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Experiências de leitura em espaços em crise: a alteração da subjetividade por meio da

leitura literária

Izandra Alves1
Fabiane Verardi Burlamaque2

Introdução

O poder da leitura enquanto possibilitadora de formação e transformação, como teoriza o


pesquisador espanhol Jorge Larrosa (2003), já está mais do que comprovado. Inúmeras são as
pesquisas que apontam o quão importantes são as ações/intervenções de leitura junto a crianças,
adolescentes e jovens a fim de contribuir para sua formação leitora, além de apontar a mudança
significativa em suas vidas a partir do contato com livros. Os mediadores de leituras – que na
maioria das vezes são os professores – têm essa importante tarefa de contribuir para resgatar as
memórias leitoras daqueles com os quais dividem as experiências de leitura. É, portanto, através da
alteridade que se constitui a experiência.
Contudo, o que não é tão comum de presenciarmos são ações que promovam a experiência
de leitura nos chamados espaços em crise. A pesquisadora francesa Michèlle Pettit (2009) trabalha
com essa terminologia para explicar que há espaços que representam a crise, ou a instabilidade, seja
ela social, familiar e/ou econômica a que os sujeitos estão submetidos por um determinado período
de suas vidas. Por conta disso, acreditamos que são exatamente os habitantes destes espaços os que
precisam ser tocados pelo poder formador e transformador da leitura, a fim de serem “formados” e
“transformados” por ela.
Por acreditar que as experiências de leitura, quando protagonizadas por jovens que vivem
nos chamados espaços em crise, podem apontar para uma alteração em suas subjetividades a ponto
de contribuir pra a (re)construção de si é que minha pesquisa nasceu. Os sujeitos pesquisados neste
trabalho são adolescentes internos da Fundação Case, Caxias do Sul, RS, que participam de
1 Professora do IFRS, campus Feliz, doutoranda em Letras, pela UPF e bolsista Capes. E-mail:
izandraalves@hotmail.com .
2 Doutora em Letras, coordenadora do PPGL da UPF, professora do Curso de Letras da UPF. E-mail:
fabianevb@uol.com.br .

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intervenções semanais de leitura literária e que também mesclam músicas de distintos gêneros. É,
portanto, através de uma pesquisa-ação que pretendemos verificar em que medida esse contato com
a leitura literária e com as memórias de leitura podem realmente interferir nessa (re)construção
subjetiva do sujeito que se vê em espaços de crise.

A leitura nos espaços em crise: uma experiência

Que a leitura é importante, todos sabemos. Que ler é a possibilidade de vivermos muitas
vidas, todos já experimentamos. Que é através da leitura que podemos nos descobrir enquanto
sujeitos e nos reafirmarmos cidadãos de um mundo que nós mesmos podemos (re)criar a partir do
que lemos, nem todos são sabedores. Que através da experiência da leitura é possível se
(re)construir porque fomos tocados pelo que lemos a ponto de não mais nos vermos os mesmos de
antes, nem todos conseguem.
Há, ainda, a questão do vínculo entre o mediador de leitura e o leitor que são fatores de
muita relevância para que a experiência se realize. Nesse sentido, Patrícia Pereira Leite, Psicóloga
Clínica e Psicanalista do Instituto de Psicanálise de São Paulo e também coordenadora e fundadora
do Centro de Pesquisas e Estudos em Leitura e Literatura A Cor da Letra, em texto escrito para
conferência no Salão do livro, em Paris, explica que

Mediação de leitura é uma situação em que duas ou mais pessoas estabelecem uma relação
por meio da leitura de histórias e do contato com os livros de literatura. A leitura de um
texto é infinita, mas o momento em que o mediador compartilha com a criança a leitura, a
troca de experiências que este ato envolve é único, porque inclui o vínculo ali estabelecido.
(LEITE, 2005, p. 01)

O grande poder formador/transformador da leitura é sentido ainda mais intenso quando se


vive situações muito conflituosas, em crise intensa. Sabemos que o mundo é uma crise permanente,
mas há momentos em que isso se torna mais evidente, e é nesses momentos que grande número de
pessoas busca nos livros um auxílio, um socorro, um apoio para se reencontrar e reconstruir. Foi o
que aconteceu, por exemplo, nos Estados Unidos, após o terrível “11 de setembro”, quando, de
acordo com o que publicaram os jornais do período, as pessoas buscaram também nas bibliotecas e
nos livros o consolo e as motivações para seus dias.

