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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL


CINEMA E AUDIOVISUAL - LICENCIATURA

Marcela Santoro Müller Belchior

Violência feminina em cena: a subversão do "rape revenge" em


Violation e Promising Young Woman

Niterói – RJ
2022
Marcela Santoro Müller Belchior

Violência feminina em cena: a subversão do "rape revenge" em Violation e


Promising Young Woman

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao


Programa de Graduação em Cinema e Audiovisual –
Licenciatura da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para obtenção de título de
Licenciada.

Orientadora: Prof. Dra. Lúcia Monteiro

Niterói – RJ
2022
2
(Folha de avaliação)

3
Resumo
Este trabalho de conclusão de curso tem como objetivo comparar três obras
cinematográficas que podem ser classificadas com o que se convencionou
chamar de “rape-revenge movies”, ou filmes de “estupro e vingança”, em
tradução direta. O trabalho busca movimentar a discussão em torno de uma
teoria feminista do cinema, dialogando com nomes como Sarah Projansky,
Anneke Smelik e Ann E. Kaplan. Ao comparar I spit on your grave (2010)
com Promising Young Woman (2020) e Violation (2020), meu argumento é
que esses dois últimos títulos subvertem um lugar típico de objetificação da
mulher que ocorre em filmes do gênero. Ao impedir uma fetichização do
estupro e do abuso, defendo que as diretoras destes dois filmes quebram o
olhar masculino de dominação e representação dos corpos femininos, tão
recorrentes no cinema.

Palavras-chave: rape-revenge; teoria feminista; subversão; representação.

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Abstract
This project aims to compare three cinematographic works that can be
classified as what has been called rape-revenge movies. The work seeks to
move the discussion around a feminist theory of cinema, dialoguing with
names such as Sarah Projansky, Anneke Smelik, and Ann E. Kaplan. By
comparing I spit on your grave (2010) with Promising Young Woman
(2020) and Violation (2020), my argument is that the latter two titles
subvert a typical place of objectification of women that occurs in films of
this genre. By preventing a fetishization of rape and abuse, I argue that the
directors of these two films break the male gaze of domination and
representation of female bodies that is so recurrent in cinema.

Keywords: rape-revenge; feminist theory; subversion; representation.

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Agradecimentos

Gostaria de deixar explícita minha alegria em poder fechar esse ciclo, após seis
anos de curso e tendo todos nós enfrentado a pandemia do Covid-19. Muitas vezes
pensei em desistir e hoje só me resta agradecer às pessoas que me ajudaram a seguir.
Primeiramente à minha mãe, minha base: sem você nada seria possível. Deixo também
meu agradecimento aos familiares, especialmente minha irmã Carolina e meu pai
Augusto, que se fazem presentes e me apoiam nesse caminho árduo que é o fazer
artístico no Brasil. Não poderia deixar de mencionar um grande amigo que a UFF me
proporcionou: Breno, obrigada por ter compartilhado essa jornada comigo e aguentado
minhas reclamações. Espero que coloquemos muitos projetos no mundo. Aproveito
também para agradecer três grandes amigas que são referência pra mim: Julia, obrigada
por me acolher e ser calmaria sempre; Rane, obrigada por ter sido meu porto seguro
quando enfrentei uma dor que achei que nunca acabaria e, por último - mas com certeza
não menos importante -, Tatiane, obrigada por ser quem é e por me permitir
compartilhar a sua existência. Vocês três me inspiram e fazem parte da mulher que sou.
Deixo também meu obrigada ao meu amor, Yan, que está ao meu lado sendo um
parceiro melhor do que eu poderia imaginar. Sorte a minha ter você!

Por fim, deixo aqui minha gratidão profunda à minha avó, Fernanda Caridade,
que foi quem me conectou com a arte desde muito nova, me incentivou a persistir nos
meus sonhos e a permanecer viva e desejante. Te carrego comigo sempre

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Sumário

Introdução
Os filmes rape-revenge
I spit on your grave (2010)
Promising young woman (2020)
Violation (2020)
O procedimento subversivo
A crítica feminista
A construção das personagens
A representação do estupro
O impedimento da catarse
Considerações finais

Introdução

“Eu era só um garoto.” Essa é a frase dita por Al Monroe (Chris Lowell) diante
de Cassie (Carey Mulligan), personagem principal do filme de Emerald Fennell,
Promising Young Woman (2020). Al utiliza essa justificativa ao ser confrontado quanto
11
ao estupro de Nina, a melhor amiga de Cassie, que suicidou-se um tempo após seu
estupro ter sido filmado e compartilhado pela faculdade.
Essa fala, retirada de um filme tão recente, compõe com firmeza o imaginário
social patriarcal. No Brasil, uma máxima tem circulado pelas redes sociais, que
parafraseamos aqui: “Toda mulher tem uma amiga que foi estuprada, mas nenhum
homem conhece um estuprador.” Há na estrutura social algo que acoberta e mesmo
isenta estupradores de seu lugar criminoso, enquanto escolhe acusar e deslegitimar as
mulheres que estão do outro lado, vítimas de sua violência.
Segundo dados do 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022), no ano
de 2021, no Brasil, foram registrados 66.020 casos de estupro. No ano anterior, o
número foi um pouco menor: 62.917. No artigo A ‘carne mais barata do mercado’: uma
análise biopolítica da ‘cultura do estupro’ no Brasil, os professores e pesquisadores
Maiquel Dezordi e Joice Nielsson analisam dados do Anuário Brasileiro a partir da
expressão “cultura do estupro”, e buscam compreender sua definição ligada “à
existência de um juízo moral consolidado ao longo dos tempos, fruto de uma ideologia
patriarcal ainda presente em nossa sociedade” (2018, p. 174). Nesse panorama, a mulher
é colocada como propriedade e objeto de desejo do homem, o que acaba por “legitimar
o uso da violência física ou moral, para a satisfação dos instintos sexuais masculinos”.
(Ibid., Ibidem).
Para Nielsson e Dezordi, a cultura do estupro se vincula à reprodução dos
estereótipos de gênero que hierarquizam homens e mulheres, estruturando uma relação
de poder, onde as mulheres se localizam submetidas ao poder masculino. Na construção
dos papeis sociais relativos a cada gênero, o feminino – frágil e menos importante – é
colocado num lugar de submissão ao masculino – forte e dominante (NIELSSON,
DEZORDI, 2018, p. 191). Essa hierarquia atribui aos corpos femininos um valor de
objeto, de coisa a ser possuída, e essa objetificação culmina num produto cruel: de um
lado, corpos femininos estupráveis, que podem ser invadidos por esse “outro”
masculino que detém sobre eles o poder; de outro, sujeitos estupradores, construídos
sob a máxima da virilidade e do poder sobre outros corpos. Trata-se, portanto, de uma
“cultura” na medida em que é algo a ser transmitido, ensinado, aprendido e
compartilhado. Nisso tocou a autora e pesquisadora Alexandra Heller-Nicholas quando
disse que “estupradores não nascem, tornam-se.” (HELLER-NICHOLAS, p. 5).1
O termo “cultura do estupro”, segundo Nielsson e Dezordi (2018), é cunhado na
década de 1970 sobretudo por Susan Brownmiller. Em Against Our Will: Men, Women,
1
Rapists are not born, they become. (As traduções presentes neste trabalho foram feitas por mim).
12
and Rape (1975), Brownmiller define o estupro como uma forma de controle patriarcal
das mulheres através, por exemplo, do casamento e da guerra; a autora também redefine
o estupro como violência e não sexo, uma mudança radical para a discussão sobre a
noção de estupro naquele momento. Assim, as discussões teóricas e feministas daquela
década trazem o lugar social da mulher para o centro do debate, e por isso a
compreensão do estupro e a discussão acerca de sua definição figuram de maneira
incontornável nos debates de então.
As discussões em torno da “cultura do estupro” e também o texto de
Brownmiller são retomados por muitas autoras. Em seu livro Watching rape: film and
television in postfeminist culture, Sarah Projansky procura recolher e analisar a
ocorrência e representação do estupro na mídia e em obras cinematográficas. Para a
autora, “[...] o estupro é uma das menções compulsórias da cultura popular
contemporânea dos Estados Unidos”, dos anúncios públicos às notícias de jornal, e as
“representações de estupro são parte comum dessa cultura, embutidas em todas as suas
complexas formas de mídia, enraizadas na paisagem das imagens visuais.”2
(PROJANSKY, 2001, p. 2). Assim, para Projansky, a referenciação ao estupro ocuparia
um lugar de importância na construção de uma compreensão social, e interessa à autora
compreender que efeitos podem ser alcançados ou produzidos em sua transposição ao
cinema.
É também por volta dos anos 1970 que surgem os rape-revenge films, ou filmes
de estupro-e-vingança, numa tradução literal. Seu “cânone” é vasto, e seguimos
adicionando novos títulos a seu conjunto. Essas produções passaram a me interessar
particularmente, uma vez que, como afirma Projansky, o estupro – ou o discurso sobre o
estupro – está intrinsecamente ligado ao imaginário social e às práticas sociais. Dessa
forma, comecei a me indagar sobre os limites desse discurso quando transposto ao
cinema, e fui motivada principalmente pelas seguintes considerações, feitas também por
Projansky:

