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LEITURA E ESCRITA
Cirilo Abe Barreto

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Let rament os na formação de professores a part ir de uma concepção discursiva da linguage…


Alexandre Cadilhe

Ent re o plágio e a aut oria


Angela Araujo

t ecnologias e met odologias


Adriano Teixeira
LEITURA E ESCRITA
c o m o e x p e r i ê n c ia –
se u p a p e l n a fo rm a ç ã o
d e s u je i t o s s o c i a is
SONIA KRAMER*

E ste texto trata da importância da leitura e da escrita. Mais espe-


cificamente, trata da importância da leitura e da escrita na nos-
sa formação como professores. E por que esse tema nos interessa? Por
que é necessário falar dele?
Estudando o que lêem e escrevem os professores, entrevistando-os,
ouvindo seus relatos, registrando suas falas, tenho buscado compreen-
der as relações que foram estabelecendo com a escrita ao longo de
suas trajetórias de vida e de trabalho. Muitos falavam da importância
da família na criação do gosto de ler e do papel secundário desempe-
nhado pela escola; alguns diziam já ter gostado de ler um dia, outros
relatavam as muitas lembranças – boas ou más – que a conversa so-
bre leitura e escrita neles suscitava, do dever de ler imposto pela es-
cola em que tinham sido alunos. Ficamos conhecendo histórias de des-
prazer, imposição, obrigatoriedade.

* Professora da PUC Rio.


Imagens: Dante mostrando a Divina Comédia (séc. XV).
LEITURA ESCRITA COMO EXPERIÊNCIA – SEU PAPEL NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS SOCIAIS

Isso nos assustou e preocupou. A professora Terezinha Machado, últimos anos. Em seguida, preten-
Em outro momento, perguntei: A em uma entrevista, diz: "Eu gosto do apresentar algumas implica-
escola produz não-leitores? A lei- de escrever porque eu gosto de me ções dessa opção teórica e das
tura na escola se fecha em leitura acompanhar". Quantos de nós, questões suscitadas pela pesquisa
da escola, onde notas, "provas de professores, temos tido a oportuni- de campo por nós realizada para a
livros", fichas e apostilas com re- dade de ler a palavra do outro e de formação.
sumos das histórias ocupam o escrever para nos acompanhar? É
tempo e o espaço que poderiam possível tornarmos nossos alunos Leitura e escrita
ser destinados a simplesmente ler pessoas que lêem e escrevem se como experiência:
e desfrutar o livro? A aversão nós mesmos, professores, não te- o avesso
pelos textos literários, pela litera- mos sido leitores e temos medo de
tura, é ensinada na escola? escrever? Como entender a leitura O campo da leitura e escrita
Tenho ouvido também depoi- de modo a – mais do que jogar a vem recebendo, nas últimas déca-
mentos de muitos colegas que, culpa em professores e escolas – das, contribuições expressivas tan-
quando jovens, jogaram fora, quei- podermos encontrar alternativas to no que se refere à produção teó-
maram ou rasgaram textos que es- para que os professores passem a rica (de âmbito nacional e interna-
creveram. Terá sido vergonha, ti- ler, voltem a ler, para que não tre- cional) quanto no que diz respeito
midez, medo de mostrar para o ou- mam diante da folha em branco? ao delineamento de alternativas
tro e ser criticado? Ou terá sido a Será que pensar a leitura e a escri- práticas. Desde a crítica à educa-
própria escola que ensinou a temer ta como experiência pode nos aju- ção bancária feita por Paulo Freire
a folha em branco e a tremer dian- dar nessa tarefa? ao anúncio de novas práticas nos
te dela? Afinal, na escola, o que a O objetivo deste texto é trazer anos 50 e 60, passando pelas mu-
gente escreve é para ser lido ou algumas reflexões sobre o que danças na conjuntura política, a re-
para ser corrigido? Será que temos significa entender a leitura e a es- pressão sofrida no duro período da
tido a possibilidade de ler e de es- crita como experiência – um dos ditadura militar, até a reconquista
crever e de aprender com essas temas que tenho estudado e discu- da liberdade e do direito de partici-
práticas? Será que temos entendido tido com vários alunos e professo- pação política concretizada com a
que a escrita desempenha um papel res que têm participado da nossa volta das eleições em 1982 e 1985
central na constituição do sujeito? equipe de pesquisa ao longo dos (respectivamente nos planos esta-

