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ISSN: 2525-8761
Marli M. M. Costa
Pós-doutora em Direito
Instituição: Universidade de Burgos - Espanha
Endereço: C. Don Juan de Austria, s/n, 09001 Burgos, Espanha
E-mail: marlimmdacosta@gmail.com
Georgea Bernhard
Mestranda em Direito pelo Programa da Pós-Graduação em Direito Mestrado e
Doutorado
Instituição: Universidade de Santa Cruz do Sul – UNISC
Endereço: Av. Independência, 2293 - Universitário, Santa Cruz do Sul – RS
CEP: 96815-900
E-mail: georgeabernhard@hotmail.com
RESUMO
Este artigo visa analisar o contexto social no qual estão inseridas as mulheres condenadas
pelo crime de tráfico de drogas, identificando a influência dos estereótipos de gênero por
trás das grades. Nesse sentido, observou-se o impacto gerado pelos estereótipos de gênero
no cenário carcerário feminino. Após, investigou-se o perfil das detentas, a fim de
verificar quem são e a realidade na qual estão inseridas e por fim, analisou-se a dinâmica
entre o crime de tráfico de drogas e os estereótipos de gênero. Através de uma revisão
sistemática sobre as produções bibliográficas e científicas, utilizando o método dedutivo,
se busca analisar o cárcere feminino no contexto brasileiro questionando o modo como
as mulheres se tornam reféns do próprio crime de tráfico de drogas através da dinâmica
da prática delitiva e a influência dos estereótipos de gênero neste contexto. Conclui-se
que o sexo masculino desempenha um forte poder de dominação sobre as mulheres,
inclusive no tráfico de drogas, se prevalecendo da condição de vulnerabilidade delas para
usufruírem de sua “mão-de-obra” barata.
ABSTRACT
This article aims to analyze the social context in which women convicted of drug
trafficking are inserted, identifying the influence of gender stereotypes behind bars. In
this sense, the impact generated by gender stereotypes in the female prison scenario was
observed. Afterwards, the profile of the inmates was investigated, in order to verify who
they are and the reality in which they are inserted and, finally, the dynamics between the
crime of drug trafficking and gender stereotypes were analyzed. Through a systematic
review of bibliographic and scientific productions, using the deductive method, it seeks
to analyze the female prison in the Brazilian context, questioning the way in which
women become hostages of the very crime of drug trafficking through the dynamics of
criminal practice and the influence of gender stereotypes in this context. It is concluded
that the male sex has a strong power of domination over women, including in drug
trafficking, taking advantage of their vulnerability to take advantage of their cheap
“labor”.
1 INTRODUÇÃO
A cultura machista e androcêntrica presente durante os séculos se reporta à
condição de inferiorização atribuída às mulheres ao longo da história da humanidade. A
religião cristã buscava justificar a subalternidade da mulher, por meio de histórias como
a de Eva, que por desobediência, ao morder a fruta proibida, foi expulsa do Paraíso,
juntamente com Adão. Do mesmo modo, na mitologia grega, predominava a história de
Pandora, que motivada pela curiosidade, contrariou as ordens de Zeus ao abrir uma caixa
que continha todos os males do mundo.
Sendo assim, as histórias e mitos narrados no decorrer dos tempos, colaboraram
no enraizamento da cultura patriarcal, possibilitando a inserção das mulheres em um
patamar inferior, sendo assim, compreendiam que elas eram uma espécie inferior e sendo
assim, necessitavam de domínio para desempenhar a sua função social, delimitada pela
esfera doméstica e sua condição reprodutiva, desempenhando as tarefas pertinentes a
manutenção do lar e do casamento.
Deste modo, ao nascer mulher, inevitavelmente suas obrigações sociais
acompanhavam-na durante toda a vida, independente dos seus anseios e desejos pessoais,
uma vez que o poder de escolha não era conferido a elas. Diante disso, restava apenas
cumprir suas obrigações, compreendidas como “responsabilidades femininas”,
desempenhando as funções reprodutivas e as atividades no âmbito doméstico, mantendo
o aspecto de docilidade e submissividade como sinal de obediência a ordem patriarcal, na
figura do marido.