Os discursos sobre o estupro são tanto produtivos quanto


determinantes. Não são simplesmente narrativas arquitetadas para o
consumo num contexto de entretenimento e tampouco “falam” sobre
coisas reais. Eles são, em si, funcionais, geradores, formadores,
estratégicos, performáticos e reais. Como ações físicas, discursos

2
I would go so far as to argue that rape is one of contemporary U.S. popular culture’s compulsory
citations: from talk in public service announcements about statutory rape to talk on the news about the
“date rape drug,” depictions of rape are a pervasive part of this culture, embedded in all of its complex
media forms, entrenched in the landscape of visual imagery.
13
sobre o estupro têm a capacidade de informar, e mesmo de encarnar e
fazer espaço para ações futuras, ações físicas. (2001, pp. 2-3)3

Os discursos carregam em si um poder de construção subjetiva, portanto. Nisso


também insistem Nielsson e Dezordi (2018) quando afirmam que o estupro tem a ver
com poder e com gênero, “[é] o poder do gênero, ou o poder constituído pelas
construções de gênero.” (p. 181). Levando em conta tais considerações, o que passei a
me indagar foi: se os discursos sobre o estupro e suas manifestações no espaço social
são, como afirma Projansky, capazes de formar um lugar subjetivo que culmine em
ações físicas de violência, como o cinema rape-revenge pode atuar na construção desses
discursos?
Foi assim que me encaminhei para algumas leituras teóricas, dentre elas
Alexandra Heller-Nicholas, citada anteriormente, a qual avalia, em seu livro
Rape-revenge films – A critical study, que “o poder do cenário de estupro e vingança
está no cálculo da intensidade que a violência sexual (ou a ameaça da violência sexual)
detém sobre o filme como um todo.” (2011, p. 4)4. Dessa forma, nesses filmes, a
representação da violência sexual carrega um poder sobre a narrativa fílmica, e produz
efeitos de acordo com tais escolhas. É por isso que autoras como Sarah Projansky,
Anneke Smelik e a própria Heller-Nicholas se aproximarão do tema indagando como o
cinema pode contribuir para o imaginário da “cultura do estupro” a partir de suas
escolhas de montagem e representação.
Se num primeiro momento me interessei pelo gênero de forma geral, em uma
segunda visita ao tema, acabei por afunilar minha questão. Me interessa aqui não traçar
uma leitura dos filmes de rape-revenge como um todo, tampouco me debruçar sobre
muitas obras de seu “cânone”. À luz dos ensaios das autoras que mencionei, pretendo
realizar uma análise pontual de três filmes, colocando em contraste a construção de suas
respectivas narrativas. Para tanto, decidi me deter em três produções: Violation (2020),
de Madeleine Sims-Fewer e Dusty Mancinelli, Promising Young Woman (2020), de
Emerald Fennell, e I spit on your grave (2010), de Steven R. Monroe.
A escolha da filmografia em questão é motivada por algumas razões. No caso de
I spit on your grave (2010), trata-se de uma refilmagem da obra de mesmo título de
1978. Me volto para esse filme por estar presente no “cânone” setentista dos

3
Discourses of rape are both productive and determinative. They are not simply narratives marketed for
consumption in an entertainment context or “talk” about real things. They are themselves functional,
generative, formative, strategic, performative, and real. Like physical actions, rape discourses have the
capacity to inform, indeed embody and make way for, future actions, even physical ones.
4
The power of the rape-revenge scenario is in the calculable intensity that sexual violence (or the threat
of sexual violence) holds over the film as a whole.
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rape-revenge e por possuir uma refilmagem com lançamento próximo dos dias de hoje e
que, segundo o diretor, apresenta atualizações importantes em sua narrativa. Esse filme
atuará como um exemplo canônico de rape-revenge movie, e a ele oporei os outros dois
filmes que escolhi. Para compor essa escolha, me apoiei igualmente em um trecho de
Anneke Smelik, em seu livro And the mirror cracked – Feminist Cinema and Film
Theory (1998):

A hipótese que acompanha meu projeto é que diretoras feministas


representam signos e significados de “mulher” e de “feminilidade”
diferentemente dos códigos e convenções do cinema dominante,
enquanto ainda empregam e implantam (ao invés de desconstruir)
prazer visual e narrativo. O projeto consiste em analisar as formas
com as quais diretoras feministas usam e transformam meios
convencionais do cinema para comunicar suas ideias não
convencionais. (2018, p. 3)5

Smelik (2018) introduz seu projeto com o trecho acima, e se questiona sobre
como diretores feministas podem “fazer alguma diferença” quando fazem filmes, no
modo em como deslocam imagens, narrativas e representações de um lugar
“convencional” ou “dominante”. As indagações da autora fazem eco com aquelas que
norteiam este trabalho. Do gênero dos diretores à escolha de suas montagens, pretendo
analisar como Violation (2020) e Promising Young Woman (2020) subvertem, deslocam
e reestruturam a lógica masculina que rege I spit on your grave (2010) e também muitas
outras obras cinematográficas.
No primeiro capítulo, “Os filmes rape-revenge”, pretendo fazer uma
apresentação não exaustiva do gênero. Me valho principalmente das obras de Alexandra
Heller-Nicholas, Rape-revenge films – A critical study (2011), e de Sarah Projansky,
Watching rape: film and television in postfeminist culture (2001), para desenhar esse
breve panorama. Em seguida, passo a uma breve apresentação das três obras que serão
colocadas em análise, apresentando rapidamente seus enredos visando facilitar a leitura
e o acesso às considerações que virão no segundo capítulo.
No segundo capítulo, que chamei “O procedimento subversivo”, pretendo então
me aprofundar em minhas considerações sobre os filmes em questão. Para tanto, dividi
a argumentação em quatro partes. Na primeira, “A crítica feminista”, apresento um
pouco mais as autoras a partir das quais construo minha interpretação dos filmes. Me
apoiei principalmente em Sarah Projansky, Anneke Smelik e Ann E. Kaplan, e também
5
The hypothesis underlying my project is that feminist filmmakers represent the signs and significations
of 'woman' and of 'femininity' differently from the codes and conventions of dominant cinema, while they
still employ and deploy (rather than deconstruct) visual and narrative pleasure. The project consequently
aims at analyzing the ways in which feminist filmmakers use and transform conventional cinematic
means for communicating their nonconventional ideas.
15
em Laura Mulvey, cujo conceito de “male gaze” é central no trabalho dessas três
primeiras autoras.
Uma vez estabelecido o lugar crítico da minha argumentação, passo à segunda
parte, “A construção das personagens”, onde me detenho na representação da
personagem feminina – vítima do estupro – e da personagem (ou personagens)
masculina(s) – o estuprador. Passo então, num terceiro momento, à análise da filmagem
das cenas de violência sexual, em “A representação do estupro”, para então concluir
minhas considerações na última parte deste capítulo, “O impedimento da catarse”. Nesta
última parte, pretendo demonstrar como as narrativas e a direção de Violation (2020) e
Promising Young Woman (2020) impedem a fetichização da “mulher vingadora”.
Ao longo do capítulo “O procedimento subversivo”, comparo as escolhas feitas
na montagem de Promising Young Woman (2020) e Violation (2020) em oposição a I
spit on your grave (2010). Minha argumentação busca explicitar os procedimentos
utilizados nos primeiros dois filmes para subverter a lógica masculina que costuma estar
no eixo das representações femininas não apenas em I spit on your grave (2010), mas
em muitos filmes do gênero.

Os filmes rape-revenge

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Até o início dos anos 1930, referências explícitas a estupro e representações de
tentativa de estupro na tela eram relativamente comuns. É o que afirma Sarah Projansky
(2001), e acrescenta que no meio dos anos 1930, filmes com temas que envolviam
estupro apareciam com cada vez menos frequência. No entanto, ainda segundo a autora,
representações explícitas de estupro voltaram a um certo lugar-comum nos anos 1970
(2001, p. 26). Projansky traça um panorama sobre essas narrativas, que trago no trecho
a seguir:
Especificamente, dois tipos de narrativas aparentemente antitéticas são
comuns: as que representam a vulnerabilidade das mulheres como
algo que leva ao estupro e as que representam o estupro de uma
mulher independente para torná-la vulnerável. Paradoxalmente, o
primeiro grupo sugere que mulheres deveriam ser mais
autossuficientes e independentes para evitar o estupro, enquanto o
segundo sugere que o comportamento independente e por vezes uma
sexualidade independente pode levar ao estupro. Em ambos os casos,
no entanto, a maioria das narrativas resolve o paradoxo entre
vulnerabilidade e independência fornecendo uma conclusão que
incorpora com sucesso a mulher no cenário da família heterossexual
estável. (2001, p. 30)6

Assim, ainda que fundamentalmente paradoxal, poderíamos dizer que a


representação do estupro nos filmes compreendidos por Projansky (2001) trazem uma
espécie de aprendizagem, uma mensagem didática em relação aos papeis a serem
performados pelas mulheres em sociedade – e suas possíveis consequências caso sejam
ignorados. Mas por que a representação de estupros na tela voltou a ser central justo nos
anos 1970? Essa pergunta é respondida por Ann E. Kaplan em Women and Film – Both
sides of the camera (2001). Segundo Kaplan, muitos movimentos políticos dos anos
1970 foram produzindo mudanças culturais radicais que afrouxaram códigos
anteriormente rígidos e muito puritanos. O movimento feminino da época encorajou
mulheres a tomarem as rédeas de suas próprias sexualidades, e essa mudança na
estrutura dos valores sociais balançou os pilares do patriarcado.
Quanto a isso, Kaplan (2001) escreve que “a mulher sexual não poderia mais ser
designada como ‘má’, já que agora as mulheres ganharam o direito de ser sexuais e

6
Specifically, two seemingly antithetical types of narratives are common: those that depict women’s
vulnerability as leading to rape and those that depict the rape of an independent woman as making her
vulnerable. Paradoxically, the first set suggests that women should be more self-sufficient and
independent in order to avoid rape, while the second set suggests that independent behavior and
sometimes independent sexuality can lead to rape. In both cases, however, most narratives resolve the
paradox between vulnerability and independence by providing a conclusion that successfully incorporates
the woman into a stable heterosexual family setting.

