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TEXTO E ENSINO

Suelene S. Oliveira
O ato de escrever pensamentos em superfícies e suportes diversos como maneira de se
posicionar acerca de temas do cotidiano – seja de modo argumentativo ou de modo narrativo,
possibilitando a libertação – faz parte da vida do ser humano desde tempos quase que imemoriais
(AUSTIN, 1990).
Discursos e seus respectivos significados, que parecem adormecidos, na verdade, percorrem
longas distâncias apenas por serem registrados de algum modo, libertando, por assim dizer, ideias,
teorias científicas e dogmáticas, pensamentos subjetivos e objetivos. Logo, a escrita passa a ser não
apenas uma maneira de registro documental, mas uma forma de transformação e revolução social e
cultural ao longo da história da humanidade, considerando seu poder de moldar a realidade de quem
produz e de quem lê. (FOUCAULT, 2004)
A elaboração de uma poesia, um conto, uma crônica, uma
música ou um outro gênero requer sensibilidade para selecionar as
palavras mais adequadas para o que se quer dizer. Dito de outra
forma, a escolha dos signos que elencam um texto é uma ação de
inspiração criativa e artística delicada que diz sobre o processo de
redação de um texto complexo e também pode dizer da forma
como um sujeito se constitui enquanto ser social.
Para Bourdieu (1996, p. 42) “A escrita abole as determinações, as
sujeições e os limites que são constitutivos da existência social”. Assim,
escrever passa a ser uma vereda necessária para repensarmos nossas formas
de olhar para as diferenças entre o que somos e o que queremos ser.
O escritor, nesse sentido, percorre caminhos da criatividade humana
que também permitem um vislumbre sobre quem as pessoas se propõem a ser
no social e de que modo elaboram os próximos passos para suas respectivas de
vida.
COMO A PRODUÇÃO TEXTUAL Representar a vida cotidiana em papel
PODE EMANCIPAR SOCIALMENTE tem uma importância política e social que
O SUJEITO QUE ESCREVE? garante a existência humana em
sociedade.

É necessário promover atividades que


permitam ao aluno sentir, analisar,
escutar, registrar e viver.

As pessoas que vivem à margem do direito de


aprender a ler e a escrever são destituídas de direitos
básicos, muitas vezes sem sequer saber onde e quando
buscar as normativas que poderiam lhes levar a alcançar
dignidade e respeito.
Produzir textos escritos é um ato complexo, pois envolve o desenvolvimento da
capacidade de coordenar e integrar operações de vários níveis e conhecimentos diversos:
linguísticos, cognitivos e sociais. O escritor se depara com a necessidade de gerar e selecionar
ideias e conteúdos, de organizá-los linguisticamente – o que envolve escolhas linguísticas
apropriadas (textualização) – e de registrar o texto, de modo que ele atenda à finalidade, ao
g~enero e ao interlocutor visados. Para isso, o produtor de textos necessita acionar uma série
de conhecimentos.
O texto escrito não pode ser separado daquele que enuncia antes de escrever, antes
de colocar no papel seus pensamentos. Na verdade, a escrita relaciona-se e cria-se a partir de
quem enuncia, mesmo que a solicitação parta de outro sujeito. Os textos escritos, já em sua
gênese, são antes reflexões mentais, falas, vozes dispersas e unificadas ao longo do tempo.
Quando a escola desconsidera a fala do sujeito que diz e que pensa por si próprio, pois
defende que é apenas por meio do texto ser possível dizer algo, negligencia a essência do
surgimento dos textos no mundo e da escrita como modo de libertação social de sujeitos
marginalizados pelos vários silenciamentos causados pelas desigualdades sociais.
A BNCC (2019) visa referenciar o trabalho dos profissionais da educação a partir de
parâmetros que regulam as políticas de educação no intento de que o ensino seja alicerçado em
reflexões comuns a todos os interessados e envolvidos de algum modo na educação nacional.
A escrita, nesse caminho, ganha destaque nos eixos paradigmáticos que apontam para o
ensino dos mais diversos gêneros textuais, nos campos artístico, jornalístico, crítico e
literário. A produção de textos é solicitada em todos os anos de ensino como modo de
aprofundamento de conhecimentos, mesmo em modalidades introdutórias, pois o documento
reconhece a relevância da produção escrita como modo de ampliar os olhares para os
conteúdos aprendidos em sala de aula.
✓ O ensino da produção textual envolve tanto processos cognitivos quanto sociais, pois a maturação do
sujeito, numa perspectiva interacionista, permite essa reflexão, considerando que todo o processo de
aprendizagem dos sujeitos enlaça-se com a aquisição de conhecimentos alicerçada nas interações
sociais.
✓ A escrita na escola, muitas vezes, sequer possui um destinatário que não o professor, e a produção
textual não tem outra finalidade que não a avaliativa. Logo o estudante pode ver-se na obrigação de usar
sua criatividade para algo que não tem relação com o desenvolvimento de um gesto criativo e
socialmente passível de desenvolvimento de seu senso crítico.
✓ As dissertações com temáticas sociais se perdem em meio a esqueletos de textos já prontos, em que o
que se defende não envolve uma argumentação legítima e autêntica, mas que se aproxima apenas daquilo
que o avaliador espera encontrar de estrutura textual, conectivos, conjunções e elementos não
significativos dentro do texto.
Os textos podem acordar afetos e sentimentos que falam
sobre os sofrimentos e as felicidades da vida e, por consequência, de
cada leitor que se debruçar sobre textos em versos ou em prosa,
considerando que existe a chance de emoções emergirem dos sujeitos
que leem e interpretam gêneros diversos. Esse olhar aguçado para os
sentimentos que surgem através de uma leitura é importante para a
compreensão da força transformadora da produção textual escrita
nos sujeitos sociais dentro e fora da escola e deve ser estigado pelo
professor.

