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A TÉCNICA NARRATIVA EM CLARICE LISPECTOR E JAMES

JOYCE

Saulo Gomes THIMÓTEO (G-UNICENTRO)


Níncia Cecília Ribas Borges TEIXEIRA (UNICENTRO)

ISBN: 978-85-99680-05-6

REFERÊNCIA:

THIMÓTEO, Saulo Gomes; TEIXEIRA, Níncia


Cecília Ribas Borges. A técnica narrativa em Clarice
Lispector e James Joyce. In: CELLI – COLÓQUIO
DE ESTUDOS LINGUÍSTICOS E LITERÁRIOS.
3, 2007, Maringá. Anais... Maringá, 2009, p. 931-
939.

1. Introdução

Ao se produzir romances variados, o artista lança mão de diferentes estilos.


Quando se leva em consideração à escrita de James Joyce, técnicas como fluxo de
consciência, migração entre os níveis simbolista e naturalista e análise detalhada de seus
personagens, permeiam boa parte de sua obra. Um exemplo disso é o romance
“Ulisses”, que o crítico literário Edmund Wilson definiu: “Talvez a mais fiel radiografia
jamais feita da consciência humana”. E é na mescla de estilos, migrando ora para um
questionário com perguntas e respostas, ora para a mais profunda cadência de
pensamentos, estendendo-se infinitamente, que o autor irlandês consegue penetrar na
mente humana e retirar de lá o retrato das relações dos indivíduos de uma sociedade.
Observa-se, na obra joyceana, o estilo do “stream of consciousness” (cf.
CARVALHO, 1981, 51), isto é, de que os pensamentos desenvolvem-se de modo
contínuo, sem necessariamente existir uma cadência entre eles. Na literatura de um
modo geral, esse estilo é usado, sobretudo, “‘para designar qualquer apresentação (...)
dos padrões de pensamento ilógicos, não gramaticais e principalmente associativos’,
sejam eles ‘falados ou não falados’” (SCHOLES & KELLOGG apud CARVALHO,
1981, 53).
Clarice Lispector, por sua vez, utiliza-se da técnica joyceana, ao internalizar o
discurso para descrever o interior da mente dos personagens, cria obras exploradas no
sentido vertical, isto é, de profundidade.
A própria autora explica como ocorre a inspiração para a escritura de seus
textos: “Não sigo nenhum plano, nenhuma teoria. Eu trabalho sob inspiração. Não
consigo obedecer planos, assim como não consigo planejar minha vida. Tudo me vem
impulsivo e compulsivo. Brota de mim” (SÁ, 1993, 212). E é essa impulsividade, o ato

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de não conseguir conter-se, que faz com que os personagens desenvolvam-se e evoluam
aos olhos do leitor.
Como acontece com Macabéa, em A hora da estrela, na voz de Rodrigo S.M., o
narrador: “Pela aliança viu que ele era casado. Como casar com-com-com um ser que
era para-para-para ser visto, gaguejava ela no seu pensamento. Morreria de vergonha de
comer na frente dele porque ele era bonito além do possível equilíbrio de uma pessoa”
(LISPECTOR, 1995, 57). Vê-se no fragmento que o pensamento “com gagueira” de
Macabéa é expresso de forma a explicar a mentalidade da personagem. A autora,
utilizando-se da mescla de discurso entre o personagem e o narrador, “procura (...)
apresentar, através de uma linguagem truncada ou desordenada, o pensamento ainda não
claramente formulado do ponto de vista lógico ou lingüístico” (CARVALHO, 1981,
61).
A “realidade ficcional”, sobretudo na escrita dos pensamentos dos personagens e
das imagens que os rodeiam, deve apresentar-se de tal forma coesa que, mesmo na mais
completa introspecção, ou em uma excessiva descrição dos detalhes da cena, percebe-se
a busca do autor por uma aproximação íntima do real.
Para que a obra adquira profundidade, não basta apresentar o stream of
consciousness e entregá-lo ao leitor. É necessária a descoberta, em meio aos
pensamentos, de sua existência, de sua consciência ou de algo que confirme sua
presença no mundo enquanto indivíduo. Esse é o conceito de epifania, que conforme
Jean-Paul Sartre expôs em “A náusea”: “E subitamente, em um instante, o véu se rasga;
eu compreendi, eu vi” (BORNHEIM, 2003, 16-7). Essa “revelação” é concedida ao
personagem (e conseqüentemente, ao leitor) por um breve instante, para logo em
seguida a “normalidade” regressar.
Percebe-se, também, que ambos os autores apresentam concomitantemente a
idéia de epifania, do fluxo de consciência e da observação da cena. Dessa forma, criam
obras que unem o existencial ao social, fazendo com que os leitores alcancem um novo
nível de percepção estilística ficcional (cf. LUCCHESI, 1987: 48), no caso, entre as
relações humanas e próprias.
Em obras de maior fôlego, como “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, e
“Ulisses”, de James Joyce, notam-se elementos similares. Neste artigo, três tópicos
serão abordados com seus conceitos teóricos, bem como exemplos de ambas as obras,
são eles: as imagens criadas pelo texto; as técnicas; o caráter epifânico, e seu despertar
da consciência que se nota em ambas.