17
‘boas’” (p. 7). A autora atribui a essas mudanças uma relação direta com o grande
número de filmes que mostravam mulheres sendo estupradas no início dos anos 1970.
Essas ocorrências na tela seriam uma forma de punição a essa mulher “livre demais”,
que parece “querer sexo todo o tempo”, a qual partiria de um imaginário social do
patriarcado para figurar no cinema e nas demais formas de representação artística e de
mídia. “Alguns filmes transformam mulheres antes independentes em vulneráveis ao
subjugá-las pelo estupro ou pela violência sexual”, nota ainda Projansky (2001, p. 31).7
Paralelamente a isso, surgem narrativas que unem o estupro a uma jornada por
vingança diante da violência sexual. Segundo Alexandra Heller-Nicholas (2011),
“filmes de rape-revenge são um fenômeno popularmente atribuído aos Estados Unidos
de 1970, onde floresceram.” (p. 8)8. Ainda de acordo com a autora, um filme
denominado “rape-revenge film” seria assim classificado por ter o estupro como fator
central da narrativa, sendo seus agentes punidos através de um ato de vingança que pode
ser conduzido pela vítima ou por um terceiro. (Ibidem, p. 3).
Na extensa filmografia que traça, Heller-Nicholas (2011) cita títulos de
1970-1980, como The Last House on the Left, de Wes Craven (1972), Ms. 45 de Abel
Ferrara (1981) e Lipstick de Lamont Johnson (1976), assim como alguns títulos bem
recentes, Teeth, de Mitchell Lichtenstein (2007), Straw Dogs de Sam Peckinpah (2011)
e I spit on your grave (mencionando ambas as versões de 1978, de Meir Zarchi, e 2010,
de Steven R. Monroe). Dentro dessa gama que une estupro e vingança, Projansky
(2001) indica duas narrativas principais, já elencadas de maneira sucinta na definição de
“rape-revenge” dada por Heller-Nicholas (2011). No primeiro grupo, temos filmes em
que a vingança é levada a cabo por um homem que perde sua esposa ou filha para um
estupro seguido de assassinato. Nessas narrativas, a autora afirma que o estupro motiva
e justifica uma versão particular da violência masculina, relegando as mulheres a um
papel secundário na narrativa. (2001, p. 125). No entanto, um segundo grupo
concentraria narrativas que colocariam as mulheres, vítimas de estupro e violência
sexual, como as agentes de suas próprias vinganças.
Os filmes que se enquadram na segunda categoria poderiam ser entendidos sob
uma perspectiva feminista segundo algumas críticas, ao fazer com que as mulheres
“façam justiça com as próprias mãos”. É o que afirma Projansky (2001) ao citar Carol J.

7
“[…] other films transform previously independent women into vulnerable women by subjecting them
to rape or sexual violence.”
8
“The rape-revenge film is a phenomenon popularly attributed to the United States of the 1970s, where
they flourished.”

18
Clover (1992), por exemplo, a qual argumenta que os filmes de rape-revenge
“compartilham um conjunto de premissas, [incluindo] ... que vivemos em uma ‘cultura
do estupro’ na qual todos os homens – maridos, namorados, advogados, políticos – são
direta ou indiretamente cúmplices.” (2001, p. 139).9 No entanto, se à primeira vista
poderíamos assistir tais filmes sob a lupa feminista, uma análise mais aprofundada
destacaria novos impasses. Heller-Nicholas (2011) demonstra, através dos títulos que
analisa, que ainda que as mulheres sejam alçadas a um lugar de protagonismo enquanto
agentes de suas vinganças, as engrenagens patriarcais continuam girando por detrás da
tela. A “tentativa feminista” falha quando compreendemos que os moldes seguem sendo
masculinos.
Por exemplo: levemos em conta o pôster de divulgação da versão setentista de I
spit on your grave (1978).10 Nele, vemos uma mulher com as costas à mostra e coberta
por arranhões, vestindo uma calcinha que aparenta ter o tecido rasgado. Nas frases do
pôster, lemos: “Essa mulher acabou de cortar, despedaçar, quebrar e queimar cinco
homens até deixá-los irreconhecíveis... mas nenhum júri na América a condenaria!”
Abaixo do título do filme, “I spit on your grave” (cuja tradução seria “Cuspo no seu
túmulo” mas que ganhou no Brasil o título “A vingança de Jennifer” na versão de
1978), lemos a frase “...um ato de vingança!”.
A escolha do pôster já é um indício do qual podemos partir para pensar a
representação feminina no filme em questão. Temos, de um lado, a imagem de uma
mulher na posição de vingadora: está de costas, segura uma faca, e as mãos estão
cobertas por sangue que não lhe pertence. As frases do pôster reforçam essa imagem ao
sublinhar que a violência brutal da qual Jennifer se utiliza tem justificativa, e ninguém
pode condená-la – nem mesmo um júri o faria, e tampouco o fará o espectador. No
entanto, a imagem dessa mulher com as costas à mostra deveria por si só nos causar
incômodo. A representação de seu corpo – ainda que sob a imagem da poderosa
vingadora – é feita de modo erótico, que objetifica o corpo feminino ali exposto. É uma
vingadora sexualizada, representada de forma sensual, e essa construção nos deixa
entrever muitos problemas em relação às representações femininas nas narrativas
rape-revenge.
Assim, se à primeira vista a crítica poderia considerar um filme como I spit on
your grave (1978) um exemplo de narrativa feminista por colocar a mulher estuprada
como agente de sua própria vingança, uma reflexão mais detida traz à tona novos
9
[…] share a set of premises [including] . . . that we live in a ‘rape culture’ in which all
males—husbands, boyfriends, lawyers, politicians—are directly or indirectly complicit, […]
10
Figura 1.
19
embates sobre a fetichização feminina nessa produção. E na refilmagem de 2010, a qual
uso para o desenvolvimento desse trabalho, tais problemas parecem ganhar ainda mais
espaço na discussão. Antes de passar a uma análise dessas questões nos filmes que
escolhi para colocar em comparação, farei um breve resumo de suas narrativas.

I spit on your grave, Steven R. Monroe (2010)

A história base de I spit on your grave de 1978 se repete na versão de 2010. Em


ambos os filmes, acompanhamos Jennifer (interpretada por Camille Keaton em 1978 e
por Sarah Butler em 2010), uma escritora que aluga uma casa numa região remota para
conseguir inspiração e se dedicar à escrita. Em ambos os filmes, Jennifer é
violentamente estuprada por um grupo de homens, é dada como morta, sobrevive e
retorna para se vingar, caçando os estupradores um após o outro. A versão de 1978 foi
dirigida por Meir Zarchi, diretor israelo-estadunidense que assume o papel de produtor
executivo no filme de 2010, dirigido pelo americano Steven R. Monroe.
O filme de Monroe, cuja narrativa será utilizada para este trabalho, faz uma
homenagem evidente ao filme de Zarchi, ainda que desvie de sua trama em mais de uma
maneira. Uma mudança crucial foi o acréscimo do personagem do Xerife Storch, que
aparece, segundo Heller-Nicholas (2011, p. 177), para responder uma pergunta deixada
em aberto pelo primeiro filme, que seria “por que Jennifer não procura as autoridades
após seu estupro?”. Nesse sentido, o segundo filme demonstra que nem a lei poderia
protegê-la, já que o Xerife participa do estupro coletivo ao invés de socorrê-la.
Outra mudança importante é o método com que Jennifer persegue os homens
que a estupraram. No filme de 1978, a tática usada por Jennifer é a sedução. Ela os atrai
de forma sensual para, então, assassiná-los. “Contrariamente à vingadora Keaton
(1978)”, afirma Heller-Nicholas, “essa Jennifer (2010) não usa biquínis florais enquanto
mutila e dilacera aqueles que a fizeram mal. Monroe insistiu que a sedução de Jennifer
aos seus estupradores no original era um dos maiores aspectos que ele gostaria de
mudar” (2011, p.177).11 Monroe afirmou que essa mudança não tinha caráter ideológico,
mas sim uma motivação “realista”. Isso é notório, já que excluir a sedução de Jennifer
não foi o suficiente para eliminar o caráter erótico com que a personagem é
representada. Analisarei esses aspectos com mais detalhes no capítulo seguinte.

