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UNIDADE I
AS MEDITAÇÕES METAFÍSICAS DE RENÉ DESCARTES,
ALICERCES DA SUA FILOSOFIA
INTRODUÇÃO
René Descartes é um dos nomes mais conhecidos da história da filosofia. Na
primeira metade do séc. XVII, estudou, pesquisou e escreveu muito sobre diversos temas
do conhecimento humano, de maneira especial acerca da filosofia. Nessa área do
conhecimento, dispendeu décadas estabelecendo e afinando as suas descobertas
essenciais, trabalho esse que culminou – talvez de modo não intencional – na elaboração
um sistema de pensamento que ficou conhecido como a pedra inaugural da corrente
filosófica denominada racionalismo, que teve grande êxito, particularmente na Europa
continental.
Junto com o empirismo, desenvolvido contemporaneamente por outros autores da
Europa insular britânica, o racionalismo serviu mais tarde de matéria-prima para que
Immanuel Kant elaborasse a sua filosofia transcendental, a qual, por sua vez constituiu o
impulso fundamental do desenvolvimento da última grande corrente filosófica da
modernidade, o idealismo, cuja culminação se deu com G. W. F. Hegel, no séc. XIX.
Nos seus pouco mais de cinquenta anos de vida, Descartes notabilizou-se como
uma das grandes mentes matemáticas da história, como realizador de pesquisas físicas de
primeira grandeza à sua época e, sobretudo, como pensador que propôs a refundação
completa da filosofia; esta deveria alicerçar-se numa operação ousada, que consistia em
substituir o método da admiração e observação detida da realidade pelo método de
duvidar dela, bem como em apoiar-se, como resultado desse novo método, não mais nos
entes extramentais que povoam a realidade, mas no único fato do qual não se pode
duvidar: o de se estar duvidando (que é uma forma de pensar), o qual confere ao sujeito
que duvida (que pensa) a certeza de que ele é, de que ele existe.
A completa reconstrução da filosofia que Descartes almejou não foi empreendida
ao acaso, mas propositalmente. Ele pretendia contribuir de forma decisiva para que a
humanidade chegasse à ambiciosa meta de controlar o mundo, a natureza como um todo,
por meio de um conhecimento exato e indubitável acerca dela; ao mesmo tempo,
Descartes era perfeitamente cônscio de que a raiz da grande árvore do conhecimento
humano era a filosofia e de que ela sustentava os outros grandes campos do saber, como
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a física, a medicina, a mecânica e a ciência moral. Assim, para a obtenção da certeza, da
segurança e do domínio por parte do homem em relação a todos os setores da vida terrena,
Descartes estava convicto de que o caminho era duvidar de todos os conhecimentos
tradicionais e de todas as informações sobre o mundo proporcionada pelos sentidos
externos, e de que esse caminho levava à conclusão inequívoca e inabalável do “penso,
logo existo” (cogito ergo sum), isto é, de que cada ser humano pode ter a certeza de que
existe porque exerce a atividade de pensar.
Nesta disciplina de Leituras Filosóficas, estudaremos a obra Meditações
metafísicas, na qual Descartes ofereceu a explicação mais detalhada e clara da sua dúvida
metódica e da pedra angular de todo o edifício do seu pensamento, ou seja, a certeza
inamovível de que o indivíduo existe porque pensa.
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seu sistema de pensamento. O livro é composto pelas famosas seis meditações cartesianas
sobre aquilo que, segundo ele, se pode conhecer com certeza, e por sete objeções de
filósofos e teólogos da época – aos quais Descartes solicitou um parecer –, com as
correspondentes respostas do autor francês. Nas Meditações, observa-se com nitidez uma
metafísica de feição inédita, em que a matéria é reduzida à mera extensão mensurável, a
alma humana é considerada tão somente como pensamento e a existência de Deus é
demonstrada a partir da ideia de infinito presente nesse mesmo pensamento.
Em 1644, viu a luz os Principia philosophiae (Princípios da filosofia), outra obra
de Descartes também redigida em latim. Nesse livro, o pensador francês expõe os
princípios gerais que a física deve ter quando baseados na peculiar metafísica que ele
havia pouco elaborara; Descartes põe a sua atenção particularmente na concepção da
matéria e nas leis do movimento dos corpos. Também trata da luz, das propriedades dos
minerais e do magnetismo, tanto nos fenômenos terrestres como astronômicos. Além
disso, estabelece teses relativas à fisiologia e à função dos cinco sentidos externos que
pretendem embasar o seu entendimento de como o corpo (res extensa) e a alma (res
cogitans) encontram-se unidos. Três anos depois, os Principia cartesianos foram
publicados em francês, com o acréscimo de um prólogo, no qual o seu autor afirma que a
filosofia tem de ser construída unicamente pela atividade da razão e que a ciência sobre
todas as coisas – a ciência universal – pode ser comparada a uma árvore, cuja raiz seria a
metafísica, cujo caule seria a física e cujos ramos seriam a medicina, a mecânica e a
ciência moral.
Como resultado da sua correspondência epistolar com a princesa Isabel, da
Boêmia, publicou-se, em 1649, a última obra escrita por René Descartes, As paixões da
alma. Ali, ele trata das emoções e do influxo que estas exercem na conduta moral. Este
era o tema derradeiro sobre o qual Descartes almejava escrever, porque – como já
consignara no Discurso do método – entendia que a meta máxima da ciência universal
era fornecer os parâmetros racionais para que o ser humano chegasse a ser feliz na terra,
precisamente mediante a sua conduta. Em As paixões da alma, o nosso autor procura
completar a “ética provisória” que proporcionara aos seus leitores no Discurso, a qual
era, segundo ele, aquela estritamente necessária para que a sua filosofia fosse finalizada
sem empecilhos ou obstáculos teóricos.
Nesse mesmo ano, a fama de Descartes já se estendia a várias partes do continente
europeu. Foi assim que ele recebeu e aceitou o convite da rainha Cristina, da Suécia, de
residir na sua corte para lhe ensinar a sua filosofia. Em decorrência do rigoroso inverno
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sueco e dos rígidos horários a que a sua anfitriã o submeteu, René Descartes veio a falecer
em 11 de fevereiro de 1650, encerrando assim a sua breve vida de pouco mais de
cinquenta anos, embora prolífica em vivências, estudos e publicações.
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a ciência matemática, já altamente desenvolvida à época, que costumava proporcionar
evidência e certeza para os problemas que eram suscitados nessa área do saber.
Em face de todo esse panorama, René Descartes certamente sentiu-se impelido a
desenvolver esses conhecimentos no grau mais alto de que era capaz e, além disso, a
unificá-los por meio de um método e de um ponto de partida absolutamente inequívocos
e eficazes. A sua pretensão era elaborar uma mathesis universalis, isto é, uma ciência
universal sobre todos os assuntos relativos às realidades que tivessem extensão e fossem
ordenáveis. A finalidade dessa ciência acerca de tudo era propiciar aos seres humanos
tornar-se “senhores e possessores da natureza” (DESCARTES, 2001, p. 69), ou seja, tanto
de si mesmos como da realidade exterior a eles. Dessa forma, os homens estariam em
condições de ser maximamente felizes sobre a terra.
A base da mathesis universalis cartesiana deveria ser a filosofia, em particular a
metafísica, pois Descartes estava convencido de que toda a realidade material, física, se
comportava de acordo com os seus parâmetros imateriais, metafísicos. Mas, como essa
filosofia deveria conferir a certeza e a evidência típicas da matemática, o que ainda nunca
fora feito, era necessário elaborá-la a partir do zero. Essa filosofia não podia respaldar-se
nos resultados das ciências experimentais, porque estes sempre fornecem conhecimentos
particulares e concretos, provenientes dos nossos cinco sentidos externos, os quais, não
raramente, nos enganam. Por isso, o conhecimento filosófico apto a assentar os alicerces
da mathesis universalis deveria ser universal e abstrato, vale dizer, um conhecimento que
abrangesse todas as coisas existentes e que pudesse ser aplicado a cada uma delas por
meio das ciências particulares, imbuídas agora do mesmo grau de certeza e evidência da
filosofia de que proviriam. Foi esse substrato metafísico que Descartes enunciou no
Discurso do método e aprofundou nas Meditações metafísicas.
