Você está na página 1de 73

UNIDADE I.

ATO DO CONHECIMENTO: RETROSPECTO HISTÓRICO,


NATUREZA, ORIGEM E POSSIBILIDADE

1. Introdução

O ser humano pode conhecer a realidade que o circunda, mas não é seu autor e
nem o logos que rege tudo o que existe. O homem tem uma atitude espanto ontológico
pela natureza que, embora inferior a ele, apresenta-se como o resultado concreto de uma
ação amorosa e sábia, colocada a serviço da humanidade.
A teoria do conhecimento é um dos principais ramos de estudo da filosofia. Os
filósofos pré-socráticos iniciaram um movimento de tentativa de compreensão racional
do mundo, ou seja, de afastamento do pensamento mitológico e de aproximação do
conhecimento intelectual e foram seguidos por Platão, que dá início à busca pela teoria
do conhecimento por meio do pensamento metafísico.
Depois dele, vieram Aristóteles, as correntes tardias da filosofia grega, os padres
da Igreja, os pensadores medievais até chegarmos na Idade Moderna, em que a teoria do
conhecimento sofreu uma guinada em seus pressupostos, e, atualmente, essa disciplina
ainda tem muito a oferecer num mundo em que o irracionalismo parece ter tomado
conta do modo humano de conhecer e viver.
Como conhecemos? Esse conhecimento captado pelos sentidos é fiável? É o
objeto que conhecemos ou ele é formado em nossa mente? São questões que envolvem
a natureza e as condições de possibilidade do conhecimento humano e que serão
abordadas nessa unidade, no afã de desvendar o modo como conhecemos, como é
possível ao ser humano conhecer as coisas e a maneira pela qual podemos atingir o
conhecimento verdadeiro da realidade.

2. Breve história da teoria do conhecimento

A filosofia clássica e medieval, especialmente de Aristóteles e sua doutrina


sobre a intencionalidade do conhecimento, defende que o conhecido é realidade, embora

1
seja sempre possível ir mais fundo e nunca se possa dizer que temos exaurido o
conhecimento de um dado objeto.
Esta abordagem faz da filosofia uma ciência sempre aberta, na qual o progresso
sempre tem espaço, sem a necessidade de tomar as contribuições dos filósofos
anteriores como falsas ou inúteis e, além de possibilitar seu crescimento teórico, coloca
o homem acima da natureza, como um ser capaz de ocupar, contemplativamente, um
posto de observação a partir do qual a realidade inteira apresenta-se como um
espetáculo com sentido e que, portanto, remete a um Supremo Ser ou para uma
Inteligência Ordenadora e Criativa.
O ser humano pode conhecer a realidade, mas não é seu autor e nem o logos que
rege tudo o que existe. O homem tem uma atitude de respeito e admiração (espanto
ontológico) pela natureza que, embora inferior a ele, apresenta-se como o resultado
concreto de uma ação amorosa e sábia, colocada a serviço da vida humana.
Sem nunca constituir um "sistema", visto que o conhecimento absoluto afigura-
nos impossível, o pensamento clássico e medieval foi capaz de chegar a uma concepção
de realidade capaz de dar sentido à existência humana. O pensamento moderno, por
outro lado, nascido do nominalismo do final da Idade Média, começou por descartar a
racionalidade do real.
Segundo sua gênese nominalista, tudo o que é criado é puramente contingente,
obra de um Deus arbitrário que não está sujeito, no ato de criar, a qualquer tipo de razão
ou mesmo às leis naturais que deu ao homem. A contingência radical do real é, entre
outras razões, o que levou Descartes a duvidar dos raciocínios e mesmo das intuições
mais óbvias e a substituir a verdade pela certeza.
Com esta abordagem, uma filosofia ou teoria do conhecimento como a clássica
tornava-se inviável. Agora, a experiência passa a ser a única fonte de conhecimento
verdadeiro, pois só testando empiricamente as teorias e explicações podemos, nesta
abordagem moderna, ter certeza de que não erramos e isso importa mais do que a
própria verdade que, se existisse, nunca seria definitiva, porque Deus, por ser
onipotente, sempre pode fazer as coisas de outro modo.
A preocupação do pensamento moderno, assim, gira em torno da certeza e, mais
especificamente, da certeza prática, isto é, de uma certeza teórica (lei física ou química)
tensionada para uma aplicação prática (construção de uma ponte ou elaboração de uma
vacina).

2
Deste modo, o conhecimento sempre paira pendente de uma racionalidade
instrumental, já que fica à disposição dos interesses que cada filósofo decide, como
efeito de sua vontade ou de seu desejo, realizar, sempre sob o rótulo de um projeto
científico cujo sucesso torne os homens “senhores e possuidores da natureza”.
O resultado desta racionalidade está em fazer da razão humana um mero
instrumento da vontade, ou seja, é viciá-la em suas raízes ou colocá-la a serviço de uma
meta previamente fixada. A missão do pensamento, agora, será a de justificar estes
interesses práticos, bem como a de buscar os meios para torná-los realidade. Uma vez
instrumentalizada a razão, ela deixa de ser a luz que deveria guiar o agir moral humano
ou a contemplação telística da realidade para se tornar um meio de controlar a natureza
ou de se fazer impor aos outros.
Em Kant, o ideal de autonomia e autocontrole torna-se a meta que deve justificar
a filosofia. Todo seu pensamento baseia-se numa meta previamente traçada, qual seja, a
de fazer do homem um ser autônomo, independente e autossuficiente. Um sujeito que
baste a si mesmo no afã de conhecer e dominar a natureza e agir de acordo com os
ditames de sua própria razão.
A tarefa crítica kantiana é, na verdade, destinada a atingir esse objetivo. O
espanto ontológico com que nasceu a filosofia é substituído, no pensamento moderno,
pelo autodomínio. Em vez de o homem viver de acordo com a realidade, trata-se, agora,
numa espécie de virada de mesa, de fazer a realidade acomodar nossos desejos e
vontades.
A filosofia – como "sistema" no qual tudo tem uma razão de ser e no qual nada
escapa ao controle racional – atinge sua expressão máxima em Hegel e seu Espírito
Absoluto. A única maneira de conseguir isso era fazer com que o objeto, confundido
com a realidade, fosse a mesma coisa com o sujeito.
Nesta ótica, o domínio do homem sobre a natureza e sobre si mesmo acaba
fechando as portas do porvir, pois nada de novo pode acontecer, se tudo já estiver
pensado ou racionalizado. É por isso que todo sistema implica numa contradição. Na
medida em que se explica tudo, deixa-se tudo por explicar: esclarecemos o passado, que
nada representa de novo, e negamos o futuro, o campo da liberdade e da tão almejada
autonomia.
Podemos afirmar que o pensamento moderno encontra sua melhor expressão em
Nietzsche. Ele, de forma muito perspicaz e coerente, não quer teorias, mas fatos. Não
busca justificativas, mas vontade de poder. Todavia, para tanto, Nietzsche tem que

3
negar a verdade e o bem e ficar apenas com o ser, porque só assim o homem torna-se
verdadeiramente autônomo, isto é, quando ele torna-se niilista.
O pensamento de Nietzsche é a prova de que se a verdade não é transcendente,
ela não existe. E se a verdade não existe, um ser racional, como o homem, seria o mais
absurdo dos seres, porque nem mesmo poderia saber que é racional, dedução que, mais
tarde, será melhor explorada por Sartre no existencialismo.

3. Conhecimento como ato perfeito

Se temos em conta que o ser como verdadeiro é um dos sentidos do ser,


podemos, na linha de Aristóteles (2015:240), definir o conhecimento como “o ato que
possui intencionalmente o objeto conhecido1”. Ele distingue os dois sentidos do ato num
texto fundamental para compreender a sua natureza: “dado que as atividades que têm
um fim nenhuma delas é um fim em si mesma, mas, antes, tendem a um fim, isto é, o
que possui o fim é atividade. Por exemplo, vê-se ao mesmo tempo que foi visto, pensa-
se ao mesmo tempo que foi pensado, ao passo que se ignora e aprendeu, está-se doente e
foi curado. Assim, chamo aqueles de ato e, estes, de movimento2”.
Aristóteles distingue aqui entre os movimentos transitivos e as ações imanentes.
O movimento – como ato imperfeito – é caracterizado por dois atributos: primeiro,
requer tempo, pois é sucessivo no espaço (“se ignora e aprendeu”) e, segundo, o
movimento nunca tem o fim – o fim é extrínseco à própria ação –, pois, quando este é
alcançado, nesse exato momento, o movimento cessa.
Por exemplo, quando viajamos em direção a um lugar, demoramos um certo
tempo para chegar ao destino e, uma vez alcançado, nosso movimento cessa. Dito de
outra forma, é o viajante que chega e não o movimento de viajar, o qual “cessa de ser”
e, por isso, não tem sentido continuarmos a viagem, porque o movimento de viajar foi
apenas o meio para chegarmos ao nosso destino.
Com o fenômeno do conhecimento dá-se o oposto. Em primeiro lugar, ele não
requer tempo entre o se tentar pensar e o pensar propriamente dito (“pensa-se ao mesmo
tempo que foi pensado”). Em segundo lugar, o conhecimento sempre tem o fim – o fim

1
Metafísica, IX, 6, 1048b 18-35.
2
Idem.

4
é intrínseco ao próprio ato de conhecer –, pois não é possível ver nada – ver nada é não
ver – nem pensar nada – não pensar nada é não pensar. Seria o mesmo que construir
“para construir”, salvo pelo fato de que ninguém constrói por construir, mas para se
fazer uma casa ou um edifício, o fim extrínseco do movimento de construir.
Na perspectiva da definição aristotélica, em terceiro lugar, conhecer é também
possuir, algo que resta implícito quando “vê-se ao mesmo tempo que foi visto, pensa-se
ao mesmo tempo que foi pensado”. Nestes exemplos, o ato de ver ou de pensar é
expresso no pretérito perfeito, porque não é possível que não tenha seu fim, aquilo que é
seu objeto ou, expresso de outra maneira, não pode haver ato sem um objeto, nenhum
objeto sem um ato. Então, todo conhecer sempre recai sobre um objeto.
Na mesma definição, em quarto lugar, também mencionamos ser esta posse
intencional. Trata-se de um termo-chave para compreendermos o conhecimento como
ato perfeito.
A primeira nota da intencionalidade está no fato de que conhecer é sempre
conhecer algo, isto é, o conhecimento não é referente a si mesmo, mas ao conhecido. O
conhecido nunca é, diretamente, o ato de conhecer a si mesmo, nem o objeto, pois isso
nada mais é do que o próprio ato de conhecer exercido.
No conhecimento, o intencional não é o ato – que é possessivo –, mas o objeto.
Assim que o objeto é possuído, algo é conhecido: aquilo a que o objeto se refere ou se
remete. Na tradição aristotélico-tomista, este fato expressa-se ao se dizer que a espécie
inteligível – a ideia – é um signo formal, isto é, uma pura significação sem significante,
assunto que aprofundaremos na segunda parte desta obra, que dispõe sobre
hermenêutica ou teoria da linguagem.
Por ora, um signo corresponde a uma realidade que remete a outra, como, por
exemplo, uma palavra, um retrato ou um sinal de trânsito. Conhecer um signo é
conhecer sua significação, não se deter no significante, porque, neste caso, não
saberíamos o que o constitui como signo.
É por isso que todo signo porta um significante e uma significação. O
significante é o suporte material da significação, como um cartaz, um som articulado ou
alguns grafemas. Mas se nossa atenção neles parasse, se não se movesse em direção a
sua significação, deixaríamos de conhecer o mais importante, aquilo que lhe confere
sentido.
No conhecimento, o objeto é pura significação sem significante, sem suporte de
qualquer espécie. Não há necessidade de um significante porque, se houvesse, primeiro

5
teríamos que conhecê-lo como um caminho para o que ele se refere ou se remete. Como
já dissemos, o objeto pensado nada mais é do que o próprio entender em ato, o conhecer
enquanto exercido. Entender em ato é conhecer algo. Os atos de conhecimento não são
ações transitivas, mas intransitivas, na medida em que não têm necessidade constituir "o
conhecido", isto é, o conhecer identifica-se com o conhecido.
Não nos pode parecer estranho que o objeto seja um puro signo, uma remissão
sem significante. Graças a isso, é possível, posteriormente, darmos sentido a outras
coisas, isto é, construir signos. Se não houvesse signo puro, não seria possível, de forma
alguma, dar sentido às coisas, porque não teríamos significações para dar.
Se o conhecimento já contivesse o significante e a significação, esta deveria ser
aportada por outra instância distinta do próprio conhecimento, o que é um absurdo: se o
objeto consistisse em significante e significação, teríamos um processo infinito, já que o
significante seria arbitrário e a significação teria que ser tomada de outra instância
anterior, salvo na ótica do nominalismo, o qual afirma que as ideias são signos
"naturais".
O objeto torna o conhecido presente sem ser ele mesmo conhecido. Por outro
lado, para se conhecer o objeto, entretanto, é necessário prescindir de sua
intencionalidade e torná-lo o próprio objeto do conhecimento. É isso que faz a lógica,
tema da terceira parte desta obra, uma ciência que não trata do conhecido, mas dos
"entes de razão de segunda intenção" 3, ou seja, do objeto enquanto objeto do
conhecimento e não enquanto este mesmo objeto se refira ou remita a outra coisa.
Talvez, tudo isso pareça um pouco complicado, mas é tão óbvio que,
normalmente, não o notamos. Quando conhecemos, conhecemos realidades e não ideias.
Isso ocorre porque o que chamamos de ideias são os signos formais a que nos referimos
anteriormente. Conhecer as próprias ideias exige, por outro lado, focar a atenção nelas
independentemente de sua significação.
A segunda nota da intencionalidade está no fato de que, entre o ato de conhecer
e o conhecido, não há nada no meio, chamemos de ideia, espécie inteligível,
representação, etc. O que se dá ao conhecimento não são ideias ou imagens, mas o
conhecido.
Se ao invés de aparecer o conhecido, algo mais se interpusesse, então o ato de
saber se tornaria opaco e não nos revelaria nada. Conhecer não requer, como construir,

3
A "primeira intenção", por outro lado, é o conhecida graças ao objeto, não o objeto em si.

6
meios ou instrumentos, mas, como vimos, realiza simultaneamente seu fim e isto é
consequência do tipo de ato que Aristóteles chama de "ato perfeito".
Sempre que esta característica do ato de conhecer foi esquecida ou mal
compreendida, surgiram complicações de tal calibre que impossibilitaram sua
compreensão. O objeto conhecido não é construído ou fabricado pelo ato, porque o ato o
obtém agora, simultaneamente e sem intermediários.
Por isso, conhecer é algo que sempre ocorre no presente. Na realidade, conhecer
é ter algo presente, porque o próprio ato de conhecer resta oculto e o que aparece é
sempre o conhecido. Desde a filosofia moderna, é comum entender o conhecimento
como uma relação entre sujeito e objeto, mas não é o caso. Quem conhece não é
imediatamente o sujeito do ato de saber, mas, antes a faculdade operativa (audição,
visão, etc.).
Reduzir a pessoa ao sujeito do conhecer é um erro grave. Não somos uma res
cogitans, como acredita Descartes, porque a pessoa não se reduz ao ato de pensar e ela
não aparece no ato de conhecer. Conhecer nada mais é do que exercer o ato de
conhecer. Conhecer não é exercer um ato que, graças a isso, torna presentes coisas ou
ideias, mas torna presente o conhecido.
A terceira nota da intencionalidade está na imaterialidade de todo ato de
conhecimento. Conhecer é possuir, mas esta posse não é física. Gilson (1991:413)
explica isso, ao afirmar que “para que o fogo ou a árvore estejam no pensamento como
conhecidos, devem nele estar sem sua matéria e somente por sua forma, isto é, segundo
um modo de ser espiritual. Este modo de existência de que gozam as coisas que são
assimiladas pelo pensamento é o que denominamos de um ser ‘intencional’”.
Assim, para vermos algo, não é necessário que os olhos o possuam fisicamente.
Do contrário, os olhos não veriam nada, porque a visão seria destruída: é o objeto,
dotado de intencionalidade, que é possuído pelo ato de conhecer. Para sermos mais
precisos, o objeto não é distinto do ato de conhecer, mas é precisamente o ato que torna
o conhecer um ato.
Como já dissemos, conhecer não é produzir ou causar. Uma ação imanente não
se constitui, mas possui o fim simultaneamente. É difícil, ao explicar o ato de conhecer,
evitar tais termos, próprios do movimento transitivo, porque não é fácil descrever uma
ação que não dá lugar a um efeito distinto dela mesma.
A imaterialidade também se destaca no fato de o ato de conhecer não demandar
uma distensão temporal – em termos aristotélicos, a medida do movimento segundo um

7
antes e um depois –, porque ele é atual. Não há intervalo entre o exercício do ato e a
obtenção do objeto, mas ambos são simultâneos e o são porque o objeto é o "ato" que
exerce o poder ou faculdade.
Como não existe um antes ou um depois, podemos afirmar que o ato de conhecer
se realiza sempre no presente, sendo o presente aquilo que não tem duração e o que,
portanto, nunca ocorre no mundo físico, pois, segundo Aristóteles (2015:199), “o
entendimento está acima do tempo, que mede o movimento dos corpos4”.
O conhecimento não é, portanto, um fenômeno físico, embora possa depender
das condições físicas, e, por isso, é um ato imaterial, pois o que se possui é o objeto
conhecido, não a própria realidade. Como o objeto é intencional, ele manifesta ou torna
presente algum aspecto do real, não o próprio objeto.
Quando vemos uma pintura, por exemplo, graças à posse do objeto, tornamos,
como nossas, sua cor, sua composição, sua harmonia e beleza, de maneira que podemos
dela desfrutar, algo que a própria pintura não é capaz, porque não conhece a si mesma.
Quando cheiramos uma flor, apropriamo-nos de seu aroma graças ao seu aroma, mas a
própria flor, mesmo que seja a causa desse odor, não o aprecia.
A pintura e a flor possuem muitas qualidades físicas, mas é em virtude do ato de
conhecimento que as fazemos nossas e as possuímos e, assim, podemos dizer que,
quando conhecemos uma pintura ou uma flor, somos informados pelas formas de tais
realidades conhecidas.

4. Racionalidade humana

É importante perceber que a racionalidade – a rota de acesso à verdade – não é


um conceito unívoco. De fato, a racionalidade trafega por caminhos diferentes de
alcance da realidade veritativa. São quatro:

a. Conhecimento espontâneo: graças ao conhecimento comum,


compreendemos imediatamente uma série de verdades e pré-
compreensões, de forma espontânea ou pré-científica, mesmo de ordem
metafísica (o princípio da não contradição ou da causalidade) e moral
(faça o bem e evite o mal). Juntamente com algumas verdades evidentes,
4
Metafísica, IX, 6, 1048b 18-35.