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dual e municipal) e a implementa- frentado questões do hoje denomi - tante: qual a natureza da leitura e
ção de políticas locais e diferentes nado letramento que nos situam da escrita? Como se lê e se escre-
propostas pedagógicas de Educa- em outro patamar de reflexão, de ve hoje? Como concebemos a lei-
ção Infantil, Ensino Fundamental e discussão crítica e de proposição tura e a escrita? No contexto dessa
Educação de Jovens e Adultos, a de políticas e de práticas. discussão analisamos diversos (e
alfabetização tem sido o centro das No contexto dessa investiga- nem sempre excludentes) concei-
atenções. Vale lembrar que, se no ção teórica e da busca de cami- tos, diferentes modos de entender
início deste século chegávamos a nhos concretos é que se situa a o que é ler e escrever. Leitura é há-
um índice de 70% de analfabetis- presente trajetória de pesquisa. Ao bito? É gosto, prática, relação,
mo, neste final estamos longe de perguntarmos se lêem e escrevem exercício, instrumento, necessida-
erradicá-lo totalmente, mas avan- professores de diferentes gera- de? E assumimos a leitura e a es-
çamos muito: 20% é o índice de ções, contextos e escolas, e ao crita como experiência.
analfabetismo da população de 15 questionarmos se é possível for- Tomando por base a teoria crí-
anos. Quase 30 milhões de pessoas mar leitores e escritores quando tica da cultura, em especial os en-
não escrevem e não lêem, sequer não se escreve e não se lê, fomos saios de Walter Benjamin, enten-
funcionalmente. movidos também por uma inquie- demos a centralidade da narrativa
Por outro lado, os avanços no tação: como intervir? Comprome- como espaço de diálogo e de re-
campo teórico, a revolução con- tidos com a pesquisa e com a prá- memoração e dimensionamos seu
ceitual e a mudança no nosso co- tica, com o avanço do conheci- papel na constituição do homem
nhecimento sobre as formas e os mento e com a busca de saídas, como sujeito social, enraizado na
processos de ler e escrever são deslocamo-nos nesse percurso ten- coletividade. Tomamos de em-
enormes. Desde Paulo Freire e seu so, olhando, inquirindo, entrevis- préstimo a denúncia feita pelo fi-
entendimento da alfabetização co- tando professores, observando as lósofo sobre a perda da capacidade
mo ação cultural, passando pelos aulas, estudando, tentando com- de narrar em conseqüência do de-
estudos da sociolingüística, da so- preender, mas também procurando finhamento da experiência do ho-
ciologia da linguagem e da psico- respostas. Ao longo desse período, mem moderno. Estudamos a dis-
lingüística, chegando à história da a tentativa de compreender o que é tinção que Benjamin estabelece
leitura e à antropologia, temos en- ler e escrever tem sido uma cons- entre vivência (reação a choques)

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LEITURA ESCRITA COMO EXPERIÊNCIA – SEU PAPEL NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS SOCIAIS