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(DESCARTES, 2005, p. 23-24). O nosso autor dedica a terceira meditação a expor “assaz
longamente o principal argumento de que me sirvo para provar a existência de Deus”
(DESCARTES, 2005, p. 26), o qual terá como conclusão que “é impossível que a idéia
de Deus, que está em nós, não tenha Deus mesmo como sua causa” (DESCARTES, 2005,
p. 26-27). Na quarta meditação, o pensador francês procura provar “que as coisas que
concebemos muito clara e distintamente são todas verdadeiras, e junto é explicado em
que consiste a razão do erro ou falsidade” (DESCARTES, 2005, p. 27). Descartes expõe
na quinta meditação que “a existência de Deus é ainda demonstrada por novas razões
[…]; e aí também se descobre de que forma é verdadeiro que a certeza das demonstrações
depende do conhecimento de um Deus” (DESCARTES, 2005, p. 27). Por fim, na sexta
meditação, o pai do racionalismo filosófico oferece “todas as razões das quais se pode
concluir a existência das coisas materiais”, as quais provam “que há um mundo, que os
homens têm corpos e outras coisas semelhantes que nunca foram colocadas em dúvida
por nenhum homem de bom senso”, mas que, “considerando-as de perto, chega-se a
conhecer que não são tão firmes nem tão evidentes quanto as que nos conduzem ao
conhecimento de Deus e de nossa alma” (DESCARTES, 2005, p. 28).
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manifestamente que não há indícios concludentes nem marcas bastante certas por onde
se possa distinguir nitidamente a vigília do sono, que fico muito espantado, e meu espanto
é tal que é quase capaz de persuadir-me de que eu durmo” (DESCARTES, 2005, p. 33).
Seguindo esta linha de raciocínio, Descartes vê-se obrigado também a confessar
não se sentir seguro de que o mundo material que o rodeia realmente existe e tampouco a
materialidade do seu próprio corpo:
Mais adiante no texto, o pensador francês passa a dizer que, dado que se afirma –
opinião na qual ele crê – que Deus “é soberanamente bom” (DESCARTES, 2005, p. 36),
Ele não poderia ter querido ludibriá-lo quando “faço a adição de dois e três, ou que
enumero os lados de um quadrado, ou que julgo alguma coisa ainda mais fácil, caso se
possa imaginar algo mais fácil que isso” (DESCARTES, 2005, p. 36); ou seja, é contrária
à natureza de Deus a atitude de enganar os seres humanos. Porém – e aqui Descartes dá
início à dúvida hiperbólica –, mesmo admitindo que, em relação às suas opiniões antigas
– nas quais está incluída a crença num Deus sumamente bom –, “se tem mais razão de
acreditar nelas do que de negá-las”, toma a seguinte decisão:
Eis por que penso que as usarei mais prudentemente se, tomando
partido contrário, emprego todos os meus cuidados em enganar a mim
mesmo, fingindo que todos esses pensamentos são falsos e imaginários;
até que, tendo de tal modo balanceado meus prejuízos que eles não
possam fazer meu parecer pender mais para um lado que para outro,
meu juízo não seja mais, doravante, dominado por maus usos e desviado
do caminho reto que o pode conduzir ao conhecimento da verdade
(DESCARTES, 2005, p. 33).
Assim, realiza o ato de duvidar de que há Deus, Ser boníssimo, substituindo-o por
uma entidade malévola de grande poder que – esta, sim – quer a todo momento enganá-
lo acerca de tudo, inclusive sobre as verdades matemáticas mais elementares:
[P]ode ocorrer que ele tenha querido que eu me engane todas as vezes
que faço a adição de dois e três, ou que enumero os lados de um
quadrado, ou que julgo alguma coisa ainda mais fácil, caso se possa
imaginar algo mais fácil que isso. […] Suporei, pois, que não há um
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verdadeiro Deus, que é soberana fonte de verdade, mas certo gênio
maligno, não menos astuto e enganador que poderoso, que empregou
toda sua indústria em enganar-me. Pensarei que o céu, o ar, a terra, as
cores, as figuras, os sons e todas as coisas exteriores que vemos não
passam de ilusões e enganos de que se serve para surpreender minha
credulidade. Considerarei a mim mesmo como não tendo mãos, nem
olhos, nem carne, nem sangue, como não tendo nenhum sentido, mas
crendo falsamente ter todas essas coisas. Permanecerei obstinadamente
apegado a esse pensamento; e se, por esse meio, não está em meu poder
alcançar o conhecimento de alguma verdade, pelo menos está em meu
poder suspender meu juízo. Eis por que me guardarei cuidadosamente
de receber em minha crença qualquer falsidade, e prepararei tão bem
meu espírito para todas as astúcias desse grande enganador que, por
mais poderoso e astuto, jamais poderá impor-me nada (DESCARTES,
2005, p. 38).
A meditação encerra-se pouco depois, sem que Descartes tenha extraído dela
qualquer verdade da qual não é possível duvidar.
1.2. Meditação segunda: Descartes chega à primeira verdade da qual não se pode
duvidar
O nosso autor aprofunda a sua dúvida em relação às coisas que percebe, ao seu
próprio corpo, aos seus próprios sentidos externos e à sua imaginação. Por meio desse
método, procura alcançar um conhecimento absolutamente distinto e evidente, do qual
ele não pode duvidar de forma alguma. Chega então a um “novo conhecimento”
(DESCARTES, 2005, p. 55): “conheço evidentemente que não há nada que me seja mais
fácil de conhecer do que meu espírito” (DESCARTES, 2005, p. 54-55).
Esta descoberta cartesiana é mais amplamente exposta em algumas páginas
anteriores com as seguintes palavras:
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O caminho que levou Descartes a essa descoberta pode ser resumidamente
explicado deste modo:
• Se estou duvidando, estou pensando, porque duvidar é uma modalidade de
pensar;
• Se não posso duvidar de eu estou pensando, então eu existo;
• Então, uma vez que eu penso, eu existo. Dito de outra maneira: penso, logo
existo (em latim, cogito ergo sum).
Assim, a primeira verdade indubitável, a primeira ideia clara e distinta (evidente)
concluída pelo pensador francês é a de que eu existo, ou seja, de que ele, René Descartes,
existe, pelas razões recém-expostas. Na segunda meditação, ele só pode definir-se como
“uma coisa que pensa”, uma coisa pensante (res cogitans), vale dizer, como pensamento,
que ele termina por identificar com a alma, embora tenha dito antes que o pensamento é
apenas um dos atributos da alma.
Aqui, Descartes já está em condições teóricas de dizer que ele também é um
corpo? Não, porque ele demonstrou somente que não pode duvidar de que pensa e de que,
portanto, é, de que existe; ainda não conseguiu livrar da dúvida a existência do seu sentido
interno da imaginação nem dos seus cinco sentidos externos, os quais têm por objeto
precisamente as coisas materiais, dentre as quais se conta o seu próprio corpo e todos os
demais seres materiais.
O nosso autor também se questiona sobre se ele é quando não está pensando (de
fato, o pensar é intermitente, pois não se pensa propriamente quando se está dormindo):
Há algo nisso tudo que seja tão verdadeiro quanto é certo que sou e que
existo, ainda que sempre dormisse […]? […] Enfim, sou o mesmo que
sente, ou seja, que recebe e conhece as coisas como que pelos órgãos
dos sentidos, porquanto de fato vejo a luz, ouço o ruído, sinto o calor.
