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O drama moral de

certa pedagogia feminista

Heloisa Buarque de Almeida

Malu mulher: alguns temas da pauta feminista no horário


nobre

Malu: Enquanto [o aborto] não for legalizado, as infelizes das mulheres es-
tão nas mãos deles mesmo [médicos em clínicas clandestinas]. Todo mundo
condena, diz que é crime, diz que é pecado, mas, na hora, todo mundo
fecha os olhos porque um dia pode precisar. Isso chama-se hipocrisia.
(...) [S]e é necessário, se é uma coisa inevitável, por que não legalizar? Por
que não tornar menos sórdido, mais civilizado?

Essa é uma das falas conclusivas do episódio “Ainda não é hora”, do


seriado Malu mulher, exibido em 14 de junho de 1979, no horário das 22h,
pela Rede Globo. Malu é a protagonista do seriado e nesse episódio ajuda
uma jovem a fazer um aborto em uma clínica clandestina. A série visava
atingir como audiência as mulheres de classe média urbana escolarizadas,
e para tanto tratava da história de Maria Lucia, Malu, socióloga, 32 anos,
com uma filha, que se separa no primeiro episódio, buscando, como diz
a canção da abertura, “Começar de novo”,1 encontrar-se consigo mesma
e se libertar do marido e do casamento. O ex, ao longo dos dois anos do
programa e de algumas disputas, torna-se uma pessoa comum, e mesmo

1  De Ivan Lins e Vitor Martins.

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um amigo da protagonista. Os principais antagonistas, contra os quais
ela luta e sobre os quais discute de modo discursivo e didático, eram o
machismo, os preconceitos (de vários tipos, contra negros, homossexuais,
desquitadas etc.), a hipocrisia, o casamento tradicional, a opressão, a vio-
lência (não apenas a dos homens contra mulheres, mas também a urbana,
e até a da polícia). Conjugalidade, autonomia feminina e sexualidade eram
os temas centrais, vistos e questionados em diversos episódios. Eram
pautas fulcrais para grupos feministas (no Brasil e no mundo), particu-
larmente em sua vertente de classe média, como inclusive espelha o perfil
estereotipado da socióloga Malu, construído pela forte ênfase dada ao
trabalho como espaço de realização e libertação, considerando que para
mulheres de camadas populares o trabalho não era visto como “escolha”
e nem afirmação individual.2
No período em que o seriado foi exibido, entre maio de 1979 e dezem-
bro de 1980, suas referências e sua conexão com algumas pautas do femi-
nismo3 eram explícitas. A ONU promoveu em 1975 o Ano Internacional da
Mulher, e a partir de então se observa no Brasil uma crescente visibilidade
do movimento feminista e mesmo de certos movimentos de mulheres não
necessariamente “feministas” em sentido estrito, associadas às demandas
das periferias (tais como a demanda por creches). Todo esse movimento é
central na concepção da personagem e das histórias contadas.
Em linhas gerais, ao longo daqueles dois anos, vê-se Malu discutir for-
mas de desigualdade que afetam especialmente as mulheres: ela rechaça
o casamento tradicional, questionando a dupla moral sexual; defende a
autonomia e a independência feminina; valoriza, como vimos, o trabalho
feminino como realização pessoal; politiza a violência doméstica; e de-
fende a legalização do aborto. Ademais, assim como acontecia com certas
correntes no movimento feminista, defende outras pessoas que sofrem
preconceitos ou que lidam com as desigualdades sociais, como domésti-
cas, homossexuais, negros, deficientes. De acordo com certa postura de
esquerda, questiona inclusive (ainda que indiretamente) o regime militar
e clama pela abertura. Essa associação entre feminismo e uma política

2  Este texto resulta de uma pesquisa que já contou com o apoio da Fapesp, do CNPq e
de bolsistas da Universidade de São Paulo (USP).
3  Evidentemente, há várias correntes no feminismo, mas é possível notar uma linha
geral de luta pelos direitos das mulheres.

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progressista, vinculada à luta pela anistia e contra a ditadura, é muito
lembrada nos trabalhos sobre o feminismo daquele período no Brasil.4
Alguns episódios são bastante explícitos em sua abordagem política,
como esse que defende a legalização do aborto e outro que busca crimina-
lizar a violência doméstica. No entanto, o seriado não é apenas feminista.
Outras vezes é uma concepção essencialista de feminino e de uma sen-
sibilidade feminina que aflora, como já era comum na teledramaturgia,
mesmo com episódios que valorizam noções tradicionais de dedicação
materna – a variação na abordagem segue a diversidade dos escritores
participantes na produção.5 Na visão de Mariza Corrêa,6 o seriado teria
tido o impacto de popularizar alguns temas do feminismo de então. Eu-
clydes Marinho, que participou da equipe de criação (com Armando Costa,
Lenita Plonczynski e Renata Pallotini) e escreveu o primeiro episódio da
série, conta inclusive que, na época, participou de inúmeras reuniões
feministas a convite de Ruth Cardoso e Rosiska de Oliveira, e diz que as
feministas “estavam muito ativas”.7
Mais do que explorar apenas essa associação entre um seriado e al-
guns temas do movimento social de grande repercussão na época, tenho

4  Sobre o feminismo do período, ver, por exemplo: CORRÊA, Mariza. “Do feminismo
aos estudos de gênero no Brasil: Um exemplo pessoal.” Cadernos Pagu, n.16, 2001, pp.
13-30; GREGORI, Maria Filomena: Cenas e queixas: Um estudo sobre mulheres, relações
violentas e a prática feminista. São Paulo: Anpocs/Paz e Terra, 1993; MORAES, Maria
Lygia Quartim. A experiência feminista dos anos setenta. Araraquara, SP: Editora Unesp,
1990; PONTES, Heloisa. Do palco aos bastidores: O SOS Mulher e as práticas feministas
contemporâneas. Dissertação (mestrado), Unicamp, 1986; SARTI, Cynthia. “Feminismo
e contexto: Lições do caso brasileiro.” Cadernos Pagu n.16, 2001, pp.31-48.
5  Explorei mais esses temas gerais de Malu mulher em ALMEIDA, Heloisa Buarque de.
“Gênero e sexualidade na mídia: de ‘Malu’ a ‘Mulher’.” Trabalho apresentado no 31o
Encontro Anual da Anpocs, Caxambu (MG), outubro de 2007; —————. “Trocando em
miúdos: Gênero e sexualidade na TV a partir de ‘Malu mulher’.” Revista Brasileira de
Ciências Sociais (RBCS), vol.27, n.79, 2012, pp.125-137. Autores como Euclydes Mari-
nho e Armando Costa escrevem os episódios mais politizados, e autores como Manoel
Carlos mantêm roteiros mais conservadores. Escreveram também para o seriado Le-
nita Plonczynski e Renata Pallotini, Walter Negrão, Marta Góes, Aguinaldo Silva, Doc
Comparato, João Carlos Motta, Flavio Marinho, Luiz Carlos Maciel e, a convite, Odete
Lara, Leilah Assumpção, Marina Colasanti e Roberto Freire.
6  CORRÊA, op.cit.
7  Essas reuniões lhe forneceram não apenas material para Malu, mas também para
a minissérie Quem ama não mata (1982). Entrevista com o autor em Memória Globo.
Autores: Histórias da teledramaturgia, Vols. 1 e 2. São Paulo: Globo, 2008, pp.338-339.