O surgimento dos primeiros indícios da criminalidade feminina representa a
subversão dos valores femininos moralmente construídos, esbarrando nos estereótipos de
gênero culturalmente compactuados ao longo dos séculos. Tal situação causava
preocupação não pela conduta delitiva e suas consequências em si, mas pela condição de
ser uma mulher criminosa, fortalecendo o sentimento de repulsa pelas mulheres que
ingressam no mundo do crime.
Neste certame, este estudo visa possibilitar um olhar para a condição das mulheres
presas no Brasil atualmente, verificando o seu contexto social a fim de compreender os
motivos por trás da atitude de delinquir, pondo em risco a própria liberdade e segurança
da família, para praticar atividades ilícitas em prol da subsistência familiar e manutenção
dos laços afetivos, comumente visualizado no crime de tráfico de drogas.
Deste modo, se objetiva visualizar o cenário no qual essas mulheres estão
inseridas a fim de compreender a dinâmica existente no crime de tráfico de drogas e as
circunstâncias que as atraem para delitos desta natureza. Através de uma revisão
sistemática sobre as produções bibliográficas e científicas, utilizando o método dedutivo,
se busca analisar o cárcere feminino no contexto brasileiro questionando o modo como
as mulheres se tornam reféns do próprio crime de tráfico de drogas através da dinâmica
da prática delitiva e a influência dos estereótipos de gênero neste contexto.
feminino que busca romper a cultura patriarcal para então, conquistar a sua própria
identidade e liberdade.
Por sua vez, ao ter ciência que a identidade humana é construída no próprio meio
social, através de narrativas sem traços de neutralidade, mas sim, repletas de pré-
conceitos, preferências, opressões e relações determinadas pela dominação, a indagação
principal é quanto à possibilidade de desenvolver uma identidade de modo autônomo,
mesmo havendo desigualdade de poderes. Segundo Biroli (2013), a resposta é afirmativa,
à medida que os pré-conceitos estabelecidos culturalmente no meio social e que causam
influência na criação da identidade, não impedem o livre arbítrio de realizar as próprias
escolhas, mesmo que estas não estejam em conformidade com as diretrizes sociais,
contudo, tais decisões são realizadas em meio a pressões e constrangimentos constantes
em razão do descumprimento social.
Todavia, o preço pago por realizar as próprias escolhas traz um preço alto para as
mulheres que ingressam na criminalidade, sendo que a pena a ser cumprida ultrapassa a
esfera legal, à medida que a mulher delinquente, rompe com os estereótipos de gênero
culturalmente construídos e sendo assim, a mulher criminosa é submetida à uma dupla-
penalização, na esfera penal e social. Conforme menciona Santoro e Pereira (2018, p.92):
criminal no Brasil, uma vez que, grande parte das detentas são negras, pobres, jovens e
na maioria das vezes mães.
De fato, ao investigar os crimes praticados pelas presas, se visualiza a
predominância de crimes de rua (aqueles cometidos pelas classes sociais mais baixas)
cuja natureza esteja ligada a crimes de furto (9%), roubo (11%) e tráfico de drogas (62%).
Estes crimes possuem um certo privilégio de perseguição policial e posteriormente,
condenação judicial, influenciando na seletividade do sistema criminal por agir de forma
estigmatizada. (BREITMA, 1999)
Acerca dos dados sobre a raça/cor das presidiárias cujos dados foram coletados,
se verifica que 62% da população carcerária feminina é referente às mulheres negras.
Diante disso, pode-se afirmar que, entre a população feminina com mais de 18 anos, há
40 mulheres brancas cumprindo pena para um grupo de 100
mil mulheres da mesma raça, contudo, no mesmo contexto há 62 mulheres negras para
um grupo de 100 mil mulheres negras, escancarando a seletividade do sistema penal
brasileiro. (BRASIL, 2018)
A ínfima escolaridade das detentas também são expressivas, uma vez que 66%
das presas não acessaram o ensino médio, concluindo, no máximo, o ensino básico, à
medida que apenas 15% da população carcerária feminina concluiu o ensino médio.
