Você está na página 1de 8

Uma leitura de um conto de Marina Colasanti

Maria Cristina Freitas Brisolara1

Referência:
BRISOLARA, M.C.F. Uma leitura de um conto de Marina Colasanti. In:TAGLIANI,
Dulce Cassol (org). Multiação: pensando o ensino de língua portuguesa. São Paulo: Paco
Editorial, 2012. Capítulo 3, p. 63-75.

Resumo

Tomando por base os postulados de Louis Hjelmslev, este artigo objetiva apresentar
um modelo de leitura que venha a propiciar os primeiros contatos do não-iniciado com
pressupostos da teoria semiótica greimasiana, bem como contribuir para a formação de
leitores competentes de textos.

Introdução

Em se tratando de compreensão de textos, a proposta teórica do linguista


dinamarquês Louis Hjelmslev (1899-1965) oferece um instrumental, que possibilita atingir-
se um nível muito produtivo de leitura. Importante começar dizendo que a semiótica
narrativa e discursiva, ou semiótica greimasiana, corrente que começou a ser desenvolvida nos
anos 60 por Algirdas Julien Greimas (1917-1992), tem alicerces teóricos fundamentados no
conceito de signo de Hjelmslev, que releu e aprimorou o signo saussuriano em sua obra
Prolegômenos a uma teoria da linguagem.
Mas não é da semiótica greimasiana que vamos tratar e sim da proposta de um
percurso de leitura que pode preceder os primeiros contatos com a teoria de Greimas e que
venha a contribuir com o não-iniciado – ou com aquele que venha a se interessar pelo
estudo desta teoria semiótica2 – possibilitando-lhe um primeiro passo no modo de proceder
semiótico.
Entendamos melhor. Já dissemos que Hjelmslev reformulou as noções de signo de
Saussure. Significante e significado passaram a ser entendidos como planos de linguagem.
O linguista chamou o significante de plano da expressão, a parte material ou sensível de
um texto, ou seja, a parte concreta que sustenta os conteúdos. O significado passou a ser
chamado de plano do conteúdo, parte imaterial e inteligível, o lugar dos conceitos.
Hjelmslev postulou, ainda, que cada um desses planos – expressão e conteúdo –
tinham não apenas uma forma, como também uma substância específica. E é a forma do
conteúdo e da expressão que é significante, que produz sentido, sendo, por isso, o objeto de
estudo da semiótica francesa.

1 Doutora em Letras (UFRGS). Professora Adjunta do Instituto de Letras e Artes da


Universidade Federal do Rio Grande – FURG.

2 Há pelo menos três grandes teorias semióticas: a de Charles Sanders Peirce (EUA), a de
Algirdas Julien Greimas (França) e a de Iuri Lotman (Rússia).
Se o signo é o resultado de uma semiose, união de materialidade (a substância) e o
conceito (a forma), um texto pode ser entendido como um grande signo constituído por
outros signos menores. O morfema, por exemplo, é apenas o signo mínimo. Na perspectiva
da formulação de Hjelmslev, a semiótica alarga o conceito de texto. “Assim, as frases são
signos, os textos são signos, qualquer produção humana dotada de sentido é um signo.”
(Fiorin, 2002: 60)
O percurso de leitura que vamos pôr em prática leva em conta que os dois planos de
linguagem estão presentes em todos os textos, vistos os textos, conforme quer Hjelmslev,
como signos. Relacionam-se, ambos, de maneira interdependente, não podendo existir um
sem o outro. Com base nesta ideia de relação – princípio também adotado pela semiótica
greimasiana, teoria para a qual “relação” é a palavra-chave – é que o modelo se constrói. A
divisão dos dois planos será feita apenas para efeito didático, porque plano de expressão e
plano de conteúdo devem ser entendidos em conjunto.
Considerando que o plano de expressão constitui-se da materialidade através da
qual o texto se apresenta – no caso, por meio de signos verbais – propomos investigá-lo em
três níveis: o fonológico, o morfológico e o sintático. O conjunto perceptível de elementos
linguísticos sustenta um discurso. Esse discurso compreende o plano de conteúdo, plano
que, segundo nossa proposta, deverá comportar um exame em nível semântico.
Convém lembrar que o sentido de um texto, longe de ser uma mera decodificação de
letras, palavras e frases, implica uma estreita relação entre texto, leitor e contexto, pois
permeiam o ato de ler valores sociais, históricos e ideológicos.
Segundo Barros (2003: 188): “o texto se organiza e produz sentidos, como um
objeto de significação, e também se constrói na relação com os demais objetos culturais,
pois está inserido em uma sociedade, em um dado momento histórico”. Daí a ser
determinado ideologicamente como um objeto de significação.
Nenhum texto é peça isolada, nem a pura manifestação da individualidade de quem
o produziu. Constrói-se um texto para, através dele, marcar-se uma posição. E cada leitor, a
partir da sua experiência e conhecimento de mundo, interage com o universo textual,
desencadeia estratégias várias para elaborar sentidos, associa ao texto que lê outras
experiências de leitura.
Estabelecendo relações, traçando, progressivamente, um próprio percurso, um
leitor, constrói, enfim, uma autonomia, face ao que lê. O leitor deve ser um agente ativo no
processo de construção de sentidos. Dessa interação entre texto, autor, leitor e contexto
surge o leitor crítico.

