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Artigo CONFLUÊNCIAS

O ENCARCERAMENTO FEMININO
Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito
ISSN 1678-7145 || EISSN 2318-4558

O ENCARCERAMENTO FEMININO
Uma história de vida de uma detenta do
presídio Nilza da Silva Santos

Maria Luiza Lacerda Carvalhido


Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro.
E-mail: mlcarvalhido@gmail.com

RESUMO
O presente artigo é um desdobramento da dissertação de mestrado em Sociologia
Política apresentado à Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro
no ano de 2016 e tratará da história de vida de uma detenta do presídio feminino
Nilza da Silva Santos, localizado em Campos dos Goytacazes. Esse presídio é o
único presídio feminino no norte e noroeste fluminense. Através da metodologia
de história de vida com abordagem qualitativa, pretende-se compartilhar a expe-
riência dessa mulher no cárcere, com a intenção de contribuir para o debate da
criminalidade feminina e a visibilidade das mesmas.
Palavra-chave: história de vida; mulher; encarceramento

ABSTRACT
The article is an expansion of the master ‘s dissertation in Political Sociology
presented to the State University of the North Fluminense Darcy Ribeiro in the
year of 2016 and will deal with the life history of a female presidium Nilza da
Silva Santos, located in Campos dos Goytacazes. This prison is the only female
prison in the north and northwest of Rio de Janeiro. Through a methodology
of life history within a qualitative approach, the aim is to share the experience
of this woman in prison, with the intention of contributing to the debate about
female crime and the visibility of women.
Keywords: life history; woman; incarceration

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CARVALHIDO, Maria Luiza Lacerda

INTRODUÇÃO Com a intenção de dar voz a essas


Esse artigo é um desdobramen- mulheres, a metodologia utilizada se
to da minha dissertação de mestrado baseia na abordagem qualitativa à luz
em Sociologia Política apresentada da técnica de História de Vida. Dessa
na Universidade Estadual do Nor- forma, trata-se das histórias de pes-
te Fluminense Darcy Ribeiro no ano soas e daquilo que elas fazem, ou seja,
de 2016 e se insere num conjunto de não se trata de pessoas boas ou más,
estudos que já tem problematizado a trata-se apenas de pessoas. Assim, ou-
prisão e o sistema prisional brasileiro, vir essas mulheres encarceradas e ob-
contudo sem ter contemplado a ques- servar seu cotidiano prisional foi es-
tão das mulheres encarceradas no Pre- sencial para interpretar as formas de
sídio Nilza da Silva Santos, localizado vivenciar o cárcere, seus significados
em Campos dos Goytacazes, no norte e estratégias de enfrentamento.
fluminense e suas histórias de vida. O Becker (1993), diz que a história de
objetivo desse artigo é estudar, especi- vida não é um “dado” para a ciência so-
ficamente, as experiências dessas mu- cial convencional, embora tenha algu-
lheres no cárcere, contribuindo, assim, mas de suas características por se cons-
para o debate acerca da criminalidade tituir numa tentativa de reunir material
feminina e visibilidade das mesmas. útil para a formulação de teoria socio-
O Brasil conta com uma população lógica geral. Por sua forma narrativa e
de 579.781 pessoas custodiadas no Siste- descritiva, a história de vida compar-
ma Penitenciário, sendo 37.380 mulheres tilha com a autobiografia seu formato,
e 542.401 homens. No período de 2000 a seu ponto de vista na primeira pessoa
2014 o aumento da população femini- e sua subjetividade. Obviamente, a his-
na foi de 567,4%, enquanto a média de tória de vida não é uma ficção, mesmo
crescimento masculino, no mesmo pe- que os documentos mais interessantes
ríodo, foi de 220,20%, refletindo, assim, que utilizaram a história de vida pos-
a curva ascendente do encarceramento suam uma sensibilidade, um ritmo e
em massa de mulheres e mesmo assim o uma dramaticidade que qualquer ro-
encarceramento feminino obedece a pa- mancista adoraria conseguir.
drões de criminalidade muito distintos A história de vida é utilizada, nes-
se comparados aos do público masculi- te trabalho, como auxiliadora parti-
no. É importante, destacar que há uma cularmente útil para fornecer uma
deficiência de dados e indicadores sobre visão do lado subjetivo de processos
o perfil de mulheres encarceradas nos institucionais. Muito embora as teo-
bancos de dados oficiais o que contribui rias se interessem mais pela ação das
para a invisibilidade dessas mulheres. instituições do que pela experiência
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individual, elas ou presumem alguma me e vingança. Dessa forma, na lógica