Porém dir-me-ão que essas aparências são falsas e que durmo
(DESCARTES, 2005, p. 48).
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1.3. Meditação terceira: a demonstração cartesiana da existência de Deus, a res
infinita
Nesta parte das Meditações metafísicas, René Descartes conclui que Deus, a res
infinita (coisa infinita, por contrapor-se a ele, que é finito – conclusão a que o autor
francês já chegou mesmo tendo certeza apenas de que é res cogitans, isto é, pensamento
desprovido de corpo), existe.
Para tanto, começa por diferenciar três tipos de ideias que percebe no seu
pensamento:
As ideias que nasceram com ele são as inatas; as que lhe vêm de fora de si, as
adventícias; e aquelas que ele própria inventa são as ideias factícias.
Uma vez que já pode considerar como verdadeira – por ser clara e distinta, isto é,
isenta de obscuridade em si mesma e de confusão relativamente a outras ideias – a ideia
de que ele é porque existe, Descartes vê-se agora diante do seguinte desafio:
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[A]quela [ideia] pela qual concebo um Deus soberano, eterno, infinito,
imutável, onisciente, onipotente e criador universal de todas as coisas
que estão fora dele; aquela, digo, tem certamente em si mais realidade
objetiva do que aquelas [ideias] pelas quais as substâncias finitas me
são representadas. (DESCARTES, 2005, p. 65)
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que sou um ser finito, se ela não tivesse sido posta em mim por alguma
substância que fosse verdadeiramente infinita. (DESCARTES, 2005, p.
71-72, ênfase acrescida)
O atributo-chave que lhe faz perceber que Deus não se restringe meramente a uma
ideia sua é a infinitude, que contrasta implacavelmente com a finitude que Descartes
reconhece em si mesmo. Cumpre fazer notar que, neste passo, “infinitude” não designa
extensão material ilimitada, mas poder criador, o qual extrai do nada precisamente “todas
as outras coisas que existem [e que] […] foram criadas”, o que indica, uma vez mais, a
contraditória permanência em Descartes, a esta altura da sua reflexão, da sua antiga
opinião estritamente judaico-cristã de que Deus é um ser criador, ou seja, alguém que dá
origem a outros seres a partir da inexistência absoluta de qualquer outro ser prévio.
Para corroborar a sua descoberta da ideia clara e distinta da res infinita e, portanto,
da existência real de Deus, escreve o pensador francês:
[Q]uando faço reflexão sobre mim, não somente conheço que sou uma
coisa imperfeita, incompleta e dependente de outrem, que tende e aspira
incessantemente a algo melhor e maior do que sou, mas que conheço
também, ao mesmo tempo, que aquele de quem dependo possui em si
todas essas grandes coisas a que aspiro, e cujas ideias encontro em
mim, não indefinidamente e apenas em potência, mas que ele as usufrui
de fato, atual e infinitamente, e, assim, que é Deus (DESCARTES,
2005, p. 81, ênfase acrescentada).
1.4. Meditação quarta: Descartes explica por que erramos ao avaliarmos a realidade
Ao início dessa Meditação, Descartes enuncia o seu propósito:
Isto é, o nosso autor tratará aqui das suas percepções e pensamentos errôneos
acerca da realidade externa à sua mente que lhe parece existir de fato.
Constata que
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E ao perquirir as causas dos seus equívocos inteligíveis, adverte o seguinte:
O nosso autor faz questão de frisar que a razão, por si só, não o induz a erro; e que
tampouco a vontade, isoladamente considerada, o faz:
Por tudo isso reconheço que nem a potência de querer, que recebi de
Deus, é por si mesma a causa de meus erros, pois ela é muito ampla e
muito perfeita em sua espécie; nem também a potência de entender ou
de conceber; pois, nada concebendo senão por meio dessa potência que
Deus me deu para conceber, sem dúvida tudo o que concebo concebo-
o corretamente, e não é possível que nisso me engane. (DESCARTES,
2005, p. 90)
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não entendo; sendo por si indiferente a elas, ela se desencaminha com
muita facilidade e escolhe o mal pelo bem, ou o falso pelo verdadeiro.
O que faz que me engane e que peque. (DESCARTES, 2005, p. 91,
ênfase acrescentada).
Se ele [Deus] não me deu a virtude de não falhar, pelo primeiro meio
que declarei acima, que depende de um claro e evidente conhecimento
de todas as coisas sobre as quais posso deliberar, ele ao menos deixou
em minha potência o outro meio, que é o de manter firmemente a
resolução de jamais dar meu juízo sobre cuja verdade não me é
claramente conhecida. Pois, conquanto note em minha natureza essa
fraqueza de nunca poder prender continuamente meu espírito a um
mesmo pensamento, posso, todavia, por uma meditação atenta e
amiúde reiterada, imprimi-lo tão fortemente na memória que nunca
deixe de me lembrar disso todas as vezes que necessitar, e adquirir
dessa forma o hábito de não falhar. (DESCARTES, 2005, p. 95.
Ênfases acrescentadas)
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chegar a ela e nem tão escondida que não a descubramos.
(DESCARTES, 2001, p. 22-24, ênfases acrescentadas)
Em suma, Descartes considera que todas as coisas podem ser conhecidas, sem erro
algum, como verdadeiras ou falsas pela sua razão. No entanto, isso só se dá se se seguem
as quatro regras do método – que refreiam a precipitação da sua vontade – que, graças à
bondade divina, ele advertiu e elaborou, o qual pode ser assim resumido:
1. Regra da evidência: só se deve aceitar como verdadeira e realmente
existente aquela coisa cuja ideia for clara (sem obscuridade, isenta de
ambiguidade) e distinta (não confusa, que não se confunde com qualquer
outra ideia ligada a uma coisa diferente);
2. Regra da análise: é preciso dividir as ideias complexas no maior número
possível, de modo que a razão chegue a deparar-se apenas com ideias
claras e distintas;
3. Regra da síntese: a seguir, há que juntar as ideias claras e distintas com
ordem lógica, a fim de compor ideias complexas que, de fato,
correspondam à realidade;
4. Regra da enumeração: por fim, cabe verificar cada passo dado na junção
das ideias, até que se atinja a certeza de que nenhuma ideia foi omitida.
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[Q]uando imagino um triângulo, ainda que talvez não haja em lugar
nenhum do mundo fora do meu pensamento uma tal figura, e jamais
tenha havido, não deixa de haver, não obstante, uma certa natureza, ou
forma, ou essência determinada dessa figura, a qual é imutável e eterna,
que eu não inventei e que não depende de forma alguma de meu
espírito; como é aparente do fato de se poder demonstrar diversas
propriedades desse triângulo, a saber, que seus três ângulos são iguais
a dois retos, que o ângulo maior é sustentado pelo lado maior, e outras
semelhantes, as quais agora, seja que eu queira ou não, reconheço muito
claramente e muito evidentemente estarem nele, ainda que eu não tenha
de modo algum pensado nisso antes, quando imaginei pela primeira vez
um triângulo; e, portanto, não se pode dizer que eu as tenha fingido ou
inventado (DESCARTES, 2005, p. 98-99)
Dito de outro modo, exemplificando: uma vez que o nosso autor é capaz de
constatar, com clareza e distinção, que a ideia de triângulo e as propriedades pertencentes
a esta figura geométrica que se encontram na sua mente não podem ter sido inventadas
por ele nem dele dependem para existir, o que lhe impede proceder da mesma maneira
em relação a ideia de Deus, que lhe é igualmente clara e distinta? Com efeito, não há
impedimento algum. Então Descartes desenvolveu da seguinte forma o seu próprio
argumento ontológico para provar que Deus existe:
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forma. Pois não está em minha liberdade conceber um Deus sem
existência (ou seja, um ser soberanamente perfeito sem uma soberana
perfeição), como tenho a liberdade de imaginar um cavalo sem asas ou
com asas. (DESCARTES, 2005, p. 101-102, ênfases acrescidas)
Para Descartes, a existência real de Deus está para a ideia que ele, Descartes, tem
de Deus assim como o fato inescapável de a soma dos ângulos internos de um triângulo
ser 180 graus está para a ideia que ele, René Descartes, tem do triângulo e assim como o
fato de que a ideia de vale implica necessariamente a ideia – também possuída por
Descartes – de montanha. Ou seja, é impossível que Deus não tenha existência real,
extramental, da mesma maneira que é impossível que haja uma montanha sem vale ou
que a somatória dos ângulos internos de um polígono equivalha a 180 graus sem que esse
polígono seja um triângulo.
