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O QUE É LER?

América Lúcia César

Quando falamos em ler, geralmente associamos leitura a um processo de interação entre


um autor e um leitor, mediado pelo texto. Isso quer dizer que a leitura é uma interlocução entre
sujeitos situados no mundo, que se faz através da linguagem, como linguagem. Como seres
situados no mundo, quem produz um texto tem motivo para fazê-lo, está submetido a
determinadas contingências do seu tempo, da linguagem, do espaço físico ou simbólico em que
se encontra — por exemplo, o professor, numa sala de aula, ocupa também um espaço simbólico,
o do falante autorizado, com o poder de ensinar. Do mesmo modo, quem lê um texto está
igualmente plantado num lugar, num tempo, tem uma história, tem motivos para fazê-lo, ou
seja, está situado num determinado contexto sócio-histórico.
Assim, o processo de leitura supõe:
 a presença de um leitor com objetivos;
 um leitor ativo que processa, examina, dialoga, polemiza, se inscreve no texto, ou
seja, um leitor que produz sentidos;
 possibilidades de produção de sentidos, tantas quantos forem os leitores, com suas
histórias, linguagens, visões de mundo, intenções...
Lemos para obter informação, para entender, conhecer, para realizar alguma atividade,
como encontrar uma rua, consertar um aparelho, para fazer um bolo, para confirmar o que já
sabemos ou conhecer algo novo... Lemos por necessidade de apreciação estética, para interrogar,
para negar, para criticar... Lemos para realizar tarefas escolares... Lemos para memorizar, para
não esquecer... Lemos para reafirmar as nossas crenças... para compartilhá-las... para modificá-
las... para brincar... passar o tempo, para ultrapassar os limites do aqui e agora, para “viajar” por
tempos e espaços outros... Lemos para obter prazer, por fruição.
A lista é interminável...
Daí, é possível concluir também que diversos leitores vão fazer leituras diversas de um
mesmo texto a depender dos seus objetivos de leitura e da sua história (seu conhecimento
prévio, suas referências, suas crenças, seu tempo).
Um químico pode ler uma bula de remédio para tentar entender o equacionamento das
medidas entre as substâncias, mas um determinado paciente pode ler a bula para saber como usar
o remédio indicado. Ou ainda, o poeta pode fazer a leitura da bula buscando palavras para um
poema. Assim, esse texto terá diversos significados a depender dos leitores e seus objetivos de
leitura.
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Contudo, o texto também traz suas estratégias de produção de sentido que conduzem a
leitura, tais como os recursos de linguagem que são utilizados pelo autor e os recortes que ele faz
no mundo com e pela linguagem. Assim, escrever também é um processo de leitura, pressupõe
igualmente produção de sentidos, objetivos, escolhas, “refeitura”... O autor é o primeiro leitor do
seu próprio texto. Nesse sentido, escrita e leitura são algo indissociável.
E não lemos só o que está escrito. Lemos os movimentos do corpo, lemos a paisagem,
lemos o mundo em que vivemos, quando tentamos conhecê-lo, compreendê-lo, transformá-lo...
Lemos números, ícones, fotos, obras de arte, logomarcas, sinais, cores, gestos, sons, formas...
São tantos os exemplos... a criança que lê as nuvens e suas formas, construindo feições,
personagens, histórias... a foto que “fala mais” do que a legenda... a logomarca que faz o adulto
desejar o objeto... o gesto que cala... a sirene da ambulância ou a música do caminhão de gás que
provocam a nossa aflição... Ler é manter uma ligação através do tato, do olhar, do ouvido...
“Em que se baseia a leitura? No desejo. (...) As pessoas lêem com seus corpos. Ler é
também sair transformado de uma experiência de vida, é esperar alguma coisa. É um sinal de
vida, um apelo (...). Pouco a pouco, o desejo desaparece sob o prazer” [1].

Uma outra concepção de leitura:

“Ler não é decifrar [ou decodificar], como num jogo de adivinhações, o sentido do texto. É, a
partir do texto, ser capaz de atribuir-lhe significação, conseguir relacioná-lo a todos os outros
textos significativos para cada um, reconhecer nele o tipo de leitura que seu autor pretendia e,
dono da própria vontade, entregar-se a esta leitura, ou rebelar-se contra ela, propondo outra não
prevista” [2].

“Leitura é um processo de interlocução entre leitor e autor mediado pelo texto. Encontro com o
autor, ausente, que se dá pela sua palavra escrita.” O autor produziu o texto com determinadas
significações, dirigido para interlocutores imaginados com certas características, mas não tem
como controlar o processo de leitura do leitor que, não sendo passivo, busca significações e
produz seu próprio sentido para o texto [3].

1
[?] BELLENGER apud KLEIMAN, Ângela. Oficina de Leitura: Teoria e Prática. Campinas, Pontes, 2004.
2
[?] LAJOLO apud GIRALDI, José Wanderley. (Org.) O Texto na Sala de Aula: Leitura e Produção. São Paulo:
Ática, 1996. p.80
3
[?] Giraldi, Idem, p.80.

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