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Malu: Enquanto [o aborto] não for legalizado, as infelizes das mulheres es-
tão nas mãos deles mesmo [médicos em clínicas clandestinas]. Todo mundo
condena, diz que é crime, diz que é pecado, mas, na hora, todo mundo
fecha os olhos porque um dia pode precisar. Isso chama-se hipocrisia.
(...) [S]e é necessário, se é uma coisa inevitável, por que não legalizar? Por
que não tornar menos sórdido, mais civilizado?
2 Este texto resulta de uma pesquisa que já contou com o apoio da Fapesp, do CNPq e
de bolsistas da Universidade de São Paulo (USP).
3 Evidentemente, há várias correntes no feminismo, mas é possível notar uma linha
geral de luta pelos direitos das mulheres.
4 Sobre o feminismo do período, ver, por exemplo: CORRÊA, Mariza. “Do feminismo
aos estudos de gênero no Brasil: Um exemplo pessoal.” Cadernos Pagu, n.16, 2001, pp.
13-30; GREGORI, Maria Filomena: Cenas e queixas: Um estudo sobre mulheres, relações
violentas e a prática feminista. São Paulo: Anpocs/Paz e Terra, 1993; MORAES, Maria
Lygia Quartim. A experiência feminista dos anos setenta. Araraquara, SP: Editora Unesp,
1990; PONTES, Heloisa. Do palco aos bastidores: O SOS Mulher e as práticas feministas
contemporâneas. Dissertação (mestrado), Unicamp, 1986; SARTI, Cynthia. “Feminismo
e contexto: Lições do caso brasileiro.” Cadernos Pagu n.16, 2001, pp.31-48.
5 Explorei mais esses temas gerais de Malu mulher em ALMEIDA, Heloisa Buarque de.
“Gênero e sexualidade na mídia: de ‘Malu’ a ‘Mulher’.” Trabalho apresentado no 31o
Encontro Anual da Anpocs, Caxambu (MG), outubro de 2007; —————. “Trocando em
miúdos: Gênero e sexualidade na TV a partir de ‘Malu mulher’.” Revista Brasileira de
Ciências Sociais (RBCS), vol.27, n.79, 2012, pp.125-137. Autores como Euclydes Mari-
nho e Armando Costa escrevem os episódios mais politizados, e autores como Manoel
Carlos mantêm roteiros mais conservadores. Escreveram também para o seriado Le-
nita Plonczynski e Renata Pallotini, Walter Negrão, Marta Góes, Aguinaldo Silva, Doc
Comparato, João Carlos Motta, Flavio Marinho, Luiz Carlos Maciel e, a convite, Odete
Lara, Leilah Assumpção, Marina Colasanti e Roberto Freire.
6 CORRÊA, op.cit.
7 Essas reuniões lhe forneceram não apenas material para Malu, mas também para
a minissérie Quem ama não mata (1982). Entrevista com o autor em Memória Globo.
Autores: Histórias da teledramaturgia, Vols. 1 e 2. São Paulo: Globo, 2008, pp.338-339.
9 ALMEIDA, Heloisa Buarque de. Telenovela, consumo e gênero: “Muitas mais coisas.”
Bauru/São Paulo: Anpocs/Edusc, 2003; —————. “Gênero e sexualidade na mídia: de
‘Malu’ a ‘Mulher’.” Trabalho apresentado no 31o Encontro Anual da Anpocs, Caxambu
(MG), outubro de 2007; —————. “Trocando em miúdos: Gênero e sexualidade na TV a
partir de ‘Malu mulher’.” Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.27, n.79, 2012,
pp.125-137; —————. “Pedagogia feminista no formato da teledramaturgia.” In: Micelli,
Sérgio (org.) Cultura e sociedade (Brasil e Argentina). São Paulo: Edusp, 2014.