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feito uma reflexão sobre as construções de gênero na produção televisiva.
Considero que Malu faz parte de um movimento de mudança de cons-
truções simbólicas sobre o feminino na TV brasileira, descolando-se de
heroínas melodramáticas tradicionais e buscando constituir imagens de
uma mulher relativamente “moderna” e menos submissa. Evidentemente,
isso aparece também nas telenovelas a partir do final dos anos 1970, mas
nesse seriado a temática feminista é apresentada de modo didático.
Malu mulher é apresentado – em inúmeros depoimentos, matérias
de jornal, sites, no DVD lançado pela Globo, em entrevistas de Regina
Duarte, Daniel Filho, Dennis Carvalho e nas memórias oficiais, como o
site Memória Globo – como dotado de uma forte relação com o momento
(histórico e social) da vida “das mulheres”. Haveria uma mudança social
em curso que o seriado buscava captar e retratar. Os textos da época de
sua exibição referem-se à associação entre o seriado e o movimento fe-
minista. No entanto, os discursos posteriores de memória da emissora,
como o lançamento em 2004 de um DVD comercial com dez episódios,
entrevistas posteriores sobre a época (exceto as de dois autores, Euclydes
Marinho e Renata Palottini) omitem especificamente o lado “feminista”
do seriado, e ressaltam a noção de uma “emancipação feminina”. Talvez o
termo “feminista” tenha ganhado uma imagem negativa que a publicidade
mais recente da emissora visa evitar.
Assim como os outros seriados nacionais exibidos na mesma época,
Carga pesada e Plantão de polícia, muitas vezes em Malu mulher os auto-
res se inspiram em notícias de jornais e fatos da época para construir a
narrativa. Por exemplo, “Legítima defesa da honra e outras loucuras” (de
Armando Costa) discute violência doméstica por meio do caso de Duca,
que não apenas parece referir-se ao caso de grande repercussão daquele
ano (1980) do assassinato da socialite Angela Diniz pelo empresário Doca
Street, como o título menciona o argumento usado então pelos advogados
para liberarem os agressores que estariam “defendendo a sua honra”. No
episódio “Filhos, melhor não tê-los” (de Marta Góes e Walter Negrão), por
meio da vida de uma doméstica tematizam-se outras questões, como a
vida de uma mãe solteira que é demitida e busca emprego como doméstica,
é confundida com prostituta em certo bairro e sofre violência direta da
polícia. O caso faz menção a certa “operação limpeza” promovida pelo
delegado Richetti, em maio e junho de 1980, no centro da cidade de São
Paulo e que teve como alvo as prostitutas.

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No entanto, as escolhas das narrativas de Carga pesada e Plantão de
polícia parecem remeter com mais frequência a notícias de jornais, como
índice de realidade, ao passo que em Malu mulher, embora também haja
esse recurso como inspiração para os roteiristas, a narrativa remete com
maior frequência à experiência de pessoas comuns que nem sempre se
tornam “notícia de jornal”. Malu é recém-separada, assim como Re-
gina Duarte havia se separado havia pouco, e os dramas pessoais de
casamentos e separações, afins não só à trajetória pessoal da atriz, mas
também dos diretores e alguns autores, são usados na composição das
narrativas. Quando se lê alguns depoimentos e entrevistas dos autores,
atores e diretores, nota-se que o aspecto “real” de Malu refere-se não
apenas à tal “emancipação da mulher” (ou seja, o contexto social), mas
também a fatos por eles próprios vivenciados: separações e desquites,
certos momentos de tensão em um casal que beiram a violência, rela-
ções e conflitos entre pais e filhos, fatos corriqueiros vivenciados que
permitem fazer a ponte com as histórias pessoais de Malu. Assim é que
se unem temas típicos do feminismo de então a experiências pessoais.
Os assuntos mais recorrentes no programa eram conjugalidade, auto-
nomia feminina e sexualidade – temas do feminismo que adentravam
também as relações pessoais das camadas médias urbanas a quem o
seriado se destinava, assim como o contexto social dos profissionais
que trabalhavam na produção. Por outro lado, são aqueles mais afeitos
a esse contexto privado, da vida íntima, que o seriado explora de modo
semelhante às telenovelas.
A produção imaginara inicialmente fazer um sitcom, ou seja, uma
comédia de situação, segundo Daniel Filho. Mas esse modelo foi rejeitado
pelo diretor de programação da emissora, Boni, que indicou que haveria
um abrandamento da censura, e propôs algo mais dramático.8 O fato de a
censura liberar essa programação inicial dos seriados leva os produtores e
autores a ter certeza de que “o Boni tinha razão”: viria a abertura, o rela-
xamento da censura. Os seriados são um sucesso, mas manter a produção
de Malu mulher no primeiro ano resultou em um longo e constante embate
com a censura, e alterações nos roteiros e imagens.

8  FILHO, Daniel. Depoimento ao projeto Memória Globo. Disponível em: http://me-


moriaglobo.globo.com/Memoriaglobo/0,27723,GYE0-5268-268478,00.html

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Tomando-se o primeiro episódio da série, nota-se que, diversa-
mente do imaginado, ainda que repleto de alguns dos mesmos clichês
narrativos e de interpretação das novelas, a mocinha não quer mais
o galã. Quer, em vez disso, se livrar dele e de tudo que o casamento
tradicional representa. O final feliz é invertido: não o casamento, mas
a separação. Esse episódio teve um grande impacto, e o seriado parece
ter condensado temáticas candentes de um modo mais concentrado e
em uma abordagem relativamente mais feminista do que apareciam na
teledramaturgia do período. No entanto, vários desses temas já estavam
lá: a sensualidade de personagens de novelas, as separações e recasa-
mentos que apareciam na produção importada da TV, como filmes,
seriados “enlatados”, e também já havia algum tempo no teatro e nas
canções da MPB.
Nesse seriado, a narrativa de cada episódio tem um tom moral, e há
um discurso pedagógico tanto nas falas de Malu quanto no desdobramento
das cenas e no encadeamento da narrativa. Como já mencionei em outros
trabalhos,9 a narrativa melodramática parece se adequar muito bem a
esses estilos didáticos, de expor e defender certas posturas políticas. Uso
o termo “melodrama” a partir das contribuições de Peter Brooks e da
forma que sua reflexão sobre a literatura é transposta para o cinema e a
televisão na análise feita por Ismail Xavier.10 Brooks propõe uma análise
da literatura que percebe uma “imaginação melodramática” por trás de
narrativas consideradas “realistas” (como a produção de Henry James e
Balzac). Para o autor, o melodrama é um formato com certo caráter peda-
gógico típico de uma sociedade pós-sagrada (moderna). Outras análises
sobre o melodrama já ressaltaram seu caráter pedagógico, e como nesse