coisa sobre a maneira como as pes- da ação do crime a posição da mulher
soas experimentam esses processos, foi negada uma vez que ela é considera-
ou, pelo menos, levantam questões da como incapaz para o crime.
sobre a natureza desta experiência. Perruci (1983), diz que a principal
Corroborando, Becker (1993) diz questão ligada à criminalidade femini-
que se a história de vida quando bem na é que os autores não diferenciam a
feita e conduzida pelo pesquisador, é criminalidade feminina da masculina
capaz de fornecer todos os detalhes do pelo fato de que a participação feminina
processo analisado, onde apenas ha- na criminalidade geral é proporcional-
veria a habilidade de especulação. A mente insignificante à masculina, além
história de vida é capaz de descrever das mulheres serem discriminadas em
as interações cruciais nos quais novas quase todos os sentidos no plano das
fronteiras de atividade individual e co- relações sociais concretas.
letiva são forjadas, nos quais novos as- Almeida (2001) salienta que à ques-
pectos do eu são trazidos à existência. tão da criminalidade dificulta a aceita-
Isso acarreta uma base realista, que ser- ção social da inserção da mulher no uni-
ve para lançar luz sobre organizações e verso do crime. Quando a mulher é vista
reorientar campos estagnados. como autora de um crime, de modo ge-
Conhecer o espaço prisional e as re- ral aparece como cúmplice de homens,
presentações sociais desse espaço reali- como aquela que maltrata crianças ou
zadas pelas próprias detentas se traduz que se envolve em crimes passionais.
em apreciar essas mulheres enquanto Por muito tempo, os crimes de aborto e
sujeitos que compõem autonomamente infanticídio (crimes ligados à materni-
suas histórias, como narradores e ato- dade) eram os únicos crimes ligados às
res principais, sendo possível, ainda, mulheres. A maioria desses crimes nem
reconstruir a dinâmica das relações co- eram identificados, pois aconteciam na
tidianas travadas na unidade prisional. esfera privada. (SOUZA, 2009).
Bahia (2012) ainda destaca que o
A MULHER NO SISTEMA movimento feminista marcou os estu-
PRISIONAL BRASILEIRO dos que discutiram violência, gênero
De acordo com Oliveira (2012), a e justiça. Esses trabalhos discutiram
criminologia que é o estudo do crime, as práticas jurídicas como estruturas
não analisa de forma profícua os crimes de manutenção e produção de hierar-
de mulheres. Historicamente, os crimes quias sociais e de gênero; debateram a
praticados por mulheres foram associa- vitimização das mulheres pelo Poder
dos a crimes movidos pela paixão; ciú- Judiciário e pelos seus companheiros,
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e quando discutiram o fato de as mu- dada ao instinto maternal e confinada


lheres serem produtoras de violência, ao espaço privado da casa, não teria
arrolaram tais atos à autodefesa em motivações fortes para se envolver no
resposta à violência sofrida. discurso sobre a vida pública e muito
Rinaldi (2007) citando Heilborn menos em problemas como a violên-
(1982) enfatiza que, nos campos sócio cia, portanto, seria incapaz de matar.
antropológico e histórico brasileiros, Foi nos últimos anos – principal-
desde o surgimento das investigações mente a partir de 2006, ano em que a
sobre relações entre gênero e Direito, Lei de Drogas recrudesceu, tornou-se
houve a tendência em abordar a mu- mais rígida no que diz respeito à pena
lher como vítima. Apesar de todas as por tráfico – que o número de mulhe-
mudanças ocorridas nas ultimas déca- res recrutadas para o tráfico de drogas
das, esta imagem ainda vigora com vi- aumentou significativamente. São elas
talidade no imaginário social. O rom- em sua maioria, mães solteiras e po-
pimento com tal imagem leva a mulher bres. (FREITAS, 2010). Segundo Soares
a ser alvo de dupla penalização: a pri- (2002) apud Bahia (2012), certamente o
meira é jurídica (a mulher é igual ao novo cenário desenhado pelo alastra-
homem pela natureza do delito). A se- mento do tráfico de drogas ampliou o
gunda é moral, já que socialmente seu leque e as chances, tanto para homens
papel é arcar com as responsabilidades como mulheres de praticar infrações.
domésticas e familiares. Assis e Constantino (2000) encon-
O encarceramento feminino com- traram duas principais formas da inser-
põe o processo de reprimir, encerrar e ção feminina no tráfico. Uma acontece
repreender as mulheres tanto no espaço por ser “mulher de bandido”, a qual se
público quanto no privado. Ainda se- sujeita aos mandos masculinos e assim
gundo, Lemgruber apud Chies (2004) é iniciada pelo parceiro. Muitas das ve-
a mulher presa é duplamente estigma- zes na tentativa de entrar com drogas
tizada como transgressora, tanto da nos presídios masculinos alocadas den-
ordem social quanto de seu papel ma- tro da vagina, escondidas nas roupas ou
terno e familiar; numa sociedade que é até mesmo em sacos dentro do estôma-
fruto de ideologia machista e patriarcal. go. A segunda é a entrada independente
Almeida (2001) salienta que as do parceiro, mas muitas vezes facilita-
características de gênero atreladas à da por parentes e amigos. A influência
questão da criminalidade dificultam masculina se faz perceptível, mas não se
a aceitação social da inserção da mu- torna um fator determinante.
lher no universo do crime. A mulher, Segundo Luxemburgo (2010), nesse
considerada anatomicamente frágil, contexto do tráfico de drogas as mulhe-
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res, crianças e adolescentes são usadas Durante a realização do mestrado,