2. Um toque do artista

O conceito de Ivo Lucchesi, aplicado à obra “A hora da estrela”, também


apresenta similaridade com “Ulisses”, pois em ambas “instaura-se no interior do
universo ficcional o jogo de espelhos a refletir múltiplas faces, como: (...) o
questionamento do 'fazer-literário', a angustiada busca pela definição da própria
identidade, a delimitação do 'eu' perante a presença do 'tu’”. (LUCCHESI, 1987: 35)
[grifo nosso]. Faz-se, então, um minucioso retrato da realidade, não se atendo somente a
descrições de situações, mas impingindo ao texto todas as internalizações dos
personagens, além de menções ao laborioso trabalho da escritura, como o fazem
Rodrigo S. M., durante toda a obra, ou Stephen Dedalus, no capítulo 9, da biblioteca.
Na obra de Clarice Lispector, em particular, duas imagens distintas existem
concomitantemente: a imagem que Rodrigo pensa e a imagem que Rodrigo escreve, esta
última, a história de Macabéa. Ambas se entrelaçam, como se nota na passagem:

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Já que ninguém lhe dava festa, (...) daria uma festa para si mesma. A
festa consistiu em comprar sem necessidade um batom novo, não cor-
de-rosa como o que usava, mas vermelho vivante (...) Depois de pintada
ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada.
Pois em vez do batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos
lábios por um soco em plena boca, com quebra-dentes e rasga-carne
(pequena explosão) (LISPECTOR, 1995: 79) [grifo nosso].