e experiência (vivido que é pensa- cia. Sendo mediata ou mediadora, parte, como uma ruína no sentido
do, narrado): na vivência, a ação a leitura levada pelo sujeito para benjaminiano, contém as leis do
se esgota no momento de sua rea- além do dado imediato permite todo) da fragmentação a que assis-
lização (por isso é finita); na expe- pensar, ser crítico da situação, rela- timos, que nos afeta e que pratica-
riência, a ação é contada a um ou- cionar o antes e o depois, entender mos. Fragmentação também da
tro, compartilhada, tornando-se in- a história, ser parte dela, continuá- leitura. Lêem-se pedaços de textos
finita. Esse caráter histórico, de la, modificá-la. Desvelar. cada vez mais curtos, mensagens,
permanência, de ir além do tempo A contemporaneidade se ca- trechos, resumos, informações. De
vivido, tornando-se coletiva, cons- racteriza pelo tempo abreviado. que maneira as crianças e os jo-
titui a experiência. Falta de tempo. Falta de tempo de vens respondem a todas essas
ler e de escrever. Falta de contato transformações?
A leitura como com textos e contextos que incen- Em geral, a leitura impressio-
experiência tivem a leitura como experiência. na de modo diferente aquele que lê
Nela vivemos o paradoxo: muito se é feita na juventude ou na matu-
Tomemos em primeiro lugar a se fala sobre leitura, muito se pro- ridade, ainda que as idéias, ações,
leitura. Está ela sendo praticada põe, mas os livros mais vendidos valores e sentimentos possam ir se
como passatempo ou como algo continuam sendo os didáticos. No plantando mesmo se o leitor disso
que passa para além do seu tempo Brasil, em mais de 90% dos muni - não se dá conta. Mas na vida con-
de realização? É a segunda moda- cípios não há livrarias, além de temporânea há tempo e espaço
lidade de ação leitora que mais me serem muito precárias ou quase para leituras que sejam feitas
interessa. Atribuí outro significado inexistirem as bibliotecas.
às ações de ler, escrever e "contar" Quando não é assim, a quanti-
(Kramer, 1995), por entender que é dade de textos e de estímulos
a narrativa, o relato para o outro, acentua a leitura interrompida.
que torna a vivência uma experiên- Aos poucos e cada vez mais, além
cia. O leitor leva rastros do vivido da incompletude que marca o ato
no momento da leitura para depois de ler, faz-se uma leitura fragmen-
ou para fora do momento imediato tada. E aqui é preciso diferenciar a
– isso torna a leitura uma experiên- escrita em fragmentos (onde cada

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como experiência? Há livros dis- var vantagem, obter lucros pes- der a história vivida antes e siste-
poníveis e políticas culturais que soais e ganhos de poder. matizada ou contada nos livros.
favoreçam tais práticas? Quando penso na leitura como Ler uma peça de Shakespeare
Levar algo da leitura para experiência (na escola, na sala de é o mesmo que ler uma letra de
além do seu tempo, para além do aula ou fora delas), refiro-me a Roberto Carlos? Ler um conto de
momento mesmo em que se reali- momentos nos quais fazemos co- Machado de Assis traz o mesmo
za – aqui reside a dimensão de ex- mentários sobre livros ou revistas que traz a leitura de recortes de re-
periência que chamo de avesso. que lemos, trocando, negando, vistas e slogans de propaganda?
Por quê? Por considerar como ex- elogiando ou criticando, contando Faz sentido nossos jovens do Rio
periência o processo de leitura ou mesmo. Enfim, situações nas de Janeiro, por exemplo, nunca se-
de escrita (o ato, a prática, a for- quais – tal como uma viagem, uma rem incentivados a ler Gil Vicente
ma) que engendra uma "reflexão aventura – fale-se de livros e de ou Fernando Pessoa porque esses
sentida" de um coração informado histórias, contos, poemas ou per- autores não "caem no vestibular"
sobre aspectos fundamentais da sonagens, compartilhando senti- das nossas universidades?
vida humana; leitura compartilha- mentos e reflexões, plantando no Produções – teses e disserta-
da – ainda que seja com o autor – ouvinte a coisa narrada, criando ções - sobre RPG ou escrita em
daquilo que a gente pensa, sente um solo comum de interlocutores, rede me ensinam que os jovens
ou vive. Leitura que provoca a uma comunidade, uma coletivida- têm hoje outros modos e lugares
ação de pensar e sentir criticamen- de. O que faz da leitura uma expe- de ler e de escrever. Válidos, sim,
te as coisas da vida e da morte, os riência é entrar nessa corrente aí vivos e presentes. Lê-se muito,
afetos e suas dificuldades, os me- onde a leitura é partilhada e onde, sim, mas de modo disperso. E se
dos, sabores e dissabores; que per - tanto quem lê, quanto quem propi - escreve muito: no correio eletrôni -
mite conhecer questões relativas ciou a leitura ao escrever, apren- co, na Internet, nas histórias em
ao mundo social e às tantas e tão dem, crescem, são desafiados. quadrinhos, e em toda uma produ-
diversas lutas por justiça. Defendo a leitura da literatura, ção que faz uso de avanços tecno-
Ora, compreender a leitura da poesia, de textos que têm dimen- lógicos e possibilita que maior nú -
desse modo, a partir desse olhar são artística, não por erudição. Não mero de pessoas produzam e con-
teórico, tem implícito o reconheci- é o acúmulo de informação sobre sumam textos. Mas tem sido essa
mento da importância de certos clássicos, sobre gêneros ou sobre prática de escrita uma experiência,
valores menosprezados na conjun - estilos, escolas ou correntes literá- têm as pessoas aprendido com ela?
tura atual e pela sociedade con- rias que torna a leitura uma expe-
temporânea: valores tais como ge- riência, mas sim o modo de realiza- A escrita como
nerosidade, solidariedade e coleti- ção dessa leitura: ela deve ser capaz experiência
vidade – enquanto se enfatiza o de engendrar uma reflexão para
culto do indivíduo, de suas neces- além do momento em que aconte- Levar algo da escrita para
sidades e de sua esperteza em le- ce, ser capaz de ajudar a compreen- além do seu tempo significa com-