como peças fundamentais para a ma- obtive junto ao Centro de Estudos e Pes-
nutenção dessa economia. Esses atores quisa EGP/SEAP autorização para co-
são abordados e tratados numa lógica nhecer as instalações da unidade prisio-
de exploração e opressão sistemática nal Nilza da Silva Santos, mas não obtive
que se constrói nas relações patriarcais. autorização para falar com as detentas e
Assim, as próprias mulheres assumem nem realizar registros fotográficos ou de
a reprodução desta lógica, e realizam as áudio no interior da unidade.
piores funções da organização na eco- Entretanto, nos dias de visitação,
nomia criminal, onde são controladas e ficava no portão principal observando
submissas aos homens, cumprindo re- os familiares. É sabido que as mulheres
gras e ordens masculinas de âmbito táti- quase não recebem visitas então a mi-
co, comportamentais, moral, influindo, nha presença era facilmente percebida.
inclusive, em determinadas condutas Em um dos dias que estive lá, escutei
sexuais femininas que são, para os ho- um “Psiu. Psiu. Moça?”. Olhei meio
mens, consideradas erradas. desconfiada e fiz o gesto apontando
Ainda segundo Luxemburgo (2010), para mim, como se estivesse pergun-
as mulheres são consideradas instru- tando: “tá falando comigo?”. A senhora
mentos, objetos e portanto estão mais balança a cabeça num gesto positivo.
sujeitas ao encarceramento, já que a Essa senhora, que por questões éticas
cultura machista parte por desqua- e legais chamarei de Carla, me chama e
lificar a vida das mulheres, além de, pergunta se eu estava ali para visitar al-
também, muitas das vezes, pela mes- guém e como eu estava grávida, se qui-
ma motivação, se submeterem em de- sesse poderia passar na frente dela. D.
fesa e cuidado do outro e assumirem Carla era a primeira da fila e esse lugar
riscos para que companheiros e filhos é bem disputado. Nesse momento, meu
não sejam aprisionados. universo de pesquisadora se ampliou, o
primeiro contato estava estabelecido.
A HISTÓRIA DE VIDA DE ANA A minha gestação durante o traba-
O presídio feminino Nilza da Silva lho de campo me proporcionou uma
Santos, por ser o único presídio femi- sensibilidade extrema às questões e si-
nino localizado no norte fluminense, tuações enfrentadas pelas mulheres que
na cidade de Campos dos Goytacazes, estavam encarceradas e com as que usa-
atende à Região dos Lagos e o noroeste vam a tornozeleira de monitoramento
fluminense. Possui 224 vagas e enfren- eletrônico de pessoas. Fiquei seis meses
ta o superlotamento, assim como os realizando o trabalho de campo no pre-
outros presídios do Brasil. sídio feminino Nilza da Silva Santos. E
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CARVALHIDO, Maria Luiza Lacerda