8
o conhecimento espontâneo também nos fornece um conhecimento não
sistemático, intuitivo, impreciso e imperfeito, que reclama por uma
posterior reflexão crítica ou científica. Essas são verdades que são
frequentemente chamadas de senso comum, porque provêm do sentir
generalizado dos homens;
b. Conhecimento pelo testemunho: mediante o testemunho, o indivíduo
conhece por meio de uma relação pessoal com outro. O testemunho
fornece um conhecimento verdadeiro, ainda que, como como todo
conhecimento humano, seja falível, porque me fala sobre o estado das
coisas na realidade. Acreditamos na existência de neutrinos, porque
confiamos na comunidade científica, não porque os experimentamos
pessoalmente. Assentir no testemunho alheio pressupõe um ato de
liberdade: o testemunho de outra pessoa é aceito graças à confiança que
lhe é depositada. Aqui, entra a crença, que constitui a base antropológica
do ato sobrenatural da fé. Além disso, é uma experiência diária sem a
qual não poderíamos viver. Na verdade, na vida de um homem, as
verdades simplesmente cridas são muito mais numerosas do que as
adquiridas por constatação pessoal;
c. Conhecimento afetivo: o conhecimento afetivo (ACOSTA LÓPEZ,
2000:10) “é uma forma experimental, intuitiva e impregnada de
realidade, infundida com dados afetivos, que precede e acompanha os
atos da razão e os atos da vontade”. Com essas palavras, queremos
indicar apenas a influência dos afetos no conhecimento e não a existência
de uma potência cognitiva distinta da razão. Esta forma de captação da
realidade é chamada de conhecimento por co-naturalidade. A pessoa
humana, de maneira quase intuitiva, isto é, não discursiva ou
argumentativa, é capaz de conhecer as verdades por uma certa sintonia
ou co-naturalidade afetiva com o objeto conhecido. Esse tipo de
conhecimento ocorre, principalmente, na esfera das ações morais. Por
exemplo, a pessoa justa sabe reconhecer de maneira "co-natural" o justo
concreto que deve ser feito, sem a necessidade de raciocínio
excessivamente complexo;
d. Conhecimento científico-experimental: os dados capturados pelos
sentidos podem ser controlados de forma metódica e programada e

9
mediante o emprego, também, de instrumentos técnicos que nos
permitem ir além do que é simplesmente observado. Esse método de
observação empírica é típico das ciências experimentais, as quais buscam
corroborar, com a experimentação, as hipóteses e as conjecturas. O
sucesso desse modelo de conhecimento fez com que se tornasse um meio
cognitivo fiável e objetivo, porque fornece dados empiricamente
verificáveis.

Esses vários caminhos de acesso à verdade não são mutuamente exclusivos.


Ademais, eles se reivindicam e, de fato, estão unidos na realidade pessoal,
necessariamente unitária. Na antropologia clássica, a prioridade da vida filosófica era
alcançar a verdade e viver de acordo com ela, independentemente de como ela fosse
alcançada.
Em outras palavras, o importante não era se eu conhecia a verdade,
efetivamente, pela intuição de um hobbit, pela crença nas histórias de minha avó, pela
dor da perda de um filho ou pelas Leis de Newton: era relevante a descoberta da
verdade em si, que podia ser alcançada intuição de um hobbit, pela crença nas histórias
de minha avó, pela dor da perda de um filho ou pelas Leis de Newton.
Com base nisso, a existência desses vários caminhos de racionalidade é
significativa, pois todas eles nos falam de um único sujeito do conhecimento: o ser
humano. Por isso, a absolutização de um único modo de conhecer, como se dá,
atualmente, com a virilização do conhecimento científico, comprometeria a totalidade
do conhecimento individual, porque este sempre ocorre apenas como um todo.
Nem toda realidade é sensível e nem é, como efeito, objeto direto da
compreensão humana. As realidades imateriais também podem ser conhecidas, embora
de maneira imprópria ou indireta. Assim, por exemplo, a inteligência humana conhece a
si mesma mediante uma certa reflexão. Primeiro, a inteligência conhece e, por reflexão,
conhece o homem em seu próprio ato de conhecer. Posteriormente, a inteligência
conhece-se como princípio de seu ato de conhecer.
O homem também é capaz de conhecer realidades espirituais, como Deus ou a
alma, por analogia com as coisas materiais. Toda a realidade é objeto do conhecimento
humano e, como consequência, o objeto do conhecimento humano é infinito, porque
não está aberto a um determinado tipo de ser, mas possui uma abertura máxima:

10
(TOMÁS DE AQUINO, 2005:33) "o entendimento é, de alguma forma, todas as
coisas5".
O homem pode conhecer a essência das coisas materiais, mas isso não significa
que ele conheça, essencialmente, a realidade, ou seja, com seu conhecimento ele não
"esgota" a essência da coisa. Em certo sentido, a essência das coisas é ignorada por nós,
embora isso não nos impeça de conhecer propriedades ou aspectos essenciais da
realidade, assunto que trataremos no momento oportuno. Nosso entendimento é
aspectual, discursivo e não esgota a realidade. Como, de fato, a racionalidade humana
adquire conhecimento desses aspectos essenciais? Mediante uma dinâmica de vias
operativas de conhecimento, as quais serão abordadas daqui por diante.

5. Conhecimento humano como perfeição vital

A alma detém uma pluralidade de capacidades e potências, ainda que nem


sempre esteja exercendo-as em ato: são as chamadas faculdades operativas. Elas podem
ser orgânicas ou corporais, quando dependem intrinsecamente de algum órgão, como os
olhos ou o intestino, ou inorgânicas ou intelectuais, definida em sentido contrário, como
a inteligência e a vontade.
As faculdades operativas da alma exercem duas grandes funções: corporais e
intelectuais. As funções corporais dizem respeito ao âmbito orgânico do ser humano e,
as intelectuais, por sua vez, ao âmbito inorgânico do homem. As funções corporais
subdividem-se em vegetativas, apetitivas, motoras e, por último, sensitivas, as quais
serão aqui estudadas com maior profundidade.
A sensibilidade é o conjunto de órgãos e funções que possibilitam o
conhecimento sensitivo, o modo mais elementar de se conhecer. É composta pelos
sentidos externos e sentidos internos, os quais nos dão acesso aos assuntos sensíveis
existentes na realidade física.
Os sentidos externos são cinco, sendo três inferiores (o tato, o paladar e o olfato)
e dois superiores (a audição e a visão). Os sentidos internos são aqueles cujo objeto é
intestino à sensibilidade e não ao corpo, ou seja, tais sentidos não são estimulados pelo
ambiente externo e permitem conhecer assuntos sensíveis ausentes na realidade física.
Distinguem-se em dois grupos: o inferior, correspondente ao sensório comum ou o
5
Suma contra os gentios, II, c.98.

11
sentido comum, e o superior, formado por três, a imaginação, a memória e a cognitiva,
os quais serão estudados mais adiante.
Neste nível cognoscitivo, o difícil não é tanto saber o que é o conhecimento, mas
entender o que é uma vida não-cognoscitiva, absolutamente cega. Uma árvore vive sua
nutrição, seu crescimento e sua reprodução, a luz, a escuridão, a umidade e assim por
diante.
Que diferença existe entre viver tudo isso sem senti-lo – isto é, sem sabê-lo – e
sentindo-o – ou seja, sabendo? Poderíamos responder que viver isso sem senti-lo e sem
conhecê-lo seria o mesmo que não viver. Mas, ao analisar melhor, poderíamos concluir
que uma resposta exata seria dizer que, se sente-se e conhece-se, vive-se tudo isso muito
mais intensamente.
Em outras palavras, é viver redobradamente aquilo que se é e, inclusive, viver o
que não se é. Toda nossa unidade sensitiva está posta e dada imediatamente para o saber
do ser humano rumo à verdade e este estar imediatamente dado para si mesmo expressa
um “encontrar-se existindo6”. Conhecer a verdade, desse modo, é um modo mais
intenso e livre de se viver. Dito de outro modo, é uma perfeição vital.
Essa afirmação merece ser destacada, porque o projeto de racionalidade da
modernidade dissocia o saber, reduzido a ciência experimental, da vida e, ao cabo,
coloca-os em contraponto7. Para a visão clássica, por sua vez, conhecer é o modo mais
intenso de se viver. Vive-se a rosa, que não se é, ao contemplá-la, vive-se o mar, que
não se é, ao senti-lo quente e salgado.
Ao conhecer a natureza, vivemos a natureza. Por meio dos sentidos externos e
internos, o homem vive o universo. Esse fenômeno se dá quando se afirma que as
coisas, nos sentidos, têm seu ser, mas sem a matéria: o universo inteiro é vivido por
mim e, dessa forma, seu ser resta redobrado. Como diz Aristóteles (2018:78), “os
sentidos recebem a forma sensível das coisas, sem receber sua matéria8”.
O verde é vivido pela árvore de uma maneira e, por mim, de outra, que a vejo e a
contemplo. O mesmo ocorre com o aroma da rosa e o sabor do mar. Vive-se o que se é e
o que não se é, mas de uma outra forma e aqui temos mais um campo de admiração que
a teoria do conhecimento é apta a nos proporcionar concretamente.
6
Heidegger analisa essa noção, conhecida por Befindlichkeit, em sua obra Ser e Tempo (§ 29).

7
Na literatura, Goethe (2010:46) retrata muito bem esse sentir comum, ainda que potencializado por seu
romantismo, ao afirmar ser “cinza, a ciência, e verde a árvore da vida”.
8
Sobre a alma II, 12: 424 a 16-23.

12
Ao conhecermos, vivemos o mundo natural, mas sem perdermos nossa
identidade, pois não deixamos de ser humanos ao conhecer essa árvore, essa rosa e esse
mar e nem tampouco desrespeitamos a alteridade daquilo que é posto ante nós para ser
conhecido.
Todavia, vivemos o mundo natural de outra maneira também. Certamente, posso
viver, por exemplo, o universo por meio dos sentidos, mas muito mais limitadamente do
que por meio do intelecto. Sentir o universo não é o mesmo que pensá-lo: aqui,
perguntamos por outros mundos possíveis, pela totalidade do real, ao que é e ao que não
é. É uma outra forma de se viver a mesma coisa.
A noção de que “pelo conhecimento, a alma é, de certo modo, todas as coisas”, é
retomada por Heidegger no século passado, com explícita alusão a Tomás de Aquino, a
fim de desenvolver sua concepção de existente humano como (HEIDEGGER, 2012:4)
“o lugar em que se manifesta o ser, como o lugar em que, de certo modo, todas as coisas
são”.
Superado isso, num primeiro olhar, podemos dizer que conhecer é uma relação
entre o sujeito que conhece e uma realidade conhecida. No ato de conhecer,
(ARISTÓTELES, 2018:89) “o sujeito cognoscente e o objeto conhecido são uma coisa
só9”. Então, no ato de conhecer, prevalecem três atributos:

a. Não existe um ato de conhecimento que não tenha um objeto: quando


conheço, conheço algo. Não existe nenhum conhecimento prévio ao
objeto conhecido. O ato de conhecer só se dá na presença do conhecido.
Por isso, tampouco existe objeto conhecido antes do ato de conhecer. O
conhecer e o conhecido são estritamente simultâneos. Somente se
começa a conhecer quando se possui o conhecido. Conhecer é haver
conhecido. Conhecer é uma práxis;
b. O conhecimento é identidade, em ato, na operação cognoscitiva do
sujeito cognoscente em relação ao objeto conhecido: o sujeito, em ato,
identifica-se com o objeto, também em ato, e, sem prejuízo, mantém sua
alteridade, isto é, ele possui o objeto tendo em frente de si o possuído;
c. No ato de conhecer, o sujeito cognoscente e o objeto conhecido estão
em ato e, por consequência, o primeiro atualiza o segundo e o
segundo determina o primeiro: é o sujeito cognoscente quem
9
Sobre a alma III, 8: 431b 20-21.

13
protagoniza a operação cognoscitiva e, portanto, quem atualiza o objeto
conhecido, mas é este que determina a capacidade de conhecer do sujeito
cognoscente. No exemplo do torrão de açúcar, é o paladar que atualiza a
doçura do açúcar, porque não é possível exercer o paladar de maneira
geral e indeterminada, salvo quando esse sentido é determinado por um
sabor concreto, o do açúcar.

Na relação cognoscitiva, não ocorre o mesmo fenômeno da nutrição. O sujeito


assimila o conhecido, mas continua sendo sujeito e o conhecido segue sendo tal como
era anteriormente. Aliás, o próprio do conhecer é a permanência do sujeito e o respeito
acerca da alteridade do conhecido.
É evidente que, ao conhecermos o que é uma árvore, não podemos assimilá-la
sem prescindir de sua materialidade quantitativa. Por isso, dizemos que a assimilação do
conhecimento é intencional: ao assimilar o alheio, mas sem sua matéria, assimilamos
somente sua forma, como já dissemos anteriormente.
Obviamente, forma não significa contorno ou figura. A noção de forma goza, na
linguagem filosófica, de uma grande e fecunda riqueza semântica. Forma é o princípio
intrínseco de unidade e atividade e aquilo que, em virtude do qual, algo é. Em outras
palavras, a forma é o princípio estruturador ou organizador da matéria que faz com que
uma coisa seja isso e não aquilo.
Todos os seres possuem uma determinada forma ou um determinado modo de
ser. Esse modo de ser pode ser substancial ou acidental:

a. Forma substancial: modo natural ou essencial do ser material, graças à


qual cada ser pode ser o que é e não outra coisa distinta. A árvore e o
cavalo possuem, em si mesmos, o princípio intrínseco que os fazem
árvore e cavalo;
b. Forma acidental: modo variável do ser material, dado que não o afeta
essencialmente. Um cavalo branco e árabe possui uma forma substancial
(que permite ser cavalo) e diversas formas acidentais (cor branca e raça
árabe) que podem mudar, sem que se altere sua realidade substancial de
ser cavalo.

14
Possuir materialmente uma forma substancial ou acidental quer dizer que se
encontram unidas, ao seu ser, suas condições materiais e individuais: a árvore possui
materialmente sua forma substancial. Possuir intencionalmente uma forma (substancial
ou acidental) quer dizer assimilá-la em conhecimento, mas sem suas condições
materiais e individuais, como explicitamos anteriormente.
No caso do ser humano, nosso princípio ativo (a forma ou a alma) tem atividade
e força de sobra, de maneira que não só não se limita a informar nosso corpo, mas é
capaz de ser abrir a outras realidades, de maneira que o homem, ao se apropriar das
formas exteriores no ato de conhecê-las, apropria-se intencionalmente.
Esse nível – onde o termo “intencionalidade” é usado com mais frequência e de
forma mais apropriada, dado ser o locus em que mais radicalmente existe uma "saída de
si" e uma referência ao outro – detém uma intencionalidade cognoscitiva que está em
estrita continuidade e correlação com intencionalidade não-cognoscitiva.
Isso ocorre porque aquilo que um ser humano pode conhecer e fazer de maneira
"consciente" e "deliberada" depende estritamente da configuração anatômica e
fisiológica de seu organismo, mas, por outro lado, a dita configuração e a dita
intencionalidade não-cognoscitiva careceriam completamente de sentido sem atividade
cognoscitiva.
Em razão disso, a intencionalidade (do corpo humano), no nível cognitivo, pode
ser dividida em quatro momentos:

a. Sensação;
b. Percepção;
c. Desejos e tendências;
d. Movimento e ação.

Na sensação, considerada como um reflexo do físico sobre si, o corpo, em nível


não-cognoscitivo, sai de si – enquanto realidade física de ser em si corpo vivo – e passa
a ser, para si, no plano psíquico, isto é, no nível cognoscitivo. É uma progressão que
deve nos causar um certo espanto ontológico.
Em virtude dessa saída de si ser a mais radical, como já foi apontado, pode-se
dizer que a intencionalidade, aqui, é de um tipo novo e mais profundo, porque o patamar
alcançado é uma nova ordem da realidade, a saber, o do acontecer cognoscitivo. Aliás, é

15
precisamente essa abertura cognoscitiva a toda a realidade, a se concretizar nesse
acontecer, que torna possível a liberdade humana.
Na percepção, ocorre a integração dos vários aspectos do físico e que estão
constituindo uma unidade física em si, no âmbito corporal do ser humano e numa
unidade intencional, a saber, a individualidade vivida pelo ser humano que capta ou
compreende sua significação e em cuja captação ocorre a apreensão da verdade da
referida realidade, desde que entendida a verdade como reflexão.
Mas a intencionalidade cognoscitiva do ser humano funda-se em sua
intencionalidade apetitiva (desejos e tendências) e em sua intencionalidade motora
(movimento e ação) as quais, por sua vez, também determinam a intencionalidade
sensitiva, porque aquilo que o ser humano apetece é aquilo que ele percebe e, por sua
vez, aquilo ele faz versa justamente sobre aquilo que é percebido.
E como tudo aquilo que o ser humano apetece e faz, ele o apetece e o faz em
ordem de sua própria realização como um ser dotado de sentido, os seres inertes
percebidos por ele também restam nele integrados numa dinâmica diferente daquela que
tinham no plano físico, numa nova e mais fecunda unidade, que é precisamente a
intencionalidade vital do ser humano, já tratada no capítulo próprio.
Por suposto, esse mundo é criado pelo ser humano em função de seu organismo,
o que significa dizer que a intencionalidade do conhecimento não apenas formaliza a
realidade inanimada (inerte) e animada (vivente) circundante, mas também formaliza
um espaço físico, um território geográfico e o constitui como um mundo vital.
Dessa maneira, o mundo vital é constituído como o conjunto de significações
das coisas inanimadas e animadas que esse mesmo mundo porta para o ser humano e,
por esse motivo, os mundos vitais são sempre uma novidade irredutível ao reino
estritamente físico.
Assim, graças a esses quatro momentos da intencionalidade do conhecimento, o
intelecto, ao cabo, possui, por exemplo, a forma acidental de “quente” nem
materialmente (temperatura) e nem sob as condições materiais de individuação (esse
calor aqui e agora), porque o ser humano detém o conceito de quente, isto é, somos
capazes de construir proposições válidas e dotadas de sentido, pelo manejo da palavra
“quente”, em ausência de qualquer calor e, muitas vezes, com uma significação única
(um abraço “caloroso”, metaforicamente, um abraço afetuoso).

16
6. Erros contra a natureza do conhecer humano

Os erros, aqui, supõem uma falta de compreensão do ato de conhecer. Tais


insuficiências teóricas admitem uma pluralidade de formas, mas contra todas elas
sempre partem de uma falta ou um déficit de conhecimento. Ei-los:

a. Logicismo;
b. Agnosticismo;
c. Fenomenismo;
d. Conductismo;
e. Hermeneutismo;
f. Negação da hierarquia cognitiva;
g. Biologicismo;
h. Reducionismo estatístico;
i. Filodoxia.

O Logicismo é a corrente que assimila os atos cognitivos às suas expressões


lógicas ou linguísticas. Assim, o ato de conceber confunde-se com a definição ou com
as palavras, o ato de julgar com a enunciação ou a proposição e a demonstração com o
silogismo ou frases concatenadas.
Estas tendências são observadas em certas variantes da filosofia analítica e do
pragmatismo. É a tendência à materialização do pensamento, ainda que se pretenda
poder estudá-lo com mais rigor num elemento sensível como a linguagem, algo que
abordaremos no próximo capítulo.
Com esta redução materializante, perde-se a natureza dos atos de conhecer – que
são realidades imateriais – e, da mesma forma, a natureza puramente intencional dos
objetos conhecidos – que são formas imateriais –, porque a intencionalidade da
linguagem não é pura, mas mista, pois, nas palavras, há algo remitido – sentido
sobreposto a elas por convenção – e algo não remitido – a materialidade sonora e
gráfica das palavras.
A objeção aqui reside no fato de que, se os atos de pensamento são questões
puramente lógicas ou linguísticas, conhecer esta tese também será uma questão lógica

17
ou linguística. Mas, então, por que distinguimos entre esta afirmação e o conhecimento
dela? E se não se distinguem, os enunciados e proposições são cognitivos? Os livros
são, é claro, cheios de proposições, mas os livros conhecem?
O Agnosticismo defende o postulado segundo o qual o conhecimento humano
não é capaz de saber nada com certeza. Na atualidade, esta tese está muito difundida em
não poucos fóruns intelectuais e também na vida cotidiana de muitas pessoas.
Normalmente, o agnosticismo declara-se fechado às verdades transcendentes e o
agnosticismo radical afirma que não podemos conhecer com certeza nenhuma realidade,
por menor que seja.
A objeção é clara: se o agnosticismo descreve-se como um déficit de
conhecimento, afirmarmos que sabemos que nosso conhecimento não pode saber nada é
uma assertiva claramente contraditória, pois, no fundo, defendemos, como um
conhecimento absoluto, a hipótese de que não podemos conhecer o absoluto.
O Fenomenismo alega que a razão humana nada pode saber além dos
fenômenos. Por fenômeno, podemos entender a matéria sensível (acidentes da realidade
física, como a cor e o tamanho) ou os objetos do pensamento. É uma tese da filosofia
moderna, atribuída especialmente a Kant. Nossa objeção parte do fato de que, se a razão
humana só alcança a dimensão fenomênica, a suposta verdade desta frase é conhecida,
portanto, fenomenicamente e, logo, por que isso seria a verdade?
O Behaviorismo é a corrente do século XX que afirma que o conhecimento
humano depende dos costumes, isto é, que atos e hábitos cognitivos tendem a ser
implicitamente assimilados a costumes, ou seja, a ações transitivas. Por exemplo, não se
saberia o que é beber leite a menos que se tomasse um copo de leite.
Objetamos que, se conhecer é um hábito adquirido pela repetição de atos, esta
tese, fruto de um conhecimento adquirido, também será um hábito. Portanto, apenas
alguém quem a vivenciou repetidamente poderia entendê-la e não alguém que, como
agora faz o leitor, compreende-a com um simples olhar. No mais, podemos também
objetar que os costumes não são verdadeiros ou falsos, mas bons ou maus, melhores ou
piores.
O Hermeneutismo é a tendência de considerar toda verdade como interpretável.
A Hermenêutica designa uma corrente da filosofia do século XX, caracterizada por
manejar a interpretação como método cognitivo da realidade. Este método tem sido
aplicado, desde seu início e, sobretudo, aos textos, a fim de os interpretar em seu
contexto cultural, social, histórico e político.

