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LEITURA E ESCRITA
Cirilo Abe Barreto
Isso nos assustou e preocupou. A professora Terezinha Machado, últimos anos. Em seguida, preten-
Em outro momento, perguntei: A em uma entrevista, diz: "Eu gosto do apresentar algumas implica-
escola produz não-leitores? A lei- de escrever porque eu gosto de me ções dessa opção teórica e das
tura na escola se fecha em leitura acompanhar". Quantos de nós, questões suscitadas pela pesquisa
da escola, onde notas, "provas de professores, temos tido a oportuni- de campo por nós realizada para a
livros", fichas e apostilas com re- dade de ler a palavra do outro e de formação.
sumos das histórias ocupam o escrever para nos acompanhar? É
tempo e o espaço que poderiam possível tornarmos nossos alunos Leitura e escrita
ser destinados a simplesmente ler pessoas que lêem e escrevem se como experiência:
e desfrutar o livro? A aversão nós mesmos, professores, não te- o avesso
pelos textos literários, pela litera- mos sido leitores e temos medo de
tura, é ensinada na escola? escrever? Como entender a leitura O campo da leitura e escrita
Tenho ouvido também depoi- de modo a – mais do que jogar a vem recebendo, nas últimas déca-
mentos de muitos colegas que, culpa em professores e escolas – das, contribuições expressivas tan-
quando jovens, jogaram fora, quei- podermos encontrar alternativas to no que se refere à produção teó-
maram ou rasgaram textos que es- para que os professores passem a rica (de âmbito nacional e interna-
creveram. Terá sido vergonha, ti- ler, voltem a ler, para que não tre- cional) quanto no que diz respeito
midez, medo de mostrar para o ou- mam diante da folha em branco? ao delineamento de alternativas
tro e ser criticado? Ou terá sido a Será que pensar a leitura e a escri- práticas. Desde a crítica à educa-
própria escola que ensinou a temer ta como experiência pode nos aju- ção bancária feita por Paulo Freire
a folha em branco e a tremer dian- dar nessa tarefa? ao anúncio de novas práticas nos
te dela? Afinal, na escola, o que a O objetivo deste texto é trazer anos 50 e 60, passando pelas mu-
gente escreve é para ser lido ou algumas reflexões sobre o que danças na conjuntura política, a re-
para ser corrigido? Será que temos significa entender a leitura e a es- pressão sofrida no duro período da
tido a possibilidade de ler e de es- crita como experiência – um dos ditadura militar, até a reconquista
crever e de aprender com essas temas que tenho estudado e discu- da liberdade e do direito de partici-
práticas? Será que temos entendido tido com vários alunos e professo- pação política concretizada com a
que a escrita desempenha um papel res que têm participado da nossa volta das eleições em 1982 e 1985
central na constituição do sujeito? equipe de pesquisa ao longo dos (respectivamente nos planos esta-
e experiência (vivido que é pensa- cia. Sendo mediata ou mediadora, parte, como uma ruína no sentido
do, narrado): na vivência, a ação a leitura levada pelo sujeito para benjaminiano, contém as leis do
se esgota no momento de sua rea- além do dado imediato permite todo) da fragmentação a que assis-
lização (por isso é finita); na expe- pensar, ser crítico da situação, rela- timos, que nos afeta e que pratica-
riência, a ação é contada a um ou- cionar o antes e o depois, entender mos. Fragmentação também da
tro, compartilhada, tornando-se in- a história, ser parte dela, continuá- leitura. Lêem-se pedaços de textos
finita. Esse caráter histórico, de la, modificá-la. Desvelar. cada vez mais curtos, mensagens,
permanência, de ir além do tempo A contemporaneidade se ca- trechos, resumos, informações. De
vivido, tornando-se coletiva, cons- racteriza pelo tempo abreviado. que maneira as crianças e os jo-
titui a experiência. Falta de tempo. Falta de tempo de vens respondem a todas essas
ler e de escrever. Falta de contato transformações?
A leitura como com textos e contextos que incen- Em geral, a leitura impressio-
experiência tivem a leitura como experiência. na de modo diferente aquele que lê
Nela vivemos o paradoxo: muito se é feita na juventude ou na matu-
Tomemos em primeiro lugar a se fala sobre leitura, muito se pro- ridade, ainda que as idéias, ações,
leitura. Está ela sendo praticada põe, mas os livros mais vendidos valores e sentimentos possam ir se
como passatempo ou como algo continuam sendo os didáticos. No plantando mesmo se o leitor disso
que passa para além do seu tempo Brasil, em mais de 90% dos muni - não se dá conta. Mas na vida con-
de realização? É a segunda moda- cípios não há livrarias, além de temporânea há tempo e espaço
lidade de ação leitora que mais me serem muito precárias ou quase para leituras que sejam feitas
interessa. Atribuí outro significado inexistirem as bibliotecas.