E quanto às verdades da matemática? Será que, após a descoberta de que Deus
realmente existe, Descartes pode continuar a sustentar um suposto um gênio maligno que
o tenha induzido a considerá-las certas, quando na verdade não o são? Não, não pode
mais. Pelo fato de Descartes atribuir à res infinita, além da onipotência, o atributo da
honestidade, da bondade, uma vez que, por ser absolutamente perfeito, não tem a
imperfeição de enganá-lo, a hipótese de que essa entidade poderosa, astuta e fraudulenta
exista cai totalmente por terra. Assim, o pensador francês pode legitimamente dar por
certas verdades tão simples e elementares como que 2 + 3 = 5 e que um retângulo possui
quatro lados, bem como todas as demais verdades algébricas e geométricas a que tinha
chegado ao atuar como matemático:
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célebres quatro regras do Discurso do método – e que, se não fosse por Deus, Descartes
nada poderia conhecer com certeza.
Por causa de Deus, “o autor de minha origem”, Descartes julga insensato duvidar
de todas as coisas sensíveis e, ao mesmo tempo, vê-se obrigado a não ser temerário, isto
é, a não se arriscar a asseverar precipitadamente que tudo o que os seus cinco sentidos lhe
informam é real.
O raciocínio que conduz o pensador francês é dar por assentado que as coisas
corporais (materiais) existem realmente é este:
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Ora, não sendo Deus enganador, é muito manifesto que ele não me
envia por si mesmo imediatamente essas idéias, tampouco por
intermédio de alguma criatura, na qual a realidade delas não esteja
contida formalmente, mas apenas eminentemente. Pois, não me tendo
dado nenhuma faculdade para conhecer que seja assim, mas, ao
contrário, uma enorme inclinação para crer que elas me são enviadas ou
que partem das coisas corporais, não vejo como se poderia desculpá-lo
pelo engano, se de fato tais idéias partissem ou fossem produzidas por
outras causas que não as coisas corporais. E, portanto, é preciso
confessar que há coisas corporais que existem. (DESCARTES, 2005,
p. 120)
Ou seja, porque Deus é honesto, ele não pode incutir em Descartes ideias sobre
entes materiais que, na verdade, não existem. Pela mesma razão, é de todo rechaçável que
Deus o fizesse não por si mesmo, mas através de criaturas suas poderosas – um gênio
maligno, por exemplo –, as quais, embora não trouxessem dentro de si a essência das
ideias desses falsos entes materiais (“formalmente”), as teriam em tão alto grau
(“eminentemente”), a ponto de conseguirem enganar Descartes. Além da impossibilidade
de Deus enganá-lo, o nosso autor nota em si mesmo a forte tendência de acreditar que
essas ideias de entes materiais chegam a ele precisamente a partir desses próprios entes
materiais, realmente existentes; por isso, não encontra outra solução a não ser afirmar
“que há coisas corporais que existem”, incluído o seu próprio corpo.
Surpreendentemente, René Descartes aventa a possibilidade de que todo o mundo
material, isto é, a natureza, coincida com o próprio Deus, de que a natureza e Deus sejam
a mesma realidade. Escreve o pensador francês:
Esta postura perante a realidade divina é denominada panteísmo (do grego pan –
tudo, todas as coisas – e theos – deus, divino). Segundo esta concepção, o todo universal
pode ser chamado de Deus ou então de natureza, donde provém a famosa expressão latina,
usada por diversos filósofos, Deus sive natura. É surpreendente que Descartes ventile a
possibilidade de que Deus se identifique com a natureza, porque essa natureza-Deus
englobaria não só todas as coisas materiais alheias a Descartes, mas até mesmo o próprio
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corpo do nosso autor, sem abranger, contudo, a sua mente, isto é, o seu pensamento, o
qual lhe certifica de que ele, Descartes, tem uma existência dependente da de Deus, mas
diferente da dele. Desse modo, haveria no universo apenas dois seres (e isto é o que
surpreende): Deus e René Descartes.
Não obstante este breve e intrigante inciso declarado pelo pensador francês, ele
ainda se empenha em solucionar uma última dúvida: “resta ainda examinar como a
bondade de Deus não impede que a natureza do homem […] seja deficiente e
enganadora.” (DESCARTES, 2005, p. 128).
Antes de chegar à sua resposta, Descartes faz duas considerações: (1) é muito
melhor que os sentidos o enganem de vez em quando, em vez de enganá-lo sempre; (2)
ainda que alguns dos seus sentidos às vezes o enganem, ele pode escapar ao erro
recorrendo a informações que outros dos seus sentidos lhe oferecem, à sua memória (para
contrastar as sensações presentes com aquelas anteriormente experimentadas) e ao seu
próprio entendimento, que já descobriu a causa radical dos seus erros, ou seja, a assimetria
constitutiva entre a sua razão e a sua vontade.
No que diz respeito à primeira consideração, o nosso autor fala da sensação de
sede causada pela necessidade fisiológica de hidratar-se e pela enfermidade da hidropisia,
que consiste no derramamento de líquido seroso no tecido das células ou em cavidades
do corpo:
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Após estas duas considerações, Descartes somente é capaz de fazer uma
constatação acerca da fragilidade da condição humana, que, ao fim e ao cabo, não
responde por que “a bondade de Deus não impede que a natureza do homem […] seja
deficiente e enganadora”. Ei-la:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em função do seu conteúdo profundamente metafísico, do esmero com que
constrói os seus argumentos e, principalmente, da enorme relevância que conquistou na
história da filosofia, as Meditações metafísicas merecem ser lidas e detidamente
estudadas.
Não obstante as diversas objeções a teses fundamentais dessa obra que serão
apresentadas na Unidade II deste e-book, é preciso sublinhar a agudeza ímpar com que
René Descartes examina as questões imprescindíveis da filosofia de todos os tempos, que
consistem nas descobertas profundamente sapienciais e exclusivamente racionais feitas
por brilhantes filósofos que o precederam.
Por isso, pode-se afirmar com segurança que as Meditações constituem não só o
núcleo estruturante de todo o pensamento de Descartes como também o alicerce principal
em que se baseiam todos os empreendimentos intelectuais realizados pelos mais
destacados pensadores modernos que trataram das temáticas capitais da filosofia, a saber,
Deus, o homem e o mundo.
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UNIDADE II
OBJEÇÕES ÀS TESES CARTESIANAS EM MEDITAÇÕES
METAFÍSICAS
INTRODUÇÃO
Apesar do brilhantismo temático e argumentativo das Meditações metafísicas,
encontram-se nelas teses que contrariam tanto o rigor lógico, como a atenta e sensata
observação da realidade fática que se apresenta todos os dias diante dos nossos olhos.
Nesta Segunda Unidade da disciplina, debruçamo-nos sobre essas incongruências.
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Com efeito, é de todo impraticável tentar estabelecer um único itinerário
epistemológico, um único método cognitivo para tratar todos os objetos passíveis de ser
conhecidos pelo intelecto humano. Isto se explica pelo fato de que o método de
conhecimento é definido pelo objeto da realidade que se quer conhecer, e não pela mente
humana que se põe a conhecê-lo.
