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Estudando: ENEM - Redação

6. A LEITURA
Ana Miranda

A cada livro que lemos, nos transformamos um pouco mais, e em algo melhor. Dizia Borges que o livro não
passa de papel e tinta, o que lhe dá vida e relevo é o que acontece na mente do leitor. A leitura é um processo
tão complexo que talvez não possa ser totalmente explicado. Parece ser a relação mais íntima que pode
existir entre duas pessoas, pois o autor revela-se em sua plenitude, e o leitor descobre a verdade ali contida. O
leitor está silencioso, só, debruçado sobre o livro, numa atenção de grande intensidade, pois qualquer
distração faz cessar a leitura; não sofre interferências externas que possam censurar sua visão ou sua
compreensão ou seus julgamentos. Ele é capaz de ouvir tudo e qualquer coisa, sob o prisma mais pessoal e
independente. Ele está só, e ao mesmo tempo acompanhado. Sua mente funciona da mesma forma que a
mente do autor, seus sentimentos e emoções percorrem a mesma curva, seu pensamento se transforma no
pensamento do autor, ele vê e imagina o que viu e imaginou o escritor. O leitor não deixa de ser ele mesmo,
mas passa a ser o autor durante a leitura, o mesmo ocorrendo no sentido inverso. Nessa comunhão secreta e
tantas vezes apaixonada, a mente do leitor aprende a funcionar de uma nova maneira, ampliando suas
possibilidades de raciocínio e sua percepção. A verdade do autor torna-se uma nova verdade, ampliando-se,
recebendo e incorporando a cada leitura uma nova interpretação. Cada leitor transforma o livro, e a cada
geração de leitores o livro se amolda, vindo ao encontro das necessidades interiores e das relativas ao tempo,
à época. A mobilidade de um livro é tão extraordinária quanto a de um leitor.

A leitura de um livro se dá em vários níveis, e processos acontecem ao mesmo tempo, em intensidades que
variam de leitor para leitor. Há a leitura da trama, talvez a mais superficial, em que acompanhamos as
ocorrências, os fatos, as descrições, as reflexões do livro, e enquanto isso nossa mente observa o
comportamento humano, e nosso próprio comportamento, realizando uma leitura da história de nossa vida,
pois os exemplos da vida dos personagens fazem surgir memórias de fatos semelhantes acontecidos na vida
do leitor. É a leitura da memória pessoal. Há a leitura dos sentimentos dos personagens e do autor, que
provocam sentimentos análogos no leitor, que pode experimentar novas emoções, ou emoções esquecidas e
não realizadas na vida cotidiana. Há a leitura da linguagem que o livro apresenta, em que assimilamos novas
palavras, expressões, dicções, vindas de diversas partes e tempos do mundo, e desenvolvemos nossa
percepção lingüística, e a de significados. Também a leitura gramatical, em que nossa mente se acostuma às
formas vernaculares, ou não, registrando e incorporando as grafias corretas, as maneiras de pontuação, as
apresentações normativas do idioma. A leitura das formas narrativas nos leva a identificar inúmeras
possibilidades de expressão. A leitura do gênero — romance, conto, poesia etc — nos põe diante de estruturas
clássicas, e das maneiras infinitas de misturar esses formatos. A leitura da estrutura do texto nos ensina a
organizar nosso pensamento.

Há a leitura da personalidade do autor do livro, pois tudo o que ele escreve, ainda que seja ficção, é um registro
da sua maneira de ser. Conhecemos Clarice Lispector, sem nunca termos nem mesmo a visto nem sequer
uma vez. Temos intimidade com os autores dos livros que lemos em nossa vida.

Viajamos por dentro de suas almas e aprendemos a discernir suas verdadeiras biografias. A leitura da
imaginação do autor provoca uma leitura de nossa própria imaginação, e quanto mais livre for sua mente,
mais liberdade terá a nossa para fabular e criar as próprias imagens diante da proposta do texto. Há a leitura
do ritmo, em que a cadência da escrita nos leva a respirações e pausas e silêncios, e melodias, pois cada
palavra tem um som, uma tonalidade, e causa uma sensação. A leitura das palavras em si e a forma como se
organizam nas frases provocam também um sentimento de prazer estético, afinando nossos sentidos. A
leitura da realidade versus sonho nos leva a experimentar as tênues fronteiras entre esses universos. A leitura
ideológica nos faz pensar em nossas próprias crenças e nas alheias, medimos as diferenças pessoais e
sociais. A leitura filosófica nos leva a questões da existência humana, o mesmo se passando com a leitura da
moral e da ética. A leitura política nos questiona e descobrimos nossos limites de tolerância. A leitura religiosa
e a ontológica nos aproxima de Deus. A leitura, enfim, da literatura nos traz toda a história do espírito humano.
Assim, aprendemos a ler, a falar, a pensar, a escrever, a olhar, a imaginar, a sonhar, a viver, enfim.

Ana Miranda é escritora, autora de Boca do Inferno, Desmundo,

Amrik, Dias & Dias, Deus-dará, entre outros livros.

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