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GÊNEROS TEXTUAIS NA FORMAÇÃO DE LEITORES:

A CIRCULAÇÃO DO CONTO E DA NARRATIVA LONGA NO OESTE PAULISTA

Profª Drª Renata Junqueira de Souza – UNESP – FCT (recellij@gmail.com)


Profª Ms Berta Lúcia Tagliari Feba – UNIESP - FAPEPE) (bertatagliari@hotmail.com)

RESUMO:
Estudos sobre o letramento e o papel da leitura do texto literário na formação do leitor estão
comumente atrelados à escola. Atividades como um debate após a leitura confirmam uma
interatividade entre o texto e os seus leitores, levando-os a reconsiderar conflitos com o lido.
Além disso, servem para criar expectativas nos interlocutores e para abrir espaços à
compreensão do texto e do mundo a sua volta. Dessa forma, o trabalho objetiva refletir sobre
a narrativa longa, gênero que circula no universo escolar e que faz parte do repertório dos
alunos. Para isso, analisa-se o que dizem leitores de 4ª série (5º ano) a respeito do livro A
roupa nova do imperador (2001), de Hans Christian Andersen, quais suas primeiras
impressões ao entrarem no universo ficcional e quais os aspectos que mais chamam a sua
atenção.
PALAVRAS-CHAVE: letramento, leitura, leitor, narrativa longa

ABSTRACT:
Research about literacy and the function of reading children’s literature to build a reader are
related with the school. Activities as a debate after reading a book show interactivity between
the text and their readers, thanking them to questioning what the read. Further more serve to
create expectative in readers and to open spaces for the comprehension of the text and the
world around them. In this way, this article has the objective to reflect about the long
narrative, text that is present inside the school and that make part of the students background.
For this proposal, we are going to analyze what students from a 5th grade has to say about the
book The new clothes form the Emperor (2001), by Hans Christian Andersen, their first
impressions getting into the fiction universe and which aspects capture their attention the
most.
KEYWORDS: literacy, reading, reader, long narrative

1 O letramento no Brasil
Os estudos sobre o letramento intensificaram-se no Brasil por volta de 1990. Alguns
autores (KLEIMAN, 1991, 1993; TFOUNI, 1995; SOARES, 1998; ROJO, 1998), em suas
pesquisas, buscavam compreender tanto “o impacto social da escrita” quanto a inserção dos
sujeitos no universo da palavra escrita. Neste sentido, os pesquisadores passaram a relacionar
os usos e as funções atribuídas à escrita na organização dos grupos na sociedade, focalizando
as conseqüências socioculturais, políticas e/ou cognitivas. Assim, promoveram um
deslocamento significativo na forma de idealizar o processo de aprendizagem da leitura e da
escrita, procurando compreender o que o sujeito faz, por que, para que e como faz quando
escreve.
Esses estudos foram possíveis em virtude do aprofundamento no campo investigativo
da linguagem, além disso, aqueles relacionados à Educação se viram impulsionados a
compreender as razões do “fracasso” escolar de alunos que, desde o início dos anos 70, com a
chamada “democratização da escola”, têm sido sistematicamente excluídos das salas de aulas,
mesmo com as proposições da progressão continuada, ‘corriqueiramente’ chamada de
promoção automática.
Neste sentido, assegurar educação para todos ainda é um desafio no Brasil, pois apesar
da expansão quantitativa ocorrida nas últimas décadas, em nosso país, persiste um quadro
preocupante. São milhões de brasileiros analfabetos e quase um terço da população com
baixos níveis de letramento. Entre jovens e adultos, considerando-se aqueles que têm mais de
15 anos, cerca de 13% são analfabetos, ainda que um terço deles já tenha passado pelo Ensino
Fundamental. Entre as crianças, mais da metade das que chegam à 4ª série (5º ano) não têm
apresentado um rendimento adequado em leitura. Quase 30% dessas crianças não sabem ler.
Os dados do INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional) de 2007 são reiterativos e, talvez,
mais alarmantes: há 800 mil crianças fora da escola; das que dela têm acesso, 25% estão
“atrasadas” em relação à série que estudam; apenas 3% são consideradas alfabetizadas até a 4ª
série; e 97% não conseguem aprender.
Não se pode afirmar, todavia, que a preocupação com a inserção dos alunos no
universo da leitura e da escrita, concebidas como práticas sociais, tenha efetivamente se
iniciado nos anos 90. No Brasil há, previamente, vários textos que abordam a questão do
letramento, sem se referirem explicitamente a ele. A transcrição do discurso – texto de
abertura da antologia comemorativa do 10º Cole – proferido em 1978 por Haquira Osakabe,
se refere à escrita e à leitura em citação de Márcia Abreu:

