem interferôncia dos reouisitos de uma trarna cle
novo e mais realista. As velhas formulações pareciam muito míticas, dãma- t'rrlctkr clensa. A alegação de E. M. Forster de que, não obstante Aristóteles,
siado teatrais talvez, e os romancistas trabalharam no sentido de alcançar () I)('r'rionagem deve ter precedência sobre o enredo é típica de um romanciste
uma construção de enredo que se adaptasse ao novo conceito realista da tra- rnotlclnr) orientado mimeticamente.
gédia. No trecho de Mid,cllentarcÀ transcrito à página 137 George o clcspertar da psicologia moderna, que em si é um fenômeno do final
Eliot redefinia a tragédia de uma maneira mais mimética. Em The Old' rkr se.crrkr XIX, marcâ o apogeu da narrativa mimética. Proporciona tarnbérn
l4ives' Tale (Conto das Velhas Esposas), Arnold Bennett seguia-lhe a ct.r'lus variações novas para o velho padrão de enredo autobiográfico da
pista, numa tentativa para definir a tragédia de modo a fazer dela o rft'scolrcr.ta da verdadeira vocação. O Retrato de Joyce é escrito no velho
novo campo da narrativa mimética. Os naturalistas encontraram na se- l pirrlriro clc Luçiano e Sto. Agostinho, mas já o romance autobiográfico de
leção natural cle Darwin as qualidades deterministas de que necessita- L;rwr"encc, l"Llhos e Amantes, não é. Podemos encontrar em Filhos e Arnan'
vam para um novo elemento fatalista na literatura que tomasse o lugai /r'.r unl 1-rouco de saga familiar, mas o vercladeiro enredo do romarce é a
das Erínias que governavam as vidas dos homens sob a velha dispensa- i t'sltiriir da tentativa de Paul Morel para lesolver os problemas criados por seu
ção mítica. Podemos ver num romancista tão tipicamente eduardiano lr.llrcionantcnto especiai Com Sua mãe. I-lm resumo do enredo deSÍe romance
como Arnold Bennett uma tentativa para apresentar o novo tipo de tra- ,'
potk'r'ia scl encluadraclo nos termos padrão de psicologia clínica sem Çausar
gédia comum numa estrutura de enredo que em si era mais cornum. Oo 'rrrrilir violôncia à estórja. Depois que as teorias de Freud se tornaram ampla-
,
ló6 ROtsER.T §Cí.IOLESIROBER.T KELLOGG O ENRED-) NA NARRÀTIVÀ 167

rnente difundidas, o novo enredo psicológico passou a ser uma fórmula qua- ,1'ç, (lc .lames, como exemplo de "padrão". Mas, num sentido tnais amplo,
se tão corriqueira quanto o velho enredo do "romance" grego. A clescobãrta () r()nrÍurcc cle Proust é rítmico e musical pela maneira como as situaçôes s*
do eg-o, a cura do Írauma ou ferida da psique, oferçcia aãs ártistas narrativos rt'pcltrrn como variações sobre um terna, pela maneira como os personâgens
um novo gônero de formulação ,côrnica atribuível antes à psicologia do que sc rg,rupar.n, separam e reagrupam como numa dança àquilo a que Anthony
ao mito. A destruiçãrc do indivídno devido ao trauma em lugar dí hamariio, l'owcll clcnurninou A Música do Tempo. As principais obras de Proust, Fo-
oferecia um novo esquema para a tragédia. A busca ritualístico-romântica wt'll c l)rrrrell todas aprovam os enredos tradicionais do gênero autobiográfi-
do Graal é metamorfoseada. na ficção nroderna na busca psicológica pela co r crorroltigi,c«r, porérn combinando-o com atenção mas séria a temas e va-
identidade. Alguns dos problemas aprçsentados pelo novo iriteressJpeta ca- rirçi)cs. Onclc Galsworthy e Bennett deram a maior parte de sua dedicação
racterização psicoiógica foram analisados no capltuk: -5. Ivlas seu efeito ge- ir() l('rnll(), cstcs escritores deram a sua à música, tendo enccxrtrado nessa arte
ral tem sido o de expulsar as velhas fórmulas românticas da ficção sérla, rrrrr plirrcípirl clue lhes permite lidar com o tempo de uma maneira mais cria-
impelindc-as para o terreno daquilo a que Graham Greene denominou ..en- Irvrr. c'orrro o tcr.r'rp«r é tratado na música, alcançando beleza de forma sem
tretenimenÍo". Essa divisào er)tre r()mances e entretenimentçs é caracteristi- :;rt riÍieul a caracterização à resolução do enredo tradicionai.
ca da atual tendência do rornance à fragmentação.