O narrador expõe ao leitor a cena por meio de associações e idéias


completamente chocantes, talvez para contrastar com a vida “cinzenta” que Macabéa
leva. Contudo, Rodrigo não se mostra como um narrador imparcial, pois ele adiciona ao
discurso seus posicionamentos sobre a sua própria obra, a sociedade e até sobre si
mesmo, geralmente encerrados entre parênteses, como forma de transmutação para a
“história do narrador”.
Nas obras clariceanas, como aponta Luis Costa Lima existem “trechos seus
[que] indicam uma aguda percepção de detalhe, que têm como condição o
desmantelamento da lógica prosaica e a construção de uma prosa mais afim do poético”
(COSTA LIMA apud SÁ, 1993: 165). E é por meio dessas imagens e detalhes
apontados que se consegue transpor a barreira do superficial e, conforme a célebre frase
da autora, render-se como ela se rendeu e mergulhar no que não se conhece como ela
mergulhou.
Em “Ulisses”, James Joyce criou uma revolução na escritura do romance, ao
centralizar a ação de seu livro em um único dia, 16 de junho de 1904, com eventos
banais e cotidianos, desvia a atenção do leitor para perceber os detalhes, como ressalta
Luiza Lobo, “o estilo de Joyce transmite o sentido de movimento ao máximo que é
possível através de uma câmera cinematográfica” (LOBO, 1993: 24), bem como para o
interior dos personagens, com suas emoções e pensamentos.
No campo lingüístico, James Joyce justapõe ou transforma palavras já existentes
para que melhor exemplificassem o sentido que o autor pretende passar, como se
percebe na passagem, “Davy Byrne assentiusorriubocejou tudo de uma vez só: -
Haaaaaaaaah!” (JOYCE, 2005: 199) [grifo nosso]. É como Haroldo de Campos aponta,
“Joyce é levado à microscopia pela microscopia, enfatizando o detalhe (...) a ponto de
conter todo um cosmo metafórico numa só palavra” (CAMPOS, apud SÁ, 1993: 191).
Assim, a palavra “assentiusorriubocejou”, representa o ato de, concomitantemente,
assentir, sorrir e bocejar. Joyce utiliza uma palavra para elaborar uma imagem mais
completa da ação desenvolvida e, portanto, melhor descrever a cena ao seu leitor.
Outro exemplo, este adentrando no âmbito da tradução da linguagem de Joyce,
existe na passagem sobre os pensamentos de Stephen Dedalus na praia, sendo a
primeira traduzida por Antônio Houaiss e a segunda por Bernardina da Silveira
Pinheiro:
De antes dos tempos Ele me quis e possa não querer-me longe agora ou
jamais (...) Onde está o caro pobre Ário para tirar conclusões?
Guerrando a vida inteira quanto à
contransmagnificandjudeibumbatancialidade. (JOYCE, 1983, 49)
[grifo nosso]

Desde antes dos tempos Ele me quis e agora não pode me querer fora
daqui ou jamais existente (...) Onde está o querido e pobre Ário para
tentar conclusões? Lutando toda a sua vida com o
contransmagnificaejudeubanguebanguelismo (JOYCE, 2005: 46) [grifo
nosso].

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No original, a palavra é: contransmagnificandjewbangtantiality, significando que
Ário (dissidente da doutrina cristã e fundador do arianismo, que defendia a existência
simplesmente humana de Jesus), grosso modo, lutou toda a sua vida contra a existência
'magnífica' do judeu, no caso, Jesus.
E é utilizando-se da linguagem como mais uma ferramenta dentre várias outras
para expor a cena em toda a sua extensão que James Joyce cria este romance. Como
Paulo Vizioli observa,
graças a esse concentrado enfoque naturalista, podemos dizer que
jamais personagens de ficção foram tão implacavelmente investigadas,
por dentro e por fora – pelo autor onisciente, pelas demais personagens
e por si mesmas – quanto as três figuras centrais de Ulisses. Nesse
verdadeiro exame de microscópio, ficamos conhecendo não só os
pensamentos mais íntimos de Bloom, por exemplo, mas também (...) os
utensílios de sua cozinha, todos os livros de sua estante e todos os
objetos em suas gavetas (VIZIOLI, 1991: 66).