Antes do conto, a autora

Para realizar este trabalho, foi selecionado um conto da escritora Marina Colasanti,
da obra Contos de amor rasgados, publicada em 1986, pela Editora Rocco. A escolha foi
feita em função da brevidade do texto, o que permite uma análise menos extensa de uma
narrativa que contém todos os elementos de que necessitamos para um exame mais
completo. Afora isso, como veremos no desenvolvimento deste trabalho, o texto eleito é a
materialização de um discurso, no qual circulam valores que estão cada vez mais
enraizados na vida em sociedade.
Cientes da existência de correntes anti-historicistas que, diante de questões
relacionadas à zona de produção – a autoria – e à zona de produto – o texto em si –
defendem a ideia de que, no contexto, o autor está antes e fora do texto e que qualquer
referência ao autor é uma ingerência do extratextual ao textual, mantemos uma posição
historicamente formulada. Entendemos, sim, que o autor textual não coincide, nem
necessária nem totalmente, com o autor empírico e que nesse movimento criam-se relações
complexas de partilha e alteridade, mas que o autor, sujeito de carne e osso, e instância
narradora mantêm relações cuja pertinência e funcionalidade não podem ser desdenhadas.
Nessa visão – historicamente situada, sublinhamos – julgamos importante tratar da autoria.
Marina Colasanti é uma escritora e jornalista ítalo-brasileira. Nasceu em Asmara,
Etiópia, na então colônia italiana de Eritréia. Viveu sua infância na África e, ainda criança,
sua família voltou para a Itália, onde morou por onze anos. Chegou ao Brasil em 1948, aqui
estudou belas-artes e trabalhou como jornalista. Nessa área, foi redatora do Jornal do
Brasil, assinou seções nas revistas Senhor, Fatos&Fotos, Ele e Ela, Fairplay, Claudia e
Jóia. Na televisão, atuou como entrevistadora e foi âncora de programa cinematográfico.
Traduziu importantes textos da literatura italiana. Em 1968, foi lançado seu primeiro
livro, Eu Sozinha. Desde então, publicou mais de 35 livros, entre contos, poesia, prosa,
literatura infantil e infanto-juvenil. Em 1994, ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, por Rota
de Colisão, e o Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil, por Ana Z, aonde vai você? Por Uma
ideia toda azul, livro de contos, ganhou o prêmio O Melhor para o Jovem, da Fundação
Nacional do Livro Infantil e Juvenil. Em 2010, recebeu o Prêmio Jabuti pelo livro
Passageira em trânsito.
É uma constante na obra da escritora o uso de elementos simbólicos e é importante
que seu leitor perceba como se dá a tessitura dessas imagens simbólicas na construção de
seus textos que, de forma significativa, adentram o fantástico.

O conto

Embora sem náusea

1 Jantava com a amante em restaurantes espelhados. Mal acabava o


2 maître de flambar a sobremesa, ia ele se trancar no banheiro. Com a
3 mão metida funda na garganta, vomitava vermelhas lagostas,
4 sanguíneos molhos, e as labaredas do conhaque.
5 Depois ia para casa, jantar com a esposa.

6 Deitava com a amante em espelhados motéis.


7 Mal corria a água da ducha, já ele se trancava no banheiro. Com a
8 mão metida funda na garganta, vomitava os louros cachos, as louras
9 coxas, as labaredas da amante.
10 Depois ia para casa, deitar com a esposa.

COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados. Rio de Janeiro: Rocco, 1986. p. 131.
A análise

Plano de Expressão

Tratando-se de um texto constituído por signos linguísticos, o plano de expressão é


apreendido pelo modo como esses signos se apresentam aos nossos sentidos. Essa
apresentação se dá, através do reconhecimento do gênero textual, da configuração visual
dos elementos textuais na folha de papel, da observação de como esses elementos se
organizam a partir de procedimentos relacionais.
“Embora sem náusea” é um texto cujos parágrafos constituem-se de frases,
visualmente, parecidas. Sendo um conto, inscreve-se no gênero narrativo e, como tal, é o
produto do ato de enunciação de um narrador que se dirige, explicita ou implicitamente, a
um leitor, interpretante do conteúdo narrativo. Processos de composição individualizam o
modo narrativo: a caracterização da instância responsável pela narração – a voz – a
configuração das personagens e do espaço, a elaboração do tempo.
No conto em análise, a voz que conta a história é a voz de um narrador onisciente,
aquele que conta a ação do ponto de vista de quem sabe dos acontecimentos e o faz em 3ª
pessoa.
Considerando que um conto é uma narrativa breve e concisa constituída de um só
conflito, pouca ação, em espaço limitado a poucos ambientes, com unidade de tempo e
número restrito de personagens, observamos que, já na primeira linha, são introduzidas
duas das personagens da história. Inicialmente, alguém, cuja presença se demonstra pela
desinência de 3ª pessoa da forma verbal “jantava” (linha 1). Esse alguém – “ele” ou ”ela” –
de quem não se sabe nada, logo pode ser pressuposto como uma figura masculina, pela
referência à “amante” (linha 1), pressuposição que se confirma com a presença de outro
índice linguístico, o pronome pessoal “ele” (linha 2). A terceira personagem a entrar na
narrativa é o “maître“ (linha 2) e a última é a “esposa” (linha 5). Então temos quatro
personagens e, ainda que a trama esteja centrada no triângulo marido, esposa e amante – ele
e elas – a presença do maître produz sentido, na construção do clima..
Os verbos, predominantemente, no pretérito imperfeito do indicativo, situam ações
durativas num tempo passado, indicando habitualidade, e essas ações acontecem à noite, o
que se pode pressupor pelos índices “jantava” (linha 1), “jantar” (linha 5), “deitava” (linha
6), “deitar” (linha 10).
Pelos substantivos “restaurantes” (linha 1), “banheiro” (linhas 2 e 7), “casa” (linhas
5 e 10) , “motéis” (linha 6) instauram-se os espaços.

Nível Fonológico

Se observarmos o texto como um todo, veremos que há um padrão rítmico,


diretamente, conferido pela disposição das estruturas sintáticas. Considerada a repetição da
estrutura das frases e de determinadas palavras em estruturas idênticas, cria-se uma
uniformidade rítmica. A leitura de cada frase, respeitando-se as pausas estabelecidas pelas
vírgulas e pelos pontos finais, permite perceber um mesmo andamento sonoro. Há, então,
uma simetria gráfica e sonora.
Sons como, por exemplo, os que originam o eco /’ava/, presentes em “jantava”
(linha 1), “vomitava” (linhas 3 e 8), “deitava” (linha 6) e “trancava” (linha 7), bem como o
das consoantes líquidas /l/ e /ʎ/, verificado em “espelhados” (linhas 1 e 6), “mal” (linhas 1
e 7), “flambar” (linha 2), “ele” (linha 2), “vermelhas” (linha 3), “lagostas” (linha 3),
“molhos” (linha 4), “labaredas” (linhas 4 e 9), “louros” (linha 8) e “louras” (linha 8) dão
conta dessa repetitividade.
O emprego de palavras como “ducha” (linha 7), “cachos” (linha 8) e “coxas” (linha
9), todas contendo o fonema consonantal chiante /ʃ/, pode ser entendido, levando em conta
uma busca de efeitos contextuais, como tentativa de sugerir ou reproduzir,
lingüisticamente, sons e ruídos de água que cai.

Nível Morfológico

Verbos de movimento ou de ação – os que mostram como as personagens se


relacionam com o mundo – dinamizam a narrativa, no tempo verbal escolhido para
descrever o passado, o pretérito imperfeito do indicativo, apontando para ações habituais,
durativas, repetidas.
Referindo-se, preponderantemente, a elementos concretos, substantivos modificados
por adjetivos marcam significativa presença, dada a brevidade do texto: “restaurantes
espelhados” (linha 1), “vermelhas lagostas” (linha 3), “sanguíneos molhos” (linhas 4),
“espelhados motéis” (linha 6), “louros cachos” e “louras coxas” (linha 8 e 9). Não há
substantivos próprios, não há personagens nomeadas, referências a lugares específicos.
O marco temporal estabelecido, repetidamente, pelo advérbio “mal” (linhas 1 e 7),
ligado sempre a um verbo de ação, é de alta densidade semântica, no contexto.