11
“Unlike the rape-avenging Keaton, there are no floral bikinis for this Jennifer as she slices and dices her
way through those who wronged her. Monroe has insisted that Jennifer’s seduction of her rapists in the
original was one of the major features he wished to change.”
20
Promising Young Woman, Emerald Fennell (2020)

Cassandra Thomas (Carey Mulligan) trabalha num café durante o dia e frequenta
bares durante a noite. Sua atividade noturna tem um objetivo específico: ao fingir-se
bêbada, Cassie pretende atrair “bons moços” que desejem ajudá-la. A história se repete:
todas as noites, o “bom moço” se revela um abusador, que tenta se aproveitar do estado
indefeso de Cassie. A surpresa da personagem consiste então em revelar aos predadores
sexuais que está sóbria, apavorando-os, e eles imediatamente ou se defendem ou a
acusam de louca, de psicopata.
Conforme o filme se desenrola, acessamos mais aspectos da vida de Cassie.
Descobrimos que suas saídas noturnas são motivadas principalmente pela perda de sua
melhor amiga de infância, Nina. Esse é o trauma central da narrativa: Nina e Cassie
eram estudantes de medicina na mesma universidade; em uma festa que Cassie não vai,
Nina fica bêbada e é estuprada; o estupro é filmado, compartilhado entre amigos e pela
universidade, o que culmina no suicídio de Nina. Cassie larga a faculdade e passa a
viver a vida dupla que relatei.
Cassie planeja uma vingança contra aqueles que participaram de alguma maneira
no trauma de Nina: o advogado que a assediou até que largasse o caso, a reitora da
universidade que não tomou providências contra o estuprador, a colega de curso que na
época disse que Nina estava inventando coisa, e o estuprador em si. Esse arco ganha
novas nuances quando Cassie reencontra Ryan (Bo Burnham), um antigo colega de
curso, e o romance entre os dois a coloca contra a parede. Seguir com a vingança ou se
permitir viver algo novo? A resposta a essa pergunta virá de forma cruel, quando Cassie
descobre que Ryan esteve presente no estupro de Nina, como espectador, ao ouvir sua
voz no vídeo que fizeram do crime.

Violation, Dusty Mancinelli e Madeleine Sims-Fewer (2020)

O filme dirigido por Mancinelli e Sims-Fewer conta também com Fewer no


papel da protagonista Miriam. Violation (2020) inverte a linha temporal dos fatos e
inicia com a vingança: Miriam atrai o cunhado até a cabana de férias da família, o
seduz, o amarra na cadeira de olhos vendados como se fosse parte de uma brincadeira
sexual, o golpeia e então dá início a seu plano de assassinato. A princípio, não
acessamos a razão pela qual Miriam decide assassinar o cunhado – esta só nos é
apresentada posteriormente.

21
Ao passo que acompanhamos a atrapalhada cena da morte de Dylan (Jesse
LaVercombe), acessamos enfim a origem dessa vingança. Em uma viagem de casais,
Miriam e Caleb (Obi Abili), Dylan e Greta (Anna Maguire) passam uns dias na remota
cabana da família. Numa noite, Miriam e Dylan se demoram mais que os outros dois
diante da fogueira, e Miriam acaba beijando Dylan e se desculpando em seguida.
Miriam cai no sono, e quando o dia está amanhecendo, ela é despertada por Dylan a
estuprando. Atordoada e confusa, ela só consegue dizer “não” e “pare” enquanto ele se
move em cima dela.
A vingança de Miriam, assim compreendemos, é planejada, uma vez que
ninguém acredita na sua versão dos acontecimentos. Dylan a acusa de tê-lo seduzido, a
irmã a acusa de tentar roubar seu marido, e seu relacionamento já desgastado parece
romper-se de vez. Miriam identifica em Dylan um “predador”, e decide – por ela e
“para proteger a irmã” – acabar com a vida do cunhado. Em Violation (2020),
representar a vingança antes do estupro quebra o lugar de causa-consequência entre os
fatos e produz um efeito que me interessa comentar em mais detalhes, o que farei no
subcapítulo “O impedimento da catarse”.

O procedimento subversivo

22
A crítica feminista

Nas décadas de 1970 e 1980, a crítica feminista de cinema se tornou um campo


acadêmico, revelando-se com o tempo uma área vital de pesquisa e de debate.
Diferentes antologias foram publicadas reunindo textos feministas sobre cinema, como
é o caso de Re-vision - Essays in feminist film criticism (1984), organizado por Mary
Ann Doane, Patricia Mellencamp e Linda Williams. Segundo essas autoras, essa crítica
feminista “passou a interrogar as pressuposições por trás de uma linguagem cinemática
de representação que promovia o conceito de ‘realismo’ e seus efeitos na construção e
na manutenção da diferença sexual segundo o pensamento patriarcal” (1984, p. 7).12
Ainda segundo essas autoras, diante da ausência de uma tradição de mulheres
artistas trabalhando contra a tradição masculina dominante no cinema, as críticas
feministas se apropriaram de debates que levassem em consideração a ausência da
“mulher como mulher”. Buscava-se, assim, elaborar teorias mais complexas no que
tange à significação e à subjetividade, e por isso passaram “a abraçar teorias da
semiótica e da psicanálise que pareciam capazes de explicitar os meios pelos quais a
ideologia patriarcal elidiu a representação da mulher” (Ibid., Ibidem).13
Essa apresentação me parece necessária pois os textos que apoiam minha
argumentação dialogam diretamente com a noção de “male gaze”, ou de “olhar
masculino”, inserido no debate por Laura Mulvey em seu ensaio Visual Pleasure and
Narrative Cinema (1989). Mulvey afirma que a mulher é colocada sob o olhar
masculino numa imagem silenciosa, sendo portadora de sentido mas nunca produtora de
sentido (1989, p. 15). Assim, Mulvey se apropria de noções da psicanálise para explicar
o prazer e o desprazer oferecidos geralmente por uma narrativa fílmica tradicional. O
cinema através de Mulvey é interpretado a partir da diferença sexual, e por isso a autora
retoma noções como escopofilia e narcisismo para compor sua argumentação.
Não me aventurarei aqui a detalhar os argumentos psicanalíticos trazidos por
Mulvey e por outras autoras, e não o farei por uma limitação teórica de minha parte.
Tentarei, contudo, transpor as ideias principais dessas autoras a termos mais gerais para
a análise dos filmes. A escopofilia é definida por Mulvey como o “prazer em olhar para
outra pessoa como um objeto erótico”14, e a “imagem da mulher como material

12
They began to interrogate the assumptions behind a cinematic language of representation which
promoted the concept of "realism" and its effects on the construction and maintenance of sexual
difference along patriarchal lines.
13
Thus feminist film critics, first in Britain, then increasingly in the United States, began to embrace
semiotic and psychoanalytic theories that seemed capable of accounting for the ways in which patriarchal
ideology has elided the representation of women.
14
The scopophilic instinct (pleasure in looking at another person as an erotic object) […]
23
(passivo) para o olhar (ativo) de um homem leva o argumento a outro degrau no que
concerne o conteúdo e a estrutura da representação.”15 (1989, p. 25).
Esse olhar masculino, segundo Mulvey, projeta então suas fantasias na figura
feminina, que é estilizada de acordo. As mulheres são olhadas e representadas em
função de um impacto erótico, de modo a encontrar sentido apenas no desejo masculino
(por isso Mulvey afirma que diante do male gaze a mulher apenas “detém um sentido”,
de forma passiva, e não “produz” sentido). A narrativa tradicional do cinema a que se
opõem artistas e críticas feministas tem seus moldes na diferença sexual. As mulheres
são ali inseridas como objetos eróticos, estão ali para compor o espetáculo, e aos
homens é dado o lugar de sujeito, são os reais responsáveis pelo andamento da trama e
pelo desenvolvimento da narrativa.
A noção de “male gaze” emerge a partir da diferença sexual, e seria assim
responsável por manter entre os sexos uma distinção de poder e de dominação. No que
se refere ao lugar do espectador, o cinema seria uma espécie de catalisador desse
instinto voyeurístico trazido pelo conceito de escopofilia. O cinema ilustra um mundo
fechado, e o espectador, ou voyeur, acessa esse mundo projetando suas fantasias e seus
desejos sobre o que assiste. É dessa forma que as construções fílmicas atuam sobre a
subjetividade e sobre a vida psicológica dos espectadores, e é aqui, na união entre
representação e efeito, que se concentra grande parte das discussões de autoras
feministas.
As autoras que utilizo nesse trabalho dialogam com esses termos de diferentes
maneiras. No caso de Sarah Projansky (2001), há um interesse específico em analisar o
estupro no contexto midiático estadunidense sobretudo nas décadas de 1970 e 1980,
quando muitas narrativas de estupro aparecem. Projansky discute muito a teoria
feminista que acompanha o debate sobre estupro, e se detém a analisar alguns
comentários sobre obras cinematográficas do tema. Em Alexandra Heller-Nicholas
(2011), o conceito de male gaze atravessa seus capítulos de forma constante, uma vez
que analisa, do cânone à contemporaneidade, os filmes que se enquadram no gênero, ou
subgênero, rape-revenge.
O projeto de Ann E. Kaplan em Women and Film – Both sides of the camera
(2001) parte diretamente do conceito de Mulvey ao analisar as diferenças encontradas
em produções realizadas por mulheres, que confrontam o lugar fetichista e voyeurístico
da representação feminina no cinema. Apesar de considerar sobretudo o lugar materno