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LEITURA ESCRITA COMO EXPERIÊNCIA – SEU PAPEL NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS SOCIAIS

crever significa aqui sempre jeitos sociais que tenham valores e


(re)escrever, interferir no proces- modos de agir que hoje parecem
so, deixar-se marcar pelos traços fora de moda. A leitura e a escrita
do vivido e da escrita. (Re)escre- podem, na medida em que se con-
ver textos e histórias; ser leitor de figuram como experiência, desem-
textos escritos e da própria história penhar importante papel na forma-
pessoal e coletiva, marcando-a, ção dos sujeitos.
mudando-a, inscrevendo nela no-
vos sentidos. Leitura, escrita e
Quando penso na escrita como formação: o avesso
experiência, refiro-me a situações do avesso
nas quais o vivido assume uma di-
preender a importância da escrita mensão para além do finito, con- Desde a elaboração de Por en-
como experiência. Como se con- tando-se no texto. O que faz de tre as pedras: arma e sonho na es-
cretiza ela? Nas situações em que uma escrita uma experiência é o cola, defendo a tese de que a esco-
assume caráter de narrativa cons- fato de que tanto quem escreve la brasileira tem, de um lado, dei-
truída coletivamente, seja ela uma quanto quem lê se enraízam numa xado de considerar o que sabem e
escrita que registra ações de pes- corrente, constituindo-se com ela, fazem os professores e, de outro,
soas ou grupos que foram acompa- aprendendo com o ato mesmo de tem alijado do ensino da língua
nhados ou observados por aquele escrever ou com a escrita do outro, aqueles que fazem dela material
que escreve, seja uma autobiogra- formando-se. de produção viva. E ainda hoje,
fia, diário, relato ou história de Não creio que entender a leitu- "parece-me talvez chegada a hora
vida, chamo de experiência se e ra e a escrita como experiência (não creio ser tarde demais) de
quando a escrita permite refazer o seja saída ou solução definitiva nós, professores e pedagogos, lin-
processo, sistematizá-lo e melhor para nada. Nem me parece que güistas e gramáticos – fazedores
compreendê-lo, suavizá-lo, ven- essa concepção exclua as demais. da e crentes na língua como arma
cendo a dureza da escrita, perce- Apenas penso que pode ser forma- – ouvirmos os escritores, os poetas
bendo as contradições, incoerên- dora, ou seja, que pode contribuir – fazedores da e feitos na lingua-
cias e dificuldades existentes. Es- no processo de constituição de su- gem dos sonhos" (p.123). Refle-

