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https://novaescola.org.br/conteudo/20363/generos-confessionais-para-olhar-para-
si-e-para-o-outro
É quase um clichê, mas daqueles que se confirmam: a literatura é uma janela para o mundo. Mas é
também uma porta de entrada para o mundo interior de cada um e para os muitos mundos que cada
um tem ao redor. Por isso mesmo, os livros são ferramentas excelentes para explorar as competências
socioemocionais da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), em especial a oitava e a nona, que
tratam de autoconhecimento e autocuidado e de empatia e cooperação, respectivamente.
“Estas duas competências estão em constante diálogo. Enquanto a oitava foca na questão do eu, a
nona foca no outro. As duas se espelham, porque muito daquilo que eu construo a respeito de mim
tem a ver com como eu me enxergo pelo olhar do outro, pela alteridade”, explica Mazé Nóbrega,
assessora pedagógica e consultora em metodologia de Língua Portuguesa de NOVA ESCOLA. Para ela, a
literatura ajuda a nomear o não dito por meio da palavra - porque ela permite que o leitor entre em
contato com o outro, que pode ser um personagem ficcional ou o escritor. “Mas esse outro coloca
também um espelho: a partir do momento que estamos lendo, é possível pensar sobre nossas
experiências”, afirma Mazé.
Sheila explica, ainda, que a literatura expõe outras culturas, outras formas de viver e pensar, outras
épocas e nos permite, por meio dessa viagem no tempo e no espaço, perceber, comparar, aceitar,
recusar e refletir sobre o universo à nossa volta.
Nesse âmbito, por meio do contato com as diversas formas do literário, o leitor vai notando, mais
amiúde, quem é e quem gostaria de ser. “E mais: o contato com o texto promove a conexão com o
outro, com o diferente, com as dificuldades próprias da experiência e do convívio humano necessário”,
fala.
Embora este jogo de olhar para si e para o outro permeie qualquer gênero literário, os confessionais
(diário, memória e autobiografia) têm lugar privilegiado no assunto. Isso porque, no contexto literário,
uma das possibilidades da escrita é a do uso da primeira pessoa, quando o narrador, de dentro da
história, descreve a si e ao mundo à sua volta. “Os textos ditos confessionais parecem aproximar ainda
mais o leitor consigo mesmo e com as dificuldades da existência, na medida em que o eu que lê se vê
humanamente próximo do eu que escreve”, explica Sheila (confira uma lista de sugestões de livros
aqui).
“Dentro do gênero confessional, o diário é uma proposta interessante porque ela também é muito
própria para o ensino híbrido, já que é possível conciliar algumas discussões que podem acontecer em
sala de aula, com a escrita, que deve ser feita em casa”, completa (leia uma proposta de atividade de
escrita do gênero aqui).
1. MEMÓRIAS
Em geral há, na escrita de memórias, um retorno temporal por parte do eu-narrador com o intuito de
evocar pessoas e acontecimentos que sejam representativos para um momento posterior, do qual
este eu-narrador escreve. As características do gênero costumam ser longa cronologia de enredo,
exemplaridade, caráter autopromocional, narrador em primeira pessoa que conta a própria história e
capacidade de apreensão de um entorno histórico. Outra marca perceptível diz respeito há algumas
expressões recorrentes, tais como “eu me lembro bem”, “se não me falha a memória”, “não me esqueci
por completo”, expressões que agem como reguladoras entre os dois lados da memória – lembrança e
esquecimento, já que a memória não funciona como um depositário que retém todos os dados que
lhe são confiados.
2. AUTOBIOGRAFIA
Esses textos funcionam, basicamente, ora como um exame de consciência, ora como uma exposição
de si. O narrador em primeira pessoa conduz a narrativa. A presença do pronome eu vai pouco a
pouco sendo preenchido pelo sujeito narrativo dentro da obra. Esse preenchimento se dá na medida
em que novas informações sobre ele vão sendo trazidas à tona pelo enredo. O eu, ou a primeira
pessoa, então, se subverte em discurso de um ser (que pode aparecer como alguém de vida
extratextual comprovada ou, ainda, uma alma de papel, de existência vinculada apenas ao texto que
se apresenta) que vai sendo preenchido, na instância narrativa, pelo eu autoral. Na autobiografia tem-
se a impressão que o texto parte do mundo para então focalizar o eu, ou a história de uma
personalidade, como ensina Philippe Lejeune. Então, vamos do mundo ao eu, num movimento
contrário ao do texto de memórias (mundo Õ eu).
3. DIÁRIO
A escrita em forma de diário possui uma estrutura fragmentada. As anotações são feitas com apoio do
calendário, sob a marcação dos dias e dos acontecimentos a eles vinculados. Em geral, o texto,
também escrito em primeira pessoa, pode tratar de qualquer tema (a escrita cotidiana se transforma
numa espécie de ato religioso): um diário pode ser um registro com pretensão de verdade, uma
história inventada escrita no formato característico, um diário de viagem, um diário de guerra, uma
busca de si mesmo, uma escrita narcísica ou um texto hermético, com uma linguagem muito elíptica. A
visão cristalizada de texto “verídico” ou que contém “toda a verdade” merece ser descartada porque se
trata de um texto ficcional como qualquer outro. O diário pode ser visto também como uma prática de
escrita e de leitura que compartilha com seus leitores uma pulsão pela vida, pelo "eu" e pela
permanência. A marca fundamental desse gênero, contudo, é a periodicidade. É a cadência das
anotações que edifica o diário.