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JOYCE
ISBN: 978-85-99680-05-6
REFERÊNCIA:
1. Introdução
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de não conseguir conter-se, que faz com que os personagens desenvolvam-se e evoluam
aos olhos do leitor.
Como acontece com Macabéa, em A hora da estrela, na voz de Rodrigo S.M., o
narrador: “Pela aliança viu que ele era casado. Como casar com-com-com um ser que
era para-para-para ser visto, gaguejava ela no seu pensamento. Morreria de vergonha de
comer na frente dele porque ele era bonito além do possível equilíbrio de uma pessoa”
(LISPECTOR, 1995, 57). Vê-se no fragmento que o pensamento “com gagueira” de
Macabéa é expresso de forma a explicar a mentalidade da personagem. A autora,
utilizando-se da mescla de discurso entre o personagem e o narrador, “procura (...)
apresentar, através de uma linguagem truncada ou desordenada, o pensamento ainda não
claramente formulado do ponto de vista lógico ou lingüístico” (CARVALHO, 1981,
61).
A “realidade ficcional”, sobretudo na escrita dos pensamentos dos personagens e
das imagens que os rodeiam, deve apresentar-se de tal forma coesa que, mesmo na mais
completa introspecção, ou em uma excessiva descrição dos detalhes da cena, percebe-se
a busca do autor por uma aproximação íntima do real.
Para que a obra adquira profundidade, não basta apresentar o stream of
consciousness e entregá-lo ao leitor. É necessária a descoberta, em meio aos
pensamentos, de sua existência, de sua consciência ou de algo que confirme sua
presença no mundo enquanto indivíduo. Esse é o conceito de epifania, que conforme
Jean-Paul Sartre expôs em “A náusea”: “E subitamente, em um instante, o véu se rasga;
eu compreendi, eu vi” (BORNHEIM, 2003, 16-7). Essa “revelação” é concedida ao
personagem (e conseqüentemente, ao leitor) por um breve instante, para logo em
seguida a “normalidade” regressar.
Percebe-se, também, que ambos os autores apresentam concomitantemente a
idéia de epifania, do fluxo de consciência e da observação da cena. Dessa forma, criam
obras que unem o existencial ao social, fazendo com que os leitores alcancem um novo
nível de percepção estilística ficcional (cf. LUCCHESI, 1987: 48), no caso, entre as
relações humanas e próprias.
Em obras de maior fôlego, como “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, e
“Ulisses”, de James Joyce, notam-se elementos similares. Neste artigo, três tópicos
serão abordados com seus conceitos teóricos, bem como exemplos de ambas as obras,
são eles: as imagens criadas pelo texto; as técnicas; o caráter epifânico, e seu despertar
da consciência que se nota em ambas.
2. Um toque do artista
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Já que ninguém lhe dava festa, (...) daria uma festa para si mesma. A
festa consistiu em comprar sem necessidade um batom novo, não cor-
de-rosa como o que usava, mas vermelho vivante (...) Depois de pintada
ficou olhando no espelho a figura que por sua vez a olhava espantada.
Pois em vez do batom parecia que grosso sangue lhe tivesse brotado dos
lábios por um soco em plena boca, com quebra-dentes e rasga-carne
(pequena explosão) (LISPECTOR, 1995: 79) [grifo nosso].
Desde antes dos tempos Ele me quis e agora não pode me querer fora
daqui ou jamais existente (...) Onde está o querido e pobre Ário para
tentar conclusões? Lutando toda a sua vida com o
contransmagnificaejudeubanguebanguelismo (JOYCE, 2005: 46) [grifo
nosso].
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No original, a palavra é: contransmagnificandjewbangtantiality, significando que
Ário (dissidente da doutrina cristã e fundador do arianismo, que defendia a existência
simplesmente humana de Jesus), grosso modo, lutou toda a sua vida contra a existência
'magnífica' do judeu, no caso, Jesus.