18
É, portanto, um método referido ao passado. Nestes assuntos, é um método bom,
conveniente e útil, pois desvela muitas verossimilhanças que ajudam a compreender
melhor o que está sendo interpretado. É um método próprio da razão prática, porque se
refere a questões contingentes.
Contudo, não é pertinente usá-lo nos tópicos da razão teórica a que nos
referimos como necessários, pois, aqui, não há necessidade de interpretar e fazê-lo
envolve perda de tempo. Por exemplo, ninguém interpreta se está vivo ou não ou se
pensa ou não. No mais, se conhecer é interpretar, esta tese também será interpretável, ou
seja, não será uma verdade necessária, mas uma verossimilhança que admite o
contrário.
Na negação da hierarquia cognitiva, temos que os diferentes níveis de
conhecimento são simplesmente "distintos", mas não uns superiores a outros, ou seja,
uns mais cognitivos que os outros. Esta opinião amplamente difundida suspeita que, se
for sustentado que todos os níveis do conhecer não estão no mesmo plano, então, como
efeito, as distinções de classe começam a ser feitas.
No mais, devemos argumentar que o conhecimento que permite a formulação
desta tese estará no mesmo nível daquele que permite a formulação de seu oposto, que
é, obviamente, contraditório. Logo, se não há distinção hierárquica dos níveis
cognitivos, por que justamente esta tese é mantida como superior à sua adversa?
O Biologicismo (ou Neurologismo) sustenta que o conhecimento humano é uma
mera atividade cerebral. Esta visão é sustentada por certos estudiosos da neurociência e
por alguns filósofos que parecem ter esquecido o fundamento clássico sobre a
imaterialidade da inteligência. Uma alegação frequentemente feita por seus defensores é
a de que, se o cérebro foi danificado, o pensamento acaba.
É verdade que a inteligência humana requer o amadurecimento dos sentidos
internos e que estes têm seu suporte orgânico no cérebro, de modo que, se, nele, há
lesões, o indivíduo não pode conhecer racionalmente. Contudo, tal fato não significa
que a abstração ou o pensamento sejam identificados com o cérebro, mais do que os
atos e os objetos conhecidos pelos sentidos internos que são identificados com ele.
Relacionamento não significa identificação, mas o contrário: só os diversos podem se
relacionar.
No mais, ainda como objeção, se o conhecimento intelectual humano é
eminentemente cerebrino, por que distinguimos entre atividade cerebral e atos de
pensamento, ou seja, entre neurofisiologia e teoria do conhecimento?

19
O reducionismo estatístico defende que a estatística é o método cognitivo mais
usual e confiável. Certamente, é o método mais aplicado hoje: se as estatísticas
declaram que se a hipótese X for aplicada a um certo número de realidades do tipo Y,
surgem muitas porcentagens de fenômenos Z. Este método também é apoiado nas
ciências humanas. Assim, nos assuntos humanos ensina-se que porcentagem de homens
X pensa, sobre um assunto da questão Y, uma determinada opinião Z.
A estatística é um conhecimento útil, porque economiza muito tempo. Serve, por
exemplo, para saber qual é a opinião de um grupo de cidadãos sobre um determinado
assunto. Assim, chegamos a uma plausibilidade sobre algo, a saber, que certa
porcentagem de pessoas tem tal opinião A e não B.
Mas a estatística não aponta para a razão das coisas e, acima de tudo, não ensina
se a resposta é verdadeira ou mesmo falsa. Nem afirma se aqueles que têm opiniões A
ou B estão dizendo a verdade ou não. A estatística é um conhecimento provável, não
necessário, porque trata do contingente. Portanto, é claro a estatística trafega na razão
prática e não na teórica.
No mais, se o conhecimento estatístico é o melhor, esta tese não é melhor que o
seu oposto, porque não é fruto do conhecimento estatístico. Substituir a verdade pela
estatística não pressuporia uma submissão desta tese ao mesmo método? E se fosse
submetida, qual seria o resultado? E, ciente do resultado, seria verdadeiro ou falso?
A Filodoxia defende que todo conhecimento reduz-se à opinião. Mas a opinião
pertence à razão prática. Está na esfera do diálogo, que tem como tema o provável, o
contingente e o acidental. Todavia, reduzir todo conhecimento a opinião é um erro,
porque não respeita a natureza de muitos níveis cognitivos humanos, precisamente os
mais elevados e aqueles que lidam com os aspectos necessários da realidade. No mais,
se tudo é discutível, esta assertiva também o será. E se for, é uma atitude honesta tentar
impô-la como uma verdade indiscutível?
Com efeito, as críticas à natureza da verdade e do conhecimento humano
respondem mais a uma atitude subjetiva do que ao modo de ser do conhecimento
humano, pois é evidente que tais formulações são, em si mesmas, contraditórias.
Portanto, se há quem os defenda, devemos perguntar se o fazem por motivos noéticos
ou por interesses outros.
Dito de outra forma, o erro, no ato de conhecer, nunca é cometido pela razão,
mas pelo indivíduo. O erro é uma forma de subjetivismo, uma tentativa de dobrar a
verdade ou uma forma humana de saber o que se deseja e não aquilo que é. Mas, como

20
os desejos sempre se manifestam por intermédio da vontade, todos estes equívocos são a
manifestação de um voluntarismo fundamental.
Todo o método da filosofia de Descartes tem como eixo central a dúvida
metódica. Mas a dúvida não é um ato ou operação cognitiva, porque é baseado na
dimensão da vontade humana. Na verdade, duvidamos porque queremos, continuamos
duvidando porque continuamos a querer duvidar e terminamos de duvidar quando
deixamos de querer duvidar. Curioso notar que Descartes tenha sido chamado de pai do
racionalismo com o método da dúvida metódica, quando, em rigor, ele é, tanto quanto,
um excelente expoente do voluntarismo.

7. Considerações finais

Podemos observar que o conhecimento é um ato imaterial (ou não-físico), pois o


que se possui é o objeto conhecido e não a própria realidade. Possuímos a forma da
montanha e não a montanha propriamente dita. Por ser o objeto dotado de
intencionalidade (“eu conheço algo”), ele manifesta algum aspecto do real e não o
próprio objeto.
Quando vemos uma escultura, graças à posse de sua aspectualidade, tornamos
como nossas, sua cor, sua textura, suas linhas e beleza, de maneira que podemos dela
desfrutar, algo que a própria escultura não é capaz, porque não conhece a si mesma.
A escultura possui muitas qualidades físicas, mas é em virtude do ato perfeito de
conhecimento que as fazemos nossas e as possuímos e, assim, podemos dizer que,
quando conhecemos uma escultura, somos apresentados às formas de tais realidades
conhecidas.
Se a capacidade de conhecer é uma realidade fundamental e surpreendente que,
desde a Antiguidade, sempre despertou a admiração dos filósofos, esperamos que você
também seja despertado para o fulgor dessa alegria que permite não só investigar a
realidade que nos cerca, mas, também, a nós mesmos.

Reflita: Se, no nível do conhecimento, o ser humano superabunda a si mesmo


para “viver” as demais coisas, poderíamos, então, dar inteira razão à Aristóteles, quando
ele diz que a alma é, pelo conhecimento, de certo modo, todas as coisas? Ou sua
afirmação comporta algumas modulações?

21
Indicação de leitura: Para entender a relação entre ser, conhecer e comunicar,
sugerimos o texto Being and Comunication, de Leonardo Polo. Acesso em:
http://www.leonardopoloinstitute.org/uploads/1/8/2/5/18256211/journal_of_polian_stud
ies_4__2017__l._polo.pdf

UNIDADE II. ATO DO CONHECIMENTO: DINAMISMO


ANTROPOLÓGICO, LIMITES E NÍVEL SENSITIVO

1. Introdução

Como funciona o dinamismo antropológico no ato de conhecer? Por quais


sentidos a forma do objeto apreendido passa até que possamos ter uma noção dela? Será
que o racional necessita do sensível, no caso do ser humano? Por sua vez, o
conhecimento sensitivo ordena-se ao racional? E onde ele se aperfeiçoa? Como se dão
as relações entre sentidos e intelecto? Se há uma pluralidade cognitiva no homem, existe
uma hierarquia no seio dessa pluralidade?
Nessa unidade, aprenderemos como funciona a dinâmica da antropologia
humana no ato de conhecimento e como se dá o alcance desse ato em cada sentido
externo e interno. Ao lado dos conhecimentos sensível, racional e intelectual,
aprenderemos o conhecimento pessoal, um conhecimento que dá acesso à novidade
irrepetível e irredutível que cada pessoa é, ou seja, o significado pessoal de cada ser
humano e, assim, podemos saber quem é cada pessoa.
Trata-se de um nível pouco estudado nessa matéria em outras instituições de
ensino superior e, por isso, resolvemos não só apresentar essa dimensão cognitiva, mas
fazer com que o aluno possa, a partir dela, compreender melhor outra importante
disciplina, a ética e, sobretudo, a ética das virtudes.
Os quatro níveis do conhecimento indicam, claramente, que o homem atua na
natureza não somente em relação às necessidades de sobrevivência, mas pela
incorporação de experiências e conhecimentos produzidos e transmitidos de geração em
geração, por intermédio da educação e da cultura, e isso permite a acumulação
intergeracional de saberes e de sabedoria, de maneira ao ser humano imprimir sua marca
na natureza, tornando-a humanizada. 

22
2. Níveis do conhecimento humano

O conhecimento humano apresenta, inicialmente, dois níveis:

a. Conhecimento sensitivo: comum aos animais irracionais e racionais,


tem, por objeto, o aspecto particular e sensível das coisas materiais.
Também conhecido por imagem sensível;
b. Conhecimento racional: específico do animal racional ou do ser
humano, tem, por objeto, os aspectos essencial, universal, intencional,
relacional, perspectivo, experiencial e histórico das coisas materiais.
Também conhecido por ideia ou conceito.

São dois níveis de conhecimento, mas o racional necessita do sensível, isto é, a


ideia ou conceito precisa da imagem, no caso do ser humano. Por sua vez, o
conhecimento sensitivo ordena-se ao racional e, no caso do homem, em virtude de sua
racionalidade, nele se aperfeiçoa.
Assim, temos uma pluralidade cognitiva no nível noético humano. No homem,
nem tudo vale o mesmo ou está no mesmo plano. Seu conhecimento é encontrado nos
vários níveis do ser humano. Porém, não se trata de escolher entre um conhecimento ou
outro, pois nenhum deles é supérfluo, ou seja, todos cumprem seu papel no plano geral
de conhecimento da realidade que nos cerca.
A distinção entre os diferentes planos cognitivos é hierárquica, isto é, isso
significa que o nível cognitivo superior sabe mais do que os inferiores e precisamente o
que os inferiores não podem saber. É por isso que as correntes filosóficas cognitivas que
ficam nos níveis inferiores – como o empirismo (Hume) – ou que os desprezam – como
o idealismo (Hegel) – necessariamente saberão menos do que aquelas que exercitam os
níveis mais elevados – como o realismo –, assunto que trataremos no capítulo próprio.
A distinção entre os diferentes planos também é dual, isto é, sensível-racional.
No conhecimento sensível, típico da natureza corporal humana, podemos falar dos
sentidos externos (tato, paladar, olfato, audição e visão) e internos (sensório ou sentido
comum, imaginação, memória e cognitiva).

23
No conhecimento racional, temos um conhecimento propriamente racional (ato
de ser) e outro pessoal (essência) e, ao mesmo tempo, podemos distinguir entre uma
razão teórica (superior) e uma razão prática (inferior). Mas o conhecimento humano não
se reduz aos dois planos mencionados, o sensível e o racional.
Um nível mais elevado pode ser detectado na própria vida a partir de nossa
experiência: é aquele que se refere ao conhecimento que olha para sua interioridade.
Como primeiro argumento, percebemos que somos dotados de razão, ou seja, que
temos, à nossa disposição, uma faculdade, mas isso, por si só, não é um conhecimento
racional, porque é um saber que está a olhar para toda a razão de cima do seu próprio
telhado.
Contudo, saber que somos racionais e que, a partir disto, podemos desenvolver
nossa razão numa direção ou outra, num aspecto ou noutro ou mesmo nem desenvolvê-
la é um outro nível de conhecimento que olha direta e globalmente para a razão e que
podemos chamá-lo de intelectual, porque não é discursivo ou argumentativo, mas
imediato, direto, experiencial, intuitivo e, como efeito, superior aos níveis de
conhecimento sensível e racional, porque os conhece globalmente, dá conta de seu
estado e cada um de seus aspectos sem dificuldade.
Como segundo argumento, a razão não é uma pessoa, mas de uma pessoa. Claro,
ser uma pessoa é superior a não ser. Portanto, perceber que somos pessoas não pode ser
um conhecimento intelectual, mas outro de natureza superior, íntima, que pode ser
chamado de “pessoal”. Com isso, queremos dizer que a pessoa só pode se conhecer
"pessoalmente", ou seja, em seu nível próprio e não num nível cognitivo inferior.
Então, ao lado dos conhecimentos sensível, racional e intelectual, temos o
conhecimento pessoal: o conhecimento que dá acesso à novidade irrepetível e
irredutível que cada pessoa é, ou seja, o significado pessoal de cada ser humano e,
assim, podemos saber quem é cada pessoa.
Por isso, a partir destes níveis do conhecimento humano – sensível, racional,
intelectual e pessoal – é necessário darmos conta, desde já, de outro tema central da
teoria do conhecimento, o qual será abordado mais adiante: a verdade, a certeza, a
dúvida, a opinião, a fé e o erro.
Como o conhecimento humano não se equivoca, a partir dele também é possível
dar conta do maior ou menor sucesso oferecido pelas propostas das principais correntes
filosóficas que fizeram escola no modo de descrever o conhecimento humano: o

24
realismo, o nominalismo e o racionalismo, as quais têm sido seguidas, de uma forma ou
de outra, por muitas outras filosofias.
Da mesma forma, convém discernir os diferentes níveis noéticos manejados
pelas várias ciências, tanto experimentais, quanto humanas ou filosóficas. Todos eles
são hierarquicamente diferentes e – como veremos – seguem os diversos níveis
cognitivos naturais do ser humano.
Com efeito, os graus do conhecimento humano que estudaremos adiante podem
ser esquematizados da seguinte forma e são estudados pelas respectivas ciências de
igual nível noético:

a. Conhecimento pessoal: intelecto agente – Psicologia, Metafísica,


Antropologia Transcendental e Teologia Sobrenatural;
b. Conhecimento intelectual: sindérese, primeiros princípios da razão
teórica/prática e sabedoria – Antropologia Filosófica, História e
Literatura;
c. Conhecimento racional: razão formal (atos/hábitos abstrativos e
atos/hábitos generalizantes), razão teórica (atos de abstração, julgamento
e raciocínio e hábito da ciência) e razão prática (atos de apreensão, juízo,
balanço, deliberação e império e hábito da prudência) – Lógica,
Matemática, Filosofia da Natureza, Ética, Política e Educação;
d. Conhecimento sensível: sentidos internos (sensório comum,
imaginação, memória e cogitativa) e externos (visão, audição, olfato,
gosto e tato) – Ciências Naturais e Biologia.

3. Conhecimento sensível: sentidos externos

Como já analisamos anteriormente, os sentidos ou faculdades sensíveis são


muitos e eles se distinguem uns dos outros, em razão dos órgãos (ouvidos, olhos, etc.),
atos (ouvir, ver, etc.) e objetos (sons, cores, etc.). Os órgãos captam, pelos atos, os
objetos, os quais não são as realidades externas (nota sol, árvore, etc.), mas aquilo que
conhecemos da realidade externa pela ação dos sentidos, que não é a realidade física
inteira, mas apenas uma forma conhecida que remete aspectualmente a ela. Por

25
exemplo, não vemos a “matéria” da casa (cimento, ferragem, madeira, etc.), mas as
cores que dela ressaltam pela captação do olhar.
O objeto captado não é, propriamente, aquilo que se capta, mas aquilo pelo qual
se capta. Esse “pelo” indica que o objeto captado é intencional em relação ao real:
‘intencional’ (do latim intendere, tender para) significa que se refere puramente à
realidade física.
O objeto captado é uma "forma" desligada da matéria, uma forma que se esgota
por se referir à realidade física. Portanto, não é de natureza física, mas intencional. O
objeto é um objeto ao ser captado, nem antes nem depois. Por outro lado, a realidade
material é física, antes, durante e depois de ser captada e mesmo à margem do ato de
captar.
O ato de captar e o objeto captado não podem ser dados separadamente, porque
o objeto conhecido é formado pelo ato. Se não for captado, não há nada percebido pelos
sentidos externos. Se algo é captado, é porque um ato de apreensão é exercido. O objeto
sentido é “formal” (não material) e, portanto, não tem os componentes da realidade
física, mas é uma “forma” sem matéria (não causal ou física) que compõe o ato de sentir
para se conhecer um aspecto da realidade física.
Portanto, embora a realidade externa seja a causa da atividade sensitiva humana,
na medida em que afeta os órgãos externos, tal realidade não forma o objeto captado,
pois tal objeto não é material, mas exclusivamente formal, por ser inteiramente
remetente àquela realidade, ou seja, dotado de intencionalidade.
Na dualidade ato-objeto não há separação, pois captar é apreender algo e, se algo
é captado, é porque está sendo apreendido pela sensibilidade externa humana. Assim,
devemos distinguir, no ato de captação ou apreensão, os seguintes componentes:

a. A realidade física externa que afeta o órgão dos sentidos externos;


b. O ambiente real por meio do qual ele o afeta;
c. O suporte orgânico da faculdade afetada (ouvidos, olhos, etc.);
d. A faculdade sensível, que não é apenas material ou orgânica, mas
também tem um "sobrante formal";
e. A “espécie impressa”, isto é, a afetação parcial do estímulo externo no
órgão do sentido externo, porque o órgão não é totalmente afetado. Se
afetasse completamente, o órgão seria corrompido (surdez ou cegueira);

26
f. O objeto captado – que não é a realidade física, nem a “espécie impressa”
ou imutabilidade da realidade física no órgão –, mas a “forma
intencional” apreendida pelo ato de conhecer, uma forma sempre
referente ou remente à realidade;
g. O ato de captar, o qual conhece o real de acordo com o objeto (o ato de
ouvir, ver, etc.). Tais atos não são vistos, o que indica que não são
materiais (biológicos ou biofísicos).