Ao escrever traçamos e enlaçamos a nós


próprios com o que é contado, mesmo que
ficcional, à medida que se cria personagens,
tempos, lugares e histórias inventadas a partir
do que já se viveu, direta ou indiretamente, ou
daquilo que se espera viver.
Quando o aluno percebe que por meio da produção textual é possível escrever não
apenas sobre política, cultura e sociedade, como também sobre si, sobre seus arredores, sobre
seu sentimentos e sobre os desejos que carrega em meio a suas vivências e experiências ainda
em ascensão, é viabilizada, também, a sua emancipação evidenciada a partir de subjetividades.
A produção textual, literária ou científica, oferece aos seus leitores e aos seus produtores a
possibilidade de adentrar uma reflexão filosófica, social, mas também em sentimentos que apontam
para como se é constituído enquanto sujeito que produz vida e transformação política e cultural.
Dentro dessa ponderação, a linguagem, porta para as elaborações comunicativas do ser humano,
evidencia, também, o é preciso para produzir um texto, para interpretá-lo e, sobretudo, para
entender as ramificações significativas de uma elaboração textual, que apontam para afetos
diversos, sentidos únicos, olhares múltiplos do que o ser humano é capaz de criar a fim de se
construir enquanto sociedade.
Por meio da produção textual, professores
alunos podem compartilhar olhares mais sensíveis
para as realidades presentes dentro de cada
espaço de ensino. A exemplo disso, os círculos de
cultura, propostos por Freire (1987) seriam um
ponto de partida para a elaboração de textos que
tenham como escopo os afetos e as vivências, ainda
que críticas ou desafiadoras dos estudantes,
caminhando, assim, para a emancipação.
REFERÊNCIAS

ALENCAR, C. N. Pragmática cultural: uma proposta de pesquisa-intervenção nos estudos críticos da


linguagem. In: RODRIGUES, M. G. et al. (organizadoras). Discurso: sentidos e ação. (Coleção Mestrado
em Linguística). Franca, SP: Universidade de Franca, 2015, p. 141-162.
AUSTIN, J. L. Quando dizer é fazer. Porto Alegre: Artes Médicas, 1990.
BAZERMAN, C. A vida do gênero, a vida na sala de aula. In: Hoffnagel, J. C., DIONÍSIO, A. P.
(organizadoras). Gênero, agência e escrita. São Paulo: Cortez, 2006, p. 23-34.

BOURDIEU, P. O poder da escrita. In: BOURDIEU, P. As regras da arte. 1 ed. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996, p. 40-44.

FERREIRA, D. M. M., ALENCAR, C. N. Por uma ‘nova pragmática emancipatória’. Trab. Ling. Aplic.,
Campinas, n.52.2, 2013, p.: 271-285. Disponível em:
<https://arquivos.cruzeirodosuleducacional.edu.br/criacao/arquivos/colecao_mestrado_linguistica-10.pdf>
Acesso em: 10.03.2022.

GAGNEBIN, J. M. Verdade e memória do passado. In: GAGNEBIN, J. M. Lembrar, escrever, esquecer. 1.


ed. São Paulo: Editora 34 Ltda., 2006, p. 32-47.
HANKS, W. F. Língua como prática social: das relações entre língua, cultura e sociedade a partir de
Bourdieu e Bakhtin. 28ª ed. São Paulo: Cortez Editora, 2008.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 23ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
_______, P. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23ª ed. São Paulo:
Autores Associados: Cortez, 1989.
_______, P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
1996.
OLSON, D. R. A escrita sem mitos. In: OLSON, D. R. O mundo no papel - as implicações conceituais e
cognitivas da leitura e da escrita. 1 ed. São Paulo: Editora Ática, 1997a, p. 17-36.
LISPECTOR, C. A hora da estrela: edição com manuscritos e ensaios inéditos. 1ª ed. Rio de Janeiro:
Rocco, 2017.
Então, escrever é o modo de quem tem a palavra como isca: a
palavra pescando o que não é palavra. Quando essa não palavra - a
entrelinha - morde a isca, alguma coisa se escreveu. Uma vez que se
pescou a entrelinha, poder-se-ia com alívio jogar a palavra fora. Mas
aí cessa a analogia: a não palavra, ao morder a isca, incorporou-a. O
que salva então é escrever distraidamente.
(Clarice Lispector, 2019)

MUITO OBRIGADA!!
sueleneoliveira@gmail.com

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