foram muitas histórias ouvidas e com- ro, ofereço uma carona para elas. No
partilhadas, algumas com uma natura- percurso até a casa da D. Carla, que foi
lidade que me impressionava. longo, explico sobre a pesquisa para a
Me aproximo da senhora e falo Ana e isso me rendeu um convite para
que não iria visitar ninguém, estava um café no dia seguinte.
apenas observando a fila e as pessoas Durante o café no dia seguinte, na
pois era pesquisadora e estava estu- copa, havia uma mesa com uma toa-
dando as mulheres encarceradas. D. lha com desenhos estampados na cor
Carla era uma senhora negra e fran- vermelha, com um bolo, uma garrafa
zina, com os cabelos vermelhos e que de café e água. A casa estava extrema-
estava sempre fumando. Ela não quis mente organizada, limpa e cheirosa. Li-
me falar a idade, só disse que tinha vi- teralmente, elas haviam preparado tudo
vido muito. É aposentada e trabalha para a minha visita. Ana vestia um ves-
tomando conta da filha da vizinha tido estampado de flores e usava chine-
que tem 3 anos. “Recebo uma merre- los. A casa não era muito grande e a D.
ca, mas já é alguma coisa. Gente velha Carla e a menina que ela tomava conta
não consegue emprego fácil não, ainda estavam na sala vendo televisão.
mais se não tem estudo como eu”. Segui meus planos e como sempre
Muito simpática, D. Carla, me con- iniciava a conversa com a mesma per-
ta um pouco da sua vida e o que esta- gunta norteadora: O que te levou a ser
va fazendo naquela fila. “Como você presa?, com Ana não foi diferente. Ela
tá grávida, nem vou fumar aqui, pode diz que: “Eu era muito levada e ai me
ficar tranquila.”. Isso porque já era o envolvi e comecei a andar com gente
segundo cigarro que ela apagava. Ela errada. E gostava das aventuras, ficava
estava aguardando sua filha mais nova, até de madrugada na rua. E um dia um
que chamarei de Ana. Ana tem 33 anos amigo pediu para mim guardar uma coi-
é mãe de três filhos e carrega mais um sa e como eu não sei dizer não, eu fui e
em seu ventre. Foi presa por tráfico de guardei. Até que chegou a hora que eu
drogas, condenada há 12 anos e 7 meses perdi. A casa caiu! Caí na denúncia. Al-
e já cumpriu mais de 05 anos da sua guém vazou que eu estava guardando as
pena. Naquele dia, Ana estava saindo de paradas na minha casa. Mas eu nunca
VPF – Visitação Periódica à Família. fui usuária de droga não.”.
Depois de algum tempo conversan- Antes de continuar pergunto a Ana
do com a D. Carla a Ana sai. As duas se poderia gravar a nossa conversa,
nitidamente emocionadas se abraçam para que posteriormente eu não per-
por algum tempo. Pergunto como elas desse ou esquecesse alguma coisa que
irão para casa e como estava de car- ela estava disposta a falar. Prontamen-
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te, ela acena com a cabeça e diz que não tem nada, eles não te dão atenção,
sim. Diante disso, tiro o gravador da te maltratam e destroem sua autoesti-
bolsa, coloco em cima da mesa e o ligo. ma. Você vale o que tem lá dentro.
Toda a transcrição da conversa foi rea- E pergunto como são os dias den-
lizada e consta como acervo do diário tro do presídio. Ana diz que “os dias
de campo de pesquisa do mestrado. são sempre os mesmos. Acordo e vou
Continuei perguntando, como foi para a fila do banho e depois do confe-
chegar no presídio feminino e se era a re, que é quando o sinal bate e elas vão
primeira vez que ela estava sendo pre- conferindo a gente - de dia ela conta e a
sa? Estar dentro do presídio é horrível. E noite ela canta o nome - eu fico aguar-
o pior que tem gente que vai e volta. Foi a dando o almoço para ir trabalhar. Saio
minha primeira e última vez. E quando do trabalho por das 18h, 18h e pouqui-
eu cheguei lá, como não conhecia, pen- nha, tomo banho e vou dormir.”.
sei que lá era o bicho. E tinha o medo de Você trabalha lá dentro? O que
negócio de sapatão, porque o pessoal fala você faz? Eu já trabalhei fazendo tudo
um monte de coisa assim, e quando che- lá dentro: capinando, na cozinha, na
guei lá eu vi que não tem nada haver. É cantina e agora estou no ambulatório
só respeitar. Na minha cela tem um casal ajudando o médico. Eu pego remédio,
e elas até dormem na mesma cama.”. tiro xerox, pego prontuário... Tem dois
Na minha cela tem 20 meninas e só médicos e eles estão lá terça e quinta e
uma que não foi condenada por tráfi- quarta e sexta. E aí eu trabalho nesses
co, as outras 19 todas foram. Parente, dias junto com as enfermeiras. Tem duas
é regra, tem que ficar junto na mesma enfermeiras também. Quando acabar
cela... a única que dorme no chão sou de tirar a cadeia, vou fazer um curso de
eu... eu sou meio doida, tem dia que es- Técnico em enfermagem... o doutor dis-
tou de bom humor e tem dia que não se que levo jeito e que me ajuda a conse-
estou, ninguém tem culpa. guir um emprego num hospital.
A noite é a pior hora... pior hora Quando estou trabalhando eu te-
porque a gente tá preso né, não pode nho acesso a tudo lá dentro e todos os
fazer nada, não tá livre, não tá perto lugares. ‘Ana, pega um leite na cozinha,
da gente que a gente gosta. Tem que Ana vai lá na galeria e pega um papel...’
fazer tudo dentro do horário que eles e por aí vai. Quando não tem ninguém
falam. Lá é o lugar das pessoas sonsas, para trabalhar e eu puder ajudar, igual
sabe? Dissimuladas. Você tem que sa- foi agora na páscoa, saiu todo mundo e
ber conviver com um monte de gente ai não tinha ninguém para ficar na co-
falsa. O povo gosta de mim, mas não zinha e nem na bolsa. Nessa época eu
tenho amizade, amizade assim. Se você estava na cantina ainda.
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Depois das dez horas da noite, você bonete. E agora lá está sem doação, com
não pode falar de cela para cela, dentro pouca... antigamente tinha mais doação.
da própria cela pode, mas tem que ser Desde quando eu entrei as coisas só pio-
baixinho. Quase não usa mais a libras raram. Se não tiver dinheiro e visita fica
para falar lá dentro e eu demorei muito a mercê do Estado e isso quer dizer, fica
para aprender a falar em libras. Aquele abandonada e sozinha. Teve uma vez eu
negócio não é fácil não e são as próprias ainda estava no fechado, teve uma lá que
presas que ensinam. Elas falavam pra não tinha visita nenhuma mesmo e que
mim os palavrões e depois eu dividia em foi ao banheiro e como não tinha papel
sílabas e conseguia falar uma ou outra higiênico, ela pegou uma blusa e foi se
palavra. Mas aprendi primeiro a falar limpar com isso. Ai quando eu vi, ainda
palavrão para depois ir aprender as ou- trabalhava na custódia eu fui falei com a
tras palavras. Mas nunca fui de ficar em encarregada e toda semana ela separava
grade gritando, fazendo bagunça... sigo o o papel higiênico para ela. O que acon-
seguinte ditado quem não é visto não é tece muito lá e que eu acho errado é que
lembrado, já basta o que eles me veem tem que ter consciência, se você tem vi-
durante o dia quando estou trabalhando. sita deixa para quem não tem visita ne-
A noite, depois do trabalho eu já entro nhuma, porque esse pessoal não tem da
pra cela caindo de sono, então eu vou onde tirar mesmo.
deito e durmo e não fico caçando fofoca, Luxemburgo (2010) nos diz que
e nem saber o que está acontecendo. o Estado Penal ainda pune as mulhe-
Ana entendia o trabalho como res amontoando-as nas prisões sem se
uma forma de ocupar o tempo, sair um atentar minimamente para condições
pouco da cela e da rotina do presídio. pertinentes às questões de gênero. São
Dessa forma o trabalho apresentava mulheres aprisionadas em instituições
oportunidades e regalias que as outras e organizações internas essencialmen-
detentas não desfrutavam. Sem contar te masculinas, que sofrem com a falta
que o trabalho oferece a oportunidade de cuidados e atendimentos especiais
de remissão de pena. por serem mulheres, como o direito à
Na minha cela tinha televisão, rádio visita íntima, o cuidado às gestantes,
e umas 20 mulheres. Todas dormem em a questão da saúde específica e a falta
suas comarcas. As comarcas são camas de distribuição adequada de produtos
só eu que durmo no chão. Tem muita de higiene pessoal (absorventes, papéis
gente que não tem visita nenhuma e so- higiênicos em quantidade maior que a
brevive com o que o Estado dá e com aju- recebida pelos homens detidos, e etc.).
da das coleguinhas. A gente dividi papel Continuo e pergunto: Ana o que é
higiênico, pasta de dente, absorvente, sa- bolsa? Me explica o que significa traba-
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lhar na bolsa? Bolsa é quando a família vem tudo pronto. Agora a gente pode
vem e trás a sucata, aí a gente carrega pegar na custódia R$ 80.00 de 15 em 15
para a custódia. A sucata é comida, dias e isso não dá para nada porque a
roupa, dinheiro, tudo que a família trás cantina vende as coisas muita caro. Um
para a presa no dia da visita. Custódia frango é R$20.00, um refrigerante de
é o lugar onde colocamos as coisas que 600ml R$6.00, uma lasanha R$17.00...
chegam com a visita e que vão ficar para e quando você ver já gastou mais de
as presas. Aí eu e mais duas ficava na R$80.00 e já tá devendo. A pior coisa
cozinha, ajudava lá e na cantina. Ai eu que você pode fazer dentro de um presí-
acho que se a gente ajudar vai ser ajuda- dio é ficar devendo, e aí não importa se
do também, não adianta ficar lá dentro é devendo a cantina ou à alguém.
e ser rebelde. Eu penso assim, ninguém Eu conheci uma menina, nem era
tem culpa de eu estar lá dentro, a grande muito nova, mas tinha pouco tempo que
culpada sou eu, então eu não tenho que tava no Nilza. Ela tinha visita sempre
maltratar funcionários e nem ninguém e e sempre tinha grana. Até que um dia
trato todos com respeito e assim elas me as visitas foram diminuindo e a menina
tratam com respeito também. acabou. Não saia da cela pra nada. Toda
Me fala sobre a cantina e cozinha. semana ela tava no ambulatório pedin-
Como funcionam lá no Nilza? A comi- do remédio para dormir. E lá o doutor
da é horrível. Sempre vem alguma coisa autoriza a quem quiser tomar remédio
estragada. Quando funcionava a cozi- para dormir e a farmácia tem o remédio
nha, que era só para as funcionárias, para dar. Rum, essa menina assim como
eu trabalhava fazendo comida e como muitas outras, ficou viciada em remé-
trabalhava lá almoçava lá mesmo. E na dio para dormir. Quando acabava o
época, para não jogar fora, a direção remédio da farmácia, ela fica tão doida
deixava dar para as meninas que iam que já chegou a quebrar tudo dentro da
trabalhar na obra. Só comi bem lá den- cela. Então, quando precisava ela com-
tro quando trabalhei na cozinha. Agora prava das outras colegas que já sabiam
a comida é terceirizada e vem de bri- que tinha uma galera viciada nessa pa-
lhante. Brilhante é quentinha. Quando rada. Elas faziam um dinheiro lá den-
era a panelona era melhor, mas agora tro pra ter o luxo... beber água gelada,
de brilhante é muito ruim, horrível. fazer cabelo, comer comida diferente,
Vem comida estragada de verdade e é biscoito recheado... E essa menina fi-
bem comum isso acontecer. cou devendo uma grana alta para outra
A cantina é um lugar onde você lá que era a ‘rainha’ dos remédios. Ela
pode comprar de tudo. Tem de tudo na não tinha como pagar, então trabalhava
cantina. Ela trás a comida de fora. Já pra ela. Lavava a roupa dela, limpava a
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CARVALHIDO, Maria Luiza Lacerda