às ações de ler, escrever e "contar" Quando não é assim, a quanti-
(Kramer, 1995), por entender que é dade de textos e de estímulos
a narrativa, o relato para o outro, acentua a leitura interrompida.
que torna a vivência uma experiên- Aos poucos e cada vez mais, além
cia. O leitor leva rastros do vivido da incompletude que marca o ato
no momento da leitura para depois de ler, faz-se uma leitura fragmen-
ou para fora do momento imediato tada. E aqui é preciso diferenciar a
– isso torna a leitura uma experiên- escrita em fragmentos (onde cada
sibilizar com sua dor? Estão sendo perdeu? Como recuperá-la ou re- mento e de tentativa de eliminação
(ou já foram) lentamente desuma- fundá-la? das diferenças. Não é por ingenui-
nizados? Perderam a experiência e Mas trabalhar com linguagem, dade ou romantismo que valorizo a
a capacidade de narrar? Embora leitura e escrita pode ensinar a uto- leitura literária como uma impor-
esse processo venha de longe, ele pia. Pode favorecer a ação numa tante experiência de formação. É
se tornou agudo neste século. perspectiva humanizadora, que porque julgo que, naqueles casos,
O tema provoca reflexões: é convida a refletir, a pensar sobre o tratava-se do ensino da conformi-
possível uma educação crítica da sentido da vida individual e coleti- dade e da obediência, e de uma de-
cultura? Pode-se prescindir de va. Essas questões remetem à res- formação do conceito de homem,
uma leitura crítica do mundo? ponsabilidade social que temos, no quando aqui o que está em jogo é o
Como pensar a formação no sécu- sentido de provocar – como propõe resgate da produção cultural para a
lo XXI, numa direção em que se Adorno - a auto-reflexão crítica, crítica, o avanço, a transformação.
repense o passado, a mixórdia e os engendrando situações nas quais se Ora, a humanidade não resol-
despojos da cultura? Como defen- torne possível ajudar a frieza a ad- veu seus mais básicos problemas
der uma perspectiva de formação quirir consciência de si própria, de de aceitação do outro, de reconhe-
cultural crítica e atuar nela, sem sua consciência coisificada, de sua cimento das diferenças e de garan-
perder de vista que a cultura se indiferença pelo outro. É com essa tia da pluralidade, e é contra a in-
construiu e fortaleceu como mo- meta que se justificam a leitura e a justiça e a desigualdade que mar-
numento de barbárie? Como man- escrita. Falar de alfabetização, de cam a história humana que preci-
ter a utopia e a esperança de justi- leitura e de ensino de língua mater- samos direcionar todas as nossas
ça social, solidariedade e genero- na significa, necessariamente, ter ações educacionais e culturais.
sidade? Como combater a discri- uma perspectiva de luta contra a Devemos resistir a um cotidiano
minação do outro, lutar pelo reco- barbárie. Mas ao pensar a leitura, a presente e a uma história passada
nhecimento das diferenças de to- literatura e seu papel no processo de dor e de opressão. E falo disso
dos os tipos, a não ser atuando na de humanização, contra a barbárie, não porque suponha de maneira
direção contrária à dominação, à tenho clareza de que nações "cul- leviana que a leitura, a literatura
cultura legitimada como correta, tas" e desenvolvidas cientifica e ou a poesia podem ser panacéia ou
contra a opressão? A liberdade do tecnologicamente deram ao mundo antídoto, nem para comparar si-
diálogo está se perdendo ou se um legado de barbárie, de cercea- tuações, avaliar conceitos ou pesar
rice Lispector ou um videoga- interações entre pessoas e delas ca, se divulga a importância de ler.
me, então teremos renunciado com os textos, beneficiando-nos Mas não tenho certeza se essa mu -
ao nosso próprio futuro." também do estudo anteriormente dança estaria ocorrendo na direção
(1995, p.176) feito com a fotografia e procuran- necessária. Pergunto se efetiva-
do olhar o cotidiano e dele tratar mente são formados leitores críti-
Depois de escrever, como constituído de fragmentos cos do mundo, pessoas que escre-
oferecer-se à que falam para além daquilo que vem e reescrevem a história. Ou se
leitura: o avesso neles é visível. Os (re)tratos anali- temos renunciado ao nosso passa-
do avesso do avesso sados das situações observadas do e, portanto, também ao nosso
não nos mostraram, porém, situa- futuro.
Na pesquisa que agora con- ções que apreciamos sempre ver. O percurso que fizemos ao
cluímos, algumas apropriações Foi, então, preciso reeducar o longo desses anos foi motivado
teóricas que fizemos do conceito olhar, esforçando-nos para não jul- pela necessidade de compreender
de experiência tiveram seu eixo gar e/ou não culpar professores e e pelo imenso desejo de contribuir.
centrado no resgate de trajetórias alunos, sempre que não encontra- Ao devolver para os professores e
vividas por professores. O papel mos o que gostaríamos de encon- escolas nossas observações e co-
da memória e a dimensão forma- trar. mentários, esperamos retribuir a
dora da entrevista foram a tônica. Por outro lado, não há dúvida eles o que nos deram, sem abrir
Na pesquisa, em seus vários proje- de que estamos assistindo a muitas mão do espírito crítico e da inquie-
tos, além de entrevistar professo- mudanças no campo da leitura; é tude que devem caracterizar o tra-
res e alunos, voltamos nossa aten- visível e crescente a sua difusão. balho da Universidade. De certa
ção às escolas, às salas de aula, às Hoje, muito se incentiva, se publi- maneira, ao fazê-lo, escrevendo-