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Justificativa Projeto
Prometo ser gentil não nasceu como projeto de livro, nasceu como solução a uma
sequência de ensaios que eu vinha escrevendo “sem sucesso” nas oficinas. Sem muita
compreensão do grupo aos textos apresentados, resolvi escrever algo completamente dife-
rente e entregar. O texto em questão é o último capítulo deste livro – ainda sem ter sido
trabalhado novamente e sem ter recebido o cuidado necessário para ocupar as últimas
páginas de um livro.
Mas foi a partir dessa escrita que eu encontrei o que seria o projeto de escrita do
curso do Vera. Inicialmente, pensei no que poderia ser a narrativa (tracei uma sequência
de temas que eu gostaria de abordar), e como eu poderia estruturar o projeto. Claro que
ele foi ganhando formato ao longo das oficinas e foram as oficinas que me ajudaram a
fortalecer o fio da narrativa. O que estou escrevendo? Qual é a história deste livro? Quem
é a personagem principal?
A mim, ressoava a frase da escritora Clarice Lispector “Sair de si pra ver como
é que é o outro”. Eu não queria contar a minha história ou falar sobre mim em primeira
pessoa. Queria a voz do outro. Mas como dar voz a outra pessoa? O que é dar voz na li-
teratura? É criar um jeito novo de falar ou é ceder linhas para que o outro conte sua
história? Sua versão.
Talvez este desafio tenha sido o que mais me mobilizou no projeto. Ou dos mais.
O segundo, foi a escolha de ter minha mãe como voz da narrativa. A ideia de dar a minha
voz a ela era desafiadora e fez com que eu experimentasse muitas formas de escrever até
chegar onde cheguei e me sentir mais confortável.
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Em primeiro plano está ela, uma mulher que tanto viveu e tão pouco falou/ contou
sobre suas “aventuras”. Uma mulher que passou por muitas situações comuns às mulheres,
como abuso sexual, traição, casamento e separação, enfim, cenas que se repetem na vida
de muitas “Marias”. Uma mulher que foi colecionando fragilidades ao longo da vida e eu
queria enaltecê-las, ainda que pareça uma contradição da própria palavra. Como é que a
gente pode tornar grande as feridas? As dores.
O projeto/ livro é isso: a história de uma mulher, nascida numa família de fazendei-
ros de café no interior de São Paulo que, durante anos, viveu a separação conturbada de
seus pais, conviveu com uma mãe que a queria como confidente de seus casos, passou por
abusos, foi morar fora no país na tentativa de fugir da realidade da sua própria vida, viveu
momentos incríveis da década de 60/70, amou, foi traída, desesperançou, teve filhas, se
tornou avó, perdeu e reencontrou o sentido da vida, sentiu as dores da idade do corpo.
Viveu.
A esta história cruzam-se outras duas, da minha avó, Norma que é mãe de Yolanda,
e a minha, filha de Yolanda e neta de Norma. Como exercício e brincadeira com a litera-
tura de não ficção, cruzei também os nomes dessas três mulheres para transformá-las em
personagens. Por exemplo, Yolanda, personagem principal, carrega parte do nome de sua
mãe na vida real que é Norma Yolanda. Ou seja, os nomes que vocês veem na narrativa
não são os nomes reais das três mulheres que aparecem na narrativa. Eles sempre car-
regam algo da outra. Porque “eu sou vários, há multidões em mim”, escreveu Friedrich
Nietzsche.
O projeto traz um tanto de ficção e isso é dito numa carta de abertura do livro em
que eu digo o que vou fazer ao longo de toda escrita. Eu sou a voz do outro ou eu dou voz
ao outro – a Yolanda. Isso me permite cobrir lacunas, inventar ou imaginar aquilo que não
sei. Muito do que eu tentei fazer – e acredito que fui fazendo – foi resultado das inúmeras
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Existe uma dimensão social na não-ficção que a ficção não suporta. Claro que me
lembro – e aprendo – com Annie Ernaux. Emilio Rens que propõe contar memórias por um
fato, mas deixando com que o escritor procure arquivos para preencher as lacunas. Além
do distânciamento proposto na construção da persona do texto.