l'orr'nr, rlc urr nroclo geral, de todos os aspectos da nan'ativa, o enredc
. Personagem e enredo, mais uma vez, tendem à separação. As obras l):u('(e ruio sti o rrrais essen,çial mas tambem o menos variá.vel, no que diz
sérias, nas quais é salientado o empírico, ficam com os personagens; as estó- rt'spt'ilo ir()ri scuri csboços gerais. Exigimos maior variedad.e de incidente do
rias de aventura ficam com os enredos. Romancistas áe Fielcling a Tolstoi tlrrt'v;rrit'rlirrlc tlt'crrreclo cnr nossa ficção. Quandr: deitamos máo em algum
têm resistido a esta tendência, mas os romancistas modernos estào achando (r)nt{) l)i(rr'('s(() r)l()(lcnl(), (lucr seja narrado por F'elix Kruli ou Augie March,
Çada vez mais difícil resistir-lhes. No (//.ysses de Joyce, a narrativa acha-se rlt'urrr rrrotlo tr,r'r'rrl subcrrros o (lue esperar dele. Sabemos qual é o nosso
solta, pendurada em suâ estrutura homérica emprestada, mas seu interesse tlr':;lrrro, r'rrrlrorit rrro srriblnrrls cspeciÍicanretrte com que Çenas irernos depa-
na verdacle é pelc personagem, não pelo enredo. É muito mais retrato do riu n()s rro cirrrrirrlro. As tlrraliclaclcs cspecíficas do incidente admitern tanta
que Retrato ckt Áríisto _- mais estático, menos dinâmico; mais mimético, \rrulr(,;r,rluirnlo irs tlrrirlirllrilcs csPccíÍicas da caracterização, e é neste setor
nlenos rnítica. A grande narrativa de Froust aceita o çonvencional com seu ,lr1 (:,1)( run():.i (lu(' o irulol rrplirltrc stra originalidade na elaboração d,r çnre-
enrecio autobiográfico da descoberta de si mesmo e aceitação de vocação, rl,, ( ) r'rrri'tlo. n() s('nlr(l() rruris lrrlo, scrii sentpre ntyth<ts e será sempre tra-
mas também ela se interessa mais pelo personagem do que pelo enredo.- A rtri iolirl. l'rrrr urrur irulonr r-:onto .lltttc Attstcn tlm enredo, neste sentido mais
fim de proporcionar alguma espécie de tensão e resolução paia as narrativas l;rlo, porlcri scr srrlicicrrlc parit ttlcltls os sctts romances. Mas a palavra "en-
quÊ §e cOmprometem tão pouco com formas de enredo tradicionais, o ro- rctlo" lr":rrr ccllos scrrlirl()s nlclrorcs tluc ainda nãto analisamos e que precisam
nrancista moderno procurou tomar técnicas de organizaçáo emprestadas à s('r' l()lllcn()s cilarlos, iurlÇs cluc l)ossamos concluir.
pintura o à rnúsica. chamar uma obra narrativa de "retrato" ê avisar ao
I)orlc-st'tlizcl rlue lotlo clcnrento separável de uma naffativa tem seu
leitor que não conte com muita ação, que procure a resolução na conclu-
sãc de um padrão artístico e não na estase alcançada nas vidas dos perso- lrlirplio enlt:(lo, unl l)ctltlcn() sistema de tensão e resolução todo seu, que
r'orrlrihrri c()llr o clr.rc tcrlr para o sistema geral. Não só cada episódio ou
llagens. Em sua primeira versão precoce do Retrakt, Joyce definia ràtrato irrtitlcrrlr:, nras cutla parirgrafo e cada frase têm seu começo, meio e fim.
iiterádo como uma tentativa para âpresentar o passado não em "seu aspecto
de rnonurnento de ferro" rilas como uma "sucessão fluida de presentes". as-
li rrcslirs l)orlr.rcnas árcas, e não nas grandes que estivemos estudando, que â
contluisla inrliviclual pode ser devidamente avaliada. Aqui, podemos dis-
sim sendo, um retrato deve ser "não um papel identificativà, mas antes a
tinlirril o rrrcstrc do escritor assalariado ou artífice. ,Aqui cada ohra torna-se
curva de uma emoção""
urrrir coisa cnr si e nãcl parte de alguma complexa trarlição genérica. Pelo re-
-R"omancistas rnais antigos gostavam de terminar uma narrativa con- srrrrro tlc scr.r cnredo, muitas vezes não conseguimos distinguir uma grande
tando-nos r, que aconteceu a todo mundo "depois". Podemos encontrar isto olrla rlc «rulra, Íraca. Aquilo a que reagimos nas maiores narrativas é a
tanto çn: Ealzac e George Eiiot como em Dickens. um escritor .moderno tlrrllirlirtlc da mente que nos é transmitida pela liuguagem da câracterização,
como L.awrence Durrel, porérl, pode terminar seu Quaríeío de Alexandria rrrolivlrçiro, descrição e do comentário a inteligência e sensibilidade com
cr:m "pontos de traLralho" que indicam maneiras pelas quais a narrativa po- I (lu('()s cventos ficcionais são relacionados - ao mundo perceptível ou âo
deria expandir-se para a frente e para trás no tempo, iÁdicando exatamente rrrrrrrrlo cle idéias: a precisão e introspecção cio retrato que o artista faz do
como e arÍificial o equiiíbrio que parecemos haver alcançado ao final do rrrurrtlo inrpudente em que vivemos ou a beleza e o idealismo do mundo dou-
qirâI:to vclume. o serviço da mírsica como da pintura tem sido solicitado lrrlo criado na ficção. A qualidade da mente (conforme expressrl na lingua-
por artistas narrativos à procura de novas variedldes de tensão e resolução gcrrr cla câra'cterização, motivação, descriçáo e do comentário), e não o enre-
para suplantar as culminações tradicionais das estórias. E. M. Forster esco- rlo. i' a alma cla narrativa. O enredo é apenas o esqueleto indispensável que,
lheu a frase musical recorrente em Proust como exempro do "ritmo', na rccobcrlo pelas carnes de personagem e incidente, proporciona o barro ne-
ficção, exatamente ç-omo citou o formato da arnpulheta de os Embaixado- ccsslirio que pode receber o sopro de vida.

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