Nível Sintático

Com relação ao aspecto sintático, é possível observar que a unidade do texto


consiste na forma como é estruturado: três frases agrupadas em dois blocos de parágrafos,
de forma a conferir a idéia de repetição.
A própria recorrência estrutural gera equilíbrio entre processos de coordenação e de
subordinação. Nos processos subordinativos, as circunstâncias de tempo expressas por
“mal” (linhas 1 e 7) e de finalidade implicadas em a fim de “jantar” e a fim de “deitar”
(linhas 5 e 10) formam unidades coesas de sentido.
Os acontecimentos narrativizam-se sem falas de personagens. Não há registros de
discursos diretos, indiretos, nem indiretos livres.

Plano de Conteúdo

Verificaremos, agora, como os fenômenos mais estritamente linguísticos (do plano


de expressão) acompanham os percursos de formação do sentido (do plano de conteúdo).
Para a construção do sentido é fundamental refletir sobre a funcionalidade dos fenômenos
gramaticais.
A análise já contemplou aspectos do texto em relação à sonoridade, ao léxico e à
sintaxe. E, como se pôde observar, a semântica já começa a ser analisada, juntamente, com
cada aspecto. Na recriação do processo semântico, ou seja, na reconstrução do sentido já
produzido no texto, a partir dos elementos presentes, o que deve ser considerado é como se
dá essa produção de sentido e seus efeitos.
O título antecipa cataforicamente, no modo do parecer e do ser, o percurso temático
do texto. Apresenta-se nele uma prévia do(s) tema(s), uma vez que, embora sem náusea,
mesmo sem náusea, o marido vomitava, para livrar-se da culpa, para mascarar a traição.
No texto em análise, as repetições – gráficas, sonoras, estruturais – concorrem,
nitidamente, para o significar. Com elas, reforça-se a noção do rotineiro, do que acontecia
sempre, habitualmente, ideia presente, globalmente, no texto. A superfície textual, marcada
por períodos cuja estrutura sintática se repete, requisita do leitor uma atenção ao pormenor
e às sutilezas do material linguístico.
Nesta reconstrução semântica, insistimos na verificação de como é utilizada a
potencialidade do tempo verbal eleito, o pretérito imperfeito do indicativo, um vetor da
representação do que é constante, usual, costumeiro, muito frequente, comum. Associado a
essa concepção do rotineiro está o emprego do advérbio “mal”, relevante, porque, ao dizê-
lo (linha 1) e ao repeti-lo (linha 7), o narrador/enunciador individualiza, na personagem
“marido”, a idéia de pressa, a sensação de ansiedade.
Avaliemos, neste tópico, algumas figuras que influenciam na leitura que estamos
fazendo do texto, pois, a fim de dizer do que trata o texto, o leitor, motivando-se pela
leitura, deve buscar abstrações, para tornar-se capaz de definir o(s) tema(s).
Uma ocorrência de muita relevância é a referência a “restaurantes” (linha 1) e
“motéis” (linha 6) “espelhados” (linhas 1 e 6); a “maître”, isto é, ao chefe dos garçons
(linha 2); à sobremesa flambada, ou seja, borrifada com bebida alcoólica, rum ou conhaque,
e, em seguida, chamuscada no fogo (em “flambar a sobremesa”, linha 2); a “lagostas”
(linha 3); à bebida alcoólica (“conhaque”, linha 4). Essas escolhas lexicais constroem uma
rede figurativa. Assim tecendo-se e contextualizando-se com palavras de um mesmo campo
semântico, o texto exalta, no aspecto interior dos ambientes, o tema do luxo, do requinte e
da sofisticação, o que atesta o poder econômico do marido infiel.
Importante é, também, atentar para as implicaturas dos verbos “jantar” e “vomitar”,
reiterados no texto. O verbo “jantar” está ligado ao verbo comer, um verbo de amplo
espectro pela conotação sexual que envolve. E, se “vomitar” diz respeito aos impulsos de
lançar de si, expelir, deixar sair para fora aquilo que comeu, no contexto em que se insere, o
verbo propõe conotações implicadas com o ato de devolver, de despejar o pecado, a
violação à regra, a infração à norma de fidelidade matrimonial, civil e religiosamente
acordada. Nessa mesma perspectiva, ressalta-se a simbologia da água, no sentido de fazer
pressupor a busca de limpeza, de purificação pelo traidor, que tem por objetivo chegar em
casa limpo, sem máculas da falta, uma vez que é um homem integrado em uma sociedade,
cujo processo ético e moral, elege certos padrões de comportamento.
O caráter duplo da personalidade da figura masculina é trazido para o discurso pela
alusão a superfícies espelhadas – nos “restaurantes” e nos “motéis” – pela simbologia do
espelho, enquanto busca de si mesmo, confronto consigo mesmo, consciência de culpa. Os
espelhos são, culturalmente, símbolos clássicos do duplo. Particularmente incisivas são as
referências a espelhos explícitas no texto, simbologia com a qual o narrador frisa a idéia do
autoconhecimento, da clareza, gerando o espaço da ambiguidade, uma vez que o espelho
representa a verdade e a aparência, a relação entre o objeto real e o seu “enganador”
reflexo, veicula o sentido de verdade equívoca. O reflexo convida à reflexão: os espelhos
dos “restaurantes” e dos “motéis” captam a imagem do amante, neles espelhada, uma
imagem que conflita com a do marido que se pretende sério e honesto, o que evidencia
sentidos radicalmente opostos.
A esses elementos soma-se, ainda, o valor simbólico da cor vermelha aludida em
“lagostas” e “sanguíneos” (linhas 3 e 4), labaredas (linhas 4 e 9), conotando pecado, paixão,
sensualidade e erotismo.
Nossa leitura permite afirmar que o conto em análise, uma narrativa centrada na
ótica do narrador, evoca temas como o do adultério, o da relação triangular, o da falsa ética
nas relações conjugais, o da hipocrisia nas relações sociais, o da questão da dupla
personalidade. Dizendo de outro modo, por meio de figuras, criativamente construídas, o
conto tematiza uma crítica à manutenção da ordem familiar pela farsa. Essa leitura foi
possível porque, ancorando o texto nos mecanismos linguísticos e extralinguísticos,
considerou o contexto histórico-social, parte constitutiva do sentido.