3. As rochas ondulantes e o capim

A inovação, do ponto de vista técnico, de “A hora da estrela” está no efeito do


narrador também ser personagem e possuir uma história própria, enquanto ocorre outra
história paralela. Na obra, Clarice Lispector “se projeta num narrador masculino que vê
a personagem feminina por ela. Esta seria a busca da visão prismática de Ele-ela ou Ela-
ele, através da figura do andrógino, que constituiria uma abertura para a personagem
burguesa, sufocada e marginal do processo de produção do mundo masculino” (LOBO,
1993: 34). Com essas relações de criador e criatura, o enredo, ou melhor, a sucessão de
fatos vai sendo revelada ao leitor.
É uma sucessão de fatos, pois “conta várias histórias: a história da nordestina, a
história de Rodrigo, que se vê refletido na personagem, e a história de como escrever
um livro com uma personagem miserável e fatos ralos. Para isso, a escritora recorre a
outro desmascaramento na máscara de seu heterônimo Rodrigo: terá de ser um escritor
homem” (GUIDIN, 1996: 49). A aparente “falta de assunto”, é suprida por recortes na
vida de Macabéa, com comentários de Rodrigo S. M, o narrador/personagem, como a
vontade dela de criar um bicho, quando era criança, como a tia não deixava “inventou
que só lhe cabia criar pulgas pois não merecia o amor de um cão” (LISPECTOR, 1995:
44), ou como o luxo de pintar de vermelho grosseiramente escarlate as unhas das mãos,
“mas como as roía quase até o sabugo, o vermelho berrante era logo desgastado e via-se
o sujo preto por baixo” (LISPECTOR, 1995: 51). A escrita paralela à história de
Macabéa, referente a Rodrigo, está repleta de alusões a uma forma de meta-linguagem,
“como se escreve este livro?”.
As respostas vão aparecendo durante o narrar,
Como é que sei tudo o que vai se seguir e que ainda desconheço, já que
nunca o vivi? É que numa rua do Rio de Janeiro peguei no ar de relance
o sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina
(LISPECTOR, 1995: 26).

Mas não esquecer que para escrever não-importa-o-quê o meu material


básico é a palavra. Assim é que esta história será feita de palavras que
se agrupam em frases e destas se evola um sentido secreto que
ultrapassa palavras e frases (LISPECTOR, 1995: 28-9).

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E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu
Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?!
(LISPECTOR, 1995: 106).

A idéia de que os pensamentos do narrador, inerentes à ação descrita, têm


ligação e produzem uma história que se prolonga além das linhas é a diretriz principal
da obra, e, por meio dela, o leitor penetra nos pensamentos dos personagens e, por
reconhecimento, nos seus próprios.
A técnica em “Ulisses” possui vários níveis e relações exteriores. O nível
lingüístico, por exemplo, como já mencionado acima, evidencia as imagens que as
palavras podem sugerir. O nível naturalista, por sua vez, faz com que o livro seja
praticamente um “guia geográfico da Dublin do início do século” (VIZIOLI, 1991: 64),
retratando as paisagens, os edifícios, além dos acontecimentos reais que aconteceram
em Dublin no dia 16 de junho de 1904, como peças teatrais em cartaz, informações
sobre a guerra russo-japonesa e outras notícias que circularam pelos jornais nesse dia.
Tudo isso aliado à história de Bloom e Stephen. Vê-se, por exemplo, na carruagem em
que Leopold está em caminho para o cemitério as cenas que este vê pela janela,

Quando eles dobraram em Berkeley Street um órgão de rua perto de


Basin enviava para eles dos salões uma canção lépida e jovial. Alguém
aqui viu Kelly? Ka e dois éles ipsilone. Marcha fúnebre de Saul. (...) O
Mater Misericordiae. Eccles Street. Minha casa ali. Um lugar grande.
Uma ala para os incuráveis lá. (...) Our Lady's Hospice para os doentes
terminais. Necrotério ao alcance embaixo (JOYCE, 2005: 113).

Porém “Ulisses” é conhecido mais pelo seu nível simbólico, com uma alta
complexidade, pois Joyce utiliza símbolos das mais diversas naturezas. A começar pelo
título, que remete à “Odisséia”, de Homero, com os personagens da obra de Joyce tendo
referências aos personagens homéricos. Leopold Bloom seria Ulisses, com a sua espécie
de exílio, sua busca por voltar ao lar, ou melhor, reintegrar-se à pátria, e também,
reencontrar-se com a mulher (em “Ulisses”, Molly Bloom) e o filho (em “Ulisses”,
Stephen Dedalus) (cf. VIZIOLI, 1991: 67).
Todos os capítulos de “Ulisses” têm referências aos capítulos, ou alusões, da
“Odisséia”. Nomes como “Cila e Caribde”, “Éolo” e “Ítaca” têm elementos no contexto
que seriam uma transposição dessa mitologia para a Dublin do início do século XX.
Além disso, Joyce acrescentou um “Roteiro-chave” para o seu livro, no qual consta, em
cada capítulo: a cena; a hora; um órgão humano em referência; a arte que acompanha o
capítulo; a cor que o simboliza; o símbolo maior; e a técnica usada. Esta última, vai
desde a alucinação, escrita em forma de script teatral,

BLOOM
(triunfalmente) Vocês ouviram?