As faculdades operativas dos sentidos têm um suporte orgânico, mas não se


reduzem a ele, pois não se esgotam informando, vivificando, organizando o órgão ou
seu suporte orgânico, mas são capazes de possuir as formas das realidades sensíveis sem
sua matéria.
As formas do real sensível sem matéria possuídas pelas faculdades operativas
são objetos conhecidos e a faculdade operativa as possui por meio de seus atos
cognitivos, ou seja, atos de posse intrínseca de objetos conhecidos. Por isso, dizemos
que o ato de captação é um ato de posse imanente.
Vemos o sorriso de um filho, ouvimos as notas agudas de uma soprano na última
oitava, tocamos na superfície texturizada das teclas de um piano, cheiramos o bouquet
de vinho de guarda e saboreamos um risoto bem temperado.
A “culpa” disso tudo atende pelo nome de sistema nervoso sensorial e é o
responsável, por meio de uma diversidade de receptores, pelo envio das informações,
referentes ao meio interno e externo do corpo humano, ao sistema nervoso central.
Tentar perceber a correlação dos sentidos pode ser um desafio. Andar de
montanha russa provoca vertigens e dá “frio” na barriga. Ver uma imagem de um dedo
lesionado por um martelo dá-nos a sensação de dor. Alguns padrões de cor e formas
dão-nos a ilusão de vibração. Olhar para uma imagem de uma estrada com curvas pode,
desde logo, deixar-nos enjoados.
Eis o mistério dos sentidos, cuja captação da realidade:

a. Começa na sensação;
b. Termina na percepção.

27
Antes de mais nada, é importante entender que sensação e percepção são
processos complementares, mas diferentes, atuando no afã de fazer com que
conheçamos melhor os mundos inerte e vivente.
A sensação é a parte passiva, quando simplesmente recebemos um estímulo: as
ondas sonoras da corredeira do rio atingem o aparelho auditivo, fazem o tímpano vibrar
e, na forma de impulsos elétricos, são levadas pelo nervo auditivo até o cérebro. A partir
daí, entra em cena a percepção, a parte ativa, que assimila, decodifica e processa esses
dados.
A sensação ou o ato de sentir consiste na recepção intencional de uma forma
sensível e particular. Por intermédio da sensação, o ser humano capta as qualidades
sensíveis dos seres inertes e viventes, que são os aspectos desses seres que
impressionam nossos sentidos externos, como dizemos, ordinariamente, que ouvimos o
barulho de uma decolagem de avião ou contemplamos o verdejante de uma cobertura
florestal. A sensação é o átomo do conhecimento.
A percepção é o ato de consciência envolvendo duas ou mais funções dos
sentidos e, no caso do homem, a inteligência também. Assim, a sensação está para a
percepção como o simples está para o complexo. O resultado da operação dos sentidos
internos é a percepção, onde o objeto é apresentado de maneira unificada – primeiro
nível de captura da substância da realidade sentida –, com informações sobre o valor
concreto do dado percebido pelo sujeito – a primeira consciência sensível. Desse modo,
podemos dizer que a percepção está a meio caminho entre a captação dos sentidos
externos e a conceitualização abstrata própria da inteligência.
Também existem limites no conhecimento sensitivo, porque o objeto captado
pelos sentidos não corresponde a toda realidade sensível. No homem, por exemplo,
podemos captar um limitado espectro de luz e uma estreita faixa de som, o que não se
dá, respectivamente, com a coruja, que vê mais e melhor mesmo no escuro, e com o
cachorro, que acessa sonidos imperceptíveis para nossos ouvidos.
Por fim, convém recordar sempre que quem realiza a sensação é o sujeito como
um todo e os órgãos corpóreos são apenas instrumentos ou meios por meio dos quais o
mesmo sujeito sente a realidade exterior. Por isso, acertadamente, dizemos que “vemos
um mar revolto” e não “meus olhos veem um mar revolto”, pois é a alma – unida ao
corpo – que sente verdadeiramente a realidade mediante os sentidos externos.
No ser humano, ainda deve ser sopesado o fato de ser livre também nesse nível
sensitivo, ou seja, a liberdade dirige os sentidos externos, pois olhamos o que queremos

28
olhar e cheirar o que queremos cheirar. Os sentidos externos não são estritamente
passivos, mas respondem, desde o princípio, à liberdade que conduz ativamente a
atividade sensorial.
A vida do ser humano exige não apenas a recepção da realidade presente, mas
também a captura de realidades ausentes, pois, se não fosse desse modo, ele não poderia
realizar movimentos de busca de ditas realidades. É preciso, ademais, que as sensações
não sejam apresentadas de maneira dispersa, mas unificada, no sujeito, de forma ser
possível a percepção da realidade de forma unitária e coesa.

4. Conhecimento sensível: sentidos internos

Os animais dotados de instintos, como o próprio homem, capturam o valor da


conveniência ou inconveniência da realidade externa em relação à sua própria
subjetividade. Essas razões mostram a insuficiência dos sentidos externos para explicar
o comportamento dos seres mais elevados na escala existencial, como o homem.
Portanto, é necessário realizar uma expansão das faculdades operativas no nível do
sensível: adentraremos nos sentidos internos.
A diferença com os sentidos externos baseia-se na diferença de objetos de cada
um deles, dado que os sentidos externos capturam o exterior, enquanto os sentidos
internos estão voltados para as sensações apresentadas pelos sentidos externos. Portanto,
eles são chamados de sentidos externos, não em virtude de se situarem na superfície de
nosso corpo, mas porque eles objetivam o exterior, ou seja, a realidade física ou as
coisas quando elas provocam alterações em nosso corpo.
Os sentidos internos também são assim chamados, não porque estejam dentro do
nosso organismo, mas porque objetivam as alterações produzidas pela realidade junto
aos sentidos externos. Os sentidos internos subdividem-se em dois grupos:

a. Inferior: correspondente ao sensório comum ou o sentido comum;


b. Superior: correspondente à imaginação, à memória e à cognitiva.

O sensório comum ou o sentido comum é a faculdade responsável pela


integração das sensações. Já vimos como os sentidos externos recebem várias sensações

29
e que cada sentido possui um objeto proporcional ao estímulo que recebe, como os sons,
as luzes, as cores, os aromas e os sabores.
Todas essas sensações precisam ser unificadas para se possibilitar a identificação
das realidades apreendidas, já que cada sentido externo tem seu próprio objeto. Por isso,
o sensório comum ou sentido comum entra em cena para culminar a tarefa de unificação
e, como, nessa síntese sensorial, intervém todo o córtex cerebral, trata-se de uma
faculdade orgânica.
A dita unificação sensorial é um dos aspectos da percepção, conforme já
explicado antes. As sensações são apresentadas, no sujeito, mescladas umas com as
outras, sobrepostas com outras do mesmo tipo e mesmo integradas entre si. A chamada
síntese sensorial é um conjunto de sensações unificadas, como a cor vermelha de um
caldo de morango, a suavidade de um cabo de madeira de uma panela francesa, o sabor
característico de uma cachaça envelhecida em tonel de carvalho e mesmo possibilitar
reconhecer uma fatia de presunto italiano e diferenciá-la de uma bola de futebol.
A síntese sensorial capta não apenas as qualidades sensíveis secundárias – as
características próprias de cada sentido externo –, mas também as qualidades sensíveis
primárias – o número, o movimento, o repouso, a figura, a magnitude, a quantidade,
entre outras – qualidades que são percebidas por vários sentidos ao mesmo tempo.
Mediante a síntese sensorial, as sensações são unificadas e atribuídas a um
objeto, formando uma unidade das diferentes qualidades sensíveis primárias e
secundárias a ele atribuídas, como uma pintura ou uma escultura e, dentro dessas artes,
a pintura de Da Vinci e a pintura de Van Gogh, a escultura de Michelangelo e a
escultura de Rodin. Assim, as coisas são capturadas como distintas umas das outras e,
ao mesmo tempo, dentro dos sujeitos cognoscentes que apreendem tais qualidades
sensíveis.
É por isso que dizemos que, nesse nível, ocorre a primeira captura da substância
das coisas, uma espécie de organização primária da percepção. Além disso, o sentido
comum torna possível distinguir entre os diferentes tipos de sensações. Por exemplo,
somos capazes de distinguir não apenas uma cor da outra, um som agudo de um grave,
mas também qualquer cor de qualquer som.
Essa distinção só pode ser feita por um senso específico, o sentido comum, em
que duas sensações, como no exemplo, estão presentes: a visão e o som. Nem a visão e
nem a audição podem capturar essa distinção, pois cada sentido é especializado em seu
próprio objeto.

30
Finalmente, atribui-se ao sentido comum a função da consciência sensível, ou
seja, "o que nos faz sentir o que sentimos". O sentido comum conhece os atos
cognoscentes dos sentidos externos, porque sentir que se vê ou que se ouve não
corresponde a sentir nem a faculdade (de ver ou de ouvir) nem os objetos (a cor ou o
som), mas aos atos em si.
Quando recebemos e unificamos sensações, de alguma forma, captamos a nós
mesmos como o centro receptor dessas sensações. Dessa maneira, o sentido comum é
uma espécie de “sentido central”, que serve como ponto de convergência entre os
sentidos externos e os internos, recebendo as informações, advindas dos diversos
sentidos, comparando-os e julgando-os em sua unidade e diversidade.
Contudo, não é suficiente receber todas as informações. É preciso, também,
conservá-las, para que sejam percebidas ou reproduzidas depois, quando o objeto estiver
ausente dos sentidos externos. Este é o papel da imaginação ou fantasia, cuja função é a
de abstrair as impressões sensoriais, conhecidas por fantasmas, imagens ou abstrações,
para que sejam utilizadas, no futuro, na ausência de um objeto perceptível. A
imaginação constitui a fonte a partir da qual o intelecto deve haurir o conteúdo de seu
objeto propriamente dito.
A imaginação é a matéria-prima indispensável para que haja as percepções
futuras. Ela tem quatro funções:

a. Função onírica: relativa aos sonhos, a imaginação combina imagens


sem que nós, conscientemente, a façamos. Consistem em verdadeiras e
próprias sínteses de objetos, de fatos e de discursos que se dão por meio
de formas e graus do fantástico, do maravilhoso, do inaudito e do irreal;
b. Função estética: os elementos captados na realidade acabam por serem
combinados e concretizados em combinações harmoniosas e que
exprimem o estado de espírito de seu criador numa forma nova e apta a
suscitar deleite artístico nos outros;
c. Função prática: a imaginação completa o pensamento lógico, porque,
muitas vezes, chega-se a certas soluções de problemas concretos e
triviais não por meio do cálculo ou raciocínio frios, mas pela perspicaz
intuição da imaginação;
d. Função especulativa: a imaginação concorre para a formação das
construções intelectuais da ciência e da filosofia.

31
Daí porque Tomás de Aquino denomina a imaginação de “tesouro das formas
recebidas pelos sentidos10”. A síntese sensorial elaborada pelo sentido comum não é
algo passageiro, mas, de alguma forma, permanece estável no sujeito, a fim de poder ser
sacada a qualquer momento. É necessário que exista outro sentido interno que mantenha
o que é percebido permanentemente e não se apague na fugacidade do tempo. A
imaginação busca, assim, fazer presente de novo (re-apresentar) algo que esteve
presente aos sentidos externos.
A imaginação trabalha relativamente à margem da realidade presente, porque
olha mais para o passado e, por isso, é também chamada de “o arquivo das percepções”.
Se a imaginação não retivesse as percepções sensíveis, aconteceria que todas as
percepções seriam sempre novas para o sujeito, o que, para nós, soaria um tanto
estranho.
Por exemplo, não seríamos capazes de desfrutar de um concerto para piano,
porque isso requer que a sucessão de sons harmônicos seja retida pelo sujeito como uma
unidade melódica. Neste sentido, a imaginação é uma continuação dos sentidos, porque
nela ocorre uma primeira integração espaço-temporal.
Mas a função da imaginação não se limita ao objeto ausente, porque também
completa a percepção dos objetos presentes com as percepções passadas. De fato, ao
descobrir a pegada de um cavalo, nossa imaginação completa a percepção com outros
dados sensíveis, como o tamanho, a forma e o odor, de tal sorte que a imaginação acaba
por nos permitir a representação do cavalo inteiro.
Dito de outra forma, a partir de um único dado sensorial, podemos reconstruir
todo o objeto ausente. Na realidade, tendemos a imaginar tudo o que pensamos, porque
não podemos conhecer o mundo se não for mediante a ação dos sentidos. Como a
imaginação é um arquivo de percepções, elas podem ser combinadas para obter novas
sínteses sensoriais, porque, às vezes, objetos imaginados não existem na realidade, mas
apenas na imaginação.
Desta maneira, podemos imaginar e representar hobbits e elfos não porque
percebemos algum dessas criaturas mitológicas, mas porque podemos combinar
imaginativamente um homem mais baixo e mais gordo no estômago, com pernas curtas,
uma face redonda e jovial e bem peludo do tornozelo aos pés, no caso dos hobbits, e um
humanóide de estatura esguia e tipo físico mais magro e leve, dotado de muita agilidade,
10
Suma Teológica II, q. 78, a. 4.

32
com olhos amendoados e orelhas pontiagudas, no caso dos elfos. É por isso que a
fantasia é o sentido da irrealidade.
De fato, a imaginação é muito plástica e fornece imagens para boa parte da vida
psíquica e da atividade humana, como se dá na atividade artística e simbólica, na técnica
e nas invenções, na literatura e narrativa fantásticas, entre tantos outros campos do saber
humano.
Assim, a imaginação, no homem, é governada pela vontade, embora, em estados
de inconsciência, como nos sonhos ou pesadelos, a imaginação escape a seu controle.
Contudo, sob a batuta da vontade, a imaginação adquire uma forma de criatividade
típica da atividade artística.
Mediante a atividade livre do artista, novas realidades ficcionais são criadas e
destacadas de eventos históricos reais. Neste sentido, o artista é um criador da beleza
agregada ao mundo natural. Aqui, novamente, vem à tona o poder da liberdade humana
em também ser capaz de permear os níveis imaginativos, dotando-os de uma
originalidade e força criativa desconhecida em outros seres naturais.
Entretanto, para que a imagem ou fantasia não se perca, é necessária uma
terceira função, chamada de memória ou reminiscência, a faculdade capaz de armazenar
e conservar essas informações. Semelhante ao que acontece com o sentido comum, o
qual precisa do "arquivo" da imaginação, assim também a estimativa, a ser estudada
logo em seguida, requer outro sentido interno que preserve as estimações feitas
anteriormente.
A função da memória é a de lembrar. Ao preservar as estimações, o ser humano
ganha experiência sobre coisas singulares externas e de como se comportar em relação a
elas. Sabemos se gostamos de carne vermelha ou de carne branca ou se correr todo dia
nos convêm ou não e, assim, preferimos ou as rejeitamos as coisas de acordo com essa
experiência fornecida pela memória.
A experiência se soma na memória e, inclusive, reforça nossos instintos e
inclinações. Mas a memória não apenas preserva as estimações da estimativa, mas
também os atos do ser vivo, isto é, retém a sucessão temporal do próprio viver, das
percepções, pensamentos e outras coisas.
Em outras palavras, a memória preserva o tempo interior, ou seja, a atividade
interior vivida. Desse modo, a memória dá continuidade à intimidade subjetiva, pois
possibilita a conexão de atos cognitivos. Em certo sentido, a memória é a condição de
possibilidade da descoberta e da preservação de nossa identidade e a maneira de se

33
relacionar com o passado, conservando-o e vivendo-o afetivamente. Sem ela, não
saberíamos o que fizemos ontem, quem são nossos pais, quem somos, que recursos
temos e como devemos usá-los, entra tantas outras coisas.
A memória é seletiva, porque sua capacidade de retenção é limitada e, embora
ela não esteja totalmente sujeita à liberdade, lembramos de coisas que gostaríamos de
esquecer, esquecemos outras que estamos interessadas em lembrar. Mas, dentro de
certos limites, podemos construir nossa própria memória e esse é o fundamento de todo
aprendizado intencional.
Por fim, o quarto sentido interno é a estimativa (nos animais irracionais) e
cognitiva (no animal racional). Observamos, na natureza, que os animais são capazes de
captar a conveniência ou o perigo de uma realidade exterior, de maneira que seu
comportamento seja justaposto à dita captação.
Por exemplo, a compreensão do perigo por parte da zebra ao perceber a chegada
de uma alcateia de leões não ocorre nem pelo sentido comum e nem pela imaginação.
Como a zebra “sabe” que o leão é perigoso e, por isso, ela deve fugir? A resposta é
simples. Ela é capaz de valorar ou estimar a realidade externa com respeito à própria
subjetividade. A estimativa, nos animais irracionais, consiste em relacionar uma
realidade externa à sua própria realidade orgânica.
A estimativa é uma certa antecipação do futuro, porque ela rege o
comportamento que o animal irracional terá em relação ao objeto avaliado. A faculdade
que estima o valor de uma realidade singular externa em relação à própria singularidade
orgânica é a mesma que faculdade que governa o próprio comportamento a respeito de
cada realidade singular externa.
É por isso que a estimativa direciona a ação prática daquilo que é valorado. Ao
se captar a conveniência ou o perigo, a zebra aciona as habilidades motoras, seja com
um movimento de atração ou rejeição. A partir da estimativa, há uma emoção – positiva
ou negativa – ao que a antropologia clássica chama de paixão.
No conhecimento humano, a faculdade da estimativa é dotada de uma riqueza
maior, porque está impregnada dos distintivos da racionalidade e da liberdade. Por essa
razão, no homem, essa faculdade é chamada de cogitativa (do latim, cogito, pensar) ou
razão particular para distingui-la da razão universal ou pensamento. Na cogitativa
humana, diferentemente da estimativa, há uma certa comparação (collatio) entre as
percepções singulares, o que já permite um certo juízo prudencial.

34
Por isso, no homem, a cogitativa tem a capacidade não só de julgar as
informações recebidas, provenientes dos sentidos e armazenadas na memória, em forma
de imaginação ou de fantasia, mas de ir além, comparando-as e criando novas situações
ou dados que não tenham, necessariamente, relação com a realidade observada.
Assim, diferentemente das funções dos sentidos internos precedentes, que são,
eminentemente, passivas, as funções cognitiva e estimativa são ativas, especialmente no
homem. De qualquer forma, as funções estimativa e cognitiva são imprescindíveis, ao
prepararem a imaginação ou a fantasia para abstração do universal.
Portanto, cabe à cognitiva preparar as fantasias (particular), fazendo-as mais
perfeitas e ricas de conteúdo em potência, para que sejam transformadas em ato
(universal) pelo intelecto agente do homem. O sentido interno da cognitiva tem, pois,
uma função intermediária entre os sentidos internos e a razão humana.

5. Considerações finais

Aprendemos que os níveis de conhecimento são vividos pelo homem de modo


consciente e livre e, como efeito disso, a maneira “humana” de vivê-los envolve sempre
uma perspectiva que vai além dos fins da espécie (“intraespecífica”), ou seja, uma
perspectiva “metaespecífica”, na medida em que, em relação aos bens conhecidos, não
só os conhece como é capaz de amá-los, diferentemente dos animais irracionais.
O homem conhece as coisas. A primeira pergunta que fizemos (segundo o
conhecimento testemunhal de nossos pais) foi, quando tínhamos acabado de começar a
andar, “o que é isso?”. Então, podemos afirmar que uma pergunta gnosiológica é uma
pergunta infantil. E pergunta infantil é pergunta atrevida, pergunta de quem acabou de
chegar no mundo. Melhor: é pergunta de quem não foi subjugado pelo mundo.
Toda realidade, enquanto existente, é objeto de conhecimento humano, direta ou
indiretamente. Nesse sentido, o objeto do conhecimento humano é infinito, porque não
está aberto a um tipo determinado de seres (uns iluminados), mas a todos os seres e,
assim, goza de uma máxima abertura. “O conhecimento é, de alguma maneira, todas as
coisas”, dizem Aristóteles e Tomás de Aquino.
Contudo, que o homem possa conhecer as coisas não quer dizer que ele conheça
essencialmente a realidade, isto é, com seu conhecimento, ele não esgota a essência da
coisa. Vejamos, como exemplo, os mais recentes estudos neurocientíficos sobre

35
recuperação de lesões no córtex cerebral e as mais novas descobertas astrofísicas feitas
pelo telescópio James Webb.
Em certo sentido, a essência das coisas é ignorada por nós, ainda que isso não
nos impeça de conhecer as propriedades ou aspectos essenciais da realidade. Dito de
outra maneira, nosso entendimento é aspectual, discursivo e não esgota a mesma
realidade, porque sempre pode conhecê-la melhor.