Considerações finais

A tradição escolar tem-nos mostrado que uma atividade de leitura em sala de aula,
muito frequentemente, é concluída com perguntas do tipo “O que você acha que o autor
quis dizer com este texto?”. Conduzir leitura não é dar ao leitor o poder de atribuir ao que
leu o significado que lhe convém, até porque ler não é nem só atribuir sentidos, nem só
captar sentidos, mas construir sentidos na interação com o texto.
Como aponta FIORIN (2001: 81), há diferentes possibilidades de se interpretar um
texto. Mas essas possibilidades já estão nele inseridas:
Inúmeras vezes ouvimos dizer que o texto é aberto e que, por isso, qualquer
interpretação de um texto é válida. Quando se diz que um texto está aberto para
várias leituras, isso significa que ele admite mais de uma e não qualquer leitura.
[...] As diversas leituras que o texto aceita já estão nele inscritas como
possibilidades. Isso quer dizer que o texto que admite múltiplas interpretações
possui indicadores dessa polissemia.

Partindo dos postulados de Hjelmslev, foi nosso intuito apresentar um modelo de


leitura, realizando uma análise de um conto de Marina Colasanti.
Entendemos que há etapas de leitura que podem levar o leitor às pistas de
significação sugeridas pelos vários aspectos de um texto, a saber: nível fonológico, nível
morfológico, nível sintático, dado seu plano de expressão, e nível semântico, considerado
seu plano de conteúdo. Este processo, apesar de parecer segmentado, visa a auxiliar,
efetivamente, na compreensão do texto como um todo de sentido.
Conduzir leituras envolve a habilidade de instigar, de provocar, de fazer o leitor
pensar frente ao texto apresentado, atento às pistas que o próprio texto explicita. O leitor é o
elo construtor dos sentidos que se produzem a partir de seu contexto e do texto que lê.
Buscamos mostrar que esta proposta de leitura não pretende limitar-se a um puro e
vazio exercício linguístico, pois trata-se de uma estratégia que pode vir a possibilitar uma
aprendizagem mais efetiva do funcionamento da língua. Almejamos ir além de uma simples
compreensão da superfície textual, alcançar a profundidade significativa do texto.
Queremos, enfim, contribuir para que o leitor encontre um caminho para uma leitura mais
eficaz e produtiva.
Críticas e sugestões serão bem-vindas.

Bibliografia consultada:

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Estudos do discurso. In: FIORIN, José Luiz (org.).
Introdução à linguística II: princípios de análise. São Paulo: Contexto, 2003.

COLASANTI, Marina. Contos de amor rasgados.Rio de Janeiro: Rocco, 1986.

FIORIN, José Luiz. Elementos de análise do discurso. 10ª ed; São Paulo: Contexto, 2001.

______. Teoria dos signos. In: FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à linguística I: objetos
teóricos. São Paulo: Contexto, 2002.

HJELMSLEV, L. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1975

Você também pode gostar