Eu entenderia por escrita propriamente dita a possibilidade de o sujeito ter o seu


próprio discurso. E se se entende por leitura a compreensão, se entende por leitura o
acesso a um conhecimento diferenciado, aquele que lhe permite reconhecer a sua
identidade, seu lugar social, as tensões que animam o contexto em que vive ou
sobrevive e, sobretudo, a compreensão, assimilação e questionamento, seja da
própria escrita, seja do real em que a escrita se inscreve. (ABREU, 1995, p. 22)

Como se vê, os autores pressupõem que escrita e leitura são formas que, por meio das
quais, o sujeito se constitui enquanto tal pela linguagem. Escrita e leitura, desse ponto de
vista, não são concebidas meramente como capacidades individuais, mas são compreendidas
como práticas de linguagem que possibilitam formas específicas de o sujeito estabelecer
relações sociais e construir sua identidade.
Em mesa redonda durante o 6º COLE, em 1987, Magda Soares afirma a respeito da
leitura:

Historicamente a leitura foi sempre um ato social. Nós passamos de um ato social,
em que as pessoas lêem em conjunto, em uma prática de leitura muito associada à
oralidade, para essa visão contemporânea, e falsa, de que a leitura é um ato
solitário, o que, na verdade, ela não é. Ela é uma interação verbal de indivíduos e
indivíduos socialmente determinados. (SOARES, 1995, p. 87)

No texto, Soares expõe que a concepção de leitura (e mais amplamente da relação do


sujeito com a palavra escrita) como ato solitário (ligado, portanto, apenas a habilidades
individuais) não se sustenta historicamente.
Em publicação posterior, Soares (2004) afirma que letramento remete às práticas
sociais de leitura e escrita, e alfabetização ao domínio do código aprendido por meio da
linguagem escrita. Para a autora, esses são dois processos simultâneos e interdependentes e
um não está antes do outro. Nesse sentido,

dissociar alfabetização e letramento é um equívoco porque, no quadro das atuais


concepções psicológicas, lingüísticas e psicolingüísticas de leitura e escrita, a
entrada da criança (e também do adulto analfabeto) no mundo da escrita se dá
simultaneamente por esses dois processos: pela aquisição do sistema convencional
de escrita – a alfabetização, e pelo desenvolvimento de habilidades de uso desse
sistema em atividades de leitura e escrita, nas práticas sociais que envolvem a
língua escrita – o letramento. Não são processos independentes, mas
interdependentes, e indissociáveis: a alfabetização se desenvolve no contexto de e
por meio de práticas sociais de leitura e de escrita, isto é, através de atividades de
letramento, e este, por sua vez, só pode desenvolver-se no contexto da e por meio
da aprendizagem das relações fonema-grafema, isto é, em dependência da
alfabetização (SOARES, 2004, p. 14).

Ao definir e propor para alunos o letramento desta maneira, a escola estaria


possibilitando a formação de leitores críticos. Para isto, pensa-se na utilização de diversos
gêneros literários como um material que permite as práticas sociais da leitura e da escrita.
Recentemente, o termo letramento literário foi divulgado por Rildo Cosson (2007) que
defende o ensino da leitura e o uso do texto literário, pois afirma que

se quisermos formar leitores capazes de experienciar toda a força humanizadora da


literatura, não basta apenas ler. Até porque, ao contrário do que acreditam os
defensores da leitura simples, não existe tal coisa. Lemos da maneira como nos foi
ensinado e a nossa capacidade de leitura depende, em grande parte, desse modo de
ensinar, daquilo que nossa sociedade acredita ser objetivo de leitura e assim por
diante. A leitura simples é apenas a forma mais determinada de leitura, porque
esconde sob a aparência de simplicidade todas as implicações contidas no ato de ler
e de ser letrado. É justamente para ir além da simples leitura que o letramento
literário é fundamental no processo educativo. Na escola, a leitura literária tem a
função de nos ajudar a ler melhor, não apenas porque possibilita a criação do hábito
de leitura ou porque seja prazerosa, mas sim, e sobretudo, porque nos fornece como
nenhum outro tipo de leitura faz, os instrumentos necessários para conhecer e
articular com proficiência o mundo feito linguagem (COSSON, 2007, p. 29-30).