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tindo sobre a aventura da leitura e papel central na história, já que a perfume comprado no melhor
da escrita, faço e refaço as mesmas volta ao passado não é feita para perfumista da cidade.
indagações: "que tipo de relação conhecê-lo, mas para, servindo-se E o cão, mexendo o rabo, o
nós temos com a língua, enquanto dele, colocar o presente numa si- que é, acho, nesses pobres se-
seres humanos que somos? Como tuação crítica (Konder, 1988, p. res, o sinal correspondente ao
aproveitar dos poetas e escritores 22). É possível e preciso mudar o riso e ao sorriso, aproxima-se
em geral a lição de viver e falar passado, ressignificando-o na lin- e curiosamente pousa o úmido
também de sonhos como de uma guagem que o presentifica; então é nariz no frasco aberto; depois
busca incessante de sentido? possível e preciso mudar o futuro, subitamente recuando de pa-
Quando iremos perceber que – conceitos que ajudam a bem di- vor, late para mim, à guisa de
sem o sonho – agimos, com as mensionar o valor que atribuímos reprovação.
crianças e com os adultos que têm à formação. Nesse contexto, desta- Ah, miserável cão, se lhe tives-
na escola a sua única chance de ca-se o papel da memória; a di- se oferecido um embrulho de
convívio com os livros, como se mensão formadora da linguagem e excrementos o teria farejado
tivéssemos um canivete nas da escrita; a leitura e a escrita con- com delícia e talvez devorado.
mãos?" (p.126). Se alguém per- cebidas como experiência e não só Assim, até você, indigno com-
guntar por que importa o sonho e como hábito, habilidade, prática panheiro de minha triste vida,
se não basta a arma para lutar, se ou relação. Procurando compreen- se parece com o público, a
não basta o ensino da língua como der o presente com o olhar ilumi- quem nunca se devem apre-
instrumento, eu diria de novo – nado pelo passado, a pesquisa visa sentar perfumes delicados que
hoje, como então – que é impor- fornecer diretrizes para políticas o exasperem, mas somente
tante e necessário o sonho não públicas de leitura/escrita e de for- imundícies cuidadosamente
apenas no sentido individual, mas mação de professores. Para fazê- escolhidas. (p.31-32)
principalmente no sentido da uto- lo, é também central a idéia de que
pia e da aposta coletiva, porque repensar o passado e o futuro su- Atualmente, quando vamos ao
põe indagar o presente, colocar o cinema, ou vemos televisão, com
graças ao sonho, a camada de presente numa situação crítica. freqüência deparamos com um pú-
poeira que recobre as coisas se Ora, falar de educação das gera- blico que ri da desgraça do outro;
dissipa, e com isso o sonhador ções hoje é muito desafiador. Mas um "público" que perdeu talvez a
se apropria da força que ema- será que o é somente hoje? No sé- sua condição de cidadania (ou não
na do mundo morto das coisas. culo XIX, já dizia Baudelaire: a conquistou?); que se perdeu da
Porque "cada época sonha não coisa pública e se deixou seduzir
somente a seguinte, mas ao so- O cão e o frasco pelas ilusões da publicidade. Per-
nhá-la força-a a despertar". Meu belo cão, meu bom cão, gunto: estão nossas crianças e nos-
(Rouanet, p. 89) meu querido totó, aproxime-se sos jovens aprendendo a rir do
A educação e a formação têm e venha respirar um excelente outro, a humilhá-lo, a não se sen-