cela dela, e então num dia de confere as e minha mãe na visita e acabo dividin-
agentes encontraram um celular na cela do a comida com elas. Porque mãe tam-
delas, quem teve que assumir? A doida bém é um negócio complicado... faz tudo
viciada em remédio que tava devendo. que gostamos de comer e leva na visita.
Com isso ela deve ter umas sete faltas Tudo que nunca fez por nós aqui fora faz
graves e isso só atrasa a saída dela. Eu quando tamo preso. Agradeço muito a
fico com pena, mas lá dentro é cada um minha mãe por tudo que ela fez e ainda
na sua. Chamei para conversar, tento faz por mim. Sabe, eu tenho três filhos e
explicar e tal...mas elas não ouvem. Se um deles mora aqui com minha mãe e é
acham tudo bicho solto, mas não veem ela quem sustenta ele. Ele tem dez anos
um palmo na frente do nariz. e é um rapaz. Tenho muito medo dele se
Nesse momento, percebo que den- envolver com as pessoas erradas, e sem-
tro do presídio feminino Nilza da Silva pre falo para ele como é ficar lá dentro...
Santos, as meninas estão mais susce- pra fazer terror mesmo.
tíveis a problemas emocionais e isso Ele também já foi me visitar algumas
ocasiona um tráfico de drogas lícitas. vezes com minha mãe. Mas num dia, a
São medicamentos, considerados de D. Márcia, que era diretora, ela gostava
uso controlado pela Anvisa, e que elas muito de mim, me chamou num canto e
tem acesso de forma indiscriminada- me deu uma lição que nunca mais esque-
mente dentro da unidade prisional, ci. Ela falou na moral, sem gritar, apon-
basta informar ou se queixar com o tar dedo, e disse que cadeia não é lugar
profissional da saúde que possui difi- de criança. Ela bateu o papo reto e olho
culdades para dormir. no olho. Que a criança precisa conviver
Diante dessa constatação, continuo num ambiente ideal para ela, e ali não
perguntando como é lá dentro e so- tinha nada de ideal para uma criança.
bre as visitas. Mulher é um bicho erra- Ver a mãe naquela situação não era uma
do desde quando nasce. Eu falo muito e coisa boa para ele. Eu fiquei pensando
todo mundo me conhece lá dentro... eu muito no que ela disse, e depois daquele
sei todos os crimes que elas cometeram, dia pedi a minha mãe para não levar ele
quanto tempo de cadeia vão ter que ti- mais. Com o tempo a criança vai acostu-
rar e tudo mais. Mas fico na minha, não mando com aquilo e acha normal e mui-
fico de levo e trás e não aceito que nin- tos começam no crime falando ‘ ah eu
guém mande em mim. Eu tenho a visi- quero ir pra lá, minha mãe estava lá... lá
ta da minha mãe desde que entrei, mas deve ser bom’. Então eu parei para pensar
tem gente que nunca tem visita e isso é e concordei com ela. Lá não é bom para
muito triste. Então, quando tô de boa eu crianças. E tem um monte que vai des-
convido essas colegas para ficar comigo de pequenininha e aí já acostuma com
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aquele lugar. Desde quando ela falou eu bém pelo fato de receberem artigos de
gravei as palavras na minha mente. Ela necessidade pessoal como shampoo,
era rígida mas muita coisa que ela falou condicionador, sabonete, pasta de den-
e fez era para nosso bem mesmo. A atual te, absorvente, papel higiênico, biscoi-
diretora é boa também, ela é mais quieta, tos, e etc. Pode parecer pouco signifi-
na dela assim, mas tudo pra ela tá bom, cativo mas esses itens são raros, caros e
não implica com ninguém e acho que a cobiçados. (Azevedo, 2010).
gente lá dentro tem que ter um pouqui- Azevedo (2010), ainda informa que
nho de rigidez se não fica muito bom e durante as visitas os familiares costumam
aí vai ter gente que vai ficar voltando trazer refeições para as presas e esse tipo
como muitas voltam. Choro e sofro todos de refeição tem grande significado pois
os dias por isso, mas vai ser melhor para foi preparado pela visita, o que possibilita
ele. Até porque ele tem um probleminha e a reprodução do ambiente familiar.
toma remédio controlado para os nervos. Quando a gente começa a sair de
A principal característica das mu- VPF, a gente se sente mais aliviado por-
lheres encarceradas é a total preocu- que fica mais fácil, a família não precisa
pação com a família que fica aqui fora. voltar lá para deixar as coisas. Quem está
Elas se sentem responsáveis pela ma- de VPF não tem visita mais e a maioria
nutenção dos vínculos afetivos e de que está também opina para não ter vi-
fato, isso é uma imposição social, elas sita, a gente vai em casa. Então, eles não
são compreendidas como as gestoras precisam ficar voltando. Às vezes muitos
das relações e mantenedora dessas re- deles entram chorando, passa humilha-
lações familiares. Pensar nas carências ção lá dentro, as agentes pintam com a
afetivas das presas nos leva a contex- família, então é constrangedor.
tualizar a família no espaço de exis- Agora melhorou um pouco que não
tência dessas mulheres, e quando elas precisa mais tirar a roupa, passa pela
se deslocam desse local, desse univer- porta de detector de metais. Para gente
so privado da família restam poucas é melhor e pra família também, porque
opções de núcleo familiar. A família o que mais incomoda é a família entrar
representa um importante elo com o chorando. A família vai lá pra visitar a
mundo exterior, concretizado através gente e não para isso.
das visitas semanais. Sobre meus outros filhos, tenho duas
As visitas de familiares acabam se meninas, uma com 17 anos e outra com
tornando exceções nos presídios femi- 15. A mais velha mora com os avós pa-
ninos e a presa que recebe visita goza ternos e a mais nova mora com minha
de certo status dentro do presídio, não irmã e elas nem me chamam de mãe,
apenas pela questão afetiva, mas tam- mas sabem que eu sou a mãe delas.
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CARVALHIDO, Maria Luiza Lacerda

