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significação
DLM-USP
Aqui vale lembrar as reflexões de Paulo Freire sobre as relações entre ‘palavra’ e
‘mundo’. Freire (2005:151) fala de maneiras ‘ingênuas’ de ler o mundo baseando-se no
sentido comum, onde os significados são tomados como ‘dados’, ‘naturais’,
incontestáveis e representam uma forma de saber elaborado a partir da “experiência”.
Freire contrasta essa forma de saber “ingênuo” com um saber mais “rigoroso” e
analítico, produto de reflexão crítica, e fala da necessidade pedagógica de se afastar de
leituras ingênuas do mundo para desenvolver leituras mais críticas calcadas na
importância de aprender a escutar/ouvir. Freire, em tempo nos lembra que “... no
fundo, não é falando que eu aprendo a falar, mas escutando que eu aprendo a falar”
(2005:157). Isso faz parte do desenvolvimento do processo político de reflexão crítica
que Freire definiu como conscientização – um entendimento politicamente consciente
do mundo sócio-histórico e sua relação com a leitura e a construção do conhecimento
através de um entendimento da linguagem e os processos de formação de significação
(2005:242). Para Freire, essa consciência crítica da relação palavra-mundo, de forma
diferente da consciência ingênua, do senso-comum de simplesmente “estar no mundo”
envolve a consciência da conexão e da diferença entre estar no mundo e estar com o
mundo.
Isso significa que já não basta entender o letramento crítico como um processo de
revelar ou desvelar as verdades de um texto construídas e tendo origem no contexto do
autor do texto. Entendemos agora que o processo é mais amplo e complexo: tanto o
autor quanto o leitor estão no mundo e com o mundo. Ambos - autor e o leitor - são
sujeitos sociais cujos “eus” se destacaram de e tiveram origem em coletividades sócio-
históricas de “não-eus”. Torna-se importante agora perceber como esse fato interfere,
influencia e contribui para a produção da escrita do texto e a produção da leitura do
texto. Ou seja, o letramento crítico não pode mais se contentar apenas em entender
como o texto está no mundo; ele precisa também entender como o texto e a leitura do
texto estão com o mundo nos termos de Freire. Dito de outra forma, o processo de ler
criticamente envolve aprender a escutar não apenas o texto e as palavras que o leitor
estiver lendo mas também - e talvez mais crucialmente no mundo de conflitos e
diferenças de hoje - aprender a escutar as próprias leituras de textos e palavras. Isso
quer dizer que ao mesmo tempo em que se aprender a escutar, é preciso aprender a se
ouvir escutando. Ler criticamente implica então em desempenhar pelo menos dois atos
simultâneos e inseparáveis: (1) perceber não apenas como o autor produziu
determinados significados que tem origem em seu contexto e seu pertencimento sócio-
histórico, mas ao mesmo tempo, (2) perceber como, enquanto leitores, a nossa
percepção desses significados e de seu contexto está inseparável de nosso próprio
contexto e os significados que dele adquirimos. É assim que podemos apreciar em toda
a sua plenitude a complexidade da relação freireana palavra-mundo.
Essa acepção de ‘letramento crítico’ como um ato que não se limita a revelar ou
desvelar as condições de produção do texto lido necessita por sua vez de outra acepção
do conceito de ‘crítica’. Se, segundo Hoy (2005), o conceito tradicional de crítica se
referia a um processo que almejava um entendimento inequívoco e claro, obtido através
do desvelo de sentidos subjacentes e mascarados do texto (todos com origem no
contexto de produção do texto), essa outra acepção - que Hoy chama de “pós-crítica” –
enfatiza o fato de que tanto a escrita quanto a leitura são atos de produção de textos
(enquanto unidades de significação). Sendo assim, tanto o autor quanto o leitor são
produtores de textos e produtores/construtores de significação através da linguagem. E
como já foi explicado acima, nossos significados e valores tem origem nas
coletividades/comunidades ás quais pertencemos. Portanto, uma análise pós-crítica é
aquela que focaliza a genealogia ou origem dos significados que atribuímos a textos e
das leituras que produzimos, enquanto autores e leitores de textos.