Diante destes pressupostos teóricos, julga-se importante a utilização de diversos


gêneros textuais na escola. A escolha pelo conto e pela narrativa longa se deu pelo fato de as
instituições escolares possuírem este tipo de material em seu acervo, pois o governo vem
distribuindo uma diversidade textual através de programas como “Literatura em minha casa”,
“Programa Nacional Biblioteca na Escola” (PNBE) e “Programa Nacional do Livro Didático”
(PNLD), entre outros. E também, por relato de professores, que demonstram dificuldade na
abordagem destes gêneros no trabalho com leitura e escrita no Ensino Fundamental.

2 O contexto da pesquisa
Estudantes de 4ª série (5º ano) do Ensino Fundamental de três escolas públicas do
Oeste do Estado de São Paulo, das cidades de Presidente Prudente, Assis e Marília 1 , foram
entrevistados por um grupo de pesquisadores da Universidade Estadual Paulista, em ocasião
do desenvolvimento do projeto internacional de pesquisa intitulado “Literatura na escola:
espaço e contextos – a realidade brasileira e portuguesa”, que acontece nas três cidades já
citadas e em duas cidades portuguesas: Évora e Braga. Os alunos leram A roupa nova do
1
As cidades, segundo estimativa do Censo 2007 realizado pelo IBGE, contam com 203 000, 93 000 e 219000
habitantes, respectivamente.
imperador (Martins Fontes, 2001), de Hans Christian Andersen, “Meu nome é cachorro”,
primeira narrativa de O livro dos pontos de vista (Ática, 2006), de Ricardo Azevedo, e A
bolsa amarela (Casa Lygia Bojunga, 2007), de Lygia Bojunga. Depois da leitura, foi
realizada uma entrevista coletiva que teve duração de pouco mais de uma hora e foi guiada
por questões previamente elaboradas pelo grupo de pesquisadores, cujo intuito é observar
como se dá a recepção do texto literário por esses jovens leitores.
No trabalho aqui proposto, analisaremos o que dizem esses leitores acerca do livro A
roupa nova do imperador (Martins Fontes, 2001), de Hans Christian Andersen, quais suas
primeiras impressões ao entrarem no universo ficcional e quais os aspectos que mais chamam
a sua atenção.