Indicação de leitura: http://www.aquinate.com.br/textos/o-papel-dos-sentidos-


internos-na-teoria-do-conhecimento-de-tomas-de-aquino/

Reflita: Ver, ouvir e tatear não são operações meramente passivas, mas, por
outro lado, são também operações ativas para se extrair a informação da realidade que
nos interessa ou atrai? A linguagem reconheceu esse dinamismo orgânico e, por isso,
criou, a par dos termos anteriores, eminentemente passivos, outros em que se sublinhe a
ação propriamente dita, como, vemos e observamos, cheiramos e aspiramos, ouvimos e
escutamos, provamos e degustamos, tocamos e apalpamos? Procure justificar sua
posição à luz do dinamismo antropológico humano.

36
UNIDADE III. ATO DO CONHECIMENTO: ERROS FILOSÓFICOS, NÍVEIS
RACIONAL, INTELECTUAL, PESSOAL E O PROBLEMA DA VERDADE

1. Introdução

Quanto à fiabilidade do conhecimento sensitivo obtido, três correntes filosóficas


clássicas pecam quanto a isso: nominalismo, empirismo e idealismo. Cada uma delas, a
seu modo, não consegue articular bem a dimensão da adequação com a da reflexão no
tema da verdade, pois tendem a absolutizar uma dimensão em prejuízo da outra e a
dimensão extrapolada não pode ser sustentada de modo isolado, na medida em que
ambas as dimensões só se podem dar em regime de mútua articulação.
Ao cabo, o que se tende a perder, nas três perspectivas clássicas, é a capacidade
do homem de conhecer a verdade das coisas e, somado ao fato de que, como não há
espaço para a metafísica nessas mesmas três perspectivas, então, a articulação do ser
com o conhecimento resta inacessível. Dito de outra maneira, o grande ausente é o
próprio conhecimento e, como efeito, a própria verdade, entendida como adequação da
mente à realidade.
No conhecimento racional, aprenderemos que ele é formado por razão formal,
razão teórica e razão prática. Umas vezes nos dirigimos para a contemplação, outras
para o agir e, num caso como noutro, sempre galvanizados por atos/hábitos abstrativos e
generalizantes.
No conhecimento intelectual, veremos que o conhecimento racional só é
conhecido como uma potência ou faculdade operativa se for reconhecido desde uma
instância superior a ele, um ato que a ative. Este ato não ativa diretamente a razão, mas
se vale de um instrumento para tanto: um hábito inato conhecido por sindérese. Mas não
é só. O homem ainda goza do hábito dos primeiros princípios, pelos quais conhecemos
as primeiras diretivas extramentais reais, e do hábito da sabedoria, pelo qual
conhecemos o próprio ato de ser pessoa.
Por fim, estudaremos o conhecimento pessoal, o nível cognitivo mais ativo e
superior em nós. É inatamente ativo, por isso pode ativar sucessivamente o potencial
humano, e seu tema é a realidade cognoscente superior, o ser divino, a origem e o

37
destino pessoal deste saber. O intelecto pessoal é o conhecimento superior natural do
homem.

2. Erros filosóficos

Acerca do conhecimento sensível ou sensitivo, temos três conhecidos erros


filosóficos:

a. Empirismo: sustenta que, no conhecimento humano, tudo é material,


isto é, que o ato de conhecer ou o objeto conhecido são os neurônios,
conexões neurais, etc. O erro desta corrente está no fato de que nem o
“objeto conhecido”, nem o “ato de conhecê-lo” e nem o “sobrante
formal” são materiais;
b. Idealismo: defende que não podemos conhecer a realidade externa
como ela é, porque tudo o que conhecemos são “ideias” e, como estas
são internas à razão, não podemos saber o que é externo a ela. O erro
desta corrente está no fato de que conhecemos o real físico, porque o
objeto ou forma possuída pelo ato de conhecer é inteiramente
intencional, ou seja, é pura referência, embora aspectual, ao real;
c. Nominalismo: afirma que só conhecemos o real singular por intuição e
que, portanto, as ideias ou objetos de pensamento são constructos
mentais que não guardam relação com o real. O erro desta corrente está
no fato de que o objeto conhecido é pura referência à realidade externa.
O fato de ser pura referência significa que ele se esgota com a
referência, ou seja, não há realidade física nele. É por isso que não
permanecemos nele, mas ele nos lança inteiramente na realidade em
relação à qual aquele objeto é intencional.

3. Conhecimento racional

38
A razão é a potência cognitiva humana superior. Mas não é o conhecimento
humano superior, porque, acima das faculdades operativas do ser humano, estão os
hábitos cognitivos inatos – conhecimento intelectual – e também o ato de ser, o qual,
segundo já estudamos, consiste no conhecer pessoal.
A razão é uma potência imaterial – não se sustenta num órgão – cujos atos
conhecem a verdade e esta, assunto que nos deteremos mais adiante, é necessária para
guiar a liberdade, pois queremos saber como as coisas são antes de tomarmos qualquer
decisão ou agir.
A imaterialidade da razão é verificada de várias maneiras:

a. Suas ideias são incorpóreas e universais;


b. Não tem um limite, ou seja, pode atender a objetos cada vez mais altos e
abstratos;
c. Pode negar seus objetos e, ao negá-los, mas não o conhecimento destes,
continua a saber mais do que antes;
d. Goza de uma certa referência, na medida em que a inteligência sabe, mas
também sabe que sabe, isto é, por meio de seus hábitos adquiridos,
conhece seus atos ou operações imanentes;
e. Sua capacidade de conhecimento pode crescer sem restrições graças aos
hábitos intelectuais.

A razão é, inicialmente, uma potência passiva, já que, no começo, não conhece,


mas, uma vez ativada, pode conhecer mais e mais e, por isso, torna-se uma potência
ativa. Quando ativada, exerce atos de conhecimento, operações imanentes e, da mesma
forma, adquire perfeições cognitivas superiores aos hábitos abstrativos.
No conhecimento racional, temos:

a. Razão formal: atos/hábitos abstrativos e atos/hábitos generalizantes;


b. Razão teórica: atos de abstração, julgamento e raciocínio e hábito da
ciência;
c. Razão prática: atos de apreensão, juízo, balanço, deliberação e império
e hábito da prudência.

39
Na razão formal, temos:

a. Atos/hábitos abstrativos: permitem conhecer o que abstraímos e


sabemos que o fazemos;
b. Atos/hábitos generalizantes: por meio dos quais conhecemos ideias
cada vez mais gerais e com menos referência à realidade física, ao
mesmo tempo em que temos consciência de que exercemos tais atos.

O ato abstrativo é o primeiro e mais elementar ato cognitivo exercido pela


razão. Abstrair é apresentar uma forma universal que está fora do espaço físico e
temporal. Aqui, a presença é exclusivamente mental, porque, ao contrário do que se dá
na realidade física, não há movimento.
A abstração retira seus conteúdos dos objetos dos três sentidos internos
superiores – imaginação, memória e cogitativa – e, como os objetos da memória e
cogitativa são referidos ao passado e ao futuro, a abstração articula o tempo em que a
memória e a cogitativa conhecem. Conhece o tempo, mas não é temporal.
Por exemplo, o carro pensado é universal e presente enquanto se pensa, ou seja,
está fora das condições do espaço-tempo. Por isso, falta a tal carro a concretude do carro
percebido aqui e agora nesta rua que atravesso ou as particularidades (acidentes) do
carro imaginado.
Se o objeto abstrato está fora das condições de espaço-tempo, o ato de abstrair
também deve estar necessariamente. Portanto, é no primeiro nível cognitivo humano
que já percebemos que há algo em nós que transcende o espaço físico e temporal e,
assim, a inteligência, desde seu primeiro ato, declara não ser matéria, cujo efeito
imediato é o de não estar sujeita às leis do universo físico.
Abstrair é tornar presente os objetos dos sentidos internos, mas
desparticularizando-os ou universalizando-os, isto é, o abstrato é uma forma imaterial
que se refere ao sensível, da qual tal forma foi abstraída. O abstrato é apenas um para
cada ato de abstração (se “cavalo” é abstraído, “árvore” não é abstraída), é imune a
mudanças e separado das condições materiais (o “cavalo” e a “árvore”, como objetos
abstratos, não se depauperam e nem têm um fim).
O objeto abstraído ocorre sempre junto com o ato de conhecer, o que significa
dizer que não há objeto abstraído sem o ato de abstrair e vice-versa. Por isso, a
conhecida hipótese das “ideias inatas” é um erro filosófico. Como o ato de abstrair nos

40
permite conhecer o tempo sem ser temporal, com ele podemos interromper e mudar o
curso dos eventos físicos, ato muito útil para nossa práxis vital, na medida em que, ao
invés de nos submetermos a tal curso – como todos os demais seres viventes –, nós o
alteramos, como podemos ver nas dimensões da política e da cultura humanas.
O ato de abstrair é limitado, porque conhecemos formando um objeto de
pensamento (uma forma) e isso, por definição, como já estudamos anteriormente, é
sempre limitado ao dado aspectual do objeto: num cavalo ou numa árvore, não
conhecemos a totalidade da realidade da qual este objeto foi abstraído, pois há espaço
para um conhecimento posterior e mais profundo11.
O hábito abstrativo é o ter em conta de que conhecemos nossas operações
abstrativas e, portanto, temos nossos atos de abstração, ou seja, sabemos que tais atos
estão sob nosso poder cognitivo. A prova de que temos esse hábito é que abstraímos
quando queremos.
O ato de abstrair esgota-se em conhecer o objeto abstrato que ele apresenta,
porque é comensurável com ele. Por isso, conhecer o ato de abstrair é típico de um saber
superior a esse ato: o do hábito abstrativo, adquirido por um único ato de abstração,
porque, quando percebemos que abstraímos um objeto de pensamento (“cavalo”),
sabemos que, como este objeto de pensamento, nós podemos abstrair muitos outros da
realidade física (“árvore” ou “pedra”) e podemos fazer isso sem qualquer dificuldade 12.
Portanto, abstraindo um objeto, a perfeição da abstração é adquirida para sempre e sem
a possibilidade de perdê-la.
Conhecemos esse hábito por meio de um conhecimento superior à razão que nos
permite perceber todos os hábitos que a razão possui. É um hábito inato que ativa a
razão e é precisamente essa ativação que confere hábitos e perfeições ao racional. Este
conhecimento superior não é, portanto, racional, mas intelectual e foi chamado de
11
Nenhum ato de abstrair é "auto intencional", porque nenhum ato é "intencional". O “intencional” é
relativo – exclusivamente – ao objeto do pensamento e, precisamente por isso, o "intencional" não é real.
Defender a “auto intencionalidade” do ato de abstração é um erro filosófico, cometido, em sua gênese,
por Scoto, seguido, séculos depois, por Brentano, Husserl, Scheler, Heidegger, além de muitos
fenomenólogos e neotomistas.

12
Por isso, o empirismo (como o materialismo), que não capta a abstração, não pode dar conta do
atemporal e não-espacial e, portanto, do universal. Como efeito, em todas as épocas da história da
filosofia, esta corrente sempre encalhou nesse primeiro nível do conhecimento racional humano. Na
verdade, esse tem sido seu cavalo de batalha.

41
sindérese na filosofia medieval, algo que analisaremos mais adiante, e é equivalente,
como também veremos mais tarde, ao que a filosofia moderna chama de eu.
Os atos e hábitos generalizantes são atos e hábitos superiores ao ato de
abstração e seu hábito correspondente. Constituem o que Tomás de Aquino denomina
de “via de abstração formal” e recebe esta denominação em virtude desta faculdade
operativa conhecer “formas” pensadas.
Os atos generalizantes são atos que conhecem objetos de pensamento geral que
são chamados de "ideias". Tais atos são múltiplos e progressivos em generalização, isto
é, eles formam ideias cada vez mais abrangentes. Quando pensamos em “cavalo”,
podemos pensar em algo mais geral sucessivamente: “mamífero”, “animal irracional”,
“vida” e assim por diante.
Esta via operativa procede segundo espécies e gêneros. Portanto, permite-nos
estabelecer definições, porque, para tanto, necessitamos conhecer o “gênero” e a
“diferença específica”. Os atos de conhecer próprios desta via operativa são, por
exemplo, o definir, o perguntar, o juízo lógico, o silogismo, etc.
Esta via situa-se cada vez mais separada da realidade física e conhece cada vez
mais ideias gerais e mentais, como, por exemplo, “indeterminado”, “infinito”, “tudo”,
etc. Nesta via operativa, não é possível conhecer os princípios reais, ou seja, aquelas
dimensões da realidade física que os pensadores clássicos gregos e medievais
denominavam de causas: material, formal, eficiente e final.
Os hábitos generalizantes permitem perceber que universalizamos e lançam
luzes sobre atos que conhecem objetos gerais. Esta maneira usual de operar é a de
algumas disciplinas formais, como a lógica, a dialética e a retórica. Muito do trabalho
das ciências positivas prossegue usando esses hábitos. Da mesma forma, as disciplinas
humanísticas que usam o chamado “método do caso” seguem este caminho operativo da
razão.
Os hábitos generalizantes não generalizam, mas permitem conhecer os atos que
generalizam, ou seja, os atos que formam ideias cada vez mais gerais. Perceber que se é
conhecido por gêneros e diferenças ou que existem casos que se justapõem ou
constituem exceções a tais generalizações é a característica desses hábitos. Esses hábitos
também são adquiridos – como o hábito abstrativo – com um único ato: desde que
adicionamos, aprendemos como adicionar para sempre.
Já afirmamos que nosso conhecimento é aspectual, discursivo e não esgota a
realidade. Nesse conhecer do mundo circundante, a razão humana é direcionada à ação,

42
algumas vezes, e, outras, à contemplação da verdade. Devemos sublinhar que não são
duas potências diversas, mas duas funções diferentes da mesma faculdade (a razão) e
que se distinguem por seus propósitos: razão teórica e prática.
Na razão teórica, a inteligência procura e tem, por objeto, contemplar a verdade
em si mesma. No conhecimento teórico, a realidade "mede" o sujeito, ou seja, o sujeito,
ao adequar-se à realidade, alcança a verdade. Sua missão é "refletir" a realidade
(speculum, do latim, espelho) e, por isso, é igualmente conhecida como razão
especulativa.
Um astrônomo que descobre uma nova lei astrofísica não a cria, mas revela um
comportamento constante e já presente na natureza dos corpos celestes, assim como, do
mesmo modo, o matemático que cria uma lei exata ou um botânico que desvela uma
nova constante biológica.
Na razão prática, a inteligência procura e tem, por objetivo, dirigir a ação
prática do sujeito. Nesse sentido, diz-se que o objeto da razão prática é a "verdade
prática", a verdade do aqui e agora nessas circunstâncias concretas. O bem a ser feito
pelo sujeito é contingente, porque pode ser diferente, precisamente porque o sujeito
deve "fazê-lo" e não está dado de antemão.
Na razão prática, o sujeito "mede" a realidade, porque depende da razão e isso
pode ser melhor compreendido por via das duas dimensões dessa razão: a poiese (do
grego, poiesis) e a práxis (do grego, praxis).
Na ordem da poiese, a razão é direcionada ao conhecimento técnico e artístico
que configura a realidade extra-subjetiva, por meio de objetos, produtos e artefatos, ao
mesmo tempo em que aperfeiçoa o sujeito em seu saber-fazer. Por exemplo, o
carpinteiro sabe como fazer artefatos de madeira e aperfeiçoa sua técnica fazendo
cadeiras, mesas, armários e utensílios domésticos.
Na ordem da práxis, a razão prática é dirigida ao agir moral, aperfeiçoando o
sujeito como ser humano. É um florescimento global do indivíduo e não se limita a um
aspecto, o meramente técnico, de sua atividade. Por exemplo, o homem que pratica atos
de justiça, aos poucos, vai-se tornando um indivíduo justo e, por essa razão, diz-se ser
ele um "bom homem", enquanto um exímio carpinteiro é tido por um “bom artesão”,
qualificativo que não representa nada em termos de valor moral como pessoa.
Como a razão tem um lado teórico e outro prático, cabe distinguir dois grupos de
operações cognitivas. As operações da razão teórica são:

43
a. Abstração: também chamada de apreensão, mediante a qual obtêm-se
conceitos ou ideias, como, por exemplo, pedra, árvore e cavalo, que se dá
por meio de uma “luz intelectual”, denominada de “entendimento
agente”, cujo homem possui e que se projeta nas imagens elaboradas pela
imaginação, a partir das quais ele abstrai ou distingue o essencial, a fim
de conceber o conceito. O próprio da inteligência humana é conhecer o
universal no particular;
b. Julgamento: ato pelo qual afirmamos ou negamos a propriedade de um
objeto. O ato de julgamento é aquele que compõe e divide, afirma ou
nega algo da realidade física – acidentes – de algo também da realidade
física –substância. Junta e separa conceitos de acidentes com conceitos
de substâncias e nunca junta ou separa acidentes de acidentes ou
substâncias de substâncias, algo que só pode ser feito por enunciados
lógicos, porque estes não conhecem diretamente o real físico. A
expressão linguística do juízo é chamada de proposição: dizer que "o
homem é mortal" é uma proposição linguística que expressa um juízo
intelectual;
c. Raciocínio: consiste no discurso racional, isto é, numa cadeia de
proposições, logicamente conectadas, de tal maneira que, a partir de
algumas proposições verdadeiras já conhecidas, chegamos a outra
proposição verdadeira que antes não conhecíamos. Por exemplo,
"Sócrates é homem", "todos os homens morrem", "logo, Sócrates morre".
O raciocínio investiga o fundamento da realidade física, ou seja, o
"início" ou o “porquê” das quatro causas (material, formal, eficiente e
final), já conhecidas por meio do julgamento e da abstração. Se o
universo físico é uno – embora seja composto de quatro princípios ou
causas inseparáveis entre si –, deve ter um único princípio ativo que o
torna unitário.
                       
A razão prática é a função da razão pela qual a ação humana é dirigida. A
inteligência, em sua dimensão prática, apresenta o bem que pode ser feito pela vontade.
As operações da razão prática são:

44
a. Apreensão do bem: tem, por objeto, a complacência no bem que é
proposto à vontade. Por exemplo, estamos parados no semáforo e
comprar uns doces de uma cadeirante se apresenta, para nossa vontade,
como uma boa ação;
b. Juízo sobre o bem: o bem é julgado como possível – estou com dinheiro
trocado para comprar os doces – e conveniente – a cadeirante sofre de
severas limitações físicas, a venda desses doces é a fonte de seu sustento
e o exemplo de sua diligência é pedagógico;
c. Balanço intelectual: equacionamento dos meios destinados a alcançar o
bem desejado. É uma comparação entre as várias possibilidades
oferecidas – comprar ou não os doces, comprar apenas ou mais de um,
ignorar a cadeirante e comprar os doces na padaria que fica a poucos
metros ou simplesmente dar o dinheiro sem comprar nada;
d. Deliberação: também chamada de conselho, trata-se da decisão sobre os
meios mais adequados para alcançar o bem captado anteriormente –
posso tomar a iniciativa da compra ou esperar que a cadeirante me
interpele. É um juízo prático pelo qual a inteligência inclina-se para o
meio mais apto. No juízo prático, diferentemente do teórico, não há
evidências e, por essa razão, o juízo prático culmina numa decisão da
vontade e não na descoberta de uma verdade apresentada ao
entendimento humano;
e. Império: é um comando, isto é, a ordenação intelectual das ações
destinadas a alcançar o bem proposto. Essa ordenação é realizada pela
inteligência movida pela vontade e atualizada, no indivíduo, pelo hábito
da prudência, segundo o qual, cuida-se da capacidade de decidir bem em
situações concretas. A prudência é a reta razão no agir – do latim, recta
ratio agibilium13 –, o hábito que aperfeiçoa a razão prática.