9  ALMEIDA, Heloisa Buarque de. Telenovela, consumo e gênero: “Muitas mais coisas.”
Bauru/São Paulo: Anpocs/Edusc, 2003; —————. “Gênero e sexualidade na mídia: de
‘Malu’ a ‘Mulher’.” Trabalho apresentado no 31o Encontro Anual da Anpocs, Caxambu
(MG), outubro de 2007; —————. “Trocando em miúdos: Gênero e sexualidade na TV a
partir de ‘Malu mulher’.” Revista Brasileira de Ciências Sociais (RBCS), vol.27, n.79, 2012,
pp.125-137; —————. “Pedagogia feminista no formato da teledramaturgia.” In: Micelli,
Sérgio (org.) Cultura e sociedade (Brasil e Argentina). São Paulo: Edusp, 2014.
10  BROOKS, Peter. The Melodramatic Imagination: Balzac, Henry James, Melodrama, and
the Mode of Excess. New Haven: Yale University Press, 1976; XAVIER, Ismail. O olhar e a
cena. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

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formato podem caber ideologias distintas no aspecto político, podendo
tender tanto à direita quanto à esquerda.11
Para Brooks, a base do melodrama consiste em um drama moral, que
toma o comum, o ordinário e a vida privada como tema, classifica entre
o bem e o mal, e faz uma narrativa de embates cuja moral final traz uma
“cola social” necessária, repõe valores comuns. Nas palavras de Ismail
Xavier:12

Se a moral do gênero supõe conflitos, sem nuanças, entre bem e mal, se


oferece uma imagem simples demais para os valores partilhados, isto
se deve a que sua vocação é oferecer matrizes aparentemente sólidas de
avaliação da experiência num mundo tremendamente instável, porque
capitalista na ordem econômica, pós-sagrado no terreno da luta polí-
tica (sem a antiga autoridade do rei ou da Igreja) e sem o mesmo rigor
normativo no terreno da estética. Flexível, capaz de rápidas adaptações,
o melodrama formaliza um imaginário que busca sempre dar corpo à
moral, torná-la visível, quando esta parece ter perdido seus alicerces.
Provê a sociedade de uma pedagogia do certo e do errado que não exige
uma explicação racional do mundo, confiando na intuição e nos sentimentos
“naturais” do indivíduo na lida com dramas que envolvem, quase sempre,
laços de família.

Todavia, Xavier destaca que ao longo do século XX as mudanças so-


ciais promoveram um imaginário marcado pela psicologia moderna e
pela lógica de uma sociedade capitalista e de consumo. Em muito da
produção cultural contemporânea, o conflito entre bem e mal é explici-
tado na oposição entre pessoas autênticas e hipócritas. Essas convenções
narrativas acerca da oposição entre bem e mal em seus novos e discretos
formatos destacados por Xavier são evidentes em Malu mulher. Exploro
então, neste artigo, como o drama moral sobre o aborto é apresentado,
no episódio citado, de modo que mostra como a própria personagem cen-
tral é aos poucos convencida a ajudar sua amiga a realizar um aborto em

11  Ver THOMASSEAU, Jean-Marie. El melodrama. México: Fondo de Cultura Económica,


1989; MEYER, Marlise. Folhetim: Uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
12  XAVIER, op.cit., p.91.

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uma clínica. Vê-se aqui algumas convenções narrativas do drama moral
típico do melodrama modernizado da televisão, como explora Xavier em
seu trabalho, e como a narrativa parece tentar convencer o espectador a
entender o ponto de vista favorável à legalização do aborto.

Malu: socióloga, separada, feminista

Para chegar a este que foi o quarto episódio, vale lembrar o que veio antes,
e como os espectadores foram se acostumando com a performance questio-
nadora e pedagógica da personagem. No primeiro episódio (“Acabou-se o
que era doce”), os espectadores entram em contato com a história de Malu
(Regina Duarte), acompanhando sua tentativa de conversar com o marido,
Pedro Henrique (Dennis Carvalho), para tentar renovar um casamento
que lhe parece ter se tornado uma relação formal e falsa, tendo perdido
seu sentido. Para ele, “casamento é assim mesmo”, mas a protagonista
busca uma relação mais verdadeira. Os conflitos nesse episódio mostram
cenas em que ela tenta conversar e esclarecer, diante do desinteresse do
marido. Uma dessas cenas é recorrente na memória sobre o seriado, como
aquela em que Pedro Henrique joga pela janela do apartamento o texto
datilografado dado a ele poucos minutos antes por Malu. A discussão se
torna cada vez mais acalorada até acabar em uma agressão física, que o
espectador entende, pelos diálogos, não ser a primeira. Mas agora Malu
avisa: é o fim; não quer aturar as agressões, quer se opor a uma dupla moral
sexual que supõe “natural” que seu marido “dê umas transadinhas por
aí”. Ela não acredita mais, esta não é mais uma relação verdadeira, ela
precisa “respirar” e “sobreviver”.
Os dois negociam a separação diante inclusive da influência dos pais
– os dela aconselhando sobre seus direitos, a mãe de Pedro Henrique ten-
tando incluir na discussão a herança de seu falecido marido. Conseguir
o desquite significa para Malu inclusive impor-se diante de sua sogra, ao
vincular o pedido dela à sua vontade de definir formalmente a separação.
Na conversa entre Malu e sua amiga Vilma (Natália do Vale), depois do
acontecido, novamente algumas frases reforçam ideias centrais reiteradas
em todo o seriado:

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Malu: Estou aprendendo a me defender, né?
Vilma: Mas é isso que eu sempre te falei. Mulher para viver sozinha tem
que saber se defender.
Malu: Engraçado que homem não tem vergonha de ser agressivo. E mulher
tem, por que ter esse pudor, né?
Elisa: Mamãe, do que é que vocês estão falando, hein?
Malu: Que mulher não tem que ser essa coisinha frágil, indefesa, não.
Mulher tem que saber ser agressiva também de vez enquanto, saber lu-
tar para se defender, enfim... Vai aprendendo porque a barra é pesada,
minha filha.13

É preciso saber se defender, lutar, impor-se: todo o seriado voltará a


essa ideia inúmeras vezes, e em muitas delas será Malu explicitando essa
noção para Elisa ou alguma outra mulher ou jovem necessitando de sua
ajuda. O feminino precisa ser forte, imagem que certamente permeia
também outras produções da teledramaturgia com foco em persona-
gens femininas. Certamente essa é uma das mensagens didáticas mais
repetidas ao longo de todo o seriado e que estava se tornando recorrente
também nas telenovelas da época.
Ainda nesse episódio, Malu e Pedro se aproximam na hora de separa-
rem os discos, e acabam tendo uma relação sexual, que termina melan-
colicamente. Depois de finalizarem os trâmites da separação no fórum, a
cena final do episódio mostra Malu sozinha em casa, pés descalços sobre
a mesa, sorridente, quando chega sua filha, e senta a seu lado. As duas
brincam com os pés descalços, em uma singela cena de proximidade entre
mãe e filha, em que a câmera mostra os pés em primeiro plano e os rostos
sorridentes das duas ao fundo, dando a sensação de muita intimidade e
afeto entre as duas. Depois de vários conflitos para definir e conseguir
realizar a separação, a sensação é de alívio e de certa libertação, como
sugere a canção tema, “Começar de novo”.14
No segundo episódio, “Bendito fruto”, escrito por Lenita Ploczinsky, o
roteiro trata da situação de Malu buscando dar conta das muitas tarefas, a

13  Não cabem nesse formato de artigo descrições mais detalhadas do seriado. Algumas
imagens estão disponíveis na internet em sites como Youtube.
14  Analisei mais longamente este episódio em ALMEIDA, op.cit.