De novo, com exceção dos capítulos que abrem e fecham o livro, todos os outros
você me terá abrindo o cada um e depois entra a voz de Yolanda que foi recriada. A téc-
nica que eu usei foi ao final de cada relato meu, introduzir o tema de Yolanda que viria
a seguir e ali eu digo como e por que estou fazendo isso. Eu explico e explicito ao leitor
o que virá a seguir no relato de Yolanda. As passagens de voz exigem uma certa atenção
do leitor e exigem que ele lembre o compromisso que eu firmo no início do livro com a
escrita da carta.
Capítulo 5 eu apresento a Norma. Quem é essa mulher, o que ela deixa de herança
para Yolanda e sua história? Aqui ainda estou enroscada na cena do tango. Não consegui
desenvolvê-la como eu gostaria. A mim, ainda parece um pouco lugar-comum. Depois
histórias de amor e as rupturas que vêm com elas. As famosas dores do amor e suas desi-
lusões, no melhor clichê. Capítulo 6, os segredos que a vida guarda, que a gente guarda. A
vida cotidiana de uma mulher com seus 50 e poucos anos, duas filhas, divorciada.
Esse penúltimo capítulo também tenho dúvidas se entrelaçar as três mulheres (Nor-
ma Maria, Yolanda Maria e Maria Carolina) é uma boa, até porque nem sei como faria
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isso e não quero confundir mais o leitor. Já dei trabalho suficiente a ele. Talvez depois que
eu conseguir avançar nos capítulos, amadurecer os próximos textos, surja algo com mais
sentido aqui.
E para fechar o projeto/ livro, o primeiro texto da oficina que ainda precisa ser tra-
balhado. Precisa crescer, ganhar mais corpo, mas a estrutura dele está aí, pronta. Termino
– sem terminar - o livro com essa fuga, com essa mulher que busca saídas e que sai de cena.
“Sai de cena”. Termino, sem terminar este projeto porque Yolanda saiu de cena na
vida real e essa escrita não pode se dar pela dor do luto. Não era ele o fio condutor, não
foi o luto que sustentou a escrita de nenhum capítulo até aqui. Não será o luto que dará
continuidade a essas duas vozes que conversam nessas páginas. Portanto, eu, escritora e
narradora também preciso sair de cena para me distanciar da dor e poder voltar ao projeto
sendo capaz de puxar o mesmo fio. De garantir a sustentação da voz de Yolanda. A voz do
outro. Não a minha.
Isso acontece porque a proposta não era exercitar personagens ou criar diferentes
vozes de personagens/ narradores. O desafio era dar voz, emprestar a voz de uma narra-
dora a outra. Como uma passagem de bastão, mas onde as duas se mantêm de mãos dadas.
Foi possível? Cheguei a este lugar? Será que o leitor mais atento consegue perceber esse
jogo que foi proposto?
O projeto também propõe um flerte com a ficção toda vez que entra a voz de
Yolanda com a possibilidade – e a permissão – de inventar. De cobrir lacunas a partir de
pequenas pistas, de um contexto imaginário da autora. Um quarto gênero literário que
hoje sinto ter caído numa vala comum. Todo mundo agora escreve autoficção. Isso é uma
autoficção? Não penso ser, pois a história não gira em torno da autora-narradora e sim
desta outra voz.
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É esta voz que entrega ao leitor o cotidiano, a vida, de uma mulher ordinária por
vezes extraordinária. E é aqui, neste e nestes relatos, que o leitor também poderá se encon-
trar. Ainda que esse nunca tenha sido um objetivo da escrita, ao longo dela, fui tomando
consciência dos contextos sociais femininos ali narrados e carregando na força deles den-
tro da voz de Yolanda. Também é aqui, para mim, que aparecem os contextos sociais de
uma época, outra característica da escrita de não ficção.
De novo, eu digo que o projeto é um flerte da não ficção com a ficção. Tendo como
desafio manter esse fio ao longo de todos os capítulos, páginas já escritas e as que virão.
E tudo com muita gentileza. Eu prometi ser gentil.
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