Para Freire, o letramento crítico deve promover essa percepção da temporalidade e das
origens genealógicas da linguagem e do conhecimento como tendo origem na história
do conjunto de comunidades ao qual se pertence. O letramento crítico deve promover a
percepção resultante de que essa história, longe de ter acabado, constitui e afeta a
percepção do presente. Uma vez trazida á reflexão crítica, essa percepção da ação do
passado na produção de significação no presente poderá contribuir para a transformação
dos possíveis efeitos negativos atuais dessa produção em efeitos mais positivos e
desejáveis para o futuro: “Os homens se relacionam com seu mundo de uma forma
crítica. Eles apreendem os dados objetivos de sua realidade através da reflexão e não
por reflexo... no ato de percepção crítica, os homens descobrem sua própria
temporalidade. Transcendendo uma dimensão única, eles alcançam lá atrás o ontem,
reconhecem o hoje e assim deparam com o amanhã” (Freire 1990:3).
Quanto a isso, vale lembrar que a produção de significação não é um ato aleatório e
voluntarioso de indivíduos independentes: pelo contrário, a produção de significação é
um ato complexo sócio-histórico e coletivo no qual cada produtor de significação
pertence simultaneamente a diversas e diferentes comunidades que constituem um
conjunto social coletivo.
Isso ocorre pela razão seguinte: se, como já vimos, a produção de significação sempre
ocorre em contextos sócio-históricos específicos, produto de determinadas comunidades
e suas histórias, cada produção de significação de cada comunidade adquire então sua
validade apenas em dado momento histórico dessa comunidade. Por exemplo, se ao
longo da história de uma determinada comunidade produziram-se significações
múltiplas e diferentes, a validade de cada produção está restrita ás condições temporais
e sociais específicas daquela comunidade; assim uma produção num dado momento
temporal do passado da comunidade pode ter um valor diferente (para mais ou para
menos) de outra produção em outro momento mais recente.
Além do mais, enquanto que uma determinada leitura possa ser válida para uma
comunidade específica constituinte do conjunto social – uma comunidade religiosa, por
exemplo, – a mesma leitura pode não ser válida para outra comunidade ou nem sequer
para o conjunto social todo constituído por várias comunidades. Veja o caso de questões
de cunho religioso como o aborto ou planejamento familiar que, embora em termos do
conjunto social possam ter valores múltiplos e variáveis (a favor ou contra), em cada
comunidade o valor dado á questão pode ser único e restrito (ou a favor ou contra).
Portanto, é importante no letramento crítico não confundir a multiplicidade de leituras e
seus valores com a ausência de fatores ‘redutores’ como a genealogia e o pertencimento
social que reduzirão em determinados contextos essa multiplicidade potencial.
Para concluir, o que pode contribuir essa acepção de letramento crítico para
ensinar/aprender a lidar com situações de conflito e confrontos com a diferença?
Primeiro, ele propõe que as verdades e valores dos outros, como os nossos, são também
produtos das suas comunidades e de suas histórias - diferentes, portanto, de nossas
verdades e valores - mas igualmente fundamentados. Sendo assim, diante de situações
de conflito com outros de valores diferentes, surge a importância de aprender a escutar,
nos termos de Freire; aprender a escutar não apenas o outro, mas também a escutar nós
mesmos ouvindo o outro. O que implica o processo de escutar o outro? Como a nossa
genealogia e pertencimento sócio-histórico interferem nesse nosso processo de escutar o
outro? Como as relações de poder nos unem ou nos separam? Como a genealogia e o
pertencimento sócio-histórico do outro interferem em seu processo de produção de
significações e em se processo de nos escutar?
Bibliografia
Bakhtin, M. (1978) Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, Hucitec
Vattimo, G. (2004) Nihilism and Emancipation: ethics, politics and the law. New York,
Columbia University Press
White, S.K. (2000) Sustaining Affirmation: the strengths of Weak Ontology in Political
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