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Nesses dois períodos mencionados, essa escrita era bastante restrita a alguns
seguimentos da sociedade, o das pessoas alfabetizadas e letradas – isto é, pessoas que
tinham a escrita como elemento presente na sua vida, exercendo com frequência práticas
de leitura e escrita –, especialmente aquelas atuantes no campo da Filosofia ou da Religião.
Arfuch (2010, p. 15), afirma que há pouco mais de dois séculos, temos uma
“obsessão por deixar impressões, rastros”, o que revelaria como característica marcante
desse tempo o interesse pela singularidade e, ao mesmo tempo, uma busca de
transcendência. Para a autora, na contemporaneidade, a experiência da escrita
autobiográfica se generaliza e se materializa, conforme ressalta a autora numa pluralidade
de gêneros discursivos e textuais já consagrados, aos quais vêm se juntar novos gêneros,
produzidos no âmbito da cultura contemporânea. No primeiro grupo estariam biografias,
autobiografias, confissões, memórias, diários íntimos, correspondências; no segundo, as
formas mais recentes, tais como entrevistas, conversas, perfis, retratos, anedotários,
testemunhos, histórias de vida, relatos de autoajuda, variantes do show – talk show, reality
show, entre outros.
Para Rastier, a unidade linguística fundamental é o texto, que está entre a unidade
superior, o corpus, e as unidades inferiores, signos, frases. Para analisar um texto, fazer
sentido com ele, é preciso, portanto, considerar tanto as unidades inferiores, 44 Texto
original escrito em francês, traduzido para fins didáticos pelo Professor Dr. Luiz Francisco
Dias.
Esta nota vale para todas as citações desse texto. 73 que o constituem, quanto a
unidade superior, que o contextualiza. Nas palavras do autor, “é preciso articular a
macro-semântica que fundamenta a descrição do texto a uma intersemântica que trata das
relações entre textos”, mediadas pelo gênero (RASTIER, 1998, p. 108). A identificação que
se dá entre textos é caracterizadora de um gênero, e ela se dá tendo em vista a existência
de regularidades nesse “modo semiótico das práticas ordinárias”. Esta concepção de
gênero se apresenta como pertinente a este trabalho, pois opera com a noção de memória
no momento em que convoca o conceito de intertexto, relacionado ao conceito de corpus. A
atribuição de sentidos a um texto, tanto pela leitura quanto pela escrita, dependem dessa
memória de unidades inferiores (categorias linguísticas) e dos traços socialmente
reconhecidos como aqueles que agrupam os textos em gêneros específicos, isto é das
regularidades pertinentes a cada gênero. A concepção de Rastier, então, permite um
diálogo com a perspectiva enunciativa da Semântica da Enunciação, cujo referencial teórico
embasa nossa reflexão. Essa Semântica, lembramos, considera a historicidade da
linguagem e entende “a enunciação como o acontecimento histórico de funcionamento da
língua” (GUIMARÃES, 1998, p. 114). Nesse funcionamento, a língua é “movimentada pelo
interdiscurso, pela memória da língua” (GUIMARÃES, 1996, p. 27), e, nesse movimento, as
formas linguísticas vão se constituindo historicamente, vão se tornando o que são pela
história de seu funcionamento (Ibidem). Por formas linguísticas aqui, entendemos não só os
signos e as frases, mas também os enunciados e o texto, na sua configuração de gênero.
Pensamos que é possível fazer um paralelo entre as três entidades que Lejeune
considera identificadas pelo pacto autobiográfico – autor, narrador e personagem central – e
aquelas consideradas na divisão do sujeito do discurso proposta por Ducrot (1987), em
decorrência de sua teoria polifônica da enunciação. Ducrot divide o sujeito em: sujeito
empírico, ser real, material, pertencente ao mundo extralinguístico; locutor, o eu do
discurso, aquele que é apresentado como responsável pelo enunciado; e os enunciadores,
vozes responsáveis pelos pontos de vista presentes no discurso. Ao 76 fazermos esse
paralelo, dizemos que podemos considerar que, para a constituição de gêneros
autobiográficos, precisamos, autor e leitores, estar em acordo acerca da existência de
identidade entre o sujeito empírico, que escreve o texto, o locutor, que se apresenta no
discurso como responsável pelos enunciados que integram a narrativa e, pelo menos,
alguns enunciadores. Essa identificação está na base da definição da temática do “eu”
como a temática dos gêneros autobiográficos. Assumimos com Lejeune que essa
identificação é um dos elementos centrais para o reconhecimento dos gêneros
autobiográficos, que desenvolvem uma temática do “eu” e têm uma função autobiográfica.
Assumir isso tem consequências para a orientação da reescrita do texto da informante, no
sentido de que ele deve se articular de forma a deixar explícito esse efeito de identificação.
Esses são, em linhas gerais, os traços que têm sido considerados na condução do
processo de letramento, o que nos deu mais liberdade para, nesse processo, levar em
conta as escolhas da informante.