Quando fui presa, minha irmã disse que so tirar também, então vou cuidar desse
cuidaria da mais nova e cuida até hoje. aqui. E dessa vez, vamos né?!
A mais velha já morava com os avós pa- Foi engraçado como descobri que es-
ternos mesmo antes de eu ser presa. E o tava grávida. Estava trabalhando num
menino ficou com minha mãe. Elas tem dia de campanha de vacinação da gri-
de tudo, não que minha irmã e ex so- pe e tava muito calor. Muito calor mes-
gra, sejam ricas, mas tem uma condição mo... e depois de ter ficado o dia todo
financeira boa... mês passado minha em pé, o médico olhou para mim e dis-
irmã fez até festinha de 15 anos para se que eu tava pálida e se estava tudo
a mais nova. Eu já sei que elas nunca bem. Depois não lembro de mais nada,
mais morarão comigo e no fundo acho acordei no hospital com um monte de
justo, eu não convivi com elas. Eu perdi gente falando... e a agente F. que era mi-
grande parte da vida delas... Meu meni- nha amiga e tava fazendo minha escol-
no mora aqui com a minha mãe, como ta, veio correndo, rindo, me abraçando
já te disse. E esse aqui que tô levando na e dizendo que seria a madrinha. Eu já
barriga, vai morar comigo e o pai dele. tava perdida, fiquei mais ainda. ‘Como
Espero dessa vez poder fazer diferente. assim? Me explica isso.... eu não posso
E esse seu filho, me fala do pai dele. estar grávida!’. E realmente estava.
Então, tenho até meio que vergonha de Fiquei em estado de choque. Eu não
falar...rs. Ele tá preso. Eu conheci ele por conseguia rir, chorar, não tinha reação.
carta. Tinha uma colega que estava tro- Só pensava na minha vida com uma
cando carta com um cara que dividia criança pequena e dentro do presídio.
a cela com ele, e num dia ela falou de Ia ter que ir para Bangu e ficar longe
mim na carta para o namorado dela e de todas colegas, da minha mãe...enfim,
que era para ele arrumar alguém para passou um filme na minha cabeça.
mim lá. E aí ele, o meu marido, me es- Naquele mesmo dia fiz uma ultras-
creveu. Gostei do jeito que ele falou e es- sonografia e tava tudo bem com o bebê.
creveu e eu não queria me envolver com Recebi alta e algumas recomendações
ninguém, tinha preconceito mesmo de médicas... quando voltei para o pre-
me relacionar com um preso e não que- sidio, a agente F. tinha contado para
ria compromisso com ninguém. Mas ele todas as agentes e elas estavam me es-
me conquistou. E depois de um tempo perando, todas com pacotes de fraldas.
eu comecei a fazer parlatório com ele. Foi muito emocionante à volta para
Eu saia do presídio feminino e ia para o presídio e depois dessa recepção me
o masculino e numa dessas a camisinha acostumei com a ideia.
furou e eu fiquei grávida. Eu não queria Agora seria o pior, contar para o pai.
outro filho, Deus me livre! Mas não pos- Tinha medo dele me largar por isso, mas
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O ENCARCERAMENTO FEMININO