Embora a Lei de Execução Penal traga a previsão do acesso à assistência educacional as
presas, como forma de reintegrar a população carcerária à sociedade por meio de cursos
que visam realizar uma instrução escolar ou até mesmo cursos profissionalizantes, apenas
25% das presidiárias frequentam alguma atividade de natureza educacional. (BRASIL,
2018)
Portanto, é possível inferir que o sistema prisional feminino no Brasil é composto
majoritariamente por jovens, sendo a faixa etária com maior predominância de detentas
é 18 a 24 anos (25,22%), seguido de 35 a 45 anos (22,66%) e 25 a 29 anos (22,11%),
somados o número total de presas até 29 anos totalizam 47,33% da população carcerária
feminina. Se verifica que em todos os estados da federação, as mulheres jovens são a
maioria no sistema carcerário, portanto, a cada 100 mil mulheres jovens, a taxa de
aprisionamento é de 100,69 enquanto para mulheres não-jovens o índice é de 21,7.
(BRASIL, 2018)
A condição de detentas que já são mães impressiona, de modo que 74% das
mulheres presas têm filhos. Este cenário possibilita o surgimento de diversos problemas,
principalmente para as mães gestantes ou puérperas, que passam a ter necessidades
específicas mas que são invisibilizadas pelo sistema carcerário frente às demandas
relacionadas aos espaços prisionais por carecer de infraestrutura para possibilitar o
convívio humanizado entre as detentas e seus filhos, tornando a manutenção de laços
afetivos entre mãe e filho um verdadeiro desafio nas prisões, embora exista previsão legal
no artigo 2º da LEP prevendo a criação de berçários e assegurando o direito de
amamentação até os seis meses de idade, essa realidade se faz presente em poucos
presídios femininos no Brasil. (LIMA, 2012)
Acerca do tipo de estabelecimento de acordo com o gênero, no qual as mulheres
estão detidas, se visualiza a predominância de prisões masculinas, sendo elas 74% do total
dos estabelecimentos penais, demonstrando que de fato, as prisões foram pensadas e
projetadas para os homens. Nesse sentido, apenas 7% são destinadas ao público feminino
e 16% se referem aos estabelecimentos mistos, ou seja, nestes locais pode haver celas
específicas para aprisionar mulheres, em presídios originalmente masculinos. (BRASIL,
2018)
Todavia, a separação dos gêneros nos estabelecimentos penais é uma garantia
prevista na Lei de Execução Penal, nº 7210/1984, conhecida como LEP, a qual foi
incorporada na Política Nacional de Atenção às Mulheres em Situação de Privação de
Liberdade e Egressas do Sistema Prisional como meio de trazer a luz à condição das
presas no sistema penal, cuja arquitetura foi pensada para atender aos padrões masculinos
e posteriormente sofrem adaptações para receberem a custódia de mulheres. Neste
sentido, demonstra a fragilidade das instituições frente a incapacidade de observar as
especificidades das necessidades das mulheres tanto no ambiente, como espaços
adequados para a custódia de gestantes e posteriormente aleitamento materno, como nos
serviços destinados a elas, principalmente relacionados na área da saúde, demonstrando
assim a inobservância às políticas de execução penal. (BRASIL, 2018)
O cenário retratado acima traz à luz a realidade vivida não apenas em
circunstâncias de aprisionamento legal, mas sim, no dia a dia de muitas mulheres, sendo
ela: a necessidade feminina de se adaptar ao universo masculino, independente de suas
particularidades. Esta condição não apenas anula as especificidades do gênero feminino
como também se torna um meio de controle da liberdade e desejos femininos pelo
patriarcado.