Aliás, a maior parte dos objetos de conhecimento não permite que a razão humana
os conheça com evidência, com certeza indefectível – ou, em termos cartesianos, com
clareza e distinção. Por exemplo, ninguém jamais conseguirá conhecer com plena
evidência a pessoa com quem tem de se casar ou se se será bem-sucedido no emprego
para o qual está candidatando-se.
Evidência (ou certeza) não é a mesma coisa que verdade. O fato de não
conseguirmos adquirir um conhecimento irrefutável sobre determinado objeto ou situação
da realidade não implica que não o possamos conhecer de forma verdadeira. A título
exemplificativo: ainda que haja margens de insegurança a respeito de se devo casar-me
com uma pessoa específica, a parcela de segurança de que, sim, devo casar-me com ela,
resultante da convivência prevalentemente amistosa e de uma reflexão realista acerca das
características dessa união, configura uma verdade; porém nunca será uma certeza
inabalável, pois isto é simplesmente impossível neste tipo de assunto.
1.2. Segunda objeção: a dúvida não é um método apto para conhecermos as coisas
O conhecimento humano em geral, e não só o filosófico, jamais tem início com o
ato de duvidar. O ato que inaugura a nossa cognição sobre algo é o de contemplar,
observar, admirar essa realidade concreta.
Se tão logo que um objeto ou situação qualquer começasse a despertar a nossa
atenção nós nos puséssemos a duvidar da sua existência, essa dúvida não faria senão
impedir o nosso conhecimento acerca de tal realidade, apenas o bloquearia.
Isto não significa dizer que o processo de conhecimento deva prescindir da dúvida.
Jamais. Se assim fosse, todo conhecimento humano seria tão somente passivo e ingênuo,
resultando em conclusões somente superficiais e até mesmo falsas. A dúvida é
indispensável para conhecermos. Porém nunca pode situar-se no seu ponto de partida nem
pode ser infundada, imotivada, irrazoável. Quando há motivos e fundamentos para
duvidar inerentes ao objeto que estamos a conhecer, é preciso que efetivamente
duvidemos. Contudo, esta atitude é diametralmente oposta à de duvidar proposital e
desnecessariamente.
26
Voltaremos a este ponto no subtítulo 2 desta Unidade do e-book.
27
Descartes demonstra que Deus existe por meio de dois expedientes: a busca da
causa de a ideia de infinito existir na sua mente e o argumento ontológico.
Quanto à busca da causa da ideia de infinito existente na sua mente, o nosso autor
a identifica com um ser infinito, pois ele próprio não poderia tê-la produzido, uma vez
que é um ser finito, limitado. No entanto, toda pessoa pode, sim, produzir a ideia de
infinito na sua mente; basta que negue a ideia de finito que ali se encontra.
A infinitude do nosso conceito de infinito pode ser relativa tanto à extensão dos
seres corporais que observamos quanto ao grau de perfeição das realidades que
conhecemos. Esse primeiro caso de infinitude pode ser produzida pela nossa atividade,
por exemplo, ao vermos uma tábua de madeira de 30 cm de comprimento por 10 cm de
largura; a partir desse ente real, posso construir mentalmente uma tábua de madeira de
comprimento, de largura ou com ambas as dimensões sem fim, infinitas. O segundo caso
de infinitude pode ser obtida pela nossa mente, por exemplo, ao olharmos para uma
pessoa idosa, míope, com certa dificuldade para andar e facilmente irritável; diante destas
características, podemos negá-las imaginando uma pessoa com vigor físico imensurável
e inesgotável, dotada de visão cristalina tanto para objetos situados a quilômetros como a
milímetros de distância de seus olhos, com uma marcha perfeita e incansável, bem como
com todas as suas emoções maximamente equilibradas. Ou seja, o nosso conceito de
infinito é obtido pela nossa própria negação do conceito de finito que já possuímos. Não
é preciso que um ser infinito insira em nossa mente o conceito de infinito.
Esta última afirmação, porém, encontra um obstáculo aparentemente
intransponível neste trecho das Meditações metafísicas:
E não devo imaginar que não concebo o infinito por uma verdadeira
idéia, mas somente pela negação do que é finito, assim como
compreendo o repouso e as trevas pela negação do movimento e da luz;
já que, ao contrário, vejo manifestamente que se encontra mais
realidade na substância infinita do que na substância finita, e, portanto,
que tenho de alguma forma em mim primeiro a noção de infinito do que
do finito, ou seja, de Deus, do que de mim mesmo. Pois como seria
possível que eu pudesse conhecer que duvido e que desejo, ou seja, que
me falta algo e que não sou totalmente perfeito, se não tivesse em mim
nenhuma idéia de um ente mais perfeito do que o meu, por comparação
ao qual eu conheceria os defeitos de minha natureza? (DESCARTES,
2005, p. 72-73, destaque acrescentado)
28
do que é finito”, o que parece lançar por terra a validade da afirmação que se acaba de
fazer, isto é, de que o nosso conceito de infinito é obtido pela nossa própria negação do
conceito de finito que já possuímos. Contudo, esta afirmação não parece perder a sua
validade diante do texto cartesiano supracitado pelas seguintes razões:
1. Descartes somente concebe a ideia de infinito na qualidade de uma
substância infinita e só encontra mais realidade nela do que em si mesmo
porque, como escreve poucas linhas antes, “[p]elo nome Deus entendo
uma substância […] eterna, imutável, independente, onisciente,
onipotente, e pela qual eu mesmo, e todas as outras coisas que existem […]
foram criadas e produzidas” (DESCARTES, 2005, p. 72). Estes atributos
divinos não se depreendem da ideia de infinito na qualidade de substância
infinita, mas, pelo contrário, são eles que ensejam, que dão origem à ideia
de infinito como substância infinita. Ou seja, a concepção de Deus como
um ser dotado de eternidade, imutabilidade, independência, onisciência e
onipotência já se encontrava na mente de Descartes; e foi a partir desta
concepção que ele elaborou a ideia de infinito na qualidade de substância
infinita. Aliás, seria contrafactual que essa ideia de Deus dotado de tais
atributos fosse inata a Descartes, isto é, seria contrário à realidade dos fatos
da vida que ele já tivesse sido gerado e nascido com essa ideia inserida na
sua mente, pois é fato comum e corrente que nenhum ser humano concebe
Deus assim de forma espontânea, mas apenas depois de observar a
realidade que o circunda durante longos anos e, normalmente, com o
auxílio da instrução de terceiros;
2. Além disso, é improcedente a referida equivalência da obtenção da ideia
de infinito à obtenção das ideias de repouso e escuridão (“trevas”), pois
destas duas últimas tem-se uma impressão sensível – ainda que só em
aparência, como Descartes diria antes de oferecer o que considera a sua
prova da existência real da res extensa –, ao passo que de modo nenhum
se tem uma impressão sensível da ideia de infinito, mas tão somente uma
impressão imaginativa (uma tábua de madeira de extensão sem fim, uma
pessoa física e moralmente perfeita etc.);
3. Descartes consegue conhecer que duvida e deseja não porque se dá conta
de que há nele a ideia de infinito como um ente mais perfeito do que ele
próprio. Conhece que duvida e deseja simplesmente porque pratica as
29
ações de duvidar e desejar, e porque tem consciência destes atos seus.
Ademais, a ideia de uma substância infinita, isto é, de um ente mais
perfeito do que si mesmo, não decorre da constatação de que se duvida e
se deseja – ao menos, não necessariamente, tanto em Descartes como nos
demais seres humanos, de maneira que essa ausência de necessidade torna
impossível a demonstração da existência de Deus.