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difícil relação entre ser mãe, separada, trabalhar fora, cuidar da filha, dar
conta das “tarefas do lar”. Outro tema caro ao feminismo está em jogo: a
dupla jornada. Ela se angustia por um incidente em casa com Elisa, em que
seus pais e a vizinha a socorrem: será que ela está “abandonando” a filha
por trabalhar fora? Por outro lado, tem todo o jargão sociológico: as tarefas
do lar, que “não entram no circuito monetário e que, portanto, não são
contabilizadas como parte do produto social”, e isso é parte importante
do trabalho feminino. “Qual o ordenado de uma dona de casa?” (ainda
que Malu tenha, irregularmente, empregada doméstica ou diarista). Ela
discute com a Dra. Rute, com quem trabalha,15 como está se angustiando
com essa situação, e como se sente culpada por não dar a devida atenção à
filha. Larga o trabalho por um tempo para cuidar melhor de Elisa, mas isso
gera outros conflitos entre elas, e então tenta ensinar a filha a se cuidar,
cozinhar, a arrumar a casa, para não ser “escrava” de Elisa, como a mãe
dela foi. Não quer que a filha seja uma “burguesinha incapaz” – nota-
-se aqui um vocabulário muito usado pelas feministas de esquerda, e
uma preocupação em fazer algo diverso do que seria o padrão da geração
anterior. Volta a procurar trabalho, e exige que Pedro Henrique também
cuide de Elisa e arrume tempo para ela. Ao final, afirma que, se os filhos
são sagrados, o trabalho também é. A moral da história é que, apesar das
dificuldades, é possível fazer as duas coisas: “Se eu conseguir trabalhar e
ser mãe é porque muitas mulheres também poderão fazer o mesmo e isso
quer dizer que o sonho da mulher de ser livre e independente não precisa
ser só um sonho. Pode ser verdade.”
O terceiro episódio, “De repente, tudo novamente”, escrito por Ar-
mando Costa, fala do prazer sexual e do encontro consigo mesma que
esse prazer pode significar. É o episódio que tem a primeira cena de or-
gasmo feminino na TV brasileira, também muito lembrada por algumas
espectadoras. Nele, a mãe de Malu a vê tomar pílula anticoncepcional e
pergunta, inocentemente, por que o faz, se está separada. A atitude res-
ponsável de contracepção é normalmente tratada no seriado por meio do
uso da pílula anticoncepcional. Nessa narrativa, Malu tem pela primeira
vez uma relação sexual depois da separação, em um envolvimento afetivo

15  A menção aqui é à antropóloga Ruth Cardoso, que foi inclusive consultora para a
produção do seriado.

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que não se desdobra num namoro ou paixão, mas que é apresentado como
uma relação delicada entre dois amigos. A primeira vez entre eles não é
muito boa, mas a segunda gera em Malu um encontro de si mesma: “Hoje,
com você, eu aprendi que posso ser mulher de novo. Como eu era antes.
Você foi o primeiro depois do Pedro Henrique. Eu estou leve, voando...”
O orgasmo é representado pela mão de Malu abrindo-se em um espasmo.
É nesse episódio que aparece pela primeira vez a noção do prazer sexual
como realização, encontro de si, como um aspecto muito importante não
apenas na relação entre duas pessoas, mas como um valor para o sujeito
que vivencia o prazer, uma realização. Essa concepção será posteriormen-
te muito reiterada na dramaturgia da Globo, associada inclusive a certa
mudança no padrão sexual, com maior “liberação feminina”.16
Novamente, esse foi um dos temas caros ao feminismo na época,
particularmente o feminismo mais associado à classe média: a noção de
um direito ao prazer, o orgasmo como um valor, uma forma de libera-
ção. Mais ainda, nesse episódio a relação sexual não se restringe nem ao
casamento nem a um namoro mais estável; pode aparecer em termos de
uma faceta carinhosa e “liberada” entre amigos. Trata-se de uma relação
delicada e afetiva, mas não necessariamente um encontro amoroso nem
a formação de um casal.

“Ainda não é hora” ou por que é preciso legalizar o aborto

Pois o quarto episódio da série trata, como já vimos, de uma jovem que
busca o aborto voluntário em uma clínica clandestina, com a ajuda da
protagonista. Como já explorado, essa história parece basear-se na ex-
periência pessoal ou pelo menos de geração e de mesma classe social
dos autores, pois relata uma trajetória bem comum quanto à forma e o

16  Em outros trabalhos – ALMEIDA, Heloisa Buarque de. “Gênero e sexualidade na


mídia: De ‘Malu’ a ‘mulher’.” Trabalho apresentado no 31o Encontro Anual da Anpocs,
Caxambu (MG), outubro de 2007; —————. “De Malu a mulher: Gênero, sexualidade e
feminismo na TV.” In: Cancela, Cristina; Moutinho, Laura; Simões, Julio (orgs.): Raça,
etnicidade, sexualidade e gênero em perspectiva comparada. São Paulo: Terceiro Nome, no
prelo –, já discuti como essas ideias sobre sexualidade e prazer aparecem em Malu de
modo mais didático, ao passo que trinta anos depois, na teledramaturgia, estão natu-
ralizadas e dadas como óbvias.

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contexto que faz com que muitas jovens busquem o aborto inseguro. Os
argumentos ali usados são muito parecidos com o que mostram diver-
sas pesquisas empíricas sobre aborto no Brasil, no caso de mulheres de
camadas médias e com maior escolaridade,17 embora a personagem que
aborta no programa seja de camada popular. O que explica a decisão pela
interrupção voluntária da gravidez, no entanto, é o argumento da esco-
larização, do desejo de fazer faculdade e se profissionalizar, argumento
provavelmente próximo socialmente dos produtores. O mesmo vale para a
escolha por uma clínica clandestina e mais cara e elitizada do que outros
métodos (como o uso de remédios) e o fato de a narrativa combinar melhor
com relatos de aborto de mulheres de camadas médias e altas.
No episódio, Malu atua apenas auxiliando, já que o núcleo é a histó-
ria de Jô (Lucélia Santos), filha do porteiro do prédio. Na cena inicial, a
protagonista conversa na cozinha com seu Moacir, nordestino que faz um
pequeno serviço na casa dela, e logo se revela ser ele o porteiro do prédio
e falam de sua filha, Joseneide (Jô). Na cena seguinte, Jô vem à casa de
Malu e elas conversam no quarto sobre o trabalho que a socióloga quer lhe
oferecer: datilografar uma tese de 250 páginas. Aos poucos, nessa cena,
Jô vai abaixando a cabeça e sua expressão torna-se cada vez mais tensa
e, de uma tese sobre “controle de natalidade” que ela já teria datilogra-
fado para outra amiga de Malu, aparece o tema da gravidez. Ao longo da
conversa, que se torna pessoal, Jô revela seu desespero diante da gravidez
não planejada, que ela não confessa ser com ela, mas inicialmente revela
de modo indireto, falando de “uma amiga”.