E é utilizando-se da linguagem como mais uma ferramenta dentre várias outras
para expor a cena em toda a sua extensão que James Joyce cria este romance. Como
Paulo Vizioli observa,
graças a esse concentrado enfoque naturalista, podemos dizer que
jamais personagens de ficção foram tão implacavelmente investigadas,
por dentro e por fora – pelo autor onisciente, pelas demais personagens
e por si mesmas – quanto as três figuras centrais de Ulisses. Nesse
verdadeiro exame de microscópio, ficamos conhecendo não só os
pensamentos mais íntimos de Bloom, por exemplo, mas também (...) os
utensílios de sua cozinha, todos os livros de sua estante e todos os
objetos em suas gavetas (VIZIOLI, 1991: 66).
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E agora – agora só me resta acender um cigarro e ir para casa. Meu
Deus, só agora me lembrei que a gente morre. Mas – mas eu também?!
(LISPECTOR, 1995: 106).
Porém “Ulisses” é conhecido mais pelo seu nível simbólico, com uma alta
complexidade, pois Joyce utiliza símbolos das mais diversas naturezas. A começar pelo
título, que remete à “Odisséia”, de Homero, com os personagens da obra de Joyce tendo
referências aos personagens homéricos. Leopold Bloom seria Ulisses, com a sua espécie
de exílio, sua busca por voltar ao lar, ou melhor, reintegrar-se à pátria, e também,
reencontrar-se com a mulher (em “Ulisses”, Molly Bloom) e o filho (em “Ulisses”,
Stephen Dedalus) (cf. VIZIOLI, 1991: 67).
Todos os capítulos de “Ulisses” têm referências aos capítulos, ou alusões, da
“Odisséia”. Nomes como “Cila e Caribde”, “Éolo” e “Ítaca” têm elementos no contexto
que seriam uma transposição dessa mitologia para a Dublin do início do século XX.
Além disso, Joyce acrescentou um “Roteiro-chave” para o seu livro, no qual consta, em
cada capítulo: a cena; a hora; um órgão humano em referência; a arte que acompanha o
capítulo; a cor que o simboliza; o símbolo maior; e a técnica usada. Esta última, vai
desde a alucinação, escrita em forma de script teatral,
BLOOM
(triunfalmente) Vocês ouviram?
PADDY DIGNAM
Bloom, eu sou o espírito de Paddy Dignam. Escuta, escuta, Ó escuta!
BLOOM
A voz é a voz de Esaú.
SEGUNDO GUARDA
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(se benze) Como é possível? (JOYCE, 2005: 509)
quanto mais atenção você dá a eles mais eles a tratam como lixo eu não
me importo com o que qualquer um dizer mas seria muito melhor para o
mundo se ele fosse governado por mulheres você não veria mulheres
indo e se matando umas às outras e massacrando quando é que a gente
jamais vê mulheres se rolando à volta bêbadas como eles fazem ou
apostando nos cavalos todo o dinheiro (JOYCE, 2005: 809).
4. Isso é um melodrama
É dessa maneira que Rodrigo S.M. é um ser “por-si”, pois ele confere-se o título
de indivíduo. Ainda que permeado pelo desespero e angústia, ou devido a eles, ele
insere-se no mundo, finalmente existindo, com suas escolhas ou não-escolhas (cf.
JOLIVET, 1961, 46-7). Em seu contraponto, Macabéa não adquire a idéia de sua
própria existência, o que fica claro em seu diálogo com Olímpico:
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Ela: - Falar então de quê?
Ele: - Por exemplo, de você.
Ela: - Eu?!
Ele: - Por que esse espanto? Você não é gente? Gente fala de gente.
Ela: - Desculpe mas não acho que sou muito gente.
(LISPECTOR, 1995, 64) [grifo nosso]
O ato de não se ver como indivíduo acaba por tornar Macabéa um exemplo de,
em palavras da professora Dirce Côrtes Riedel, “incompetência de ser”, e esta
constatação é de tal forma agressiva aos parâmetros de julgamento da realidade do
narrador, que ele confere ao leitor a função de co-responsável (cf. LUCCHESI, 1987,
39).