4. Conhecimento intelectual

A pessoa possui um conhecimento intelectual superior ao conhecimento


racional. A razão só é conhecida como uma potência ou faculdade operativa se for
13
Suma Teológica, II-II, q.47, a.2.

45
reconhecida desde uma instância superior a ela, um ato que a ative. Este ato não ativa
diretamente a razão, mas se vale de um instrumento para tanto: um hábito inato que a
filosofia medieval chamou de sindérese. Ademais, a pessoa ainda goza do hábito inato
dos primeiros princípios, pelos quais conhecemos as primeiras diretivas extramentais
reais, e do hábito inato da sabedoria, pelo qual conhecemos o próprio ato de ser pessoa.
Os hábitos inatos são perfeições cognitivas que possuímos desde que existimos e
que estão sempre agindo, embora não tenhamos consciência deles ou de seu
desempenho, nem no início de nossa vida nem posteriormente. Não afetam a razão, pois
ela está, inicialmente, em grau zero, ou seja, não foi ainda ativada. São três:

a. Sindérese: abertura cognitiva para o conhecimento da natureza humana


possuída (potências ou faculdades operativas);
b. Primeiros princípios: abertura noética para o conhecimento dos
fundamentos da realidade externa;
c. Sabedoria: abertura constitutiva para o conhecimento de si mesmo.

O hábito da sindérese é o conhecimento usual que temos de todas as potências


ou faculdades operativas humanas. A filosofia contemporânea, que ignora os hábitos
inatos, tende a falar do “eu”. Como hábito inato, ou seja, um dom da criatura recebido
de Deus e não adquirido, indica posse ou perfeição (do latim habere) e não pode
pertencer à razão, porque a razão é, inatamente, uma potência passiva (tabula rasa). Por
intermédio da sindérese, conhecemos nossa natureza e a lei natural, de maneira que esta
abertura cognitiva para nosso interior indica os marcos para o crescimento da natureza
humana, o que se dá pela dimensão da ética das virtudes.
Por um lado, a sindérese ativa e conhece a razão e a vontade. Por ser um hábito
cognitivo e inato, é a fonte de todo o conhecimento adquirido racional subsequente. Na
verdade, a sindérese é o instrumento que a pessoa utiliza para ativar e desenvolver a
razão em todas suas vias operativas – formal, teórica e prática – e para dotá-la de maior
capacidade cognitiva por meio de hábitos adquiridos.
Por outro, a sindérese também conhece as potências ou as faculdades sensíveis.
Esse hábito inato é, como efeito, a porta aberta que a pessoa, inicialmente, tem para
assumir, ativar, iluminar e desenvolver sua natureza humana. É, portanto, uma luz que
ilumina o que há de humano abaixo dela.

46
A sindérese é o “eu”, mas o “eu” não é a “pessoa”, mas sim dela. Ninguém é
reduzido ao seu “eu”. O "eu" é a porta aberta da pessoa para o ser humano inferior que
pertence a ela. Por meio da sindérese ou do "eu", cada pessoa conhece e governa estas
potências ou faculdades operativas. Dito de outra forma, a sindérese as personaliza. Do
contrário, essas potências não se desenvolvem e, consequentemente, são menos úteis
para a pessoa.
A sindérese tem uma dimensão cognitiva, que ativa a razão, e uma cognitiva,
que ativa a vontade. A sindérese é o olhar aberto que descobre o sentido e a verdade das
potências ou faculdades operativas humanas. No campo da ética, a sindérese tem um
papel primordial, porque conhece os primeiros princípios da práxis humana.
As potências ou faculdades operativas que constituem a natureza humana não
são estáticas, mas vivas e, portanto, projetadas para agir: são "princípios de operações".
Por isso, quando a sindérese encontra estas potências, ela sabe como podem atuar, qual
sua finalidade e, consequentemente, o que lhes cabe para um atuar bem ou mal.
Com efeito, a ética não pode existir sem bens reais, sem normas na inteligência e
sem virtudes na vontade. Se algum destes três eixos faltar, a ética resultante é falha.
Como a sindérese ativa a inteligência – para que exerça as normas – e a vontade – para
que desenvolva as virtudes, como a prudência, a justiça, a fortaleza e a temperança –, a
sindérese favorece, respectivamente, que se conheça cada vez mais e melhor os bens
mediais, ou seja, promove a ética.
Nesta linha, a ética não estuda o ser, mas o agir humano, ainda que agir siga o
ser. Por isso, a sindérese conhece a ética e não a antropologia da intimidade pessoal
humana e, também por isso, ética não é antropologia, mas inferior a ela.
O hábito dos primeiros princípios é descerramento ao conhecimento dos
primeiros princípios extramentais reais, os quais são independentes de nós e
fundamentam o real existente: o ato de ser do universo, o ato de ser divino e a
dependência de um do outro. Este hábito não visa ao nosso interior, mas ao que é
superior e exterior ao homem: a verdade sobre o ser.
Este hábito mostra os fundamentos da realidade que nos cerca. De fato, quando
conhecemos a natureza das coisas intramundanas, presumimos que o universo existe
persistentemente, isto é, que não deixa de existir, que o ser divino existe e que o
universo depende de Deus.
O exercício progressivo deste hábito permite conformar uma disciplina filosófica
muito elevada, a saber, a metafísica, dotada de três partes: o estudo do ato de ser do

47
universo e suas quatro causas (ontologia), o estudo do ato de ser divino (teologia
natural) e o estudo da dependência entre ato de ser criado e o ato de ser divino (tratado
da criação).
É conveniente distinguir o nível cognitivo próprio do hábito dos primeiros
princípios de outros próprios da razão. Quando tais níveis confundem-se, há uma
tendência em se incluir na metafísica alguns temas típicos da filosofia da natureza
(causas), da teoria do conhecimento (objetos, atos, hábitos), da psicologia (potências ou
faculdade operativas), da ética (virtudes) e da antropologia (pessoa humana).
O hábito da sabedoria abre-nos à verdade sobre nós mesmos e nos faz alcançar
a intimidade pessoal humana. Por meio dele, sabemos que somos uma pessoa diferente
das outras, nova, irrepetível, com significado próprio e aberta ao florescimento de seu
ser ao longo de sua existência.
Este hábito irradia uma luz interna na intimidade humana e se imbrica com o
tema dos transcendentais pessoais: coexistência livre, conhecimento e amor pessoais.
Também proporciona o desenvolvimento de outra destacada disciplina filosófica: a
antropologia, graças a qual o homem conhece a si mesmo como um ser aberto à
transcendência.

5. Conhecimento pessoal

O conhecimento pessoal ou intelecto pessoal equivale ao que Aristóteles chamou


de entendimento ou intelecto agente. Este é o nível cognitivo mais ativo e superior em
nós. É inatamente ativo, por isso pode ativar sucessivamente o potencial humano, e seu
tema é a realidade cognoscente superior, o ser divino, a origem e o destino pessoal deste
saber. O intelecto pessoal é o conhecimento superior natural do homem.
Admitida a distinção de níveis entre pessoa e natureza humana, o intelecto está
no primeiro e não no segundo. Em termos tomistas, o intelecto pessoal está no nível do
ato de ser e não no da essência humana. Portanto, deve realmente ser distinguido dos
demais níveis do conhecimento anteriormente estudados.
Pessoa não equivale a natureza humana. Pessoa é o ato de ser do homem,
diferente em cada homem. Natureza corresponde ao dado comum a outros homens. A
pessoa é composta de várias perfeições inatas ativas, uma das quais é o intelecto

48
pessoal. Isto indica que somos, constitutivamente, luz cognitiva, luz da qual dependem
os hábitos inatos, que estão sempre em ato.
Sua função é a de, utilizando a sindérese, ativar a razão para que possa abstrair.
Se o intelecto agente não fosse cognitivo, já que é o ato que ativa todo nosso
conhecimento humano racional e do qual depende todo o nosso conhecimento
intelectual, tampouco seriam esses níveis cognitivos.
O intelecto agente e a sindérese não são a mesma coisa. A abstração, predicado
do intelecto agente, está ligada à sindérese, mas tal fato não indica que seja uma
operação imanente própria. Na verdade, como já vimos, a abstração é uma operação da
razão ou do conhecimento racional, por ela exercida quando é ativada pela sindérese. A
sindérese, por sua vez, pode ser vista como um instrumento do intelecto agente.
Se o intelecto agente está no nível do ato de ser pessoal, abstrair não pode ser
seu fim, porque o fim de uma pessoa não pode ser inferior a ela (abstrair está no nível
da razão). Se assim fosse, a pessoa restaria despersonalizada. O hábito é inferior ao ato
de ser, sendo um instrumento utilizado pelo ato de ser – a pessoa – para ativar a
inteligência desde seu primeiro ato – a abstração – até o último ato e hábito adquirido
em seus diversos caminhos de operação.
A maioria dos autores que, ao longo da história, estudou o intelecto agente,
afirmam que seu trabalho é abstrair. Mas esta visão está equivocada, porque temos
muitos níveis acima da abstração. Portanto, ele, por ser inferior, não pode dar conta dos
demais que lhe são superiores.
Na metafísica, depois de adquirido o conceito de Deus, Aristóteles não
conseguiu resolver as inúmeras aporias que esta aquisição comportava. E, aqui, no
intelecto pessoal, da mesma forma, adquirido o conceito do espiritual que está em nós,
ele também não conseguiu resolver as inúmeras aporias que daí derivam.
Dito intelecto é individual? Como pode ele vir “de fora"? Que relação ele tem
com a nossa individualidade e o nosso eu? E que relação tem com o nosso
comportamento moral? Ele está completamente subtraído a qualquer destino
escatológico? E que sentido tem o seu sobreviver ao corpo? Algumas dessas
interrogações não foram nem sequer propostas por Aristóteles.
Contudo, estariam destinadas a ficar estruturalmente sem resposta. Não que ele
não pudesse levantar tais interrogativos, mas porque, para estarem na ordem do dia-a-
dia e, sobretudo, para serem adequadamente resolvidas, estas questões demandariam a

49
aquisição do conceito de criação, o qual, como sabemos, é estranho não só para
Aristóteles, mas também para todo mundo grego.

6. Verdade e os erros contra a verdade conhecida

A verdade é o objeto dos quatro níveis de conhecimento humano: sensível,


racional, intelectual e pessoal. Como tais níveis são hierarquicamente diferentes,
embora todos tenham a verdade como objeto, a verdade captada em cada um deles é
diferente, na medida em que mais verdade é conhecida em alguns níveis do que nos
outros.
O contrário da verdade é o erro, o qual admite muitas dimensões, sobretudo duas
principais: o erro que nega a verdade conhecida e o erro que nega a verdade do
conhecimento humano. A verdade é o tema da razão, porque o conhecimento humano é
projetado para saber de acordo com a verdade.
No primeiro nível cognitivo, a verdade não é o real extramental nem o ato de
pensar, mas o que o ato de pensar conhece do real. A verdade é o “objeto” conhecido
como conhecido e não a realidade extramental conhecida, pelo menos no ato de
abstração. No mundo real físico, existe a realidade, mas a verdade está na mente quando
o real é conhecido.
Todos os atos humanos de conhecimento – sensível, racional, intelectual e
pessoal – conhecem de acordo com a verdade, mas a verdade não é explicitamente
conhecida como verdade em todos eles, mas por um só, já estudado aqui: o ato de
julgamento, situado no conhecimento racional.
Se não tivéssemos a capacidade de conhecer a verdade, conhecer o erro não seria
possível, porque conhecer é saber que o erro é realmente um erro. O erro deve ser dito
sempre em referência à verdade e não o contrário. Assim como o mal é ausência de
bem, o erro é ausência de verdade.
Afirmar ou negar que o dado conhecido não é tal como o é ou que é
exclusivamente como o sujeito conhece é paralisar a busca cognitiva. O erro é exercido
exclusivamente pelo sujeito, porque ele tem o poder de exercer ou deter seu saber.
Consequentemente, todos os erros são subjetivos e, em contraste, devemos notar que a
verdade não é.
A verdade:

50
a. Está na mente;
b. Distingue-se hierarquicamente;
c. É presente;
d. Corresponde-se com o amor.

Em termos estritos, a verdade está na mente. Sem uma mente que possa
conhecer, a verdade não existe. Aliás, o que existe é o real. O fundamento da verdade é
o ser das coisas, isto é, a causa daquilo que conhecemos e não a verdade, porque a
verdade é dada na mente. O real não é verdadeiro ou falso, mas, simplesmente, real.
A verdade ocorre em qualquer ato de conhecer por parte da inteligência e não se
dá apenas no nível dos atos, mas também no dos hábitos adquiridos. Nos atos da razão,
a verdade não é o real e nem o ato, mas o que o ato conhece do real ao confrontar com o
abstraído.
A semelhança é entre o conhecido (objeto) e o real. Além disso, a semelhança é
o conhecido, que é "intencionalmente" igual ao real. A verdade está na comparação
cognitiva, no confronto, na adequação, entre o saber e a realidade. Se a verdade envolve
adaptação ou confronto, é claro que a verdade não está no real, porque o real não é
semelhante a si mesmo, nem se compara a si mesmo.
O objeto pensado é uma "forma imaterial" que constitui o ato de pensar, ou seja,
uma forma apresentada pelo ato de conhecer. O conhecer, em sua primeira operação,
não capta explicitamente a natureza distintiva do físico, mas o torna explícito em outros
atos superiores. De resto, conhecer é possuir, mas não possuir o real como o real é, mas
sim sua semelhança, ou seja, o objeto pensado seria como uma fotografia sem papel ou
como um espelho sem vidro.
A verdade distingue-se hierarquicamente. Como temos muitos níveis
cognitivos, e estes são hierarquicamente diferentes uns dos outros, a verdade conhecida
em alguns é inferior à alcançada por outros. A verdade não é explícita na abstração,
porque nela não há adequação do ato com o real, mas sim similitude pura do objeto
pensado com a realidade da qual foi abstraído e nem no conceito, porque neste não se
conhece a correspondência de sua adequação ao real. É o ato de julgamento que
conhece este confronto, sendo a primeira morada da verdade.
Ademais, a verdade é mais intensa no conhecimento dos hábitos adquiridos,
visto que estes conhecem a verdade dos atos de conhecer, que são realidades imateriais
e, portanto, superiores às físicas. Também é possível conhecer verdades superiores ao

51
conhecimento racional: as verdades conhecidas pelos hábitos inatos e pelo
conhecimento pessoal.
Por outro lado, a verdade não é reflexiva nem por parte do objeto pensado nem
por parte do ato de pensar, porque nenhum objeto do pensamento é autorreferente –
caso contrário, não seria dotado de intencionalidade – e porque o ato de conhecer não é
intencional, isto é, ele não aparece no objeto do pensamento, na medida em que, sendo
imaterial, o ato não pode ser abstraído.
A verdade é presente assim que se pensa. Não é nem antes nem depois dos atos
de pensar serem exercidos, mas está presente no ato de pensá-los. O objeto do
pensamento é conhecido no presente. Não requer uma atenção eterna, porque é
descontínuo. O objeto pensado não é afetado pelo tempo. Portanto, a verdade é
atemporal.
Os atos de pensar são sucessivos, porque nem sempre estamos pensando. Isto
indica que, embora não sejam o tempo, há um tempo entre eles, mas não é o tempo
físico, porque os atos de pensar não dependem da realidade física, mas de uma potência
humana imaterial, a inteligência. Portanto, podemos dizer que a sucessão entre atos de
pensar é temporária, mas é um tempo distinto daquele da realidade física, conhecido
pelos pensadores clássicos como tempo da alma.
Se a verdade para além do tempo físico, ou seja, não é afetada por ele, e o
homem é capaz de se corresponder com a verdade, isso indica que, no homem há pelo
menos uma dimensão – o pensamento – que transcende o tempo físico e, como isso
mede todo o universo, o homem está, pelo menos por seu conhecimento racional, acima
do universo.
Em suma, o homem não é apenas uma peça solta no universo físico e, como
efeito, a dignidade humana é enorme e esta depende do homem corresponder à verdade,
correspondência esta que surge não só da admiração por ela, mas também do apreço ou
amor pela verdade. Então, a verdade corresponde-se com o amor.
Quanto aos erros contra a verdade conhecida, as principais correntes são:

a. Ecletismo;
b. Faticismo;
c. Materialismo;
d. Niilismo;

52
e. Provisorialismo;
f. Verificacionismo;
g. Culturalismo;
h. Convencionalismo;
i. Biologicismo.

O Ecletismo sustenta ser a verdade a escolha da melhor teoria ou doutrina,


segundo aquilo que nos pareça mais acertado. O eclético não é capaz de peneirar as
várias opiniões coletadas e nem tampouco classificá-las. Ademais, o eclético,
geralmente, não se preocupa em reconciliar as várias peças emprestadas de várias
“fontes da verdade”. A objeção ao ecletismo está no fato de que, se o critério da verdade
está num ato de vontade (escolha), então, esta tese só pode ser tida como verdadeira se
for a escolhida.
O Faticismo sustenta ser a verdade apenas aquilo que produzimos na práxis ou
que estejam nos fatos praticados. No marxismo, por exemplo, algo é verdadeiro na
medida em que é praticado socialmente, tese sustentada, de maneira semelhante, pelo
pragmatismo e pela Escola de Frankfurt. Esta hipótese tem, a seu favor, que as
realidades práticas – sociais, econômicas, culturais – feitas pelo homem também são
verdadeiras, na medida em que estas realidades estão em conformidade com os planos
ou projetos mentais humanos.
A objeção ao faticismo está em reduzir toda verdade à esfera da práxis (verdade
prática), porque nem toda verdade pode ser produzida ou feita. Por exemplo, Deus,
como Nietzsche advertiu, não pode ser produzido. Também pode ser objetado que “a
verdade é o que se faz” é uma teoria e não um produto ou prática social.
O Materialismo sustenta que apenas a realidade física é a verdadeira. Esta
opinião teve muitos poucos defensores na Antiguidade e se espalhou consideravelmente
nos séculos XIX e XX, mormente pelo evolucionismo. O materialismo não admite,
como válidas, outras formas de conhecimento que não sejam aquelas próprias das
ciências experimentais e relega ao âmbito da mera imaginação tanto o conhecimento
religioso e teológico, como o saber ético e estético.
Esta corrente observa haver mais realidade material do que aquela conhecida
pelo homem – único sujeito cognoscente – e que nada se reduz ao que o homem
conhece dela, o que é verdade. Como vemos, o materialismo acredita ser toda a
realidade de natureza estritamente material, inclusive a do conhecimento humano.