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LEITURA ESCRITA COMO EXPERIÊNCIA – SEU PAPEL NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS SOCIAIS

sibilizar com sua dor? Estão sendo perdeu? Como recuperá-la ou re- mento e de tentativa de eliminação
(ou já foram) lentamente desuma- fundá-la? das diferenças. Não é por ingenui-
nizados? Perderam a experiência e Mas trabalhar com linguagem, dade ou romantismo que valorizo a
a capacidade de narrar? Embora leitura e escrita pode ensinar a uto- leitura literária como uma impor-
esse processo venha de longe, ele pia. Pode favorecer a ação numa tante experiência de formação. É
se tornou agudo neste século. perspectiva humanizadora, que porque julgo que, naqueles casos,
O tema provoca reflexões: é convida a refletir, a pensar sobre o tratava-se do ensino da conformi-
possível uma educação crítica da sentido da vida individual e coleti- dade e da obediência, e de uma de-
cultura? Pode-se prescindir de va. Essas questões remetem à res- formação do conceito de homem,
uma leitura crítica do mundo? ponsabilidade social que temos, no quando aqui o que está em jogo é o
Como pensar a formação no sécu- sentido de provocar – como propõe resgate da produção cultural para a
lo XXI, numa direção em que se Adorno - a auto-reflexão crítica, crítica, o avanço, a transformação.
repense o passado, a mixórdia e os engendrando situações nas quais se Ora, a humanidade não resol-
despojos da cultura? Como defen- torne possível ajudar a frieza a ad- veu seus mais básicos problemas
der uma perspectiva de formação quirir consciência de si própria, de de aceitação do outro, de reconhe-
cultural crítica e atuar nela, sem sua consciência coisificada, de sua cimento das diferenças e de garan-
perder de vista que a cultura se indiferença pelo outro. É com essa tia da pluralidade, e é contra a in-
construiu e fortaleceu como mo- meta que se justificam a leitura e a justiça e a desigualdade que mar-
numento de barbárie? Como man- escrita. Falar de alfabetização, de cam a história humana que preci-
ter a utopia e a esperança de justi- leitura e de ensino de língua mater- samos direcionar todas as nossas
ça social, solidariedade e genero- na significa, necessariamente, ter ações educacionais e culturais.
sidade? Como combater a discri- uma perspectiva de luta contra a Devemos resistir a um cotidiano
minação do outro, lutar pelo reco- barbárie. Mas ao pensar a leitura, a presente e a uma história passada
nhecimento das diferenças de to- literatura e seu papel no processo de dor e de opressão. E falo disso
dos os tipos, a não ser atuando na de humanização, contra a barbárie, não porque suponha de maneira
direção contrária à dominação, à tenho clareza de que nações "cul- leviana que a leitura, a literatura
cultura legitimada como correta, tas" e desenvolvidas cientifica e ou a poesia podem ser panacéia ou
contra a opressão? A liberdade do tecnologicamente deram ao mundo antídoto, nem para comparar si-
diálogo está se perdendo ou se um legado de barbárie, de cercea- tuações, avaliar conceitos ou pesar