Com relação ao segundo expediente usado por Descartes para demonstrar a
existência de Deus, o argumento ontológico, o raciocínio do nosso autor pode ser
resumido do seguinte modo:
― Tenho a ideia de um Deus sumamente perfeito.
― Para que seja sumamente perfeito, Deus tem de existir; do contrário, faltar-
lhe-ia uma perfeição, a saber, a existência.
― Portanto, a ideia de Deus implica necessariamente que Deus existe.
Esta demonstração é improcedente, porque comete o equívoco de provar a
existência de algo no âmbito extramental a partir de outra coisa existente apenas no
âmbito mental. A transposição do primeiro para o segundo âmbito é ilegítima, pois nem
tudo o que há dentro da mente humana corresponde perfeitamente a algo que há fora da
mente humana. Por isso, qualquer demonstração da existência de Deus que apele ao
argumento ontológico – que consiste precisamente em efetuar tal transposição ilegítima
– é sempre inválida.
Toda demonstração válida da existência de Deus tem de preencher o requisito de
não derivar a existência extramental de Deus da existência mental de Deus (como ideia
ou conceito). As demonstrações da existência de Deus feitas por Aristóteles e Tomás de
Aquino, por exemplo, preenchem este requisito, pois partem da realidade de efeitos
causados e chegam à necessidade não só lógica, mas também metafísica, de que eles
procedem de Deus.
Antes de Descartes, o argumento ontológico fora utilizado na Idade média por
Boaventura e refutado por Tomás de Aquino, que, em síntese, mostrou a sua
improcedência ao dizer que nós, os seres humanos, não formamos em nossas mentes um
conceito ou ideia de Deus por via de evidência, porque não temos um conhecimento direto
da essência de Deus. O conceito de Deus que possuímos é a conclusão de um raciocínio
nosso cuja premissa consiste no nosso conhecimento dos efeitos reais causados pela
existência real de Deus, efeitos esses que – estes, sim – são evidentes para nós.
30
Ademais, Immanuel Kant afirmou acertadamente, criticando a prova de Descartes,
que a existência de um ente não é uma perfeição desse ente, mas é antes a condição ou
pressuposto para que esse ente tenha perfeições.
Além da improcedência lógica e metafísica das duas demonstrações da existência
de Deus operadas por Descartes, ainda é preciso apontar uma inconsistência de grande
monta na maneira como o pensador francês caracteriza Deus: ele não segue, neste
particular, o seu próprio método de duvidar das suas opiniões antigas (vetus opinio).
Com efeito, o nosso autor não põe em dúvida a velha ideia de Deus que ele mesmo
possuía e que era fruto de quase 1.700 anos de teologia cristã: Deus é o criador sumamente
perfeito de toda a realidade.
A este respeito, nas Meditações, Descartes escreve, por exemplo:
• “Pelo nome Deus entendo uma substância […] eterna, imutável,
independente, onisciente, onipotente, e pela qual eu mesmo, e todas as outras
coisas que existem […] foram criadas e produzidas” (DESCARTES, 2005, p. 72).
• “[R]esta ainda examinar como a bondade de Deus não impede que a
natureza do homem […] seja deficiente e enganadora.” (DESCARTES, 2005, p.
128)
O conjunto dos atributos elencados nas duas passagens acima (eternidade,
imutabilidade, independência – em relação ao mundo –, onisciência, onipotência, poder
criador e bondade) foram sendo descobertos e estabelecidos como divinos pela ciência
teológica elaborada nos longos períodos da primitiva cristandade (antiguidade tardia),
bem como nos da Patrística e da Escolástica medievais. E o pensador francês certamente
os aprendeu no Colégio dos jesuítas de La Flèche e possivelmente no seio familiar. Ele
jamais poderia caracterizar assim a ideia de infinito (res infinita) se efetivamente tivesse
posto em dúvida as suas antigas opiniões acerca de Deus. Basta verificar que nenhum dos
grandes filósofos gregos pré-cristãos falavam de Deus com todos estes atributos; nem
sequer os melhores teólogos do início do cristianismo o faziam.
Descartes, além do mais, afirma que esta concepção de Deus lhe é inata e
evidentíssima para ele. Ora, ser infinito – até mesmo no sentido de perfeição máxima
aplicada a um ser humano, que é o único ente que Descartes poderia levar em
consideração ao percorrer o método da dúvida generalizada – jamais implica ser eterno,
imutável, independente em relação ao mundo físico, onisciente, onipotente e, muito
menos, criador. (Aristóteles, o pensador anterior ao cristianismo mais agudo em matéria
31
de teologia filosófica, nunca chegou nem perto da ideia de criação, isto é, da capacidade
de fazer que um ente surja do nada, do não-ser.)
As provas cartesianas da existência de Deus inauguram, na história da
humanidade, a inversão do processo mediante o qual as pessoas realmente chegam a
conhecer Deus, a saber: primeiro conhecemos as realidades sensíveis, depois conhecemos
o nosso eu como união de corpo e alma, e, por fim, conhecemos Deus ou, ao menos,
algum aspecto da realidade divina.
1.5. Quinta objeção: o “eu” não é a primeira realidade que conhecemos com
evidência
A razão pela qual Descartes põe o eu penso como ponto de partida da
reinauguração da filosofia que pretende empreender, é a sua convicção de que o “eu”, ele
próprio, é o primeiríssimo ente que a sua cognição lhe apresenta como evidente, de
existência inquestionável.
No entanto, não é esta a experiência humana comum e corrente. Toda pessoa, nas
primeiras épocas da sua vida, só chega a ter consciência de si, do seu “eu”, porque se
respalda no conhecimento de realidades que não são ela própria: os seus pais, irmãos,
outras pessoas, as partes do seu corpo, os objetos materiais com que tais partes do seu
organismo interagem etc.
Ou seja, só podemos adquirir a consciência de nós mesmos, do nosso “eu”,
apoiando-nos nas relações que entabulamos com as demais realidades físicas, sobretudo
com os corpos das pessoas com quem convivemos. Dito de outro modo, é apenas a partir
do conhecimento do “tu”, dos outros, que chegamos a conhecer o nosso “eu”.
Descartes, no entanto, em nenhuma parte das Meditações metafísicas, fala do “tu”,
do “você”, das outras substâncias que, como ele, pensam. Isto é, o nosso autor jamais se
refere à multiplicidade de eus que há no mundo. As outras pessoas são arroladas entre as
“coisas corporais” em geral, cuja existência ele pretende provar: “é oportuno que eu […]
veja se das idéias que recebo em meu espírito por essa forma de pensar, que chamo sentir,
posso tirar alguma prova certa da existência das coisas corporais”. (DESCARTES, 2005,
p. 112, ênfase acrescida). Mesmo quando fala de corpos humanos, só é capaz de referir-
se ao seu próprio corpo:
Pensarei que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as
coisas exteriores que vemos não passam e enganos […]. Considerarei
a mim mesmo como não tendo mãos, nem olhos, nem carne, nem
sangue, como não tendo nenhum sentido, mas crendo falsamente ter
32
todas essas coisas. (DESCARTES, 2005, p. 38, destaques
acrescentados)
Tampouco fica claro na principal obra do pensador francês de que maneira o seu
método de busca de ideias claras e distintas é capaz de resolver o problema da existência
das outras pessoas, uma vez que nem Descartes nem qualquer outro ser humano consegue
conhecer com evidência, diretamente, a mente de outra pessoa diferente de si mesmo.
Ao se adotar a dúvida metódica e os seus desdobramentos, o máximo que se pode
afirmar conhecer acerca dos outros seres humanos é que eles consistem em res extensa,
em extensão material; não há como afirmar a sua índole de pessoas humanas, de
autênticos eus. Assim, as outras pessoas ficam reduzidas a elementos pertencentes ao puro
mundo material e mecanicista, com um estatuto essencialmente idêntico àquele possuído
pelos animais irracionais dentro do sistema cartesiano.