PADDY DIGNAM
Bloom, eu sou o espírito de Paddy Dignam. Escuta, escuta, Ó escuta!

BLOOM
A voz é a voz de Esaú.

SEGUNDO GUARDA

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(se benze) Como é possível? (JOYCE, 2005: 509)

Até o livre-associacionismo do monólogo final de Molly Bloom, deitada em sua


cama:

quanto mais atenção você dá a eles mais eles a tratam como lixo eu não
me importo com o que qualquer um dizer mas seria muito melhor para o
mundo se ele fosse governado por mulheres você não veria mulheres
indo e se matando umas às outras e massacrando quando é que a gente
jamais vê mulheres se rolando à volta bêbadas como eles fazem ou
apostando nos cavalos todo o dinheiro (JOYCE, 2005: 809).

O leitor é surpreendido por “Ulisses”, seja por suas inúmeras referências e


símbolos, seja por seu retrato de Dublin (em alusão ao mundo), ou ainda pela paródia
que Joyce faz, juntando, assim, a ironia com uma ampla visão do todo.

4. Isso é um melodrama

A máxima de René Descartes, Cogito, ergo sum, é “a verdade absoluta da


consciência ao atingir a si própria” (BORNHEIM, 2003, 14). Com isso, nota-se, tanto
em Clarice Lispector quanto em James Joyce, o estado de sublimação que os
personagens atingem quando, por fim, descobrem a sua existência.
Jean-Paul Sartre, por sua vez, consolidaria o pensamento existencialista ao
emprestar à esfera do conhecimento do indivíduo uma dimensão muito mais larga do
que a idealizada por Descartes. Percebe-se um reflexo desse pensamento na obra
clariceana, pois, à medida que Rodrigo descobre a sua própria existência, Macabéa
torna-se mais alienada. Mas o narrador não tem como culpá-la, pois, mesmo ela sendo
responsável pelos seus atos, não é responsável por sua existência, pois ela não é o
fundamento de seu ser, e sim, Rodrigo S.M. (cf. BORNHEIM, 2003, 120).
Em “A hora da estrela”, a dualidade que permeia toda a obra é a “consciência”
do narrador-personagem em oposição à “inconsciência” de sua protagonista, em
palavras do próprio Rodrigo S. M., Macabéa não era “uma idiota, mas tinha a felicidade
pura dos idiotas” (LISPECTOR, 1995, 87).
A consciência do narrador da história é algo que pesa sobre si, pois, além de ser
necessário observar-se a si mesmo no mundo, ele ainda deve olhar por sua personagem.
Como Ivo Lucchesi afirma:

A errância de Macabéa deriva da absoluta falta de uma consciência


especular: o não saber “ver-se”. Este é o fundamento básico a sustentar
a diferença entre narrador/personagem. A errância que faz de Macabéa
o reduto do não-ser não é a mesma que impulsiona a existência de
Rodrigo. Este, a despeito do confessado fracasso como escritor, pode
“ver-se” (LUCCHESI, 1987, 37).

É dessa maneira que Rodrigo S.M. é um ser “por-si”, pois ele confere-se o título
de indivíduo. Ainda que permeado pelo desespero e angústia, ou devido a eles, ele
insere-se no mundo, finalmente existindo, com suas escolhas ou não-escolhas (cf.
JOLIVET, 1961, 46-7). Em seu contraponto, Macabéa não adquire a idéia de sua
própria existência, o que fica claro em seu diálogo com Olímpico:

Ele: - Santa Virgem, Macabéa, vamos mudar de assunto já!