53
Diante deste postulado, devemos notar, como já estudamos, que nem o ato de
conhecer é material e nem o objeto pensado, ou seja, a verdade. De resto, como objeção,
o homem não é o único nem o superior sujeito cognoscente, porque, se seu
conhecimento, como imaterial, não deriva da realidade material, devemos, como efeito,
procurar sua origem numa realidade imaterial. No mais, se apenas a realidade física,
particular e concreta é verdadeira, esta afirmação não poder ser tida como verdadeira,
porque se trata de uma tese universal.
O Niilismo (ou irracionalismo) defende a inexistência da verdade. Atribuído a
Nietzsche, hoje ainda continua a influenciar a chamada pós-modernidade, corroída pela
falta de esperança. A objeção que fazemos está no fato de que, se a verdade não existe,
o enunciado dessa tese não pode ser tomado como verdadeiro.
O Provisorialismo afirma ser a verdade um ideal a ser alcançado, mas que nunca
é alcançável definitivamente. A verdade seria uma busca sem fim. Segundo este
postulado, cujo melhor exemplo é o Popper, toda verdade seria provisória, passível de
retificação e até falseação, ou seja, nenhuma verdade poderia ser tomada como algo
absoluto, mas apenas como mera hipótese. No fundo, trata-se de substituir a verdade
pela conjectura: uma verdade nem tomada como ponto de partida e nem como evidência
final.
Embora nossas descobertas experimentais práticas sejam assim, nem todas as
verdades são deste tipo. Por exemplo, as verdades humanas que se referem ao
pensamento, ao querer humanos e aquelas que se referem à natureza da pessoa
pertencem à dimensão da verdade teórica.
Ademais, esta hipótese esquece que a verdade também é um ponto de partida e
uma companheira constante durante a jornada cognitiva: podemos aprender sempre
mais sobre qualquer realidade, mas isso não significa que o conhecido não esteja de
acordo com a verdade ou que deva ser tomado como algo duvidoso ou provisório,
passível de suspeita.
Ainda, como objeção, se "a verdade é um ideal a ser alcançado”, esta máxima
não pode ser tomada como verdade, na medida em que se contradiz: como a
significação desta frase já foi “alcançada” – caso contrário ninguém perceberia seu
significado –, esta “conquista” atenta contra o que a própria tese postula.
O Verificacionismo formula que somente o que pode ser empiricamente
ratificado é verdadeiro. De acordo com este postulado, a verdade não está no
pensamento, mas depende de ser contrastada com uma instância externa. Portanto, reduz

54
o alcance da verdade e a faz depender inexoravelmente de uma instância que não é de
sua espécie.
Esta teoria foi apresentada nas filosofias contemporâneas denominadas
empiriocríticas como, por exemplo, o experimentalismo. Sabemos que existem verdades
fincadas na experiência e não apenas na ciência. Se apenas pode ser verdadeiro aquilo
que for empiricamente falseável, podemos objetar que esta tese não é verdadeira, pois,
por ser universal, não pode ser verificada ou falseada empiricamente.
O Culturalismo defende que a verdade depende ou está subordinada à cultura
histórica de uma dada sociedade. Evidente que a verdade da práxis cultural depende do
homem, pois é o homem que, por meio de sua razão prática, inventa e molda a cultura.
Mas nem toda verdade é cultural.
Além disso, se toda verdade estivesse subordinada à cultura, a rigor, não haveria
verdade, visto que a verdade é conhecida e o conhecido não é um produto cultural feito
pelo homem, já que pensar não é fazer. Pensar está adstrito à razão teórica e o fazer à
razão prática.
Ainda objetamos que a dimensão do conhecer porta algumas questões
necessárias e a realidade cultura é sempre contingente. Por fim, “se toda verdade
depende da cultura”, a suposta verdade desta tese universal dependerá também da
cultura em que se justaponha e, portanto, padecerá de caráter veritativo perene.
O Convencionalismo formula ser a verdade fruto de um acordo de vontades
entre os envolvidos. Objetamos que esta atitude não é apta a transformar uma verdade
em falsidade e vice-versa e que esta tese, ao não ter sido sujeita a qualquer pacto antes
de ter sido adotada, porta uma clara contradição interna.
O Biologicismo aduz que a verdade reduz-se à dimensão neuronal. Esta corrente
tenta identificar a verdade com o cérebro humano biológico. Sabemos que o cérebro é o
suporte orgânico dos sentidos internos – percepção sensorial ou sensorial comum,
imaginação, memória e cogitativa –, mas não da inteligência, uma faculdade diferente,
superior às anteriores e que carece de suporte biológico.
Ademais, o cérebro não é o suporte de imagens, memórias e projetos concretos
de futuro, pois todas estas são formas imateriais. A filosofia clássica mostra que a
inteligência requer aqueles sentidos internos, pois é dos objetos de tais sentidos –
imagens, memórias, projetos concretos – que a inteligência abstrai ou universaliza.
Na verdade, se a ideia fosse um neurônio, uma sinapse, uma rede interneuronal
ou o próprio cérebro, estas questões fisiológicas pareceriam claras a olho nu ao se

55
conhecer qualquer ideia, isto é, ao exercer qualquer ato de conhecer, mas obviamente
nenhuma de tais questões aparece na ideia conhecida: não temos consciência disso em
nenhum momento do ato de conhecer.

7. Considerações finais

O conhecimento verdadeiro, que se alcança de modo acabado no juízo, implica


num retorno do entendimento sobre si mesmo: a inteligência volta-se sobre si mesma e,
neste retorno, reflete sobre seu ato, não só no sentido de que tem consciência dele, mas
também no sentido de que conhece a proporção do ato cognitivo em relação à coisa
conhecida.
Isso implica em dizer que conhecemos a natureza do entendimento e do próprio
ato de conhecer, que consiste numa conformação às coisas. Dessa forma, podemos dizer
que não são os sentidos externos/internos ou o intelecto que conhecem, mas o homem
por intermédio de ambas as faculdades.
Dessa maneira, o conhecimento da justaposição de nossas ideias com relação à
coisa, o que se dá no juízo, só é possível na medida em que temos um certo
conhecimento intelectual das coisas singulares e se existe uma relação de continuidade
entre os níveis de conhecimento intelectual, racional e sensível.
Com efeito, tais níveis de conhecimento resultam significativos na medida em
que todos eles falam de um único sujeito do conhecer: a pessoa. Por isso, o maior
problema dos erros filosóficos reside justamente no fato de que, ao absolutizarem um
modo de conhecer, comprometem a totalidade do conhecimento pessoal, porque este
nível só se dá em globalidade.
Por isso que descobrir o que é o ato de conhecer é um dos grandes desafios com
que a própria filosofia tem se deparado ao longo da história do pensamento, ainda que,
paradoxalmente, o conhecimento seja um fato cotidiano vivido por todos nós na
realidade que nos cerca.

Reflita: “O que se diz a respeito do cosmos físico reflete também na segunda


inversão "copernicana" que se deu na nossa relação fundamental com a realidade: a
verdade, o absoluto, o ponto de referência do pensamento deixaram de ser evidentes.

56
Por isso, já não há – tampouco do ponto de vista espiritual – nem Norte nem Sul. Não
há direção num mundo sem pontos de referência fixos. O que consideramos direção não
assenta numa medida verdadeira, mas numa decisão nossa e, em última análise, no
ponto de vista da nossa utilidade pessoal. Em semelhante contexto "relativista", uma
teoria do conhecimento que não contemple a verdade converte-se numa teoria niilista,
mesmo que não o percebamos. Numa cosmovisão como essa, aquilo a que chamamos
"consciência" é considerada em profundidade, apenas um modo de dissimular que não
há autêntica consciência, isto é, unidade entre conhecimento e verdade. Cada qual cria
seus próprios critérios e, nessa situação de relatividade geral, ninguém pode ajudar os
outros e, menos ainda, dar-lhes instruções”. À luz deste trecho de um famoso discurso
do então Cardeal Ratzinger, como a teoria do conhecimento, a verdade e a ética podem
ajudar o homem na superação da encruzilhada descrita ao final pelo filósofo alemão?

Indicação de leitura: https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/578830-a-razao-


em-busca-da-verdade-um-discurso-rejeitado-os-10-anos-da-nao-visita-de-bento-xvi-a-
universidade-la-sapienza-de-roma-artigo-de-federico-lombardi

57
UNIDADE IV. ATO DO CONHECIMENTO: CORRENTES TEÓRICAS E
ESTADOS PESSOAIS DO SUJEITO COGNOSCENTE

1. Introdução

Na filosofia moderna, deparamo-nos com novas correntes teóricas que buscam a


explicação do fenômeno do conhecimento. Surge o nominalismo e seus dois filhotes: o
racionalismo e o voluntarismo. O nominalismo, ao negar o acesso aos universais,
propôs a superioridade da vontade em relação à razão, tornando-a hipotética.
O racionalismo, por sua vez, afirmou que verdade é mental, possível e não real e
a razão guarda uma relação de superioridade para com a vontade, já que esta seria
arbitrária puramente. O voluntarismo, pelo contrário, depositou sua esperança na
vontade, que estaria acima da razão, a qual serviria de mero instrumento em prol das
deliberações tomadas na dimensão volitiva, sempre tensionadas a um fim estabelecido
pelos desejos.
Quanto ao realismo, este propõe que a realidade é explicada sob o ângulo das
coisas em conjunto, porque assim são a apreendidas e, como efeito, a realidade é a causa
da verdade na razão e a verdade é a adequação da razão à realidade. Em suma, no
realismo, a gnosiologia dialoga com a metafísica na busca da verdade das coisas, pois o
ser é o fundamento da coisa conhecida.
Veremos, depois da análise dos estados pessoais do sujeito cognoscente, que as
razões que sustentam a primazia do realismo residem no fato de que elas não estão nos
livros, mas nas próprias coisas, que constituem o objeto de nosso conhecimento e na
afirmação de que o ato de conhecer se dá no interior do ser humano, onde objeto e
sujeito, de algum modo, identificam-se.

2. Nominalismo, Racionalismo, Voluntarismo e Realismo

A filosofia moderna tem seus precedentes no século XIV com Ockham, que
abandonou as chaves do realismo clássico precedente e, com sua proposta nominalista,
deu origem a dois lados opostos da filosofia, mas com os mesmos paradigmas
epistemológicos em sua base:

58
a. Idealismo: baseado no racionalismo, com suas variantes na
fenomenologia e no estruturalismo;
b. Empirismo: baseado no voluntarismo, com suas variantes no
utilitarismo, materialismo e pragmatismo.

Aristóteles descobriu que o objeto pensado é puramente intencional em relação


ao real do qual foi abstraído. Esta intencionalidade foi admitida durante o século XIII –
após a recuperação da filosofia aristotélica – pelos grandes pensadores escolásticos,
como Alberto Magno e Tomás de Aquino.
Entretanto, no século XIV, a partir de Ockham, dita intencionalidade perdeu-se,
ainda que tenha permanecido, por um lado, que o homem tem ideias e relações entre
elas – o que os autores chamaram de verdade – e, por outro, que existe a realidade
física, onde está o bem, o qual pode ser conhecido pelos sentidos e pode ser querido
pela vontade.
Agora, com Ockham, as ideias já não se referem à realidade física e o elo entre o
pensamento humano e a realidade extramental – entre a razão e os sentidos – foi
rompido. Além disso, como Ockham presumiu que a vontade ajusta-se à realidade física
concreta, a harmonia precedente entre razão e vontade também foi quebrada.
Por isso, embora pareçam antípodas, o racionalismo e o voluntarismo
descendem de Ockham14. O antagonismo reside no fato de que:

a. O Racionalismo busca a necessidade da verdade;


b. O Voluntarismo busca os bens contingentes.

14
Entre os renomados pensadores modernos que têm maior ou menor afinidade com as abordagens
nominalistas de Ockham, é necessário considerar, no racionalismo, Descartes e Malebranche; no
empirismo, Hobbes, Locke e, sobretudo, Hume; no Iluminismo do século XVIII, Kant, e, no do século
XIX, Marx, Comte, Stuart Mill, Schopenhauer, Nietzsche, Freud, além das correntes do pragmatismo,
psicologismo e do modernismo. No século XX, estão relacionados a certos pontos da filosofia
nominalista de Ockham, por exemplo, Heidegger, que passou do idealismo ao voluntarismo; Sartre, em
sua interpretação niilista do homem e do real; a Escola de Frankfurt, o behaviorismo, a filosofia analítica
e filosofia pós-moderna.

59
Ockham, o pai da filosofia moderna, ofereceu à posteridade uma alternativa
irreconciliável:

a. Ficar com a razão, as ideias universais e sua verdade: Racionalismo;


b. Ficar com a vontade, o bem singular, os sentidos e a realidade física:
Voluntarismo.

A rigor, a distinção entre as três correntes de pensamento mais importantes da


história da filosofia do conhecimento – realismo, racionalismo, voluntarismo – reside na
prioridade dada aos chamados “transcendentais metafísicos”, a saber, o ser, a verdade e
o bem.
Estas são perfeições puras de amplitude irrestrita. Contudo, realismo,
racionalismo e voluntarismo divergem quanto aos transcendentais metafísicos, porque:

a. O Realismo admite pelo menos três transcendentais e acrescenta que


estes seguem a seguinte ordem: primeiro, o ser; segundo, a verdade;
terceiro, o bem. Em sua base argumentativa, o realismo afirma que o ser
real é a causa da verdade na razão e a verdade é anterior ao bem, porque
nada se quer se antes não for conhecido;
b. O Racionalismo afirma ser a verdade o único transcendental. Portanto,
não se refere ao ser ou a bem, mas é auto-fundado;
c. O Voluntarismo afirma ser o bem o único transcendental.

No entanto, nem o racionalismo nem o voluntarismo alcançaram o fundamento


da verdade e do bem como o único transcendental. Desta forma, seus representantes
ficaram com um escopo reduzido, seja de verdades – formal, lógica, matemática, etc. –,
seja de bens – materiais, úteis, sensíveis, etc. Comecemos pelo nominalismo, a
cosmovisão que abriu alas para o racionalismo e o voluntarismo, os quais serão tratados
logo em seguida. Ao final, discorremos sobre o realismo.
Quanto ao Nominalismo de Ockham, podemos afirmar que ser trata de uma
postura filosófica a sustentar que:

60
a. O real é meramente empírico, numérica e localmente singular, além de
incomunicável, isto é, sem referência a nenhum universal;
b. O real é contingente, ou seja, pode ser e não ser. Existem muitas
possibilidades lógicas e mentais, mas nenhuma delas é necessária, porque
o real não é necessário. Assume o ser, mas o interpreta como
estritamente contingente;
c. O real singular não é verdadeiro, pois a verdade, assim como as ideias
universais, são ficções mentais;
d. O conhecimento é um fato meramente psíquico e, portanto, uma
realidade empírica, singular e incomunicável;
e. A ideia supõe-se por si mesma e, por não corresponder à realidade, anula
a intencionalidade do conhecimento;
f. No homem, é a vontade que corresponde ao real singular;
g. A vontade é superior e separada da razão, ou seja, a razão é hipotética,
porque confabula hipóteses possíveis e nenhuma necessária. Aqui, temos
a tese central do voluntarismo;
h. A vontade é singular e, como toda realidade singular, um fato;
i. O acesso humano a Deus não é cognitivo, mas apenas voluntário, ou seja,
não é natural, porque se dá pela fé sobrenatural (fideísmo);
j. O atributo deífico, por excelência, é a onipotência da vontade – isolada
da razão divina –, com a qual o Criador marca sua diferença em relação à
criatura (arbítrio divino).

O nominalismo supõe uma redução em dois âmbitos:

a. No âmbito da realidade, pois reduz o ser ao fato;


b. No âmbito do conhecimento, pois reduz a verdade à ficção, à
possibilidade lógica ou ao jogo linguístico.

Em termos nominalistas, se não há verdade, então, não pode haver ciência


propriamente dita, isto é, conhecimento certo por causas ou regularidades.
Consequentemente, a única coisa que, como efeito desta negação aberta da verdade,

61
poderia ser verificada empiricamente é, justamente, a completa aleatoriedade da
realidade.
Desta forma, entendemos perfeitamente a razão pela qual o racionalismo choca-
se frontalmente com o nominalismo e porque este vale-se sempre de argumentos não
racionais, tomados da realidade física – que, por ser mutável, não comporta ciência –,
no embate teórico. Aliás, nos dias atuais, o pragmatismo que permeia muitas ideias é, no
fundo, um próprio e verdadeiro nominalismo.
Quanto ao Racionalismo, pensadores do Renascimento, como Galileu, para
quem a realidade é escrita em linguagem matemática, e também Newton, cuja física
matemática é mais perfeita do que a realidade física, reagiram contra o nominalismo de
Ockham. Foram as primeiras tentativas de se racionalizar o dado empírico.
Depois, outros pensadores modernos como Spinoza ou Leibniz também lutaram
contra o nominalismo, abrindo caminho para o racionalismo. A hegemonia da razão e
das ideias também foi exaltada no idealismo dos séculos XVIII e XIX por autores como
Fichte, Schelling e, sobretudo, Hegel.
Dentro da chamada filosofia contemporânea, a origem da fenomenologia no
final do século XIX e início do século XX com Husserl, assim como o neo-idealismo de
Croce ou Gentile, podem ser justapostos no racionalismo. O chamado estruturalismo do
século XX tem certa afinidade com as pretensões racionalistas, na medida em que busca
um sistema linguístico completo.
O que é racionalismo? É a corrente filosófica a admitir que:

a. A verdade é absoluta. Existem várias verdades, mas existe um sistema


lógico completo que as reúne;
b. A verdade é mental, possível e não real. A possibilidade completa é a
necessidade;
c. A realidade física ou os fatos são irrelevantes em termos de verdade;
d. A verdade não é um fato e nem pode ser reduzida a um fato;
e. No homem, a razão corresponde à verdade;
f. A razão é superior e alheia à vontade, porque esta é arbitrária, isto é, sem
regras necessárias como a da dimensão racional;
g. Devemos tender para a identidade sujeito-objeto;

62
h. O acesso humano a Deus não é volitivo, mas racional. Não é
sobrenatural, mas natural, como um "pensamento máximo",
"possibilidade lógica completa", "verdade total" (panlogismo);
i. O atributo divino por excelência é o conhecimento absoluto (isolado da
vontade), com o qual Deus marca sua conexão necessária com a criatura
(necessidade).

Obviamente, estas teses, ao contrário das nominalistas, indicam que o


racionalismo é uma reação ao nominalismo, embora, ao mesmo tempo, admita suas
regras do jogo. O racionalismo tenta salvar a verdade, enquanto o nominalismo se apega
exclusivamente aos fatos.
Mas, como o nominalismo culpa o racionalismo pela parcialidade das supostas
“verdades” por ele inventadas, o racionalismo responde com um grande esforço teórico
para formar um sistema de verdade marcado pela completude e necessidade, porque, no
caso de sucesso, o nominalismo não será capaz de acusá-lo de desperdício tempo
desenhando hipóteses mentais aleatórias. Aqui, neste esforço teórico, a binômio
contingência-necessidade é o que está discussão.
Quanto ao Voluntarismo, historicamente, está ligado ao nominalismo e admite
que:

a. A vontade está acima da razão e esta torna-se um instrumento a serviço


das decisões tomadas na dimensão volitiva. A vontade, torna-se, assim,
absolutizada;
b. A vontade, ao invés de encontrar o bem na realidade, age
espontaneamente, valorizando as coisas e utilizando-as com vistas a um
fim estabelecido pelos desejos, antes de conhecê-las;
c. A realidade torna-se, então, o meio de realizar os desejos e não a fonte
dos valores;
d. O ato de conhecer não tem fim, porque o possui em si mesmo;
e. Nega a existência de leis objetivas e necessárias na natureza, porque a
experiência, por ser a porta de entrada do conhecimento, conserva a
mesma incerteza e a instabilidade do conhecimento sensível;

63
f. Distorce a correlação entre as dimensões cognitiva e prática do
indivíduo, porque separa a prática do conhecimento, reduzindo-a
efetivamente a uma manifestação do desejo;
g. Por não haver essência, a metafísica torna-se impossível.