liguei para ele e dei a notícia e ele ficou cava em casa, tomando conta de tudo.
mais feliz do que eu imaginava e bem Depois de alguns meses eu tava grávida.
mais do que eu. Ele é uma pessoa boa, Minha filha nasceu e a mãe dele não
ele fez curso de cabelereiro lá dentro, e deixou ela sequer morar comigo, do hos-
ele corta o cabelo de geral, de presos até pital ela já levou para casa dela e eu só
o diretor. Ele saiu gritando na galeria ia lá dar mamar a menina e pronto. Isso
que ia ser pai, é o primeiro filho dele. E fez com que nós brigasse muito, eu, meu
como ele não quer mais saber de tráfico, ex-marido e minha ex sogra.
ele tá juntando uma grana para quando Até que para tentar acalmar a situa-
sair montar um salão para gente traba- ção, fiquei grávida denovo. E quando
lhar e poder criar nosso filho. essa minha filha nasceu, a mais nova,
Pergunto do pai dos outros filhos só porque ela é preta, aquela bandida,
e me surpreendo com a história. Eu sem caráter, racista não quis pegar para
sempre fui meio doida, mas era moça criar. Isso acabou comigo... e com meu
direita, para casar. Minha mãe sempre marido também que não suportou e se
cuidou de mim e da minha irmã...mas matou. Se atirou na frente de uma car-
eu era mais rebelde e não seguia muito o reta e morreu na hora. Isso foi quando
que minha mãe falava. Eu vivia na rua minha filha já tinha quase dois aninhos.
com as amizades que não prestavam, e Fiquei sem rumo com a morte dele.
tinha esse rapaz, que era nosso vizinho. Não sabia o que fazer, aí voltei para casa
Ele sempre me olhava muito e um dia ele da minha mãe. Ela me recebeu junto com
resolveu me chamar para conversar. Eu minha filha. E depois de alguns dias des-
aceitei... e desde aquele dia nós começa- cobri que estava grávida do meu filho.
mos a namorar. Ele era mais velho do Ficamos com ela até que eu caí e tive que
que eu. Casamos quatro meses depois. tirar cadeia. Lá dentro não é lugar para
A mãe dele não gostava de mim porque ninguém. Sofremos muito lá, somos tra-
eu sou pobre e preta. Ele era branco, dos tados com descaso, e ódio. Tem até umas
olhos claros, todo bonito e a família dele agentes que são gente boa, mas mesmo
era a única do bairro que tinha carro. assim, tem dias que tá todo mundo com
A mãe dele achava que eu estava com a macaca e tudo fica loucura lá dentro.
ele por causa do dinheiro. Eu tinha nem Não vejo a hora de acabar e sair limpa...
16 anos. Mas casamos e fomos morar tô pagando por tudo que fiz, ter guarda-
no nosso canto... ele nunca tinha mexi- do umas paradas para uma pessoa que
do com nada errado. Era uma pessoa se dizia meu amigo.
do bem e totalmente limpo. Trabalhava Nossa conversa durou em torno de
numa padaria, era padeiro, saia de casa três horas e Ana me contou sua his-
todos os dias às 04h da manhã e eu fi- tória de vida. Retornei à casa de Ana
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CARVALHIDO, Maria Luiza Lacerda