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Somos sabedores que o mundo vive em tempos permanentes de crise: são as desigualdades
sociais, as disparidades de todas as instâncias, a extensa proporção que têm tomado as migrações
fazendo com que homens, mulheres e crianças percam suas identidades culturais, rompam com
laços afetivos relativos ao seu lugar de origem, a criminalidade, os horrores da guerra entre outros.
Contudo, vemos muitos exemplos positivos em meio a situações de crise extrema, quando as
pessoas buscam forças para se reconstruírem; nessa hora, os improváveis buscam formas de
superação. Mas, qual seria o lugar que ocuparia a leitura em contextos de crise? Poderá ela garantir
forças de superação?
A fim de discutir essa questão da literatura poder atuar como agente positivo no auxílio de
pessoas que vivem em espaços de crise, a pesquisadora Michèlle Pettit (2009) diz que “em tais
contextos, crianças, adolescentes e adultos poderiam descobrir o papel dessa atividade na
reconstrução de si mesmos e, além disso, a contribuição única da literatura e da arte para a atividade
psíquica. Para a vida, em suma” (PETTIT, 2009, p. 22).
É, portanto, do improvável que se podem extrair grandes resultados. Lugares, espaços,
territórios excluídos e, quase sempre, abandonados pelo sistema governamental e acadêmico
podem, sim, dar boas respostas, podem apresentar resultados satisfatórios e, por vezes,
surpreendentes. No caso específico de minha pesquisa de doutorado, desenvolvida em um espaço
em crise – Fundação de Amparo Sócio Educativo –, onde o que os adolescentes mais veem são
grades, grades e grades, através do contato com os livros e com a leitura, passam a ver muito mais
do que isso, enxergam possibilidades e voltam a sonhar com o futuro. Além disso, as experiências
de leitura

tiram cada um de sua solidão, fazem-no compreender que esses tormentos são
compartilhados pelos que estão ao seu lado, mas também por aqueles que encontra nas
páginas lidas ou por quem as escreveu. Em mais de um caso, essas experiências literárias
contribuem para a formação de uma sensibilidade e uma educação sentimental. (PETTIT,
2009, p. 165)

Infelizmente, somos sabedores de que muitas das ações/intervenções/experiências de leitura


promovidas em hospitais, presídios, mesmo tendo partido de uma boa intenção, são apenas ações
que visam o entretenimento e a distração daqueles que habitam estes espaços em crise. Válida,
certamente, a leitura deleite é uma das formas de também assumir outros papéis e fugir da crise.

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Contudo, não se basta, não se completa, pois logo adiante será preciso mais e mais.
Se a experiência parte de um “ex”, conforme explica Larrosa (2011), está vinculada a
alguém que não sou eu. É um outro, uma alteridade, que participará comigo daquilo que vai se
passar comigo, a minha experiência. É, portanto algo que não depende de mim; contudo, só
acontecerá se eu estiver aberto, sensível a essa recepção, a essa aceitação da experiência, pois ela se
passa em mim. É assim que se constrói/manifesta a subjetividade.
Desse modo, se as atividades relacionadas à leitura, realizadas com pessoas que vivem em
espaços em crise não levarem em consideração a relação de alteridade, não haverá a possibilidade
de atingir o sujeito de forma completa. A relação será apenas de deleite. Não há como realizar uma
experiência de leitura se nos preocuparmos apenas com o “que”, ou com o “como” disse o autor
sobre tal coisa do texto lido. O que importa realmente é o modo como o que disse o autor poderá
influenciar/transformar as minhas próprias palavras. Como as palavras que li poderão me ajudar a
dizer o que ainda não consigo dizer. Assim, a experiência realmente terá se efetivado.

As intervenções no espaço em crise: o processo

De acordo com buscas em banco de dados de teses das mais importantes universidades
brasileiras, notamos que são muito raras, no Brasil, as pesquisas que tratam das experiências de
leitura compartilhadas com grupos de adolescentes que vivem em espaços em crise e que procuram
resgatar a individualidade e a (re)construção da subjetividade desses jovens privados de liberdade
através de práticas de resgate cultural e de memórias de leitura. O que temos conhecimento é de
grupos que atuam em escolas de periferias ou em ONGs e que trabalham a leitura como terapia,
como uma forma de deleite ou como libertação da opressão social, mas pesquisas que acontecem
dentro dos Centros de Atendimento Sócio Educativos que visem à modificação da subjetividade
desses indivíduos ainda são raras ou inexistentes.
Por conta disso, o desafio que me propus, e que está a cada dia mostrando a riqueza das
possibilidades e infinitas descobertas, exige de mim – mediadora das ações e alteridade, junto com
o autor do texto, desses sujeitos da pesquisa – um cuidado especial na seleção do material de leitura
a fim de estabelecer o contato entre texto e leitor a ponto de ver que a experiência de leitura