Seus principais expoentes foram Bacon, Hobbes e Locke no século XVII. No


século XVIII, Berkeley e Hume. No século XIX, Spencer, Mill e Nietzsche e, no século
XX, Russel, Ayer e Ryle.
Quanto ao Realismo, sabemos que a maior parte da filosofia grega e medieval
foi realista. Além disso, alguns pensadores, como Platão, consideravam que as ideias
também eram reais, mas existiam somente no mundo das ideias, o que conhecemos por
hiper-realismo.
O mais proeminente filósofo realista da Antiguidade foi Aristóteles. Na Alta
Idade Média, Agostinho de Hipona, e na Escolástica, Alberto Magno, Boaventura e
Tomás de Aquino. Depois de Ockham, alguns pensadores do Renascimento, como
Tomás More, e muitos pertencentes à chamada Escolástica Tardia foram também
realistas, como Ferrara, Cayetano, Vitoria, Cano, Soto e Báñez.
No século XIX, alguns consideram Kierkegaard um perfil filosófico bastante
realista, embora na drástica separação estabelecida entre filosofia e teologia ele seja
claramente nominalista. No mesmo século, de Biran, Ravaisson, Brentano e Bergson
guardaram afinidade com o realismo.
No século XX, alguns representantes da fenomenologia, como Edith Stein, Von
Hildebrand e segundo Scheler foram realistas no pensamento, assim como Hartmann,
embora seu realismo tenha um viés mais redutor no conhecimento da realidade. Seus
discípulos, contudo, retornaram ao realismo clássico.
Muito próximos ao realismo, ainda no século XX, temos Marcel, representante
do existencialismo, e Ricoeur, prócere da hermenêutica e os melhores representantes da
chamada filosofia neotomista também foram realistas, como Nédoncelle, Gilson,
Maritain, Fabro, Pieper, Spaemann e Guardini.
Outros pensadores pertencentes às demais correntes do século XX, como
Levinas, Buber ou Mounier e muitos pensadores espanhóis como Ortega, Marías,
Zubiri, Millán-Puelles e Polo também foram realistas. Hoje, temos Ratzinger, Llano,
Melendo, Artigas e Cruz Cruz como expoentes do realismo.
O que é realismo? É a corrente filosófica a admitir que:

64
a. As várias realidades existentes são como são, ou seja, estão articuladas
segundo uma ordem hierárquica, de maneira que qualquer explicação que
considere o real isoladamente será inexoravelmente redutiva do ser. Por
exemplo, no nominalismo, o real é exclusivamente empírico; no
racionalismo, por outro lado, a verdade é o absoluto e, no voluntarismo, é
o bem. No primeiro caso, “explica-se” a realidade física a partir dela
mesma, sem vínculos; no segundo, “expõe-se” a verdade por si mesma,
sem referência ao ser e, no terceiro, “afirma-se” que o bem carece do ser
e da verdade;
b. A realidade é explicada sob a ótica das coisas em conjunto, porque assim
a captamos;
c. Por isso, a realidade é a causa da verdade na razão e a verdade é a
adequação da razão à realidade;
d. E, também, a vontade á capaz de se adaptar ao bem verdadeiro. A rigor,
afirma que o ser acompanha a verdade e esta o bem ou, visto por outro
ângulo, que não há bem sem verdade e nem verdade sem ser.

Como efeito, concluímos que o Realismo é dual, pois procede segundo uma
certa dualidade e o Racionalismo e o Voluntarismo não gozam do mesmo atributo, na
medida em que propõem um certo dualismo15. Não é à toa que o Voluntarismo tenta
fundir, por exemplo, o pensamento com a linguagem – filosofia analítica – ou a
linguagem com ações transitivas – pragmatismo. Por sua vez, o racionalista tenta fundir
o sujeito com o objeto pensado.
Por isso, o Realismo é explicável sem o Racionalismo e o Voluntarismo.
Consequentemente, convém-lhe progredir em suas próprias descobertas, sem adentrar
em polêmicas desnecessárias num terreno que lhe é estrando, o da univocidade, onde
impera o dualismo e não há espaço para a dualidade.
O Realismo deve avançar rumo a outras conquistas, além daquelas aqui
reconhecidas:
15
Dualidade implica em reunião e dualismo implica em oposição, porque, neste, as unidades são
concebidas isoladamente. No Realismo, a dualidade dá-se ser/verdade e verdade/bem. No Racionalismo,
o dualismo é fundado no isolamento da verdade em relação aos demais transcendentais metafísicos (ser e
bem) e, no Voluntarismo, há o isolamento do bem em relação ao ser e à verdade.

65
a. A co-causalidade entre as realidades físicas inertes e vivas (filosofia da
natureza);
b. O ser da vida humana e suas faculdades em estado nativo (psicologia);
c. A forma dual (como sinônimo de dualidade) do conhecimento humano
(teoria do conhecimento);
d. As dualidades da vontade (teoria da vontade);
e. A base dual (como sinônimo de dualidade) da ação humana (ética,
política, sociologia, etc.);
f. A dualidade dos primeiros princípios extramentais (metafísica e teologia
natural);
g. A forma dual (como sinônimo de dualidade) da intimidade humana
(antropologia transcendental).

3. Estados pessoais ante a verdade: assentimento, certeza, dúvida, opinião,


fé, ignorância e erro

Tomás de Aquino afirma que, no julgamento, que se dá no nível do


conhecimento racional, como já estudamos, “dois atos da razão devem ser considerados:
um pelo qual a verdade sobre algo é captada e outro pelo qual esta razão concede o
assentimento para aquilo que capta16”.
Podemos ver facilmente esta distinção nos casos em que, antes de um juízo,
hesitamos e momentaneamente nos abstivemos de assentir, embora tenhamos formulado
a proposição, ainda não estamos em posição de aderir a ela. Por isso, é possível
distinguir entre o "conteúdo da proposição" e a "força assertiva", pois, antes do
assentimento, vários estados de espírito se juntam: certeza, dúvida, opinião e fé. Quando
afirmamos o falso como verdadeiro, encontramo-nos no "erro".
No julgamento, ambos os atos, como diz Tomás de Aquino, são da razão.
Contudo, o voluntarismo afirma que o primeiro ato – captação do objeto conhecido –

16
Suma Teológica, I-II, q. 17, a. 6.

66
seria da razão e o segundo – assentimento – da vontade. Em suma, seria a vontade que,
em última análise, teria a palavra final.
Não é a vontade que assente ou não ao objeto conhecido, porque, se assim fosse,
o assentimento careceria de base racional, na medida em que a vontade agiria
imotivadamente ou por motivos subjetivos proporcionados pelo próprio sujeito e nunca
pelo "conteúdo proposicional" do objeto captado.
No assentimento, é a razão que, ante o “conteúdo da proposição”, adere ou deixa
de fazê-lo com base no referido conteúdo, com exceção da adesão pela fé, onde a
vontade intervém como força determinante no assentimento, ainda que o faça tendo em
conta o aludido conteúdo.
A decisão voluntária de aceitar a verdade é essencial no agir humano e, assim,
adaptarmos nosso comportamento ao que nos é apresentado como verdadeiro, pois é
evidente que, mesmo que reconheçamos a verdade de um “conteúdo proposicional” no
objeto conhecido, podemos atuar à margem dela e até mesmo no sentido oposto. Neste
caso, a razão assente e, no entanto, a vontade não.
A certeza é definida como um estado de espírito subjetivo, sem um fundamento
objetivo, que adere a um juízo. A certeza não deve ser confundida com a verdade,
embora, na linguagem comum, seja comum identificá-las entre si. Contudo, a certeza
não é sinônimo de verdade, pois esta é objetiva – uma correspondência entre o intelecto
e a realidade – e a certeza, por outro lado, é subjetiva – uma sensação de convencimento
que, em razão disso, podem intervir diversos fatores.
Como, então, é possível que tenhamos certeza de coisas que são falsas? Este é o
campo do erro, que estudaremos logo mais adiante. O erro seria impossível sem a
certeza, caso contrário, não estaríamos em erro, mas em dúvida ou opinião. As causas
do erro são as faculdades operativas inferiores e, sobretudo, a vontade, que nos impele a
concordar e, muitas vezes, ainda quando não estamos certos.
Nestes casos, não estamos na verdade, mas queremos que as coisas sejam como
as desejamos. Por outro lado, é sempre possível negar o evidente porque, como já
vimos, embora a inteligência se sinta obrigada a aderir à evidência, a vontade é quem
controla o atuar do indivíduo, podendo, inclusive, agir contra suas próprias convicções
intelectuais.
Como nem todas as verdades são evidentes da mesma forma – há muitos níveis
veritativos – é sempre possível distorcer a consciência e se convencer de que as coisas

67
são diferentes ou que as razões do nosso comportamento são as mais convenientes em
certas circunstâncias.
Então, a vontade move o intelecto em direção ao fim que a vontade deseja e isso
afeta não apenas os atos da inteligência, mas também seus hábitos – abstrativos,
generalizantes, prudência, etc. –, como já estudamos anteriormente, e, entre eles está o
hábito da ciência, entendida como conhecimento certo pelas causas.
Por exemplo, no caso da dúvida metódica cartesiana, temos um exemplo claro
de dúvida voluntária: Descartes "busca", ou melhor, "inventa" motivos subjetivos para
fazê-lo. Ele mesmo reconhece que há coisas que nos são apresentadas como
indiscutíveis, mas não está disposto a aceitá-las, porque nesse caso não poderia manter
sua "atitude crítica".
Descartes duvida porque, desde o início, ele não está disposto a confiar no que é
captado antes pelo conhecimento. Ele tenta partir do zero e isso só é possível se a
vontade intervém e interfere no ato de conhecer, sujeitando-o a um controle que, em
princípio, lhe é bem estranho. Mas o problema da distorção da consciência, do qual
todos podemos ter experiência, pertence mais à ética do que à gnoseologia.
A dúvida é uma hesitação ou instabilidade da mente diante de dois juízos
contraditórios, o que a leva a se abster de assentir, não por ignorância, mas porque
ambos os juízos parecem falsos (dúvida negativa) ou verdadeiros (dúvida positiva),
dado ser impossível que duas proposições contraditórias tenham o mesmo valor de
verdade.
A dúvida é um estado de espírito em relação à verdade, pois aquele que duvida
sabe que ela existe, mas não consegue distingui-la do erro. Hoje, é difundida a opinião
de que a dúvida é uma atitude positiva, típica do sábio, da pessoa com capacidade
crítica, que, em princípio, desconfia de tudo e de si mesma.
Mas a dúvida não pode se tornar perene, sob pena de nos conduzir ao
pessimismo. Ela é sempre um estado provisório do qual o indivíduo deve tentar sair o
mais cedo possível, porque agir com a consciência duvidosa nunca é legítimo, na
medida em nos expomos a graves erros.
A opinião significa o ato de compreensão que se inclina para um dos lados da
contradição com receio de que o outro seja verdadeiro. Opinião não é certeza, por isso,
quem opina pensa ser um lado mais provável do que o outro, mas o faz sem se apoiar
em evidências.

68
A opinião implica num certo receio de errar, embora não seja suficiente para
impedir a pessoa de concordar com um dos polos do dilema argumentativo. Como não
se baseia na evidência, a causa do assentimento, neste caso, é a vontade do indivíduo.
Se não houver "razões" suficientes para se inclinar numa direção, a vontade deve
intervir, acrescentando o plus que está a faltar.
É próprio da opinião, portanto, que o assentimento não seja firme. Por outro
lado, apegar-se às próprias opiniões como se fossem verdades inquestionáveis indica,
portanto, uma falta de espírito crítico, mas é um fato possível e mesmo frequente e a
razão é que, como vimos, a opinião depende de uma decisão voluntária.
Esta decisão pode derivar dos próprios desejos ou interesses, que podem ser
muito fortes e, em virtude disso, é importante não confundi-los com a realidade, nem
tentar impô-los aos outros, adaptando a realidade aos nossos gostos. Em última
instância, como a verdade não se impõe, mas nos é oferecida como um presente, é
preciso estar vigilante para saber mudar de opinião quando for preciso.
A opinião tem, no entanto, uma grande importância na práxis vital humana,
porque, de algumas coisas, não é possível obter um determinado conhecimento e nem
mesmo fazer ciência. Platão, por exemplo, pensava que, acerca da realidade física, em
mudança contínua, não há possibilidade de conhecimento científico e, como efeito, todo
o nosso conhecimento é meramente provável.
Aristóteles, por sua vez, afirmava que a ciência não é acidental. Neste campo,
como também naqueles em que intervém a liberdade humana, não é possível obter
certezas, razão pela qual devemos agir no dado provável e, sempre que possível,
contrastando nossas opiniões com as dos outros.
Quem opina, acredita que sua alternativa é melhor que a contrária. Não é
indiferente a isso ou aquilo. Isso significa que a opinião não deve ser confundida com
relativismo, pois o relativismo, considerando que tudo é igualmente válido, priva tudo
de valor de sentido.
A fé é assentimento, com certeza, mas sem evidência, baseado no testemunho e
autoridade de outro. Na fé, o assentimento é motivado pela vontade, já que a
inteligência não tem a evidência. No entanto, é um assentimento certo, não baseado
numa mera opinião e sem risco de dúvida.
A peso da fé depende do valor do testemunho e da autoridade da pessoa em
quem acreditamos, mas pode ser tão forte quanto no caso da certeza por evidências. A
razão é que, em vez de confiar em nossas próprias evidências, fazemo-lo com lastro nas

69
evidências alheias, que podem ser maiores se se trata de Deus, de uma testemunha
ocular, de um cientista, etc.
A vontade e a liberdade intervêm sempre no ato de fé, porque crer apresenta-se
como um bem digno de ser amado. Todos naturalmente querem saber, mas, como no
caso do testemunho alheio não temos evidências, teríamos que nos contentar com a
opinião ou mesmo a dúvida. Se, de fato, concordamos, é porque a vontade intervém,
movimentando a inteligência nesta direção.
A fé deve ter um fundamento racional, caso contrário, seria cega. Esta base é a
credibilidade de uma ou mais pessoas e a credibilidade pode ser confirmada com
motivos suficientes. Crer em algo é, portanto, sempre acreditar em alguém.
Normalmente, é graças à fé que adquirimos a maior parte do nosso conhecimento e até
das nossas convicções mais fortes.
Se consideramos que o ato de fé não é um ato da vontade, mas do entendimento,
na medida em que não é a vontade que concorda, mas a inteligência, embora movida
pela vontade, logo, a fé deve ser sempre razoável tanto em seu princípio quanto em seu
conteúdo. Apenas a fé cega é irracional, como se dá no fundamentalismo religioso e no
cientificismo. A fé, embora tenha algumas sombras, muitas delas persistentes, é, em si
mesma, luz, clareza e conhecimento.
A ignorância consiste na ausência daquele conhecimento para o qual se tem
aptidão. É diferente da nesciência, a qual consiste na falta daquele conhecimento para o
qual a mente não tem aptidão suficiente. Como consequência, só há ignorância naquilo
que pode ser conhecido.
A ignorância é um mal, pois o ignorante não pode agir de acordo com a
realidade das coisas. Ele não a vive e sequer a conhece. Todavia, a ignorância tem um
aspecto positivo: reconhecer-se ignorante é o primeiro passo para o conhecimento.
Quem acredita possuir a verdade não a busca nem tampouco a deseja.
O erro consiste em afirmar o falso como verdadeiro, isto é, na inadequação entre
o entendimento e a realidade. O oposto da verdade não é ignorância, mas o erro. Se a
ignorância leva a não agir de acordo com a realidade, o erro implica agir de forma
contrária à realidade.
Quem erra não pode agir bem e respeitar as coisas e as pessoas. Se a ignorância
é um mal, o erro é pior, porque é uma deformação. O bem da inteligência é a verdade e
está inclinada a ela quanto ao seu fim. Logo, errar é, portanto, atingir outro objetivo,
perder-se no caminho da verdade.

70
Assim como a verdade propriamente dita ocorre na mente, o erro só se encontra
no pensamento. A realidade é dita verdadeira na medida em que é cognoscível pelo fato
de ser e é por isso que a realidade nunca pode ser falsa. Por natureza, a inteligência não
se equivoca.
Queremos dizer que o erro é sempre algo acidental e ele ocorre porque, de
alguma forma, a pessoa interfere na ação do entendimento de molde a redundar no
equívoco. Esta interferência, entretanto, é necessária, pois, sem ela, não poderíamos
conhecer a realidade. Por exemplo, não poderíamos elaborar juízos.
Sempre que cometemos erros, houve uma inadvertência ou uma falta de atenção.
A causa do erro é que julgamos e concordamos, sem confiar nas evidências, porque,
como vimos, não é possível que sejamos enganados pelo evidente. Quando, por desejo
de que as coisas sejam de um jeito e não de outro, porque somos levados por paixões
cegas ou por qualquer outro motivo, concordamos com um conhecimento não evidente
e o erro ocorre.
Nestes casos, não é a evidência objetiva que move o entendimento, mas um
impulso subjetivo que vem das paixões ou da vontade. Dado que a realidade não mente,
as causas do erro devem ser buscadas sempre no sujeito.

4. Considerações finais

Vimos como Racionalismo, Voluntarismo e Realismo buscam compreender o


problema da busca da verdade das coisas, sendo que somente um deles permite o acesso
cognitivo ao ser das coisas. Contudo, independentemente disso, aprendemos os diversos
estados em que a mente se encontra em relação à verdade, isto é, o aspecto subjetivo da
apreensão cognitiva do ser.
O assentimento é inserido na dimensão reflexiva da verdade. Algumas vezes, ele
é inevitável, como se dá com os primeiros princípios. Outra vezes, ele pode restar
recusado ou suspenso, em virtude de um estado da mente frente à verdade: certeza,
dúvida, ignorância, opinião e a fé. Por fim, ainda existe o erro, quando se adere a uma
proposição que não guarda conformidade com a verdade.
Quando procuramos buscar o bem em si mesmo e não nossos interesses ou
desejos, as portas da verdade sempre permanecerão abertas, ainda que o caminho até lá

71
seja estreito, porque a verdade, tal como o bem, tem sua fundamentação no ser das
coisas.

Reflita: Que relações de primazia podemos fazer entre os conceitos de Realismo,


Racionalismo e Voluntarismo, estudados na Teoria do Conhecimento, e os
transcendentais do ser, do bem e da verdade, estudados na Metafísica? Por quê?

Indicação de leitura: Tópico II do Capítulo 3 do livro Fé, Verdade e Tolerância


de Joseph Ratzinger e Capítulo V do livro Realismo – Método da Filosofia, de Étienne
Gilson.

REFERÊNCIAS:

ACOSTA LÓPEZ, M. Dimensiones del conocimiento afectivo. Una aproximación


desde Tomás de Aquino. Anuários Filosóficos. Pamplona: EUNSA, 2000.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. São Paulo: Atlas, 2009.

________ Metafísica. São Paulo: Edipro, 2015.

________ Sobre a alma. São Paulo: Edipro, 2018.

________ Organon. Porto: Res Editora, 2010.

AQUINO, Tomás de. De anima. Lisboa: Editora 34, 2020.

________ Opúsculos Filosóficos. São Paulo: Sita Brasil, 2009.

________ Suma Teológica. Campinas: Ecclesiae, 2019.

________ Verdade e Conhecimento. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

GUMPERTZ, J. L. - BENNET, A. Lenguaje y cultura. Barcelona: Editorial Anagrama,


1981.

HAACK, S. Evidencia e investigación. Madrid: Tecnos, 1997.

LLANO, A. El futuro de la liberdad. Pamplona: EUNSA, 1995.

72
________ Metafísica y Lenguaje. Pamplona: EUNSA,1984.

MARITAIN, J. Sete Lições sobre o Ser. São Paulo: Edições Loyola, 1996.

________ The Degrees of Knowledge. Notre Dame: University of Notre Dame Press,
2009.

MILLÁN PUELLES, A. Ética y realismo. Madrid: RIALP, 2007.

________ La estructura de la subjetividad. Madrid: RIALP, 1997.

PIEPER, J. Amor. Barcelona: Herder, 2015.

POLO, L. Antropología de la acción directiva. Madrid: Aedos, 1997.

________ Nominalismo, Idealismo y Realismo. Pamplona: EUNSA, 1997.

POPPER, K. El Desarrollo del Conocimiento Científico. Barcelona: Herder, 1972.

RICOEUR, P. De l’Interprétation, in: Du texte à l'action. Essais d'herméneutique.


Paris: Seuil, 1986.

SPAEMANN, R. Acerca de la distinción entre algo y alguien. Pamplona: EUNSA,


2000.

73

Você também pode gostar