Jô: Não, imagina! É uma amiga minha que está com esse problema.
Malu: É um problema! [Jô baixa a cabeça] Eu conheço ela?
Jô: Não, não conhece ela. É a Alaíde. Nem te falei nunca dela. É lá da facul-
dade. Está desesperada. Coitada. [Jô senta na cama, junto à Malu, cabisbaixa]

17 Como RAMÍREZ, Martha Célia. “A propriedade do corpo.” Cadernos Pagu, n.15,


2000. Mais dados sobre os padrões de aborto voluntário no Brasil em artigos como
BARBOSA, Regina; Arilha, Margareth. “A experiência brasileira com o Cytotec.” Re-
vista Estudos Feministas, vol.1, n.2, 1993, que demonstram que o método mais comum
nas camadas populares é o uso do misoprostol, e a recente pesquisa de DINIZ, Débora;
Medeiros, Marcelo. “Aborto no Brasil: Uma pesquisa domiciliar com técnica de urna.”
Ciência e Saúde Coletiva, vol.15, 2010, pp.959-966.

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Malu: Como é que aconteceu, realmente?
Jô: Ela descobriu que estava grávida, mas ela não pode ter esse filho de
jeito nenhum.
Malu: Não pode, por quê?
Jô [irritada, perturbada]: Não pode porque não dá! Porque não é casada.
Malu: Casa, ué!
Jô: Mas, não dá para casar agora. É impossível. Não tem condição.
Malu: E o pai da criança?
Jô: É o namorado dela.
Malu: Então?
Jô: Ele nem sabe. Eles são só namorados. Nem noivos eles são. Ele também
é estudante, nem trabalha, nem nada! Nunca pensaram em casamento,
que filho! São duas crianças! [começa a se alterar]

Aqui aparece o primeiro argumento a favor da interrupção da gravi-


dez, de fato muito usado entre pessoas com maior escolaridade, de cama-
das médias e altas: apesar de os jovens serem namorados e de haver um
compromisso, uma relação estável que justifique a prática sexual, “ainda
não é hora” para a maternidade e a paternidade. São moços demais, ainda
estão na faculdade, não têm trabalho, uma forma de sustento econômico
para cuidar de uma criança. E, assim, Jô revela que “a amiga” que está
grávida é ela própria.
O diálogo continua e Malu questiona por que ela não evitou, e pergun-
ta pela pílula, ao que a jovem responde que nem sempre se lembra de to-
mar. Nota-se que a personagem de Regina Duarte não é de início favorável
aos argumentos de Jô, e que sua postura vai se modificando, tornando a
decisão do aborto algo paulatinamente explicado na narrativa. Vê-se aqui
outro ponto muito recorrente nesse seriado e mais disseminado na tele-
dramaturgia posterior: certa popularização de uma visão psicanalítica.
Para Malu, o “esquecimento” de tomar a pílula é revelador de um desejo
inconsciente – por trás dos atos e dos pensamentos conscientes (no caso,
não querer ter filhos ainda), há sempre um inconsciente, outra verdade
mais profunda. Ao longo desse diálogo, que se torna cada vez mais tenso,
veem-se outros pontos aproximando aquele caso e as formas de decisão
pelo aborto em mulheres de camadas médias e altas escolarizadas.18

18 Idem.

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Jô pede que Malu mantenha segredo: “Ninguém pode saber.” Outro
ponto comum em narrativas sobre aborto: quando a mulher está pensando
em abortar, ninguém mais deve saber, para que não haja uma gravidez
socialmente reconhecida.19 A relação da moça com o pai a faz ter certeza
de que é preciso manter um segredo – tanto da gravidez, como de sua já
inferida decisão de não a levar adiante. Ela teme que seu Moacir reaja de
modo violento ao descobrir que a filha não é mais virgem. Malu insiste
para que ela pense melhor. Jô tem, portanto, mais um problema a enfren-
tar: a moralidade sexual e o conservadorismo do pai. Aos poucos, os mo-
tivos que justificam uma decisão pelo aborto tornam-se mais evidentes.
No limite, o episódio coloca a posição feminista e mais associada aos
discursos sobre aborto em camadas médias de alto capital cultural: só a
mulher pode decidir, e essa decisão, pessoal, é complexa e envolve di-
versas questões. Mas é uma decisão individual. É a mulher, como pessoa,
como sujeito, que deve decidir, como era mais recorrente no discurso
feminista acerca do tema na década de 1970.20 Como em todo o seriado,
trata-se de reforçar a ideia de que as mulheres devem ser sujeitos de di-
reito, cidadãs completas. Mas o termo “direitos”, que aparece em outros
episódios, não é explicitado aqui. Cabe destacar que, na época, tanto
França quanto Itália haviam recentemente legalizado o aborto, e essas
notícias estavam então presentes na imprensa. Em 1978 e 1979, o jornal
Folha de S.Paulo publicou 58 matérias tratando do aborto, e trazia uma
coluna de Irede Cardoso que propagava ideias do feminismo.21
Malu retoma em outra cena a ideia de que Jô deveria discutir o tema
com o namorado, mas é dissuadida pela explicação de que os pais de
Jorginho não aceitam o namoro, porque ela é apenas a filha do porteiro.
Predominam as gírias da época, e Jô diz que Jorginho “enfrenta uma barra”

19  BOLTANSKI, Luc. “As dimensões antropológicas sobre o aborto.” Revista Brasileira
de Ciência Política, n.7, 2012, pp.205-245.
20  MACHADO, Lia Zanotta. “Os novos contextos e os novos termos do debate con-
temporâneo sobre o aborto.” Série Antropologia, n.419. Brasília: DAN/UnB, 2008.
21  Agradeço a Maria Talib Assad, tanto como bolsista deste projeto, organizando as
matérias de Folha de S.Paulo, Jornal do Brasil e da revista Veja de 1978 e 1979, coletadas
por ela e Ivi Machado, como por seu trabalho de iniciação científica, que explora mais
detalhadamente as matérias da imprensa sobre aborto no período. Ver ASSAD, Maria
Talib. “Aborto e mídia numa perspectiva de gênero.” Relatório de Iniciação Científica,
USP, 2010.