15
The actual image of woman as (passive) raw material for the (active) gaze of man takes the argument a
step further into the content and structure of representation.
24
como uma possível nova narrativa sobre a subjetividade feminina, as discussões de
Kaplan (2001) sobre um cinema feminista e suas respectivas escolhas representacionais
dialogam muito com esse trabalho.
Uma última autora que se encaixa na discussão pertinente a este trabalho é
Anneke Smelik. Em introdução ao seu livro And the mirror cracked – Feminist Cinema
and Film Theory (1998), Smelik afirma que sua preocupação principal seria a análise de
filmes que tentaram representar e comunicar experiências femininas de uma outra
maneira. Segundo Smelik, ao imaginar a subjetividade feminina e ao se dirigir ao
espectador como mulher, diretoras feministas criaram filmes que transformam códigos e
convenções do cinema. “Essas alterações”, continua a autora, “não só refletem uma
situação social em mudança, mas também transformações na representação e nos modos
de produção” (1998, p. 6).16
Produções feministas teriam então “rachado o espelho”, interrompendo a
imagem “perfeita” de origem patriarcal que era refletida nas telas. Essas produções que
subvertem o lugar clássico de uma narrativa masculina e dominante começaram a dar
espaço a diferentes ângulos, imagens e pontos de vista. Smelik (1998) acrescenta que a
noção de male gaze “se tornou um termo abreviado para a análise de mecanismos
complexos do cinema que envolvem estruturas como o voyeurismo, o narcisismo e o
fetichismo”, e que “esses conceitos ajudam a entender como o cinema de Hollywood é
feito sob medida para o desejo masculino.” (1998, p. 11)17
Dessa forma, decidi me unir às reflexões dessas autoras para construir minha
análise a seguir. Procuro entender como o olhar masculino dominante atua sobretudo no
filme de Steven R. Monroe, I spit on your grave, e como os filmes que contraponho a
esse, dirigidos por mulheres, fazem o espelho “rachar” ao propor diferentes abordagens
ao estupro, à figura da mulher e à realização da vingança.

16
These changes are not only reflections of a changing social situation, but also transformations in
representation and modes of production.
17
[…] the notion of 'the male gaze' has become a shorthand term for the analysis of complex mechanisms
in cinema that involve structures like voyeurism, narcissism and fetishism. These concepts help to
understand how Hollywood cinema is tailor-made for male desire.
25
A construção das personagens

Sarah Projansky (2001) menciona uma transição na construção das personagens


femininas de rape-revenge, quando passam a ser protagonistas de sua própria vingança.
Como já tratado anteriormente, Projansky defende uma nuance feminista nessa escolha,
onde a mulher passaria de objeto do estupro a sujeito da ação (o ato da vingança). O
que vemos nos três filmes escolhidos para análise é uma diferença no desenvolvimento
de cada uma dessas personagens, que são os sujeitos que levam a cabo suas respectivas
vinganças, diferença essa que pretendemos detalhar brevemente nas próximas páginas.
Começamos por I spit on your grave (2010). Acompanhamos Jennifer Hills
(Sarah Butler), uma escritora que busca um lugar tranquilo para a inspiração de seu
próximo livro. Jennifer dirige pela estrada de Mockingbird Trail, atravessando uma
paisagem bucólica em meio a muitas árvores, e para num posto de gasolina. Um grupo
de homens que trabalham ali a olha, Andy (Rodney Eastman) toca gaita, e o clima que
se cria é já ameaçador. É então abordada por Johnny (Jeff Branson), que flerta com
Jennifer, fazendo com que ela ria. Em uma cena atrapalhada, eles brigam pela chave do
carro e ele tropeça, virando motivo de piada para os amigos que observavam a cena.
Essa cena marca o tom do filme – em ambas as dimensões estética e de
conteúdo. Os homens que observam Jennifer estão sujos, tem um comportamento
grosseiro e rude. Jennifer, por outro lado, marca um contraponto: está sempre limpa,
com um ar inocente, e com roupas justas. Johnny se sente humilhado pela interação com
Jennifer, e desse sentimento surgiria a ideia, unidos aos seus amigos, do estupro que
realizariam um tempo depois. Os argumentos usados pelo grupo: “Uma garota dessas
vem para cá por uma única razão. Balançar os peitos na janela para que todos vejam”, e
seguem definindo Jennifer como uma “vadia provocante da cidade grande”.
A paleta de cores, sobretudo quando os amigos planejam o ataque, é esverdeada
e mais escurecida. O conjunto dessa paleta com o vestuário e os modos grosseiros do
grupo contrapostos à imagem de Jennifer ajudam na construção de uma aura
maniqueísta: os homens maus contra a donzela indefesa. O grupo é a encarnação da
perversão e da maldade – o Xerife Storch (Andrew Howard), que participa do ato,
atende uma ligação da filha no meio do ataque à Jennifer, o que acentua ainda mais o
caráter vilanesco dos estupradores. A exceção ali é Matthew (Chad Lindberg), um
deficiente intelectual que destoa dos demais, mas que, contudo, participará do estupro
coletivo de Jennifer, vomitando logo após estupra-la. A figura de Matthew é mais uma
26
peça que faz funcionar a dinâmica de vilões: o único homem que apresenta algum traço
de bondade possível é, na verdade, um deficiente, e que ainda sim é corrompido pela
violência dos demais.
Ann E. Kaplan (2001) menciona que o “prazer no cinema é criado através de um
mecanismo inerentemente voyeurístico que é mais forte nessa do que em outras artes”.18
Aprofundarei um pouco mais esse aspecto ao mencionarmos a construção das cenas de
estupro, mas com a descrição das personagens em I spit on your grave (2010) já se
inicia uma escalada de tensão muito apoiada em como Jennifer é capturada pelas
câmeras. Jennifer está sempre com roupas muito justas ou curtas, e em muitos
enquadramentos vemos apenas parte de seu corpo. Como exemplo, podemos citar a
cena de quando seu vaso entope e ela deixa o telefone cair em seu interior ao tentar
consertá-lo. Nessa cena, uma vez que Jennifer levanta, a câmera não a acompanha,
deixando ao espectador apenas a visão de parte de suas costas, coxas e nádegas.
Em Violation (2020), a construção das personagens se desenrola por outro
caminho. O filme também abre com cenas de floresta, mas logo nos seus primeiros
minutos vemos uma mulher aparentemente nua caminhando pelas matas, imagem que
logo dá lugar a um lobo preto e uma lebre, em frames que terminam com o lobo se
alimentando do pequeno animal. Se instaura assim uma dinâmica de caça e presa que
pode ser metaforicamente transposta aos acontecimentos que se seguirão no filme.
Acompanhamos um casal em crise, Miriam (Madeleine Sims-Fewer) e Caleb
(Obi Abili), dirigindo por essa estrada. Se encontram com a irmã de Miriam, Greta
(Anna Maguire), e seu parceiro, Dylan (Jesse LaVercombe). As irmãs partilham
histórias, e Miriam conta casos em que protege a caçula. Há um clima de parceria entre
as duas, e uma conexão que funciona – assim percebemos – numa espécie de
superproteção da mais velha para com a mais nova. Há também uma cumplicidade entre
ela e o cunhado, que andam pela floresta, conversam e riem, como dois amigos que tem
um certo nível de intimidade.
Em Violation (2020), a dinâmica entre as personagens é desde o princípio muito
mais nuançada – e, portanto, verossímil – do que em I spit on your grave (2010). Valeria
mencionar que há entre Miriam, Dylan e Greta um jogo de forças, uma dinâmica de
poder, onde um certo domínio pela irmã mais nova parece em disputa. Quando
caminham pela floresta, por exemplo, Dylan diz a Miriam: “Parece que você está
18
Pleasure in the cinema is created through the inherently voyeuristic mechanism that comes into play
here more strongly than in the other arts.
27
sempre tentando provar o quanto você é melhor que ela”, ao que ela depois retruca:
“você fez lavagem cerebral nela”. Greta, que era vegetariana junto com a irmã, teria
voltado a comer carne com Dylan.
A sonoplastia, nessas cenas, se alterna entre os sons da natureza e músicas
instrumentais um tanto agitadas e de ritmo acelerado, que constroem um desconforto ou
mesmo um descompasso quando colocadas junto às imagens das árvores e às cenas da
floresta. A metáfora do caçador retorna numa conversa entre os dois: Miriam acusa
Dylan de ter prazer em machucar animais por gostar de caçar, ao que ele retruca
dizendo “estar mantendo o equilíbrio” na natureza.
Somada a uma relação ambígua entre Dylan e Miriam, esta parece querer o que
a irmã e o cunhado possuem. “Nem todo mundo tem o que você e Dylan tem”, ela diz à
Greta. A relação em crise de Miriam, as dinâmicas entre ela e a irmã, a relação ambígua
com o cunhado – tudo isso está em jogo no estupro em Violation (2020). Miriam, antes
de ser estuprada pelo cunhado, conta para ele sobre coisas íntimas de sua vida e de seu
relacionamento e o beija, logo depois dizendo ser uma “pessoa horrível” e pedindo
desculpas. Quando, mais tarde, confronta Dylan sobre o estupro, ele rebate, dizendo
“nós bebemos muito” e “não reescreva o que aconteceu”. Dylan diz que é “metade
culpado”, e justifica o que aconteceu com o fato de Miriam tê-lo beijado e ainda ter
contado intimidades durante a conversa dos dois.
Diferentemente do filme de Steven R. Monroe, o filme de Madeleine
Sims-Fewer – diretora e atriz – e Dusty Mancinelli acrescenta camadas às personagens.
Não se trata de um homem mau, sujo, rude e mal-educado que estupra uma moça
meiga, inocente e indefesa. Não há um vilão e uma mocinha. Nesse sentido, a
representação do estuprador abre espaço para uma discussão essencial quando se discute
estupro, e isto é a ideia de que o estupro precisa ser lido pelo ato sexual violento que
parte da ausência de consenso entre as partes. E que isso não tem a ver com um caráter
vilanesco do abusador ou inocente da vítima. Qualquer homem, em qualquer
circunstância ou relação, pode cometer um estupro, sem necessariamente ser ele o
retrato do mais puro mal. E qualquer mulher, seja ela um exemplo de puritanismo ou
uma mulher sexualmente livre, pode sofrer um estupro.
Em Promising Young Woman (2020), essa desconstrução do estereótipo do
estuprador como “homem mau” está ainda mais evidente. O filme inicia com a música
de Charli XCX, Boys. Vemos uma boate, homens dançando, dando high-fives, fazendo