1.6. Sexta objeção: Descartes não poderia ter duvidado dos seus sentidos, porque
não duvidou da sua memória
Pela dúvida metódica, René Descartes duvida das ideias que os seus cinco sentidos
lhe transmitem e, mediante a dúvida hiperbólica – a que lança mão do recurso do gênio
maligno – põe em dúvida as realidades matemáticas que conhece.
Pois bem, o nosso autor, nas Meditações, nunca põe em tela de juízo a
credibilidade da sua própria memória. E isto é problemático, porque só podemos afirmar
ou negar as ideias que habitam a nossa mente se previamente consideramos como críveis
e certas as lembranças e recordações que habitam a nossa memória, pois estas últimas são
a fonte necessária para formarmos as nossas ideias. Porém somos conscientes de que,
com maior ou menor frequência, a nossa memória nos trai, fornecendo-nos lembranças e
recordações falsas. Desse modo, se quisermos estar habilitados para julgar a verdade ou
falsidade das nossas ideias mentais, temos que submeter previamente a nossa memória a
um teste de confiabilidade, dubitativo, pela qual ela deve passar com sucesso.
A título de exemplo: somente posso avaliar a minha ideia de que sou
acentuadamente egocêntrico se não tenho dúvidas em relação aos acontecimentos
passados X, Y e Z, nos quais realizei ações de egocentrismo. Se duvido da lembrança de
que realizei tais ações, não posso sequer formular a ideia de que sou fortemente
egocêntrico.
Graças a Adrien Baillet, primeiro biógrafo de Descartes, sabemos que o pensador
francês descobriu a sua vocação para a filosofia numa data específica, enquanto dormia,
33
na cidade alemã de Ulm, e não, por exemplo, na cidade vizinha de Blaustein. Pois bem,
suponhamos que Descartes tenha relatado este episódio a Baillet com as seguintes
palavras: “Na noite de 10 para 11 de novembro de 1619, eu, René Descartes, tive três
sonhos que me mostraram a minha vocação para a filosofia. Ao despertar e olhar pela
janela da casa em que me encontrava, tinha a convicção de estar em Blaustein, cidade
vizinha a de Ulm. Porém, depois, saí pela porta desse meu alojamento e, ao olhar a
paisagem diante de mim, vi que me estava em Ulm, e não em Blaustein”. Ora, se
Descartes não tivesse, previamente, como certa na sua memória que aquela paisagem era
da cidade de Ulm, ele jamais poderia ter negado depois a ideia de que se encontrava na
cidade de Blaustein.
Ou seja, ele só pôde duvidar e rejeitar a sua ideia mental de estar em Blaustein
porque jamais duvidou da sua lembrança de que a cidade de Ulm tinha uma paisagem
igual à que ele viu ao sair pela porta da casa em que tinha dormido. No entanto,
teoricamente, essa lembrança poderia ser enganosa, uma vez que, certamente, a memória
de Descartes já o teria traído em outras ocasiões. Só por esta razão, Descartes, nessa
comunicação hipotética feita a Baillet, jamais poderia ter afirmado com certeza que teve
os sonhos que lhe indicavam a sua vocação filosófica estando em Ulm, e não em
Blaustein.
No subtítulo 2 desta Unidade, veremos com mais detalhe a problematicidade de
René Descartes não ter submetido a sua memória à dúvida metódica.
34
impossibilidade metafísica. Ademais, pensar com base no pensamento de outros é uma
das melhores formas de se avançar no conhecimento da realidade.
Decerto, é falacioso dizer que a tradição, só por ser tradição, é verdadeira. Este é
um caso do que em retórica se denomina argumentum ad verecundiam, isto é, considerar
verdadeiro determinado argumento só porque procede de alguém que goza de autoridade
ou prestígio. Não se pode negar, porém, que a tradição, pelo fato mesmo de ser tradição,
tem valor e merece ser estudada, inclusive para ser superada, corrigida ou aperfeiçoada.
E, em face dos conhecimentos tradicionais, será preciso que, por vezes, continuemos na
sua esteira e, em outras ocasiões, nos recusemos a dar-lhes continuidade. Dependerá da
acuidade com que examinamos o que possuem de verdadeiro ou de falso.
35
Esta é a famosa dúvida metódica cartesiana, a dúvida como método: ao duvidar
de tudo aquilo de que se pode duvidar, Descartes pretende atingir ao menos alguma
verdade indubitável.
As primeiras vítimas desse exercício da dúvida são os sentidos e tudo aquilo que
chegamos a aprender através deles. Descartes justifica-o do seguinte modo:
É certo que, às vezes, as nossas percepções sensoriais nos enganam. Por exemplo,
uma pessoa pode pensar que o cabo reto de uma colher se torna torto quando ela é
mergulhada pela metade num copo com água, ou então ter a convicção de que está vendo
um amigo a cem metros de distância e, ao chegar perto dele, certificar-se de que se trata
de alguém que não conhece. Para Descartes, basta que um engano desse tipo tenha
acontecido uma única vez para justificar a sua total dúvida e desconfiança em relação à
existência real dos objetos sensíveis, que são aqueles que são conhecidos ou cognoscíveis
pelos sentidos.
Esta conclusão fica reforçada para ele em função do fato de ter tido a experiência
de não diferenciar claramente o estado de vigília, de estar desperto, da situação de estar
sonhando. Relata Descartes: “Quantas vezes aconteceu-me sonhar, à noite, que estava
neste lugar, que estava vestido, que estava junto ao fogo, embora estivesse todo nu em
minha cama?” (DESCARTES, 2005, p. 32-33, itálicos acrescidos).
Com efeito, todos nós ou quase todos nós já sonhamos com coisas que, na verdade,
não estavam presentes e não se encontravam na situação sonhada. Daí, Descartes conclui
que nada lhe garante que aquilo que os seus sentidos lhe apresentam quando ele está
acordado, em vigília, não sejam também uma ilusão, como o são os sonhos.
Depois dos sentidos, a matemática também é vitimada pela dúvida metódica
cartesiana. Mas, para pôr a matemática em dúvida, Descartes precisa de lançar mão de
um novo ingrediente: “Suporei, pois, que não há um verdadeiro Deus, que é a soberana
fonte de verdade, mas certo gênio maligno, não menos astuto e enganador que poderoso,
que empregou toda a sua indústria em enganar-me.” (DESCARTES, 2005, p. 38, itálicos
acrescidos).
36
Pode ser que esse suposto gênio maligno concebido por Descartes “tenha querido
que eu me engane todas as vezes que faço a adição de dois e três, ou que enumero os
lados de um quadrado, ou que julgo alguma coisa ainda mais fácil, caso se possa imaginar
algo mais fácil que isso” (DESCARTES, 2005, p. 36).
Assim, após impugnar por meio do método da dúvida a evidência cognitiva dos
objetos dos sentidos e dos objetos matemáticos mais elementares, Descartes termina a sua
primeira meditação submerso na mais absoluta obscuridade, sem nada a que agarrar-se.
E, no dia seguinte, ao iniciar a segunda meditação, reitera o compromisso
assumido: “[S]eguirei mais uma vez a mesma via em que entrara ontem, afastando-me de
tudo aquilo em que possa imaginar a menor dúvida, tal como se eu soubesse que isto
fosse absolutamente falso.” (DESCARTES, 2005, p. 41, itálico acrescido).
Através do referido caminho especulativo, propõe-se buscar e encontrar alguma
verdade da qual não possa duvidar de maneira alguma. E acredita tê-la encontrada na
proposição “se penso, existo” (cogito ergo sum), a grande verdade fundacional do sistema
cartesiano.