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com os pais. A ideia de que a situação é uma “barra” serve para tratar de
diversos temas e, nesse caso, para revelar o preconceito enfrentado pelo
casal. Jô explica que os pais do namorado acham que ela quer dar o “golpe
do baú”, casando-se com ele, e que ele, por reação, pode querer casar
apenas para “agredir a família”. A ideia de um casamento “antes da hora
certa” também parece um problema, que inclusive foi vivido por Malu
(explicitado no primeiro episódio, quando ela menciona que se casou por
ter engravidado), e seu caso pessoal serve de mais uma justificativa para
que Jô decida pelo aborto:

Malu: Eu fui mãe com a tua idade. Eu tinha 19 anos. O que é que é? Você
já está com 18?
Jô: Mas era diferente. Você já estava casada, você queria ter um filho e o
teu marido já estava formado, trabalhava.
Malu: O quê? A Elisa nasceu três semanas antes do Pedro Henrique se
formar. Foi aí que ele começou a vender apartamento.
Jô: E foi também, segundo o que você mesma me contou, que começou
toda a frustração porque ele deixou de batalhar em economia, que era o
que ele curtia, para sustentar a mulher e o filho. Ah, não, muito obrigada.
Sabe o que é, Malu? Eu não posso obrigar Jorginho a abandonar o curso
de arquitetura, que é a paixão da vida dele, para arranjar um emprego e
amanhã ser um cara infeliz. Ah, não, de jeito nenhum.
Malu: Faz sentido, está certo. Faz sentido. De qualquer forma, é tão com-
plicado... Um cafezinho para levantar?

A convenção de “normalidade” do contexto de Malu: um cafezinho,


uma conversa na cozinha, onde Jô conta que ela também não está prepa-
rada para ser mãe e tem outros planos antes de se casar, afinal “as coisas
têm o seu tempo”. Mesmo assim, a socióloga insiste: “Tá. Eu concordo. Eu
só não entendo como você pode ser tão objetiva, racional. Não te toca? Não
te emociona saber que tem uma vida que está se desenvolvendo dentro
de você?” Jô chora, não é uma decisão fácil:

E você pensa que para mim é fácil? Você pensa que eu também não queria
ter o meu canto, ter um cara dividindo a vida comigo? Os meus filhotes
brincando com as galinhas no quintal, tapetinho no banheiro... Só que

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ainda não é hora. Eu sei que não é. Sabe o que é, Malu? A vida já me deu
muito cacete. Meu pai já me deu muito cacete. Tudo que eu consegui foi
com muito esforço e eu não quero perder. Eu não quero perder agora. Eu
não quero perder o Jorge e também não quero que ele se perca por causa de
um esquecimento meu. (...) Por isso é que eu preciso que você me ajude.

Assim, aos poucos, Malu vai sendo convencida da razão e de que a


decisão pelo aborto é a melhor, neste caso. Ela leva Jô a uma consulta
com seu ginecologista, mas o Dr. Pompeu não apenas se recusa a ajudar
no aborto, como avisa do perigo do procedimento e ainda aconselha Jô a
aceitar a maternidade, como “a função psicobiológica da mulher”. Esse
personagem permite certo debate do tema, e traz o outro ponto de vista,
os argumentos opostos aos de Jô. A maternidade é linda, não se deveria
abortar, e, como é ilegal, há riscos. Depois revela seus princípios católicos:
“A vida é uma dádiva de Deus e dela só ele pode dispor”, e desconversa
lembrando suas outras pacientes que o esperam. Ainda afirma que se ela
levar a gravidez adiante pode contar com ele como obstetra. Assim, esse
personagem permite a visão contrária, o argumento religioso – a vida é
uma dádiva de Deus – e essencializante – a maternidade como função
natural da mulher. Mas Jô não recusa a maternidade de todo, apenas
considera que não é a hora.
Ela conta que sua prima conhece uma clínica que não deve ser tão
cara, pois a outra jovem também é “dura” como ela. Não é Malu que co-
nhece esses meandros da ilegalidade – embora ela ajude a amiga, sua
ingenuidade em alguns momentos será destacada, e é parte central na
construção de uma personagem “do bem”. Jô precisa que alguém venha
junto, e pede a Malu que a acompanhe. Na entrada na clínica, um lugar
apertado, vários casais, todos tensos, as mulheres são chamadas pelo
número da ficha – umas entram, outras saem. Ouvem-se conversas em
off, com closes em Malu e Jô, dando a impressão de que, para algumas mu-
lheres que esperam na sala, o aborto virou um procedimento corriqueiro.
Jô tem medo do que pode acontecer, mas não hesita na decisão. O
médico (Cecil Thiré) pergunta ironicamente: “Você tem certeza que você
quer desistir dessa coisa maravilhosa que é ser mãe?” Jô, sempre com ar
preocupado, ansioso, afirma que sim e ele diz que entende, pois cada um
tem suas razões. Em seguida, aconselha e indica o remédio que ela deve

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tomar depois. O médico dá as instruções para que Jô se deite na maca, e
ela se coloca em posição ginecológica. O enfermeiro se aproxima para dar
anestesia. Nessa parte não há falas, só uma música, como de suspense.
Passa a imagem do enfermeiro apertando o braço com um elástico para
procurar a veia, e aplicando a injeção. Malu espera, aparentemente preo-
cupada (ou aflita?), na sala de espera.
Jô está adormecida na sala de intervenção. O médico coloca uma pin-
ça com sangue, juntamente com o instrumental usado – o único objeto
ensanguentado é a pinça que deixa, o restante está limpo. A música de
suspense permanece. Vê-se o médico (da cintura para cima) em um movi-
mento como de curetagem. Enquanto isso, Malu espera, fuma um cigarro
ao lado de um homem nervoso que também fuma, e, como Jô demora a
sair, se aflige. Entra de repente uma mulher vestida de branco e pergunta
quem está com a “Moça 20” (o número da senha). Malu, aflita, encontra
Jô meio sonolenta ainda, e acaba tendo uma discussão com o médico, que
explica que ela está bem, mas que teve que tomar mais anestésicos, por
isso demorou mais a acordar. Mas ela exige quase de modo ingênuo que
ele se responsabilize pelo estado da amiga.

Médico [sorrindo de modo irônico]: Você é engraçada. [muda a expressão,


passa para a irritação] Veio aqui porque ninguém aí fora quis resolver teu
problema, ninguém quis fazer o serviço sujo. OK, eu faço. Eu corro o risco,
mas as regras do jogo são estas.
Malu: O que é que o senhor está pensando?
Médico: Espera aí, que eu ainda não acabei! Você acha caro Cr$ 2.500
para livrar sua amiga de uma situação penosa? Tem gente que cobra me-
nos, tem gente que cobra mais. Eu já ouvi falar em 20 mil para moças da
nossa sociedade. Meu preço é esse. O preço do risco, ou você pensa que
a impunidade lhe vai sair de graça? [o médico sai]
Malu: Devia chamar a polícia.
Médico [voltando]: Devia, mas não vai. Sabe por quê? Porque, diante da
lei, a sua amiga é tão culpada quanto eu. De um a três anos de cadeia. Só
por isso! [vai embora]