3 O que dizem os leitores


As primeiras impressões do leitor com o texto são fundamentais, pois é a partir delas
que a continuidade da leitura ocorrerá. Quando desperta interesse, como é o caso aqui
apresentado, o livro leva o leitor a manter sua atenção e a seguir com a leitura até o final.
Para entregar-se à leitura, o leitor precisa fazer um “acordo ficcional” (ECO, 2002, p.
81) e entrar no mundo do faz de conta, compreendendo que o que está sendo narrado é uma
história imaginária, semelhante ao mundo real, e não uma mentira ou uma inteira
correspondência com a realidade. Por esse motivo, no momento da leitura de A roupa nova do
imperador, os alunos passam a aceitar os fatos como ficcionais por meio da frase “Era uma
vez...”, que faz a abertura da história. Além disso, os comentários demonstram as impressões
com o impacto primeiro ao ler a narrativa, dizendo que a parte mais interessante foi a do
início, por ser mais “legal” e pelo fato de o imperador apresentar uma roupa para cada hora do
dia.
Os alunos detêm o olhar na primeira parte da narrativa, pois parece ser esta a que
causa maior entusiasmo. A ênfase atribuída ao início da narrativa pode ser justificada pela
apresentação das personagens principais, o que leva à instauração da fantasia por parte do
leitor. Desde o começo, ele já tem delineado o mundo mágico que irá seguir ao longo da
narrativa, uma vez que ali estão presentes os ingredientes que irão compor a história, como o
imperador e o seu gosto por roupas novas, os artesãos e os comerciantes que viviam no
império e os trapaceiros que surgiram dizendo que faziam tecidos maravilhosos.
O início da narrativa é fundamental, pois dele depende muito a adesão ou a rejeição à
história por parte do leitor. Neste momento, a capacidade de construir os sentidos ao ler o
texto é percebida e há ânimo para continuar a leitura, tentando atestar, ao longo da trama, as
expectativas levantadas preliminarmente.
O discurso das crianças também deixa transparecer conceitos repassados pela prática
escolar no que diz respeito ao caráter material e instrumental atribuído ao texto literário. Estão
arraigados neste discurso a formação de hábitos, a divulgação de dogmas pré-fixados e a
concepção de que a leitura deve ter alguma serventia, principalmente para aprender uma lição
na vida.
A prática de leitura escolarizada pode ser percebida na necessidade de mostrar a
“mensagem” que o livro deixa ao leitor, ou seja, aquele ensinamento que o escritor quer
transmitir ao leitor durante a leitura. A impressão que temos é a de que os alunos sentem
necessidade de expor uma “moral para a história”, em decorrência do que já é introjetado ao
longo dos anos.
Ao serem questionados se a história poderia ajudá-los de alguma forma, disseram que
era para ensinar a não ser trapaceiro, para ficar alerta, para não ser vaidoso e para sempre falar
a verdade; para aprender a não comprar muitas roupas, para não dar dinheiro antes de receber
a mercadoria e até mesmo para melhorar a leitura e ficar sabendo mais. Será que esses leitores
procuraram uma mensagem para a história na tentativa de responder a uma expectativa do
interlocutor? Será que as frases foram ditas dessa maneira por estarem em uma escola, o que
os faz lembrar de toda uma metodologia já cristalizada?
A leitura como fruição, gratuita, por prazer, para se distrair, sem obrigações, que
desconstruiria essa voz pedagogizante, não é evocada pelos alunos, que acabam ignorando o
aspecto da leitura como aquela capaz de “ampliar horizontes” (AGUIAR, 2003, p. 242) e da
literatura sendo “tanto melhor quanto mais provocar o seu leitor” (AGUIAR, 2003, p. 242).
Com isso, esse grupo de leitores altera a temática do livro, desvirtua-o e atribui-lhe um
sentido que não está na imanência do texto, tampouco em suas entrelinhas, uma vez que não
fora feito para ensinar, mas para suprir uma primeira necessidade do homem, a de ficção e
fantasia (CANDIDO, 1972), sem se esquecer da sua contribuição para a formação da
personalidade das crianças, humanizando-as.

Outro momento cuja leitura escolarizada da narrativa demonstra-se é quando se


pergunta aos alunos o que eles acham do final, se gostaram ou não e se o fariam de forma
diferente.
Primeiramente os alunos dizem gostar do final, mas depois assumem outro
posicionamento que se revela pelo discurso contraditório. Para a maioria, os tecelões
deveriam: se dar mal no final, ir presos, fazer roupas de verdade; não deveriam ter fugido e
feito o imperador passar vergonha. Em geral, os estudantes não gostam de ver a personagem
principal servindo de chacota para o povo que assistia ao desfile, não percebendo a ironia e a
ideologia inerente à trama. Apenas um aluno assume ter gostado do final por causa do humor,
todavia, não consegue dar maiores explicações.
Esse estranhamento é causado pelo final inesperado e que leva a uma ruptura às
expectativas das crianças. Assim, assumem posicionamento de negatividade em relação à
narrativa, demonstrando apego à leitura de histórias tradicionais, com finais felizes ou que
apresentam o maniqueísmo entre o bem sempre vencedor e o mal penalizado. Essa opinião
também é demonstrada quando alguns alunos dizem já terem assistido a desenhos animados
ou lido em outros livros uma versão parecida, mas que expõem um final no qual o imperador
descobre que estava sendo enganado ou que os tecelões eram punidos.
Soares (2003), sob esse aspecto, explica que a escolarização da literatura é inevitável,
já que é na escola que muitas crianças têm acesso à literatura. Para a pesquisadora, a literatura
é apropriação e essência da escola, por isso, é “saber escolar” (SOARES, 2003, p. 21). O
problema, todavia, está na escolarização inadequada da literatura, isto é, o equívoco instala-se
na maneira como é realizado o trabalho com a literatura no seu cotidiano. Dessa forma,
concordamos com Soares (2003, p. 22), pois

o que se pode criticar, o que se deve negar não é a escolarização da literatura, mas a
inadequada, a errônea, a imprópria escolarização da literatura, que se traduz em sua
deturpação, falsificação, distorção, como resultado de uma pedagogização ou uma
didatização mal compreendidas que, ao transformar o literário em escolar, desfigura-
o, desvirtua-o, falseia-o.