mais quatro vezes para falar com ela; a porque transgrediram a ordem social,
acompanhei em uma consulta do pré- ou seja, deixaram seus filhos, mari-
-natal; entrevistei D. Carla; conversei dos, casas, e foram para a criminalida-
com os filhos de Ana; conversei com de. Ainda é muito difícil a sociedade
os vizinhos de Ana e quando perce- compreender o que leva uma mulher
bi que estava no momento ideal, me a cometer um crime e mais difícil ain-
despedi da família de Ana e dela. Esse da é a sociedade conceber uma mulher
momento foi o nascimento do bebê, criminosa, afinal elas nasceram para
que vinha ao mundo com a missão de assumir o seu papel de frágil, intocada,
“consertar” a vida da mãe. O pai do submissa e cuidadora da família.
bebê ainda estava preso, mas Ana es- No contexto do presídio feminino
tava em liberdade condicional. Nilza da Silva Santos, em Campos dos
Soares e Ilgenfritz (2002) diz que Goytacazes, cidade do norte flumi-
entre os projetos para o futuro, as de- nense, encontra-se mulheres de várias
tentas buscam um trabalho, cuidar dos localidades que, em sua maioria, aden-
filhos, retomar os vínculos afetivos e traram no sistema prisional devido ao
familiares, estudar, mudar de casa e recrudescimento da política de comba-
bairro, sair do mundo das drogas, ca- te ao tráfico de drogas. Essas mulheres,
sar e servir a Deus. Elas sabem que não em sua maioria, não recebem visitas de
será fácil o retorno à sociedade, mas o familiares, ou porque é muito longe e
futuro as deixa confiantes. caro viajar até a cidade para fazer a visi-
ta ou porque os familiares não desejam
CONSIDERAÇÕES FINAIS ser associados a uma mulher criminosa.
O sistema prisional feminino é A dura realidade enfrentada por es-
permeado por várias especificidades e sas mulheres no cárcere e a falta de vi-
mesmo com um aumento da presença sita no presídio feminino Nilza da Silva
da mulher na criminalidade as mes- Santos suscita um comércio ilícito de
mas ainda estão vivendo numa invi- drogas lícitas. É certo, que para passar
sibilidade enorme. Entretanto, é ne- o tempo ocioso durante o cumprimen-
cessário que a criminologia feminina to de pena muitas mulheres encontram
realize estudos constantes para mos- nos medicamentos uma possibilidade de
trar e trazer para o debate a realidade sentirem os dias e consequentemente o
enfrentada por essas mulheres. tempo passar mais rápido. Esse comér-
Essas mulheres que estão encarce- cio ilícito de drogas lícitas é sabido por
radas sofrem uma dupla penalização. todos os envolvidos no cumprimento de
A primeira porque transgrediram a or- pena desde o médico que fornece o me-
dem jurídica e estão presas e a outra dicamento até a direção da unidade.
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O ENCARCERAMENTO FEMININO

Dessa forma, as representações que REFERÊNCIAS


as mulheres fazem do presídio, que a ALMEIDA, Rosemary de Oliveira.
princípio é um ambiente hostil e desco- Mulheres que matam: Universo imagi-
nhecido, é uma tentativa de aproximá-lo nário do crime feminino. Rio de Janei-
das suas casas. Ou seja, elas tendem a ro: Relume Dumará, 2001. UFRJ: Nú-
arrumar, limpar, decorar, as celas como cleo de Antropologia da política.
se fossem literalmente a casa delas. Essa ASSIS, Simone Gonçalves de;
representação é entendida por muito au- CONSTANTINO, Patrícia. Filhas do
tores da criminalidade feminina como a mundo: infração juvenil no Rio de Ja-
mais importante, pois é a aceitação da- neiro. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2000.
quele ambiente como sendo delas. Disponível em: <http://www.scielo.br/
Ainda nesse sentido, as mulheres pdf/csc/v10n1/a08v10n1>. Acesso em:
fazem representações ambíguas do 21 mar. 2015.
ambiente prisional, pois quando retra- AZEVEDO, Maria Helena Petruc-
tam que não possuem amigos de ver- ci Rangel de. Controle e resistência em
dade, elas falam que tem pessoas que uma penitenciária feminina: o caso do
gostam delas, que elas entendem como Talavera Bruce. 2010. 238 f. Tese (Dou-
amigos. Quando retratam o tratamen- torado) - Curso de Ciências Sociais,
to das agentes, que muitas das vezes Pontifícia Universidade Católica de São
é entendido como legal, tranquilo em Paulo, São Paulo, 2010.
outros momentos é entendido como BAHIA, Joana. Estrangeiras na pri-
cruel, desumano. Ao mesmo tempo são: o cotidiano das mulheres presas no
que desejam ter certa liberdade que- Brasil. Sociedad y Discurso: Universi-
rem que a direção seja mais rígida com dad de Aalborg, Dinamarca, v. 23, p.60-
a intenção de mostrar que lá dentro 77, 2012. ISSN 1601-1686.
não é um lugar bom e dessa forma, as BECKER, Howard - A história de
mulheres não alimentarem o desejo de vida e o mosaico científico, Métodos de
retorno para o sistema prisional. pesquisa em ciências sociais, São Paulo:
É certo que muito estudo e dis- Hucitec, 1993, p. 101-116.
cussão sobre a criminalidade femini- CENTRO PELA JUSTIÇA E PELO
na ainda precisa ser realizado. Dessa DIREITO INTERNACIONAL (Brasil).
forma, espero que esse artigo contri- Relatório sobre mulheres encarcera-
bua e minha discussão não se encerra das. 2007. Disponível em: <http://www.
aqui. Todo o material coletado duran- ajd.org.br/noticias_ver.php?idConteu-
te a pesquisa de campo do mestrado e do=681>. Acesso em: 10 mar. 2015.
não utilizado será útil no momento do CHIES, Luiz Antônio Bogo. Cemi-
doutorado e em trabalhos futuros. tério dos vivos: análise sociológica de
CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 19, nº 1, 2017. pp. 105-120 119
CARVALHIDO, Maria Luiza Lacerda

uma prisão de mulheres: LEMBRU- ringá, v. 14, n. 4, p.649-657, dez. 2009.


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LUXEMBURGO, Rosa . O Estado em Sociologia, mestre em Sociologia
Patriarcal e o Estado Penal: filhos do Política, especialista em Direito Consti-
mesmo homem. [S.l.]: PUCVIVA, 2010. tucional aplicado com capacitação para
Ano 11. n. 39. o magistério superior, especialista em
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120 CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 19, nº 1, 2017. pp. 105-120

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