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Ela: - Falar então de quê?
Ele: - Por exemplo, de você.
Ela: - Eu?!
Ele: - Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente.
Ela: - Desculpe mas não acho que sou muito gente.
(LISPECTOR, 1995, 64) [grifo nosso]

O ato de não se ver como indivíduo acaba por tornar Macabéa um exemplo de,
em palavras da professora Dirce Côrtes Riedel, “incompetência de ser”, e esta
constatação é de tal forma agressiva aos parâmetros de julgamento da realidade do
narrador, que ele confere ao leitor a função de co-responsável (cf. LUCCHESI, 1987,
39).
Ao embutir a si e ao leitor esta sensação de angústia, Clarice Lispector, através
da máscara Rodrigo S.M., retoma a definição de angústia defendida por Kierkegaard, de
que é uma “vertigem diante do que não é, mas poderá ser pelo uso de uma liberdade que
não se experimentou e que não se conhece” (JOLIVET, 1961, 58), isto é, quando o
narrador tem a vida de Macabéa nas mãos, sente-se impotente diante de seu destino [de
Macabéa], de modo que nada mais lhe resta que contar a sua história, e compadecer-se.
Quando, por fim, Macabéa sai da cartomante e tem a sua epifania, ainda que lhe
seja revelada na hora da morte: “Madame Carlota havia acertado tudo, Macabéa estava
espantada. Só então vira que sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar ao ver o
seu lado oposto, ela que, como eu disse, até então se julgava feliz” (LISPECTOR, 1995,
97). Como se vê, a sua consciência de si é sucedida por uma existência, logo após o seu
atropelamento. E assim, Macabéa finalmente nasce para a vida, juntamente quando ela
acaba.
Em “Ulisses”, James Joyce desenvolveu a procura pela existência no outro,
como se percebe na procura e posterior proteção de Leopold Bloom por Stephen
Dedalus no episódio “Circe”, bem como a preocupação e o convite para levá-lo até a
sua casa [de Bloom]. Como se nota em uma das passagens do episódio “Eumeu”: “Em
primeiro lugar podia ser que ele não se entusiasmasse com a idéia, se abordado, e o que
mais o preocupava era que ele não sabia como encaminhar o assunto ou expressá-lo
precisamente, supondo-se que ele tomasse em consideração a proposta, o que lhe
causaria um enorme prazer pessoal se ele lhe permitisse ajudá-lo a conseguir algum
dinheiro ou alguma roupa, se considerasse conveniente” (JOYCE, 2005, 680). Como a
professora Bernardina da Silveira Pinheiro nota sobre a cena: “A auto-revelação de
Bloom para Stephen e a de Stephen para Bloom (...) ecoam como o encontro de Odisseu
e Telêmaco” (JOYCE, 2005, 880).
Com isso, traça-se um paralelo entre Bloom-Odisseu e Stephen-Telêmaco, sendo
que aqueles se espelham e impulsionam esses. Isso se assemelha ao conceito defendido
por Sartre do “para-outrem”; nele se mostra como as relações interpessoais se dão: “O
olhar de outrem tem como efeito transcender a minha própria transcendência, isto é,
produzir a alienação do mundo que eu organizo e a alienação de mim mesmo”
(JOLIVET, 1961, 235). E é assim que se desenvolve essa relação entre os personagens
joyceanos, refletindo os heróis homéricos, porém com uma frustração diante de si,
Bloom tencionando boas ações para Stephen e este se vendo perder em meio a más
companhias.
Além da transcendência para o outro, nota-se em “Ulisses” a procura por sua
própria consciência, sobretudo nos monólogos interiores que as personagens fazem.
Neles, em número de dois, segundo as técnicas enumeradas por Joyce, o mero detalhe
aciona a consciência e faz com que o personagem reflita sobre isso, a vida ou uma

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lembrança. Como é o caso do último capítulo, “Penélope”, no qual Molly Bloom, em
sua cama, dá livre vazão aos seus pensamentos e idéias:

... quando eu pus uma rosa no meu cabelo como as moças andaluzas
usavam ou será que eu vou usar uma vermelha sim e como ele me
beijou debaixo do muro mouresco e eu pensei bem tanto faz ele como
um outro então eu lhe pedi com meus olhos que pedisse novamente sim
e então ele me pediu se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha
(JOYCE, 2005, 815).