Dessa forma, a literatura escolarizada de modo adequado seria aquela que leva às
práticas sociais de leitura e às ações que correspondam ao ideal de leitor que se quer formar.
Histórias com finais felizes lembram os contos de fadas e vão na contramão das
histórias contemporâneas, em que são vislumbrados finais abertos, passíveis de interpretações
múltiplas, ou finais de tom realista. Não gostar do final, portanto, pode livrar o aluno de
pensar na sua realidade, já que seria muito mais fácil viver no conto de fadas e ter uma
situação já concluída, na qual o bem se sobressai e o mal é detido.
O caráter humorístico desta parte do texto é percebido pelos alunos quando o
imperador desfila nu e todos que assistiam ao desfile assumem que não estavam vendo suas
roupas, apesar de a ironia ficar implícita e não ser vivenciada na leitura. Essas crianças
acabam atribuindo valores morais às atitudes dos tecelões e deixam passar despercebida a
sátira feita ao adulto cínico e à sociedade gananciosa da atualidade.
Conforme Zilberman (1991) promover a leitura em na sala de aula significa levar o
aluno a ter acesso à obra de ficção, pois

é deste intercâmbio, respeitando-se o convívio individualizado que se estabelece


entre texto e leitor, que emerge a possibilidade de um conhecimento do real,
implicando os limites – até físicos, já que a escola se constrói como um espaço à
parte – a que o ensino se submete. (ZILBERMAN, 1991, p. 21)

Nesse sentido, é a sala de aula o espaço para debates sobre os textos lidos e para a
viabilização da troca de experiências entre os leitores, que os torna capazes de relacionar o
que acontece na ficção com o que vive em sua realidade. É esta a leitura que possibilita uma
relação entre a linguagem e a realidade, desencadeando a interpretação do texto por parte do
leitor. Nesse sentido Zilberman (1991, p. 19) afirma que a obra de ficção é o modelo para
leitura, “pois, sendo uma imagem simbólica do mundo que se deseja conhecer, ela nunca se
dá de maneira completa e fechada”. A estrutura chama o leitor para preencher os vazios do
texto e dar vida ao mundo formado pelo autor. Assim, cada leitor os preencherá de uma
maneira, de acordo com sua vivência, experiência e imaginação, não apenas decifrando o
código.