28
passinhos de dança – tudo em câmera lenta. Um grupo de amigos conversa no bar, um
deles diz “elas se colocam em perigo, garotas assim”, e é então que vemos uma mulher,
aparentemente bêbada, num sofá vermelho. Um dos amigos decide se aproximar,
dizendo que checaria se a moça estava bem, ao passo que os outros vibram e riem com a
“conquista”. O bom moço oferece de levar a moça para casa, mas resolve parar em seu
apartamento e levá-la com ele. Ele a deita na cama, e mesmo que ela não reaja a nada e
siga repetindo “ei, o que você está fazendo?”, ele continua beijando e tirando sua roupa.
É então que a cena que desconfortavelmente se encaminhava para um estupro é
interrompida pela mulher, que olha para a câmera. Em perfeita sobriedade, ela se senta e
repete a pergunta, desta vez olhando para o homem: “eu disse: o que você está
fazendo?”. Essa é a atividade da maioria das noites de Cassie (Carey Mulligan), como
descrita pela própria personagem: “Toda semana eu vou para uma boate e finjo que
estou bêbada demais até para ficar de pé, e toda porra de semana, um cara legal como
você vem conferir se eu estou bem”.
O filme de Emerald Fennell é muito colorido, e a trilha sonora é alegre, com
muitas músicas pop. Cassie tem unhas de cores diferentes, usa roupas em rosa e em
vermelho, seu quarto é rosa, e o caderno – totem dos “encontros” que tem com os
homens durante a noite – é escrito em azul e vermelho. As imagens e decorações
coloridas e em certa maneira pueris contrastam com a personalidade de Cassie, e criam,
junto com a trilha sonora, um contraste que parece deixar ainda mais tangível a
violência da qual se aproximam perigosamente esses “caras legais” com quem Cassie se
encontra.
Um dos homens com quem Cassie sai, Neil, esfrega cocaína em sua gengiva,
enquanto repete frases como “quero te ver, quero te ver com todas as suas
imperfeições”. Cassie repete que precisa ir embora, pegar um táxi, enquanto finge estar
muito bêbada. Os encontros que acompanhamos no filme são extremamente invasivos, e
a surpresa dos homens quando se dão conta de sua sobriedade é uma surpresa
verossímil: o “cara legal”, que estava a ponto de estuprar uma mulher quase
inconsciente, é confrontado, colocado diante de seu ato não levado a cabo. Não à toa,
Neil recua, assustado, enquanto utiliza exatamente a expressão que tanto se repete no
filme: “Sou um cara legal! (grifos nossos)”. Em Promising Young Woman, Fennell
expõe quais violências podem ser escondidas, ou ainda, acobertadas, quando colocadas
sob a pele de um “cara legal”.

29
A representação do estupro

Quando organiza sua antologia de filmes de rape-revenge, Alexandra


Heller-Nicholas (2011) leva em conta o quão central se torna o ato do estupro na
sequência narratológica dos filmes que elenca. Nisso também pensa Smelik (1998), ao
considerar como o que se chama de male gaze influencia a exposição de corpos e de
violência contra a mulher numa exibição cinematográfica, e que efeitos podem surgir
pela escolha dessas imagens. Levando em conta essa perspectiva que analisarei como
cada um dos filmes que discuto representou o estupro.
Em I spit on your grave (2010), a cena do estupro coletivo de Jennifer dura
aproximadamente trinta minutos. Isso é quase tanto tempo quanto leva a execução da
sua vingança. Jennifer é humilhada de diferentes formas, torturada psicológica e
fisicamente, e estuprada por cada um dos homens que invade a cabana em que estava
hospedada. Heller-Nicholas (2011) menciona que na versão de Steven R. Monroe,
mesmo a figura da lei participa do ataque, retirando toda e qualquer possibilidade de
esperança para a personagem, e assim a empurrando para o que seria a única saída
possível: a vingança pelas próprias mãos.
Jennifer é também animalizada por Johnny, que fica pedindo para ver seus
dentes e a chamando de “cavalinho”. Obrigam Jennifer a beber, e enquanto a humilham
e agridem, filmam todo o ocorrido no intuito de vender as imagens depois. As cenas se
alternam também brevemente entre o ponto de vista da câmera do filme e da câmera
segurada por Stanley (Daniel Franzese). Jennifer sai de casa, eles a seguem, continuam
o estupro, a afogam até que perca a consciência. Ela acorda e temos um breve acesso ao
que seria seu ponto de vista: imagens embaçadas enquanto os homens discutem quem
“durou mais” ao estuprá-la. Quando enfim se levanta, começa a caminhar e, antes que
atirem nela, se joga da ponte, de braços abertos.
30
A vingança executada por Jennifer será brutal e cruel, e levará quase a mesma
minutagem do filme. Esse equilíbrio entre os sofrimentos do estupro e os da vingança é,
no mínimo, problemático. Se pensarmos a nível de recepção, há um perigoso efeito de
prazer ao exibir, durante tanto tempo, uma mulher sendo abusada. Ann E. Kaplan
(2001) trata do voyeurismo como uma “perversão ativa, praticada primariamente por
homens com o corpo feminino como objeto do olhar” (p. 14-15).19 Kaplan dirá que o
cinema tem a capacidade de ativar isso que seria o prazer sexual em olhar, e que por isso
há de analisar com cuidado os efeitos que imagens são capazes de produzir. Podemos
nos questionar quanto a isso em I spit on your grave (2010). A violência extrema contra
Jennifer será uma poderosa ferramenta para a catarse de seu ato de vingança, mas com o
custo de deixar um rastro voyeur que não vem sem um certo prazer de um público
espectador que é sobretudo masculino.
Em Violation (2020), Miriam é estuprada por Dylan enquanto dorme. Acorda
com o movimento, com Dylan já dentro dela. A cena que vemos é fragmentada. Vemos
a madeira crepitando, vemos closes muito próximos da fogueira, e uma música
instrumental com um canto lírico começa a tocar. Vemos um pedaço de pele arrepiada, o
olho fechado de Miriam, um dedo, sua boca entreaberta. Uma mão apertando um
pedaço de corpo e acariciando o que parece ser um ombro. Vemos cabelos. Uma
bermuda que é aberta, uma mão que adentra a bermuda. Escutamos a voz de Dylan, que
diz: “Eu queria você há anos, você está tão apertada”. Miriam começa a acordar, e há
um foco nos seus olhos se abrindo. Entre o sono e o despertar, Miriam consegue dizer
“não” e depois dizer “pare”.
Sarah Projansky (2001) afirma que o que é particularmente problemático nos
filmes sobre estupro é que “a violência contra a mulher é tão central nos filmes, tão
essencial para transformações das personagens e para o desenvolvimento e resolução da
narrativa” que acaba por parecer “necessária para o filme em si” (pp. 62-63).20 Em
Violation (2020), a escolha em representar o estupro por recortes da cena quebra essa
suposta necessidade de ver, a nu, a violência sexual se desenrolando. Há um efeito de
tensão ainda mais forte quando se opta por “esconder” a cena, ou ainda, por traduzi-la