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soluções. Falo disso como de uma • formação prévia em nível mé- Precisamos aprender a valori-
idéia fixa que me persegue, como dio e superior, onde é funda- zar a narrativa, a leitura e a escrita
um alerta. Continuamos assistindo mental a leitura e a escrita rela- para ler com as crianças e os jo-
a uma brutal diminuição da capa- tivas aos conhecimentos bási - vens, para escrever a história pes-
cidade de indignação, resistência e cos da língua, Matemática, soal, registrar a história coletiva,
de crítica, a uma atroz (des)huma- Ciências, História e Geografia; nos formar, lembrando que tudo
nização e perda de valores, ao pro- • formação no movimento social, isso exige trabalho coletivo.
gressivo empobrecimento do diá- fertilizando-se as lutas com a
logo. O avanço científico e tecno- sensibilidade da leitura e da Desde os meus dez anos, é
lógico do nosso século tem servi- poesia, ampliando o acesso de para mim uma espécie de dog-
do para manter mais uma vez a de- diversos grupos a elas; ma o fato de que eu consisto
sigualdade ao invés de contribuir • formação em cada escola, com de muitas pessoas, das quais
para melhorar as condições de estudo, leitura, discussão, de forma alguma estou cons-
vida da maior parte da população. abrindo horários de estudo e ciente. Creio que são elas que
E como educar os jovens neste leitura conjunta, de um lado determinam o que me atrai ou
contexto? Este é um dos nossos fortalecendo cada escola e, de me repugna nas pessoas que
desafios. Trabalhando com leitura outro, o estudo individual para encontro. Foram elas o pão e
e formação, com literatura e poe- compreender a realidade e o o sal de meus primeiros anos.
sia, este precisa ser o nosso hori- que acontece no dia-a-dia, com São elas a verdadeira vida se-
zonte: humanização, resgate da cada um escrevendo, registran- creta de meu intelecto. (Canet-
experiência humana, conquista da do a história; ti, 1987, p.105)
capacidade de ler o mundo, de es- • formação cultural, garantindo
crever a história coletiva, de ex- experiências com literatura, Assim, estou consciente de
pressar-se, criar, mudar. música, cinema, teatro, arte, que a leitura, o estudo, a escrita
Trata-se aqui da dimensão for- museus, capazes de nos huma- me ligam ao passado e ao presente
madora da leitura e da dimensão nizar e fazer-nos entender o em que estou situada. Faço minhas
formadora da escrita para além do sentido da vida para além do as palavras de Moacyr Scliar
seu caráter instrumental, de gosto cotidiano. Cinema, teatro, bi- quando diz:
ou necessidade. Assim, se penso blioteca, museu, vídeos, rodas e
na leitura e na escrita como expe- salas de leitura, resgatando a Se acharmos que não há valor
riência, é porque as entendo como história da escola, das famílias. nenhum no trabalho da pala-
espaço da indignação e da resis- vra escrita, que tanto faz um
tência, contribuindo para a forma- Mas por que precisamos es- programa de televisão como
ção dos sujeitos e para a educação crever? Mário de Andrade disse uma peça de Shakespeare, que
de professores, em diversos pla- que se escrevo é primeiro porque tanto faz uma história em qua-
nos: amo os homens. drinhos como um livro da Cla-

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LEITURA ESCRITA COMO EXPERIÊNCIA – SEU PAPEL NA FORMAÇÃO DE SUJEITOS SOCIAIS

rice Lispector ou um videoga- interações entre pessoas e delas ca, se divulga a importância de ler.
me, então teremos renunciado com os textos, beneficiando-nos Mas não tenho certeza se essa mu -
ao nosso próprio futuro." também do estudo anteriormente dança estaria ocorrendo na direção
(1995, p.176) feito com a fotografia e procuran- necessária. Pergunto se efetiva-
do olhar o cotidiano e dele tratar mente são formados leitores críti-
Depois de escrever, como constituído de fragmentos cos do mundo, pessoas que escre-
oferecer-se à que falam para além daquilo que vem e reescrevem a história. Ou se
leitura: o avesso neles é visível. Os (re)tratos anali- temos renunciado ao nosso passa-
do avesso do avesso sados das situações observadas do e, portanto, também ao nosso
não nos mostraram, porém, situa- futuro.
Na pesquisa que agora con- ções que apreciamos sempre ver. O percurso que fizemos ao
cluímos, algumas apropriações Foi, então, preciso reeducar o longo desses anos foi motivado
teóricas que fizemos do conceito olhar, esforçando-nos para não jul- pela necessidade de compreender
de experiência tiveram seu eixo gar e/ou não culpar professores e e pelo imenso desejo de contribuir.
centrado no resgate de trajetórias alunos, sempre que não encontra- Ao devolver para os professores e
vividas por professores. O papel mos o que gostaríamos de encon- escolas nossas observações e co-
da memória e a dimensão forma- trar. mentários, esperamos retribuir a
dora da entrevista foram a tônica. Por outro lado, não há dúvida eles o que nos deram, sem abrir
Na pesquisa, em seus vários proje- de que estamos assistindo a muitas mão do espírito crítico e da inquie-
tos, além de entrevistar professo- mudanças no campo da leitura; é tude que devem caracterizar o tra-
res e alunos, voltamos nossa aten- visível e crescente a sua difusão. balho da Universidade. De certa
ção às escolas, às salas de aula, às Hoje, muito se incentiva, se publi- maneira, ao fazê-lo, escrevendo-