Estrito senso, o médico é mais criminalizado do que a mulher, a pena


é maior para ele. Mas a fala dele explicita: é crime, tem pena, ela também

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é culpada perante a Justiça. As mulheres são, portanto, criminalizadas e
esse é um ponto que deixa Malu indignada.
Na casa da protagonista, Jô sente-se mal, reencontra o namorado
(Fábio Júnior), para quem conta toda a verdade: diz que “tirou” um filho
deles. Ele responde que vai lhe dar todo o apoio, é carinhoso e gentil,
mostra-se preocupado com ela. Enquanto Malu deixa os namorados con-
versando, em seu quarto, o pai de Jô, o zelador Moacir, toca a campainha
para pedir a chave do carro dela, mas ela entende mal a chegada de seu
Moacir e acaba contando que Jô está no seu quarto. Ele entra no quarto e
fica espantado com a cena, sua filha sentada na cama ao lado do namo-
rado, e reage de acordo com sua moral, falando com sotaque nordestino:
“Joseneide! Mas que pouca vergonha é essa! Levante dessa cama!” Malu
explica que ela não está bem e que já chamou o médico, mas mesmo assim
seu Moacir tenta agredir Jorginho, perguntando o que ele fez com sua
filha. Volta-se e segura os braços da filha:

Jô: Me larga, me larga, porque eu não sou cachorra. Sou sua filha e o senhor
não é dono de mim. [Se solta com força das mãos dele.] Me larga, me larga!
Moacir: Mas o que foi que ele fez com você?
Jô: O Jorginho não fez nada comigo. Nada que eu não quisesse. Eu não sou
a menininha indefesa que o senhor quer que eu seja, não! Não sou uma pa-
naca que nem minhas irmãs, que o senhor transformou em escravas, não.
Não, senhor! Eu tenho vontade própria. O meu mundo não é seu mundo.

Há aqui um evidente conflito de gerações em torno de construções e


normas de gênero, família e moral sexual, do tipo que foi mais explorado
no seriado Ciranda Cirandinha (exibido em 1978), aliás, com esses mes-
mos atores, Lucélia Santos e Fábio Júnior. Diante da cena dramática que
se montou no quarto de Malu, Jô resolve então “contar tudo” ao seu pai
“porque assim a gente não tem nada que fingir”. É uma posição muito
semelhante à de Malu em termos de ser uma pessoa sincera e transparen-
te, que não tem sentimentos fingidos, que é franca e honesta. Esse tipo
de franqueza e honestidade das personagens é muito usado na oposição
maniqueísta entre personagens que são do “bem” por oposição àqueles
cujas intenções e interesses são dissimulados, configurando certa matriz
melodramática que permeia as narrativas da mídia contemporânea. É

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com essa dicotomia entre verdadeiros e hipócritas que se percebe que a
narrativa melodramática se moderniza na televisão, mas mantém uma
matriz semelhante, como afirma Ismail Xavier. Por isso, Malu não havia
sequer conseguido mentir para Moacir.
Há um conflito entre Moacir e Jorginho e a chegada do Dr. Pompeu,
a quem Malu tinha telefonado, rompe a cena um tanto melodramática,
mas que dá o tom que parece surgir ao final quanto à história de Jô. Depois
de fazer o aborto escondido inclusive por temor dessa reação do pai, ela
rompe com ele, enfrenta-o abertamente – prefere a sinceridade, ainda
que isso lhe custe ter que sair da casa paterna. É como se o episódio inteiro
fosse o processo de afirmação da jovem como adulta – uma espécie de
rito de passagem, com uma marca corporal. O aborto aparece como uma
decisão de um processo de amadurecimento.
O médico afinal diz, depois de examinar a moça, que está tudo bem,
e que ela vai ficar bem. Mas adverte que o que elas fizeram é uma loucura
e muito arriscado, e então Malu dá seu recado, com a fala que abre este
artigo, apontando para a hipocrisia da sociedade brasileira e defendendo
a legalização do aborto.
Ainda há uma cena em que Jô conta a Malu seus planos de se casar
e ter filhos, “como todo mundo”. Ela cozinha delícias e associa o fato de
fazê-lo à maternidade, a alimentar outra pessoa, e sonha em ter muitos
filhos e cuidar deles. O fato de abortar significa apenas adiar a maternida-
de. Vê-se nessa cena as oportunidades em que as personagens se afirmam
como feministas, mas negociam com certas construções de gênero mais
tradicionais: a mãe que alimenta, “coisa de mulher”, inclusive essencia-
lizando a característica. Mas com ressalvas que demandam a divisão do
trabalho doméstico.
O episódio termina com a jovem saindo do apartamento de Malu
decidida a procurar o pai para conversar, e tentar reatar. Se ele a aceitar
de volta, ela volta a morar com ele. Quer fazer as pazes, pois ainda não
queria ter que sair de casa. Afinal, por isso inclusive fez o aborto. Mas, se
não der certo, terá que “encarar”. Não se sabe, ainda nesse episódio, o que
aconteceu, ele termina em aberto.22 Nessa tomada de posição favorável à

22  O público saberá apenas ao longo dos episódios posteriores que seu Moacir e Jô
­reataram.

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legalização do aborto, o seriado foi de fato bastante ousado e talvez único
na história da TV brasileira. O “crime” é a legislação restritiva.

Reações e os sentidos negociados nas narrativas

Surpreendentemente, o texto foi aprovado pela censura sem meias pala-


vras, sem sugestões indiretas. Ele é muito claro em seu discurso favorável
à legalização do aborto, de um modo então inédito na TV brasileira, e que
ainda não vi se repetir a partir dessa abordagem de defesa de direitos
das mulheres.23 No entanto, esse foi o episódio que parece ter gerado
mais polêmica na imprensa escrita, mesmo no caso de jornalistas que
se demonstravam admiradores declarados do seriado, como o colunista
do jornal O Globo Artur da Távola. Este chocou-se com o episódio sobre
o aborto, no qual “teria ocorrido um erro grave e um retrocesso”.24 Do
seu ponto de vista, o erro grave teria sido por parte de Euclydes Marinho
(o autor) em tratar o problema do aborto “de forma superficial e juvenil”,
fazendo uma “apologia do aborto legal”. Távola diz ser contra o aborto,
embora o respeite como um assunto sério. O que o incomodou foi uma
“trama incoerente e absurda”, que misturaria boas ideias e tomadas de
posição românticas. Para ele, houve apenas um “proselitismo do aborto
legal”. O lado positivo foi a denúncia contra as clínicas brutais e ilegais
e o fato de a televisão estar discutindo um tema como esse, o que antes
teria sido impossível.
Na Folha de S.Paulo, uma crítica sobre esse episódio, “‘Malu mulher’
provoca polêmica”,25 traz uma postura favorável ao episódio e outro co-
mentário indignado pela defesa da legalização, trazendo dois pontos de

23  Foi apenas em 2013 que duas novelas (o remake de Saramandaia e a nova produção
Amor à vida) mencionaram o aborto sem considerar a mulher que aborta uma “vilã” do
mal, ou uma mocinha arrependida. No seriado Mulher, exibido entre 1998 e 1999, as
médicas protagonistas socorrem sem julgar mulheres que abortaram, mas se declaram
contra o aborto, e reforçam mensagens de prevenção e anticoncepção, aceitando, no
entanto, os abortos nos termos da lei vigente, como por exemplo, em caso de estupro.
24  TÁVOLA, Artur da. “Maluranda, malurandinha.” O Globo, Cultura, 19 de junho de
1979, p.38, que, no título, faz referência ao seriado Ciranda cirandinha, exibido em 1978.
25  “Malu Mulher provoca polêmica.” Folha de S.Paulo, Ilustrada, 17 de junho de 1979,
p.56.