19
Voyeurism is an active perversion, practiced primarily by men with the female body as the object of the
gaze.
20
[…] what is particularly troubling about rape films is not that they are sometimes sexist, capitalist,
racist, nationalist, and colonialist (although, of course, many are), but that violence against women is so
central to the films, so key to character transformations and narrative development and resolution, so
versatile, that it not only seems to be necessary to the film itself, but it concomitantly naturalizes the
policing and negotiating of gendered, classed, racialized, and national boundaries these films engage.
31
de outra maneira que não expondo o corpo da mulher como em I spit on your grave
(2010).
Em Promising Young Woman (2020), temos uma “vingança” por terceiros, nos
moldes discutidos por Heller-Nicholas (2011) e Projansky (2001). Cassie, descobrimos
em certo momento do filme, perdeu sua amiga Nina para um suicídio após ter sido
estuprada numa festa, quando estava inconsciente por conta do consumo de álcool.
Cassie não é a vítima, mas alguém que vai buscar vingar-se do que fizeram com Nina. O
estupro no filme de Fennell não é encenado, e acessamos seus detalhes principalmente
através dos diálogos que Cassie trava com algumas personagens. A primeira vez que
narra o estupro é quando visita a reitora da faculdade, Walker (Connie Britton). Al
Monroe (Chris Lowell) levara Nina para um quarto durante uma festa e, segundo
Cassie, “fez sexo com ela repetidas vezes na frente dos amigos enquanto ela estava
bêbada demais para reagir”.
A segunda forma com que temos contato com o estupro de Nina é através de um
vídeo que Cassie obtém em certo ponto da narrativa. Madison (Alison Brie) dá o vídeo
para Cassie, e então assistimos à Cassie assistir, por sua vez, o vídeo. A única coisa que
escutamos são muitas risadas e uma frase de Ryan (Bo Burnham) (na época, namorado
de Cassie), dizendo “meu Deus, Al. Jesus Cristo”. Esse vídeo será o ponto decisivo para
a personagem de Cassie, que tinha interrompido seus planos de vingança na tentativa de
viver, com Ryan, uma vida normal, que não fosse focada em vingar Nina. Cassie
confronta Ryan quanto ao vídeo, que dirá que, na época do acontecimento, “era só uma
criança”.
Enquanto assiste o vídeo do estupro da melhor amiga, os takes da cena alternam
entre zoom in e zoom out, por vezes focando muito próximo o rosto de Cassie, enquanto
chora e tenta enfrentar as imagens que assiste no telefone. A escolha de Fennell para
essa representação parece muito acertada, já que toda a violência enfrentada por Nina é
sempre representada através de Cassie. Inclusive o mais difícil – o dia de seu estupro –
só é mostrado através da reação emocional de sua amiga. A personagem retoma o arco
final da sua vingança, do qual falaremos no próximo tópico. Assim como em Violation
(2020), Promising Young Woman (2020) não só poupa as personagens femininas de uma
jornada excruciante de violência, quanto impede que haja algum tipo de deleite do
público com a violência contra a mulher.

32
O impedimento da catarse

Após o estupro de Jennifer, imagens de como a vida continuou após seu estupro
são mostradas entre cortes. Dentre os homens que participaram do ataque, apenas
Matthew segue com sequelas. Todos continuam buscando por seu corpo – acreditavam
que estava morta –, e Matthew segue lidando com imagens fantasmagóricas de Jennifer.
A violência extenuante praticada contra a personagem no primeiro ato do filme ganha
aqui sentidos correspondentes: ela dará uma morte simbólica a cada um de seus
agressores, relacionada ao tipo de violência que cometeram contra ela.
Andy, que a afogou na poça quando conseguiu sair da cabana, será por sua vez
afogado em soda cáustica. Stanley, o câmera-man, terá os olhos grampeados para que
fiquem abertos, e pássaros comerão ambos os seus globos oculares. Johnny terá seus
dentes arrancados enquanto Jennifer grita as mesmas frases sobre “querer ver os dentes
do cavalo”, que ele havia gritado para ela, e terá seu pênis arrancado. O Xerife Storch
morrerá com um tiro de espingarda no ânus, numa armadilha montada por Jennifer que
será ativada por Matthew e que matará a ambos os homens. Quando o Xerife acorda na
armadilha, ainda grita para Jennifer: “Vejo você no inferno, vou estuprar você no
inferno, você é só um pedaço de carne.”
Quando Matthew aciona a espingarda, a vingança se conclui. O filme se encerra
com Jennifer sentada num tronco de árvore, a câmera vai se aproximando de seu rosto e
podemos ver um sorriso de canto de boca se formando. Jennifer está satisfeita – e o
público também. Para sermos capazes de nos satisfazer com a sequência grotesca e
33
sanguinolenta conduzida por Jennifer, temos que antes atravessar a crueldade de seu
estupro, nos inflar de ódio e de um sentimento de justiça a qualquer custo, e então
acessar essa camada de um prazer satisfatório em ver seus estupradores sendo punidos.
Essa catarse vivida pelo público é uma catarse sobretudo masculina. Anneke
Smelik (1998), citando Laura Mulvey, comenta que a erotização excessiva de mulheres
na tela surge na concatenação de três olhares masculinos:
[...] há o olhar da câmera na situação sendo filmada; enquanto
tecnicamente neutro, esse olhar, como vimos, é inerentemente
voyeurístico e frequentemente “masculino” no sentido que um
homem está geralmente filmando; há o olhar [look] dos homens
no interior da narrativa, que é estruturada para fazer das
mulheres objetos de seu olhar [gaze]; e finalmente há o olhar do
espectador masculino que imita (ou que está necessariamente
na mesma posição de) os primeiros olhares. (p. 30)21

Se pensarmos sob a perspectiva de Smelik, podemos fazer uma transposição


desse argumento à construção de I spit on your grave (2010). Dos filmes escolhidos
aqui, é o único dirigido exclusivamente por um homem, e esse olhar se impõe na
escolha de como representar o corpo violentado da mulher – que, nesse filme, está em
completa exposição. O olhar dos homens no interior da narrativa parece ser perpetuado
tanto no ato do estupro (vemos o estupro pela câmera de Stanley, e assistimos Jennifer
sofrendo, como se fossemos um dos homens ali presentes), quanto no ato da vingança
(Jennifer reproduz as falas e as violências masculinas que já foram feitas contra ela). Se
unem a esses dois olhares o olhar do espectador, que se satisfaz em ver a violência do
segundo ato. A experiencia de assistir a I spit on your grave (2010) enquanto mulher – e
digo por mim e por algumas outras amigas que assistiram a esse filme – é excruciante.
A representação mais gráfica possível de um estupro existe na lógica entre homens,
como um produto de homem para homem.
Essa catarse é, portanto, uma catarse masculina, ou no mínimo construída a
partir do encontro de olhares masculinos. Em Violation (2020) e Promising Young
Woman (2020), filmes que contam com mulheres na direção, argumentamos que essa
catarse é impedida, e com ela, o possível prazer pela violência fica comprometido. Esses

21
According to Laura Mulvey, this eroticization of women on the screen comes about through the way the
cinema is structured around three explicitly male looks or gazes: there is the look of the camera in the
situation being filmed (called the pro-filmic event); while technically neutral, this look, as we’ve seen, is
inherently voyeuristic and usually “male” in the sense that a man is generally doing the filming; there is
the look of the men within the narrative, which is structured so as to make women objects of their gaze;
and finally there is the look of the male spectator (discussed above) which imitates (or is necessarily in the
same position as) the first two looks.
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dois filmes usam alguns recursos específicos para criar essa barreira catártica, e
tentaremos analisar alguns deles. Em Violation (2020), a primeira barreira a essa catarse
da violência é a própria temporalidade do filme. A vingança começa antes de termos
conhecimento do estupro, e, portanto, chegamos a ela sem estarmos investidos de um
ódio ou de um sentimento de “busca por justiça”, como acontece em I spit on your
grave (2010). Temos no filme diferentes linhas temporais. Uma com uma paleta de
cores mais iluminada e solar, que é a temporalidade de antes do estupro. As outras
acompanham o desenrolar da vingança e o futuro em que Dylan havia acabado de ser
morto. Assim que Miriam mata Dylan e sai para se desfazer de seu corpo, a paleta de
cores fica mais sombria e azulada.
Junto a essa quebra temporal que impede um certo investimento emocional na
narrativa, temos também a construção da personagem. Há um aspecto de sedução na
relação entre Dylan e Miriam que subverte a lógica de “bom” e “mau” existente no
imaginário do estupro na sociedade, e que é representada em I spit on your grave
(2010). Quando se fala de estupro, há muitas vezes uma tentativa de relativização ou
mesmo de culpabilização da mulher. Como afirma Nielsson e Dezordi (2018), “a
violência, diante da lógica do estupro, torna-se “merecida” pela vítima que, a rigor, não
é mais tida como vítima, mas numa inversão perversa, torna-se a “culpada”.” E ainda:
“o estupro é o ato em que a outra – a estuprada – não tem nenhuma chance de defesa
porque a priori está condenada.” (p. 194).
É por isso que Greta não acredita em Miriam quando esta tenta contar à irmã
sobre o estupro. Como se o fato do beijo e do flerte anteriores justificassem o estupro
sofrido por Miriam. Uma vez estabelecido um comportamento de sedução, a mulher
estaria condenada a qualquer consequência, seja ela qual fosse. O mesmo acontece em
Promising Young Woman (2020), quando as pessoas preferem tomar a palavra de Al
Monroe contra a de Nina, dando a ele o benefício da dúvida e culpando a Nina por seu
comportamento, já que ela estava bêbada quando foi violentada.
Em entrevista a Christy Lemire, Emerald Fennell comenta a dificuldade inerente
às mulheres de compreender o abuso quando não estavam sóbrias. Lemire diz que o
“álcool acaba sendo a desculpa para todo esse comportamento ruim. Do tipo ‘Ah eu
estava bêbado, ela estava bêbada’”, ao que Fennell responde:

É claro! É algo que é cultural – é uma piada. E tem sido assim há anos.
De forma que fez mulheres e garotas terem vergonha de falar sobre
isso ou mesmo de acreditar que aquilo não era certo. E também é
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muito complicado de acreditar porque é muito endêmico. Isso é outra
coisa. É uma bagunça gigante. [risadas] Esse filme é sobre isso. Não é
sobre o predador tradicional. É sobre as pessoas boas a quem foi dado
esse loophole pela cultura então eles não pensam muito
profundamente sobre isso. Eles simplesmente não olham para isso.
(2022, s/p).22

Assim, a própria construção das personagens, ao sair desse eixo em que os


homens são essas criaturas sujas, vis e grosseiras e as mulheres essas figuras mais puras
e inocentes, atua no impedimento de uma catarse.