4 Caminhos a serem trilhados


A opção pela leitura de um gênero na escola é uma decisão didática, por isso, visa a
atingir objetivos de aprendizagem. Em se tratando de texto literário, no entanto, não há função
formativa do tipo educacional, devido à sua elaboração estética. O que se vislumbra é a
necessidade de estudar os gêneros conto e narrativa longa, entendê-los, conhecê-los, apreciá-
los e transcender o seu uso para fora dos muros da escola.
O texto literário na escola pode, forçosamente, sofrer uma transformação ao ser
retirado de seu lugar social. A narrativa, ao ser lida em sala de aula, pode perder a função de
fruição para atender a exigências pedagógicas, podendo ser entendida como um meio para
transmitir mensagens e certezas sobre o mundo, para apresentar o maniqueísmo entre o bem e
o mal, para fazer do aluno um leitor passivo e do professor o que assume a postura de detentor
do saber, e mesmo para servir como pretexto para ensinar gramática.
Se a narrativa longa é um gênero tão presente no contexto estudantil e que perpassa os
anos escolares, por que os alunos ainda apresentam dificuldades na sua leitura? Por que
demonstram forte apelo ao pedagogismo, mesmo diante de literatura?
Para responder a essas questões, faz-se necessária uma reflexão sobre a leitura do texto
literário na escola, especificamente sobre o uso da narrativa longa em sala de aula.
Em primeiro lugar este gênero geralmente não é lido na íntegra. Ao aluno não é dada a
oportunidade de materializar a leitura, ou seja, de possuir em suas mãos o livro por algum
tempo, de folheá-lo com prazer, de lê-lo quando quiser. O professor por sua vez, em alguns
casos, por falta de preparo, não consegue incentivar esta leitura e principalmente, ao trabalhar
a narrativa longa, não explora a sua estrutura, dando voltas com o texto e não privilegiando o
que realmente pode ser oferecido: uma estrutura narrativa capaz de chamar a atenção do leitor
para os elementos do texto.
Essa estrutura narrativa, isto é, a matéria literária, aqui é entendida como uma
invenção transformada em palavras. É o corpo verbal que constitui a obra de literatura e o
resultado da arte do autor em inventar ou manipular processos e recursos.
Seguindo os pressupostos teóricos de Coelho (2000) há dez elementos que estruturam
a matéria narrativa: narrador – a voz que fala, enunciando a efabulação; foco narrativo - o
ângulo ou a perspectiva de visão, escolhida pelo narrador para ver os fatos ou relatá-los;
história, intriga, enredo – resultado da invenção ou manipulação dos fatores estruturantes;
efabulação – recurso pelo qual os fatos são encadeados na trama, na seqüência narrativa;
gênero narrativo – obedece à visão de mundo que o autor pretende transmitir ao leitor (conto,
novela e/ou romance); personagem – aqueles que vivem a ação; espaço – o ambiente, o local
onde acontece a trama; tempo – período de duração da situação narrada e, linguagem
narrativa – carregada de intencionalidades (metáforas, hibridismos, simbologias). Ainda faz
parte desta estrutura o leitor e/ou o ouvinte, pois a ele se destina a obra.
Os leitores têm acesso a um texto que se apresenta fragmentado, geralmente inserido
em livros didáticos, com o objetivo de serem desenvolvidas atividades de “interpretação”.
Esse “texto”, todavia, deveria constituir uma unidade de sentido, ter fatores de textualidade e
demonstrar o ciclo básico seqüencial, como a exposição, a complicação, o clímax e o
desfecho. Além do mais, transportado para o livro didático, o texto sofre transformações, pois
relacionar-se com ele em seu suporte é ter contato com o objeto livro, suas características
materiais, a diagramação, a ilustração, as cores.
Uma outra questão observada no trabalho em escolas com o texto literário é a seleção
de autores e obras a serem lidos. Corriqueiramente, os alunos passam anos lendo os mesmos
autores, construindo, assim, um conceito do que seja literatura e criando um apreço por
determinados estilos, não ocasionando a “frustração de expectativas” (JAUSS, 1994, p. 52),
considerada muito importante na leitura e na formação do leitor, tanto para as bases de uma
nova ciência, quanto para a ampliação de experiências de vida.
Essa condição de ruptura dada pela arte por meio das possibilidades de inovação de
horizontes e pela verificação da experiência estética entre obra e leitor é essencial para que se
estabeleça o exercício da função comunicativa da produção artística. Assim

a experiência estética não se inicia pela compreensão e interpretação do significado


de uma obra; menos ainda, pela reconstrução da intenção de seu autor. A
experiência primária de uma obra de arte realiza-se na sintonia com seu efeito
estético, isto é, na compreensão fruidora e na fruição compreensiva.
(JAUSS, 2002, p. 69)

Mais agravante do que ler os mesmos autores por um longo tempo talvez seja ler
autores desconhecidos pela crítica, que não têm importância no meio cultural artístico infantil,
que são pouco representativos ou que têm textos de pouca qualidade estética e que, portanto,
não contribuem para a compreensão do literário e para o desenvolvimento no aluno do
conceito de autoria e de obra.
Um trabalho com o gênero narrativa longa na escola poderia possibilitar a leitura pelo
aluno de textos literários de qualidade estética e o desenvolvimento de atividades que não
fossem modelos concretos para o ensino, mas que privilegiassem suas características
intrínsecas como o material impresso, a estrutura narrativa, a intertextualidade, a ideologia e a
opinião do leitor.

Uma alternativa é o debate que pode ser realizado após a leitura do livro, pois valoriza
as impressões do aluno. Por meio dele é possível: construir coletivamente os significados do
texto; promover uma interação entre livro-professor-aluno; demonstrar posicionamentos;
elaborar conjuntamente uma resposta a uma questão posta, que permite a cada um refletir para
precisar ou modificar sua posição inicial; aprofundar conhecimentos; explorar opiniões
controversas ou complementares; desenvolver novas idéias e novos argumentos; construir
significações ao texto; transformar atitudes. Funções essas que foram notadas pelos alunos da
4ª série observada ao dizerem que “o debate é bom porque cada um pode mostrar a sua
opinião”.
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