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vista opostos. No Jornal do Brasil, a carta de uma leitora 26 que se mostra
indignada e chocada com o episódio o qualifica como uma “propaganda
do aborto”, que iria contra o “Ano Internacional da Criança”, e estaria
desafiando o amor mais puro (o materno), defendendo um ato que vai
“contra os planos de Deus”.
Há também uma reação indireta positiva. Não explicitando nenhum
comentário ao seriado, uma ampla matéria da Folha de S.Paulo sobre abor-
tos no Brasil é publicada cerca de um mês depois da exibição do episódio
(em 29 de julho de 1979). Com a chamada “Brasil, mais de 3 milhões de
aborto por ano”, tenta trazer um panorama sobre as clínicas, as conse-
quências e sequelas da proibição, abrangendo vários aspectos do tema.
Indiretamente, a matéria parece favorável à legalização, ou pelo menos à
descriminalização. Diversamente do seriado, cujo conteúdo se concentra
em uma história particular e discute de modo pessoalizado a temática,
o jornal enfatiza os temas mais associados à saúde pública e às conse-
quências sociais da proibição, associando a legislação restritiva às mortes
maternas (calculada em cerca de 340 mil ao ano) e ao custo do aborto
ilegal em clínicas clandestinas.
Os profissionais da produção do seriado são cobrados publicamente
por esse episódio, e tentam relativizar a postura que parece predominar
na narrativa. Quando Daniel Filho é perguntado diretamente por um
jornalista como tivera a coragem de colocar no ar um episódio que fa-
zia uma “apologia ao aborto”, ele nega, dizendo que Malu seria contra o
aborto e que, se entenderam isso, não houve essa intenção.27 No entanto,
é evidente que ao final do episódio Malu defende a legalização, embora
tenha inicialmente questionado Jô e tenha sido convencida dessa decisão.
O entrevistador pergunta por que não foi a própria Malu a viver o pro-
blema do aborto. Daniel Filho responde que a personagem da Malu tem
um tipo de consciência que a impediria de ficar grávida e de ter que fazer
um aborto. Ela tem uma consciência racional, e dá exemplos de falas da
Malu nos episódios. O entrevistador pergunta se não foi por medo do que
iriam pensar da “namoradinha do Brasil” fazendo um aborto. Daniel Filho
responde que não, pois Malu é contra o aborto.

26  Cláudia Beatriz Agueda. “Aula de egoísmo.” Jornal do Brasil, Cartas do Leitor, 22 de
junho de 1979, p.11.
27  “‘Malu mulher’ em debate.” Caderno B, Jornal do Brasil, 19 de julho de 1979.

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Nesse ponto, como em outros episódios, é evidente que o seriado
permite certa negociação de sentidos: o texto da protagonista é direto e
favorável a uma “legalização”. Mas quem “fala” também por meio de Malu
é outra persona pública: Regina Duarte. Essa atriz representa também uma
figura típica das “estrelas” e celebridades.28 A imagem pública da doce
e bela mocinha foi predominante na carreira da atriz, que veio de uma
família sem recursos do interior de São Paulo, entrou para a televisão por
meio da publicidade, estreando em novelas com 18 anos como uma das
protagonistas em Véu de Noiva (1965), de Ivani Ribeiro, na TV Excelsior.
Regina, que havia sido a ingênua e doce Ritinha em Irmãos Coragem (1970),
par romântico do então galã Claudio Marzo, havia personificado também
a Patrícia de Minha Doce Namorada (1971), de onde ganhara o apelido de
“namoradinha do Brasil”, então promovido pela indústria cultural e seu
star system.29 Some-se a esses personagens a sofredora Simone de Selva de
Pedra (1972), a meiga Cecília de Carinhoso (1973) e a pacificadora Bárbara de
Fogo sobre Terra (1974-75), sempre a boa moça e par romântico de atores-
-galãs. Em 1977, a atriz tenta, aos poucos, mudar sua imagem pública,
vivendo a personagem título questionadora e quase feminista de Nina,
novela das 22h. Sua persona pública era, apesar de Nina, ainda a de “na-
moradinha” – boa e bela moça, sempre do lado do bem nas tradicionais
oposições maniqueístas das telenovelas. De certa forma, parece-me que
essa imagem de Regina Duarte, que tanto permeia Malu, só muda um pou-
co a partir da viúva Porcina, em Roque Santeiro (1985). Considero, assim,
que é apenas porque Regina Duarte tinha essa imagem que tal discurso

28  Sobre a persona pública de certos atores na indústria de Hollywood, ver SOBRAL,
Luís Felipe Bueno. Bogart duplo de Bogart: Pistas da persona cinematográfica de Humphrey
Bogart, 1941-46. Dissertação (mestrado), Unicamp, 2010; WASSON, Sam. Quinta Aveni-
da, 5 da Manhã: Audrey Hepburn, “Bonequinha de luxo” e o surgimento da mulher moderna.
Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
29  O nome star system advém da produção de um sistema de promoção de certas per-
sonalidades públicas, principalmente atores, muito explorado pelos grandes estúdios
de Hollywood nos anos 1930 e 1940. Evidentemente, toda indústria cultural com base
comercial faz isso, e no Brasil, desde os grandes sucessos do rádio, também a vida pes-
soal das estrelas (cantores) era objeto de fofoca pública e promovida pela imprensa
escrita. Sobre o star system de Hollywood, ver SCHATZ, Thomaz. O gênio do sistema: A
era dos estúdios em Hollywood. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.

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abertamente feminista sobre o aborto – tema ainda tabu – pôde ser feito,
e foi liberado pela censura.30
Escolhi exatamente debater aqui o tema que gera mais polêmica, e
nem tanto o que se tornou mais consensual no país, como a valorização do
trabalho e da autonomia feminina muito recorrente também nas novelas
dos anos 1980 e 1990. Mas ele também decorre de um esforço em entender
essa teledramaturgia feita para o público feminino, que é grande parte
do sustento econômico da TV comercial aberta. E, no estudo sobre essa
ampla produção cultural, esse episódio destoa completamente – e con-
sidero que por isso ainda gera polêmica. Ele parece mais surpreendente
por ter sido exibido em uma época em que tais temáticas sofriam forte
censura. Considero que é nas suas ambiguidades que se pode entender
melhor sua veiculação na época, e é diante da reação pública negativa a ele
que se explica por que o tema não volta à pauta na mídia contemporânea.

30  Sobre a negociação de sentidos na produção e na recepção dos filmes de Holly-


wood, ver GLEDHILL, Christine. “Pleasurable Negotiations.” In: Pribram, E. Deidre
(org.). Female Spectators: Looking at Film and Television. Londres: Verso, 1988. Sobre
como isso se deu em um seriado policial de TV que inspira minha interpretação, ver
D’ACCI, Julie. Defining Women: Television and the Case of Cagney & Lacey. Chapel Hill,
EUA: University of North Carolina Press, 1994.

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