Para além disso, o próprio ato de vingança e a sua conclusão são desconectadas,
em ambos os filmes, de um lugar de satisfação. A começar por Miriam: o assassinato de
Dylan é completamente caótico. Miriam tenta matá-lo sufocado, falha, é golpeada,
acaba por enforcá-lo com as próprias mãos, vomita, chora. As cenas são cruas, não há
trilha sonora, apenas os efeitos sonoros dos cortes, golpes e barulhos humanos. Ao
contrário de Jennifer, que se torna uma expert em assassinato e que usa frases de efeito
para matar cada um de seus abusadores, Miriam é uma assassina muito humana. Não há
nada de incrível ou de quase heroico no que faz ao matar o cunhado. É brutal, frio, seco.
Para além disso, o único corpo exposto nu é justamente o corpo de Dylan, mais uma
subversão das imagens de objetificação feminina que muitas vezes aparecem em filmes
desse gênero.
O procedimento em Promising Young Woman (2020) é um pouco diferente. O
filme começa deixando em aberto o que Cassie fazia após revelar aos homens que não
estava bêbada. Chegamos a desconfiar que ela os matasse. No entanto, no encontro com
Neil, vemos o que realmente acontece. Ela o empurra na parede, e pergunta se ele ainda
quer transar com ela, agora que sabe que ela está consciente. Ele diz que não e ela diz
que “nunca ninguém quer”. E vai embora. O clímax, que desconfiávamos que iria
chegar, é interrompido quando Cassie simplesmente sai do apartamento. Para além do
atordoamento que causa aos “caras legais” que encontra, Cassie não faz mais nada, e

22
Alcohol sort of excuses away all that bad behavior. Like: “Oh, I was drunk, she was drunk.” / Of course!
It’s also been a cultural—it’s been a joke. And it’s been banter for years. So that’s made women and girls
ashamed to talk about it or to even believe that it wasn’t right. And also it’s too complicated to believe it
because it’s so endemic. That’s the other thing. It’s just a huge mess. [laughs] That’s what this film is
about. It’s not about traditional predators. It’s just about good people who’ve just, they’ve been given a
loophole by the culture and so they just don’t think too deeply about the loophole. They just don’t look at
it.

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isso deixa uma sensação estranha no espectador, um efeito de inconclusão, como se
precisássemos de mais.
Fennell nos nega assim essa primeira catarse, de ver os homens pagarem pelo
que (quase) fizeram. Mas não para por aí. Depois de decidir retomar a vingança contra
Al Monroe pelo estupro de Nina, Cassie decide invadir sua despedida de solteiro como
uma stripper vestida de enfermeira. Distribui shots para todos os homens, os dopando, e
sobe para o quarto com o futuro noivo. Depois de prender Al Monroe na cama com um
par de algemas, Cassie revela quem é, fala de Nina e sobe em cima dele para gravar com
um bisturi o nome de Nina em sua barriga. Antes que consiga fazer qualquer coisa, Al
se liberta e a mata, sufocada, debaixo de um travesseiro. Al e o melhor amigo se
livrariam juntos do corpo de Cassie, ateando fogo ao seu cadáver. E depois, claro,
seguiriam juntos para seu casamento.
O filme de Emerald Fennell termina com a prisão de Al Monroe, no dia de seu
casamento, com a música de Juice Newton, Angel of the Morning, de pano de fundo.
Cassie arquitetou um plano para ser levado a cabo caso desaparecesse, caso fosse morta.
Dessa forma, terminamos o filme assistindo Al, em lágrimas, ser levado pela polícia,
enquanto Ryan recebe mensagens de texto automáticas do celular de Cassie dizendo que
agora, sim, estava tudo acabado. Mais uma vez, a aparente luminosidade do filme (as
cores vibrantes, as músicas alegres) fazem um contraponto com o lugar obscuro dessa
história. Cassie morre. Sai para realizar sua vingança já ciente de sua possível morte. A
conclusão do filme parece incompleta. A sensação final é amarga uma vez que a atitude
da personagem principal é quase suicida. Cassie vai em direção à morte, até as últimas
consequências, para conseguir algo de uma justiça para Nina, uma mulher que foi
abandona por todos que poderiam tê-la ajudado.
Em Violation (2020), Miriam vai se livrando das partes de Dylan, e, assim a
narrativa nos deixa entender, mistura parte de suas cinzas ao sorvete que preparava para
uma festa de família na casa do casal, Dylan e Greta. Greta segue perguntando de seu
paradeiro e reclamando de seu atraso. As irmãs, que estavam brigadas desde o estupro
de Miriam e da descrença de Greta, vivem uma pequena reconciliação. No entanto, o
final é de extrema melancolia: Miriam, sentada ao lado de Greta, observa as pessoas
conversando, rindo, as crianças brincando... e tomando sorvete. A câmera se aproxima
de seu rosto, e a vemos chorar. Não há sorriso de canto de boca, como com Jennifer; não

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há satisfação, não há prazer. Miriam foi estuprada. Miriam matou um homem. E a vida
nunca mais será a mesma.

Considerações finais

Ao longo deste trabalho, busquei, a princípio, realizar uma breve introdução aos
títulos que são considerados como “rape-revenge movies”, utilizando sobretudo os
critérios de classificação de autoras como Alexandra Heller-Nicholas (2011) e Sarah
Projansky (2001). Procurei ademais demonstrar como uma teoria feminista do cinema
se articula com minha proposta de análise para os três filmes que aqui foram colocados
em comparação. Foi à luz da argumentação crítica dessas autoras que foi possível pensar
as categorias de male gaze e de objetificação que nortearam esta leitura.
Assim, tentei demonstrar como os trabalhos de Emerald Fennell e de Madeleine
Sims-Fewer e Dusty Mancinelli são capazes de subverter uma lógica masculina da
representação, explorando que recursos essas diretoras utilizaram para construir uma
outra perspectiva quando se trata de representar um estupro e sua consequente vingança.
Quando comparados ao filme de Steven R. Monroe – que pode ser lido como um

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exemplo clássico de enredo de rape-revenge –, Violation (2020) e Promising Young
Woman (2020) introduzem elementos que impedem em algum nível o prazer do
espectador tanto em relação à violência sexual quanto ao ato de vingança.
Essas diretoras constroem personagens verossímeis, para além de uma dinâmica
de bem e mal, e escolhem deixar o estupro como coadjuvante, sem representá-lo
explicitamente. Ao fazer isso, essas obras abrem espaço para pensarmos o estupro não
apenas como um ato vil a ser cometido contra mocinhas indefesas (e que justamente por
isso é passível de vingança) mas como uma categoria de discussão política, que deve ser
repensada sob outros ângulos – ângulos, evidentemente, que subvertam o imaginário de
dominação dos corpos femininos que imperam na cultura do estupro. Ângulos
femininos – e feministas.

Bibliografia crítica
ANUÁRIO BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. São Paulo: Fórum Brasileiro
de Segurança Pública, ano 16, 2022. Disponível em:
https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2022/06/anuario-2022.pdf?v=4.
Acesso em 20 de março de 2022.
DOANE, Mary Ann; MELLENCAMP, Patricia; WILLIAMS, Linda. “Feminist Film
Criticism: An Introduction”. In: DOANE, Mary Ann; MELLENCAMP, Patricia;
WILLIAMS, Linda (supervising editors). Re-vision - Essays in feminist film criticism.
The American Film Institute – California, 1984.

HELLER-NICHOLAS, Alexandra. Rape-revenge films – A critical study. McFarland


& Company, Inc. Publishers – North Carolina, 2011.

KAPLAN, Ann E. “Introduction.” In: Women and Film – Both sides of the camera.
Taylor & Francis e-Library - New York, 2001.

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______________. “Is the gaze male?” In: Women and Film – Both sides of the
camera. Taylor & Francis e-Library - New York, 2001.

LEMIRE, Christy. “Emerald Fennell on Promising Young Woman, Responses to the


Film, and More.” Entrevista ao site RogerEbert.com. Março, 2021. Disponível em:
https://www.rogerebert.com/interviews/emerald-Fennell-promising-young-woman-inter
view. Acesso em maio, 2022.

MULVEY, Laura. “Visual Pleasure and Narrative Cinema”. In: Visual and Other
Pleasures. Palgrave – New York, 1989.

NIELSSON, Joice Graciele; WERMUTH, Maiquel A.D. “A ‘carne mais barata do


mercado’: uma análise biopolítica da ‘cultura do estupro’ no Brasil. In: RFD – Revista
da Faculdade de Direito da UERJ. Rio de Janiero, n. 34, dez – 2018. Disponível em:
https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/rfduerj/article/view/26835. Acesso em 20
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PROJANSKY, Sarah. Watching rape: film and television in postfeminist culture.


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SMELIK, Anneke. “Introduction”. In: And the mirror cracked – Feminist Cinema
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_______________. “Silent Violence: On Point of View”. In: And the mirror cracked –
Feminist Cinema and Film Theory. Macmillan Press LTD – Great Britain, 1998.

Filmografia

I spit on your grave. Direção: Steven R. Monroe. Produção de CineTelFilms Inc.


Estados Unidos, 2010.

Promising Young Woman. Direção: Emerald Fennell. Produção de Focus Features.


Estados Unidos, 2020.

Violation. Direção: Madeleine Sims-Fewer e Dusty Mancinelli. Produção de One plus


One. Canada, 2020.

Figura 1

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https://www.imdb.com/title/tt0077713/

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