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realmente atingiu suas subjetividades. Para tanto, o passo a passo do processo de construção e
realização das ações é muito importante e delicado, pois estamos lidando com memórias,
sentimentos, medos, desejos e aspirações de quem há algum tempo está afastado dos sonhos e da
fantasia e vivendo uma dura e triste realidade de exclusão, violência e isolamento.
Assim, a metodologia da minha pesquisa está embasada em dados empíricos, coletados
através de uma pesquisa-ação. Em encontros semanais, que somarão 30 horas, chamados de
“intervenções literárias”, estamos desenvolvendo as atividades, com um grupo de quinze
adolescentes internos da Fundação Case de Caxias do Sul. Nos encontros, estão sendo trabalhados
textos literários de diferentes gêneros separados por temáticas: felicidade, música, amor, amizade,
escola, racismo, Brasil, infância, família, esporte, leitura, imaginação, liberdade e intimismo. Antes
de se iniciarem as intervenções, os adolescentes preencheram uma ficha de dados pessoais que
investiga acerca da infância leitora bem como da família enquanto primeiro espaço que se dedica à
transmissão cultural. No primeiro encontro com o grupo, descreveram algo que complete essa
questão (que aqui chamaremos de “Pré-intervenção”): “Sou assim:”. Nos encontros que seguem,
durante cada mediação de leitura, os adolescentes são convidados a se expressarem na escrita e
também de diferentes maneiras (oralidade, dança, rap, desenho) a fim de completar a seguinte
expressão: “Depois da intervenção de hoje, me sinto assim:”. Por fim, no último encontro, o grupo
voltará a falar/escrever/desenhar sobre a expressão inicial “Sou assim:”, que agora chamaremos de
“Pós-intervenção”. Além do material elaborado pelos adolescentes, eu também escrevo meu “Diário
das intervenções”, no qual, a cada encontro, relato todas as informações relevantes para a pesquisa,
a partir das minhas observações individuais.
De posse desses dados será possível traçar o perfil desses adolescentes privados de liberdade
e apontar de que modo a leitura literária pode (ou não) interferir em suas subjetividades. Através da
análise de seus escritos observaremos de que modo cada temática abordada nos encontros foi
relevante para a reconstituição de suas memórias e para projetar suas ações a partir daí.
Mapearemos todos os seus escritos, observando a repetição de termos e o surgimento de outros que,
de acordo com a temática e os textos abordados, possam ter relação com a (re)construção de suas
subjetividades. Na escrita final, quando cada adolescente se reapresenta, pretendemos comparar o
que haviam falado sobre si antes dos encontros e o que dizem agora. Também queremos comparar

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os escritos dos adolescentes entre si, levando em conta questões como idade, constituição familiar e
questões econômicas, a fim de ver o que se repete entre eles e o que os diferencia enquanto
pertencentes a um mesmo grupo e com características semelhantes, realizando uma mesma
experiência.
Para dar sustentação teórica à pesquisa busquei nos escritos da pesquisadora da área de
leitura em espaços em crise Michèle Pettit, além de Michel Peroni e Eliana Nunes. No que se refere
às experiências de leitura e às relações com a subjetividade do leitor, Jorge Larrosa e Marilena
Chauí dão a sustentação. Sobre os conceitos que giram em torno da leitura e sua recepção temos
Vincent Jouve, Wolfgang Iser e Hans Robert Jauss.

Conclusões

Quando os resultados não são medidos em números, não podem ser verificados e
comprovados por fórmulas exatas, tudo se torna mais desafiador. Isso porque estamos tratando de
observações e análises que verificam as mudanças nas subjetividades de sujeitos. E se pensarmos
em quem são os sujeitos, mais delicada ainda é a situação, pois os adolescentes que fazem parte da
minha pesquisa são, na maioria das vezes, esquecidos pelas famílias (o que se comprova nos relatos
que eles mesmos fazem), pelo poder público (possível de verificar pelo descaso com os serviços
prestados nas instituições) e também pela sociedade (que os julga como bandidos que estão
frequentando a escola do crime para poder retornar às ruas).
Dessa forma, a literatura, ao mexer com suas subjetividades, tem um compromisso grande,
pois está aí para ser o reflexo de suas vidas. É através desses textos que eles se identificam, se
reencontram e que se projetam. Percebem que seus mundos não são tão distintos daqueles que estão
além das grades, mas que é apenas uma questão de oportunidades.
Assim, facilitar o encontro desses adolescentes e jovens com a leitura tem sido uma
experiência agregadora, uma possibilidade de humanização, de colocar-se no lugar do outro. Saber
que um texto lido foi capaz de fazer com que um menino privado de liberdade olhe para dentro de si
e recupere algo que estava tão bem guardado, há muito tempo, e que lhe fazia feliz e que, agora,
vivendo nesse espaço em crise, consegue trazer à tona e ressignificar, faz a minha pesquisa ter

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valido a pena.

Referências

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