A partir desta pedra angular, procura construir todo o edifício do saber,
demonstrando a existência de Deus com diversos argumentos (terceira e quinta
meditações) e recuperando a existência real do mundo material e sensível (sexta
meditação), graças à sua confiança de que o Deus bom – cuja existência Descartes
demonstrara antes – não o engana.
Porém, se Descartes tivesse sido logicamente consistente, jamais poderia ter
chegado a todas as conclusões acima mencionadas, porque nunca teria conseguido sair da
dúvida hiperbólica em que se meteu, justamente por deparar-se com os obstáculos
absolutamente intransponíveis a que se aludiu no primeiro parágrafo desta seção do e-
book, quais sejam, a dúvida acerca da sua própria imaginação e inclusive da sua
mesmíssima razão.
37
almocei horas atrás, o que estudei há alguns dias, as cores branca e vermelha dos carros
que eu vi se chocarem no cruzamento ao lado de onde moro, o fato de que os meus pais
sempre têm sido as mesmas pessoas, que li há alguns segundos que este parágrafo ia tratar
da memória, que a última palavra que li do exemplo anterior foi “memória”, que acabo
de ler a palavra “memória” de novo etc., etc., etc.). Em suma, não poderíamos viver e
raciocinar sem a nossa memória, sem que confiássemos nela.
O problema da filosofia cartesiana é que o critério que ela estabelece para que
possamos confiar em algo implica que temos de pôr em dúvida não só as percepções dos
nossos sentidos, mas também as lembranças da nossa memória. Porque, no fim das contas,
a nossa memória, às vezes, nos engana; e, como adverte Descartes na sua primeira
meditação, “é de prudência jamais confiar inteiramente naqueles que uma vez nos
enganaram”.
Além disso, também se aplicam à memória as mesmas problemáticas do sonho e
do suposto gênio maligno, que Descartes aplica aos sentidos. De fato, quando sonhamos,
acontece de nos lembrarmos de coisas que nunca aconteceram; e talvez exista um gênio
maligno, tão astuto e enganador quanto poderoso, que imprime em mim lembranças e
recordações que são falsas. Logo, segue-se do anterior que deveríamos duvidar de tudo o
que a nossa memória nos apresenta.
No início da segunda meditação, Descartes afirma isso categoricamente:
“persuado-me de que nunca houve nada de tudo quanto minha memória repleta de
mentiras me representa” (DESCARTES, 2005, p. 42, itálicos acrescidos). O intrigante é
que, nas Meditações metafísicas, daí em diante, ele nunca leva esta declaração às suas
últimas consequências. Aliás, é curiosíssimo que, poucas linhas antes, afirme o seguinte:
“A meditação que fiz ontem encheu-me o espírito de tantas dúvidas que não está mais em
meu poder esquecê-las” (DESCARTES, 2005, p. 41, itálicos acrescidos). Ou seja, como
Descartes pode estar certo de que “ontem” – ontem! – fez uma meditação, se, como ele
próprio diz, não pode confiar na sua “memória repleta de mentiras”?!
Se Descartes duvidasse da sua memória, simplesmente não conseguiria dar
continuidade às suas meditações. Inclusive, perderia os motivos que tinha para duvidar
dos seus sentidos, pois para poder dizer que ele tinha experimentado diversas vezes que
os seus sentidos o enganaram e valer-se desta constatação para impugnar a sua confiança
neles, ele teria de confiar no que a sua memória lhe informava acerca das vezes que os
seus sentidos o enganaram.
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Enfim, Descartes declara nas Meditações metafísicas que irá rejeitar tudo aquilo
que pode ser posto em dúvida, mas não duvida da sua memória, apesar de que a ela se
aplicam os mesmos argumentos que o levaram a duvidar dos seus sentidos e das verdades
matemáticas que conhecia.
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comete uma infração lógica clamorosa, que compromete a veracidade de tudo o que ele
argumentou com base nela.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De todo o dito até aqui, depreende-se que a filosofia não pode partir do ato de
duvidar. Aliás, nenhuma ciência e nem sequer o mais singelo dos conhecimentos
humanos pode ter a dúvida como ponto de partida. No entanto, é o que Descartes
propugna como método para a refundação de toda a atividade filosófica e científica.
Todo conhecimento humano somente tem início e desenvolvimento quando
assumimos a confiabilidade das nossas faculdades cognitivas (sentidos, memória, razão
etc.). Se não confiamos nelas, não conseguimos sequer formar um conceito mental de
complexidade mínima. E, pelo contrário, se, partindo da dúvida, compusermos conceitos
filosóficos e tecermos uma imponente estrutura de argumentações filosóficas, é patente
que toda essa nossa construção intelectual não passará de uma gigantesca inconsistência,
de uma autocontradição de grandes proporções.
E como é precisamente isso o que Descartes faz, conclui-se que a sua proposta da
dúvida metódica não configura um modo de fazer filosofia, mas, ao contrário, uma forma
de fazer antifilosofia. E, como já se disse, grande parte da filosofia moderna apoia-se
nessa nova via infrutífera inaugurada por René Descartes, de maneira que ressente da
mesma fragilidade de base.
A filosofia, as ciências e qualquer modalidade de conhecimento são feitas, como
diziam os clássicos, a partir da admiração. A admiração é o início, o motor do conhecer
humano. Queremos conhecer mais, saber mais quando algo chama a nossa atenção,
desperta a nossa curiosidade e o nosso interesse de aprofundamento intelectual. Se, tão
logo alguma realidade me provoca admiração, me ponho a duvidar dela ou até mesmo da
admiração que ela me causa, o meu conhecimento acerca dessa realidade detém-se nesse
ponto, não avança, não se desenvolve. É claro que, no ato de admirar, pode dar-se
momentos de dúvida, de ceticismo a respeito daquilo que estou admirando; mas trata-se
de uma dúvida que é mais resultado de um estímulo externo a mim do que efeito da minha
decisão livre, voluntária de duvidar.
A dúvida voluntária – e sobretudo a dúvida generalizada e até mesmo exagerada,
proposta por Descartes – é, muitas vezes, um impedimento para conhecermos a realidade.
Um exemplo trivial, mas recorrente: saber se uma pessoa específica gosta de mim; na
imensa maioria das ocasiões, obtenho esse conhecimento observando – admirando – as
40
atitudes dessa pessoa, e não duvidando propositalmente do amor dela para comigo. Isto
não significa que a dúvida nunca é uma postura mental razoável; se há motivos fáticos
para suspeitar, por exemplo, que uma pessoa me está dizendo uma falsidade (consciente
ou inconscientemente, a qual certamente me prejudicará em alguma medida), é razoável
que eu desconfie do que ela me diz, que eu duvide disso; porém trata-se de uma atitude
muito diferente da de duvidar de modo voluntário e sem qualquer motivo fundado.
Descartes promete começar a filosofia e todo o conhecimento humano do zero,
duvidando de todas as suas opiniões antigas. E com isto ele cria escola, porque muitos
autores posteriores a Descartes carregam consigo esta pretensão refundadora. (Neste
sentido, são notórios os dois filósofos racionalistas imediatamente subsequentes a
Descartes e de maior destaque, Malebranche e Spinoza, os quais afirmaram que o
pensador francês quis recomeçar do zero, fizera-o erradamente e que eles, sim, o fariam
com acerto.) Pois bem, a pretensão de uma só pessoa, a partir da solidão do seu
pensamento, de recomeçar todo o conhecimento do zero, assentando as suas bases sem
nenhum respaldo nas milenares tradições intelectuais prévias, é absolutamente temerária.
Desse modo, sempre que vejamos ou leiamos um filósofo dizer que todos os que vieram
antes dele estavam radicalmente equivocados, de maneira que nada do que disseram pode
ser aproveitado, mas que ele, sim, conseguiu atingir a verdade… temos um motivo fático
solidamente fundado para desconfiarmos muitíssimo da sua “filosofia”.
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REFERÊNCIAS
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