Nesse fragmento, Joyce transporta o leitor para a corrente de pensamentos


dentro da mente de Molly, com uma sucessão de idéias e imagens, o capítulo nos sugere
toda a velocidade do pensamento feminino, não existindo um narrador ou uma descrição
de espaço ou tempo. Toda a ação pode acontecer em horas como em alguns minutos, e é
dessa maneira que o personagem adquire status de ser.
Conforme Harry Lewin aponta sobre a obra joyceana: “Todas as obras
posteriores de Joyce parecem reconstruções artificiais de uma concepção transcendental
da experiência. Suas mutações vertiginosas, da mistificação ao exibicionismo, dos
experimentos lingüísticos à confissão pornográfica, do mito à autobiografia, do
simbolismo ao naturalismo, têm, por objeto, criar um substituto literário para as
revelações da religião” (LEWIN apud SÁ, 1993, 177). E é criando “artificialmente”
estas existências que James Joyce consegue transportar a um universo ficcional, para
que o leitor possa, também, reconhecer-se nele.

5. Conclusão

Clarice Lispector, da mesma forma, apresenta uma “não-história”, isto é, o mote


central do romance é o da “dura” tarefa de escrever um romance sobre uma moça que
“vive sem existir. Está sem jamais ser” (LUCCHESI, 1987, 44). E é exatamente por
tratar apenas de episódios da vida de Macabéa, e dos pensamentos de seu narrador
Rodrigo S. M., que o leitor sente uma empatia por ambos e participa da ação não mais
como espectador, mas sim como cúmplice.
Ao conduzir os leitores a um mundo não mais das simples superficialidades,
James Joyce constrói seu texto atentando para uma aliança entre os elementos narrativos
(personagens, espaço, tempo) e, em um nível muito mais significativo, com os
posicionamentos e ideologias dos personagens diante da situação. Com isso, o leitor
consegue captar e entender o seu próprio pensamento, pois, ao observar impresso todo o
jogo mental das diferentes vozes ficcionais ali presentes, ele identifica-se com elas e
pinça os estilos que mais remetem à sua maneira de cadenciar suas idéias.
Com uma literatura densa, precisamente por tratarem da introspecção, os dois
autores revolucionaram não somente a linguagem, mas também ofereceram à narrativa
uma opção de movimentar-se verticalmente, através dos diferentes níveis de percepção,
indo da descrição das superfícies meramente até a “corrente de consciência” (stream of
consciouness) e, com isso, auxiliar o leitor a empreender uma viagem aos meandros da
mente humana.

REFERÊNCIAS

BORNHEIM, Gerd. Sartre: metafísica e existencialismo. São Paulo: Perspectiva, 2003.

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BRANCO, Lucia Castello & BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de
Janeiro: Lamparina, 1989.

CARVALHO, Alfredo Leme Coelho de. Foco narrativo e fluxo da consciência:


questões de teoria literária. São Paulo: Pioneira, 1981.

GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de leitura: A hora da estrela, de Clarice Lispector. São
Paulo: Ática, 1996.

JOLIVET, Regis. As doutrinas existencialistas. Porto: Tavares Martis, 1961.

JOYCE, James. Ulisses. Tradução: Antônio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

JOYCE, James. Ulisses. Tradução: Bernardina da Silveira Pinheiro. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2005.

LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.


LOBO, Luiza. Crítica sem juízo. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.

LUCCHESI, Ivo. Crise e escritura: uma leitura de Clarice Lispector e Vergílio


Ferreira. Rio de Janeiro: Forense – Universitária, 1987.

SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis: Vozes, 1993.

VIZIOLI, Paulo. James Joyce e sua obra literária. São Paulo: EPU, 1991.

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