Ao embutir a si e ao leitor esta sensação de angústia, Clarice Lispector, através
da máscara Rodrigo S.M., retoma a definição de angústia defendida por Kierkegaard, de
que é uma “vertigem diante do que não é, mas poderá ser pelo uso de uma liberdade que
não se experimentou e que não se conhece” (JOLIVET, 1961, 58), isto é, quando o
narrador tem a vida de Macabéa nas mãos, sente-se impotente diante de seu destino [de
Macabéa], de modo que nada mais lhe resta que contar a sua história, e compadecer-se.
Quando, por fim, Macabéa sai da cartomante e tem a sua epifania, ainda que lhe
seja revelada na hora da morte: “Madame Carlota havia acertado tudo, Macabéa estava
espantada. Só então vira que sua vida era uma miséria. Teve vontade de chorar ao ver o
seu lado oposto, ela que, como eu disse, até então se julgava feliz” (LISPECTOR, 1995,
97). Como se vê, a sua consciência de si é sucedida por uma existência, logo após o seu
atropelamento. E assim, Macabéa finalmente nasce para a vida, juntamente quando ela
acaba.
Em “Ulisses”, James Joyce desenvolveu a procura pela existência no outro,
como se percebe na procura e posterior proteção de Leopold Bloom por Stephen
Dedalus no episódio “Circe”, bem como a preocupação e o convite para levá-lo até a
sua casa [de Bloom]. Como se nota em uma das passagens do episódio “Eumeu”: “Em
primeiro lugar podia ser que ele não se entusiasmasse com a idéia, se abordado, e o que
mais o preocupava era que ele não sabia como encaminhar o assunto ou expressá-lo
precisamente, supondo-se que ele tomasse em consideração a proposta, o que lhe
causaria um enorme prazer pessoal se ele lhe permitisse ajudá-lo a conseguir algum
dinheiro ou alguma roupa, se considerasse conveniente” (JOYCE, 2005, 680). Como a
professora Bernardina da Silveira Pinheiro nota sobre a cena: “A auto-revelação de
Bloom para Stephen e a de Stephen para Bloom (...) ecoam como o encontro de Odisseu
e Telêmaco” (JOYCE, 2005, 880).
Com isso, traça-se um paralelo entre Bloom-Odisseu e Stephen-Telêmaco, sendo
que aqueles se espelham e impulsionam esses. Isso se assemelha ao conceito defendido
por Sartre do “para-outrem”; nele se mostra como as relações interpessoais se dão: “O
olhar de outrem tem como efeito transcender a minha própria transcendência, isto é,
produzir a alienação do mundo que eu organizo e a alienação de mim mesmo”
(JOLIVET, 1961, 235). E é assim que se desenvolve essa relação entre os personagens
joyceanos, refletindo os heróis homéricos, porém com uma frustração diante de si,
Bloom tencionando boas ações para Stephen e este se vendo perder em meio a más
companhias.
Além da transcendência para o outro, nota-se em “Ulisses” a procura por sua
própria consciência, sobretudo nos monólogos interiores que as personagens fazem.
Neles, em número de dois, segundo as técnicas enumeradas por Joyce, o mero detalhe
aciona a consciência e faz com que o personagem reflita sobre isso, a vida ou uma
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lembrança. Como é o caso do último capítulo, “Penélope”, no qual Molly Bloom, em
sua cama, dá livre vazão aos seus pensamentos e idéias:
... quando eu pus uma rosa no meu cabelo como as moças andaluzas
usavam ou será que eu vou usar uma vermelha sim e como ele me
beijou debaixo do muro mouresco e eu pensei bem tanto faz ele como
um outro então eu lhe pedi com meus olhos que pedisse novamente sim
e então ele me pediu se eu queria sim dizer sim minha flor da montanha
(JOYCE, 2005, 815).
5. Conclusão
REFERÊNCIAS
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BRANCO, Lucia Castello & BRANDÃO, Ruth Silviano. A mulher escrita. Rio de
Janeiro: Lamparina, 1989.
GUIDIN, Márcia Lígia. Roteiro de leitura: A hora da estrela, de Clarice Lispector. São
Paulo: Ática, 1996.
JOYCE, James. Ulisses. Tradução: Antônio Houaiss. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
VIZIOLI, Paulo. James Joyce e sua obra literária. São Paulo: EPU, 1991.
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