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nos neste texto, também nos abri- dor. Aliás, apenas defendo a im-
Referências bibliográficas
mos à leitura de quem estudamos, portância e a necessidade de uma Sugestões de leitura
observamos e entrevistamos. política de educação e de cultura
ADORNO, Theodor. Educação e emanci-
Enfim, procurei argumentar comprometida com a humaniza- pação. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995.
que a leitura e a escrita podem ser ção, contra a barbárie. Leitura e ASSIS, Machado de. Contos/Uma antolo-
gia. São Paulo: Companhia das Letras,
vividas como experiência e que a escrita como uma das modalidades 1998.
literatura pode trazer a possibilida- de experiência cultural – entre ou- ANDRADE, Mário e ALVARENGA, Oneida.
Cartas. São Paulo: Duas Cidades,
de de pensar a experiência vivida, tras – que deveriam ter também na 1983.
BAKHTIN, M. Estética de La Creación Ver-
ampliando o raio da nossa ação e escola o seu lugar de realização. O bal. Argentina: Siglo Veintiuno,1982.
da nossa reflexão. Porém, reco- problema não está no fato de pes- . (VOLOSHINOV, V. N.). Marxis-
mo e Filosofia da Linguagem. São Paulo:
nheço que são muitas as contradi- soas não escreverem ou lerem nar- HUCITEC,1988.
BAUDELAIRE, Charles. O spleen de Paris:
ções. Se as modernas tecnologias rativas ou não terem aprendido o
pequenos poemas em prosa. Rio de
incentivam o consumo, elas tam- gosto da poesia. O problema está Janeiro: Imago, 1995.
BENJAMIN, W. Obras escolhidas I - magia
bém aumentam o número de pro- em que isso pode ser um sintoma e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1987a.
dutores. A TV cerceia, massifica, do nosso processo de desumaniza-
. Obras escolhidas II - Rua de
uniformiza, mas divulga, informa ção. mão única. São Paulo: Brasiliense,
1987b.
e incentiva a própria leitura. Se algumas das idéias e pro- CALVINO, Italo. Palomar. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1999.
Ao colocar lado a lado concei- postas aqui apresentadas parecem
CANETTI, Elias. A língua absolvida: história
tos teóricos e imagens literárias, difíceis de alcançar, vale a pena de uma juventude. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 1987.
ao transcrever trechos de prosa e trazer de volta Mário Quintana, JOBIM e SOUZA, S. Infância e linguagem -
Bakhtin, Vygotsky e Benjamin. São
poesia, pretendi fazer deste mo- lembrando que: Paulo: Papirus, 1994.
mento também uma experiência Se as coisas são inatingíveis... ora! KRAMER, S. Por entre as pedras: arma e
sonho na escola. São Paulo: Ática,
com a literatura. Pois apenas de- Não é motivo para não querê-las... 1993.
KRAMER, S. & JOBIM e SOUZA, S. (Org.).
fendo a leitura literária pelo seu Que tristes os caminhos, se não fora Histórias de professores: leitura, escrita e
potencial humanizador e forma- A mágica presença das estrelas! pesquisa. São Paulo: Ática, 1996. KRAMER,
• S. e LEITE, M. I. (Org). Infância e produção
cultural. Campinas: Papirus,
1998.
KONDER, L. Walter Benjamin: o marxismo
da melancolia. Rio de Janeiro: Ed.
Campus, 1988.
OSWALD, Maria Luiza. Aprender com a li-
teratura: uma leitura benjaminiana de
Lima Barreto. PUC-Rio, Tese de Doutora-
do, 1997.
ROUANET, Sérgio Paulo. Édipo e o anjo: iti-
nerários freudianos em Walter Benja-
min. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1981.
SCLIAR, Moacyr. A função educativa da
leitura literária. In: ABREU, Márcia (Org.).
Leituras no Brasil. São Paulo: Mercado
das Letras, 1995.

v.6 n.31 • jan./fev. 2000 • PRESENÇA PEDAGÓGICA • 27

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