10 BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and
the Mode of Excess. New Haven: Yale University Press, 1976; XAVIER, Ismail. O olhar e a
cena. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
Para chegar a este que foi o quarto episódio, vale lembrar o que veio antes,
e como os espectadores foram se acostumando com a performance questio-
nadora e pedagógica da personagem. No primeiro episódio (“Acabou-se o
que era doce”), os espectadores entram em contato com a história de Malu
(Regina Duarte), acompanhando sua tentativa de conversar com o marido,
Pedro Henrique (Dennis Carvalho), para tentar renovar um casamento
que lhe parece ter se tornado uma relação formal e falsa, tendo perdido
seu sentido. Para ele, “casamento é assim mesmo”, mas a protagonista
busca uma relação mais verdadeira. Os conflitos nesse episódio mostram
cenas em que ela tenta conversar e esclarecer, diante do desinteresse do
marido. Uma dessas cenas é recorrente na memória sobre o seriado, como
aquela em que Pedro Henrique joga pela janela do apartamento o texto
datilografado dado a ele poucos minutos antes por Malu. A discussão se
torna cada vez mais acalorada até acabar em uma agressão física, que o
espectador entende, pelos diálogos, não ser a primeira. Mas agora Malu
avisa: é o fim; não quer aturar as agressões, quer se opor a uma dupla moral
sexual que supõe “natural” que seu marido “dê umas transadinhas por
aí”. Ela não acredita mais, esta não é mais uma relação verdadeira, ela
precisa “respirar” e “sobreviver”.
Os dois negociam a separação diante inclusive da influência dos pais
– os dela aconselhando sobre seus direitos, a mãe de Pedro Henrique ten-
tando incluir na discussão a herança de seu falecido marido. Conseguir
o desquite significa para Malu inclusive impor-se diante de sua sogra, ao
vincular o pedido dela à sua vontade de definir formalmente a separação.
Na conversa entre Malu e sua amiga Vilma (Natália do Vale), depois do
acontecido, novamente algumas frases reforçam ideias centrais reiteradas
em todo o seriado:
13 Não cabem nesse formato de artigo descrições mais detalhadas do seriado. Algumas
imagens estão disponíveis na internet em sites como Youtube.
14 Analisei mais longamente este episódio em ALMEIDA, op.cit.
15 A menção aqui é à antropóloga Ruth Cardoso, que foi inclusive consultora para a
produção do seriado.
Pois o quarto episódio da série trata, como já vimos, de uma jovem que
busca o aborto voluntário em uma clínica clandestina, com a ajuda da
protagonista. Como já explorado, essa história parece basear-se na ex-
periência pessoal ou pelo menos de geração e de mesma classe social
dos autores, pois relata uma trajetória bem comum quanto à forma e o
Jô: Não, imagina! É uma amiga minha que está com esse problema.
Malu: É um problema! [Jô baixa a cabeça] Eu conheço ela?
Jô: Não, não conhece ela. É a Alaíde. Nem te falei nunca dela. É lá da facul-
dade. Está desesperada. Coitada. [Jô senta na cama, junto à Malu, cabisbaixa]
18 Idem.
19 BOLTANSKI, Luc. “As dimensões antropológicas sobre o aborto.” Revista Brasileira
de Ciência Política, n.7, 2012, pp.205-245.
20 MACHADO, Lia Zanotta. “Os novos contextos e os novos termos do debate con-
temporâneo sobre o aborto.” Série Antropologia, n.419. Brasília: DAN/UnB, 2008.
21 Agradeço a Maria Talib Assad, tanto como bolsista deste projeto, organizando as
matérias de Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e da revista Veja de 1978 e 1979, coletadas
por ela e Ivi Machado, como por seu trabalho de iniciação científica, que explora mais
detalhadamente as matérias da imprensa sobre aborto no período. Ver ASSAD, Maria
Talib. “Aborto e mídia numa perspectiva de gênero.” Relatório de Iniciação Científica,
USP, 2010.
Malu: Eu fui mãe com a tua idade. Eu tinha 19 anos. O que é que é? Você
já está com 18?
Jô: Mas era diferente. Você já estava casada, você queria ter um filho e o
teu marido já estava formado, trabalhava.
Malu: O quê? A Elisa nasceu três semanas antes do Pedro Henrique se
formar. Foi aí que ele começou a vender apartamento.
Jô: E foi também, segundo o que você mesma me contou, que começou
toda a frustração porque ele deixou de batalhar em economia, que era o
que ele curtia, para sustentar a mulher e o filho. Ah, não, muito obrigada.
Sabe o que é, Malu? Eu não posso obrigar Jorginho a abandonar o curso
de arquitetura, que é a paixão da vida dele, para arranjar um emprego e
amanhã ser um cara infeliz. Ah, não, de jeito nenhum.
Malu: Faz sentido, está certo. Faz sentido. De qualquer forma, é tão com-
plicado... Um cafezinho para levantar?
E você pensa que para mim é fácil? Você pensa que eu também não queria
ter o meu canto, ter um cara dividindo a vida comigo? Os meus filhotes
brincando com as galinhas no quintal, tapetinho no banheiro... Só que
Jô: Me larga, me larga, porque eu não sou cachorra. Sou sua filha e o senhor
não é dono de mim. [Se solta com força das mãos dele.] Me larga, me larga!
Moacir: Mas o que foi que ele fez com você?
Jô: O Jorginho não fez nada comigo. Nada que eu não quisesse. Eu não sou
a menininha indefesa que o senhor quer que eu seja, não! Não sou uma pa-
naca que nem minhas irmãs, que o senhor transformou em escravas, não.
Não, senhor! Eu tenho vontade própria. O meu mundo não é seu mundo.
22 O público saberá apenas ao longo dos episódios posteriores que seu Moacir e Jô
reataram.
23 Foi apenas em 2013 que duas novelas (o remake de Saramandaia e a nova produção
Amor à vida) mencionaram o aborto sem considerar a mulher que aborta uma “vilã” do
mal, ou uma mocinha arrependida. No seriado Mulher, exibido entre 1998 e 1999, as
médicas protagonistas socorrem sem julgar mulheres que abortaram, mas se declaram
contra o aborto, e reforçam mensagens de prevenção e anticoncepção, aceitando, no
entanto, os abortos nos termos da lei vigente, como por exemplo, em caso de estupro.
24 TÁVOLA, Artur da. “Maluranda, malurandinha.” O Globo, Cultura, 19 de junho de
1979, p.38, que, no título, faz referência ao seriado Ciranda cirandinha, exibido em 1978.
25 “Malu Mulher provoca polêmica.” Folha de S.Paulo, Ilustrada, 17 de junho de 1979,
p.56.
26 Cláudia Beatriz Agueda. “Aula de egoísmo.” Jornal do Brasil, Cartas do Leitor, 22 de
junho de 1979, p.11.
27 “‘Malu mulher’ em debate.” Caderno B, Jornal do Brasil, 19 de julho de 1979.
28 Sobre a persona pública de certos atores na indústria de Hollywood, ver SOBRAL,
Luís Felipe Bueno. Bogart duplo de Bogart: Pistas da persona cinematográfica de Humphrey
Bogart, 1941-46. Dissertação (mestrado), Unicamp, 2010; WASSON, Sam. Quinta Aveni-
da, 5 da Manhã: Audrey Hepburn, “Bonequinha de luxo” e o surgimento da mulher moderna.
Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
29 O nome star system advém da produção de um sistema de promoção de certas per-
sonalidades públicas, principalmente atores, muito explorado pelos grandes estúdios
de Hollywood nos anos 1930 e 1940. Evidentemente, toda indústria cultural com base
comercial faz isso, e no Brasil, desde os grandes sucessos do rádio, também a vida pes-
soal das estrelas (cantores) era objeto de fofoca pública e promovida pela imprensa
escrita. Sobre o star system de Hollywood, ver SCHATZ, Thomaz. O gênio do sistema: A
era dos estúdios em Hollywood. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.