Este olhar “masculinizante” que exclui a perspectiva de gênero nos presídios é
fortemente pontuado por Colares e Chies (2010) ao asseverar que:
[...] esses presídios possuem uma ordem masculinizante no sentido dado por
Roberto Romano, em virtude a priori de o homem possuir um lugar central
como medida de todas as relações. Trata-se, para o autor, de uma concepção
derivada da atribuição da racionalidade e da noção de completude do corpo
masculino que se orienta para conter a natureza imperfeita da mulher, calcada
na carnalidade e na emoção. Sendo a mulher vista como um ser inacabado, sua
existência só pode se completar através do outro ou, como expressa Romano,
“O homem é em si e para si e a mulher é para o outro”. (COLARES;CHIES,
2010, p. 409)
Portanto, o ônus das desigualdades de gênero nas prisões acaba por incidir sobre
as mulheres, em razão do espaço prisional ser visto como um local masculinizado, não
apenas pela predominância do público masculino carcerário em razão do feminino, mas
sim, pelo corpo do homem ser usado como a “medida de todas as coisas”. Sendo assim,
mesmo que os homens e mulheres estejam cumprindo pena, as circunstâncias de como
ela é executada se torna diferente, uma vez que os homens detêm mais poder nos espaços
prisionais, o poder de exercer atividades que não são concedidas as mulheres, como se
movimentar no ambiente prisional e interagir mais, diminuindo os efeitos do cárcere.
(CHIES;COLARES, 2010)
mulheres que são presas ao transportarem drogas para dentro dos ambientes prisionais,
por solicitação do companheiro. (MOURA, 2005)
Esta condição subalterna das mulheres no tráfico de drogas se concretiza, ao
analisar outras funções também desempenhadas por elas, enaltecendo, outra vez, que as
tarefas mais simples são destinadas ao gênero feminino, como exemplo, misturar a pasta-
base com bicarbonato, dando origem à cocaína, conversar com os compradores e
transportar os entorpecentes no próprio corpo, a fim de manter a discrição na hora de
traficar e evitar uma abordagem policial. (PANCIERI, 2014)
Ainda neste aspecto, se vislumbra o modo pelo qual o Estado perpetua os estigmas
sociais em razão da forma como exerce o seu poder de polícia. Neste aspecto, Pancieri
(2014, p.62) assevera que:
3 CONCLUSÃO
O cenário subalterno protagonizado pela mulher na sociedade possibilitou que ela
fosse vista como um ser inferior e incompleto, necessitando de intervenção masculina
para poder viver em sociedade, pois, os preceitos moralmente construídos sob os aspectos
da figura feminina estavam relacionados na submissão dos anseios masculinos, como
forma de perpetuar a ordem patriarcal e inibir a autonomia feminina, mantendo a mulher
como um complemento à superioridade masculina.
É nesse aspecto que se percebe que, todos os estereótipos de gênero da atualidade,
resultam de uma construção patriarcal, propagada com o passar dos séculos e solidificada
pelos parâmetros sociais que insistem em manter a mulher em uma condição subalterna,
sob a justificativa de que a sua contribuição social está atrelada à natureza biológica de
reproduzir, zelar pelas atividades relativas ao lar e servir ao marido.
Ao abordar sobre a condição da mulher criminosa, se observa inicialmente o
rompimento dos estereótipos de gênero socialmente construídos, portanto, tal ação é
reconhecida como um desvio de conduta dos princípios morais que a sociedade acabava
por impor ao sexo feminino, visto que este deveria valer-se de uma conduta dócil e
submissa, o oposto das exigências do mundo do crime.
Sendo assim, sob forte influência do processo de dupla-penalização social e legal
no qual o público feminino está submetido, os estereótipos de gênero acabam fortalecendo
a desigualdade entre os sexos e fomentando práticas criminosas onde as mulheres são
instrumentalizadas para aferir lucro aos homens.
O tráfico de drogas assume o protagonismo no cenário de crimes que mais
aprisionam mulheres no Brasil, incidindo sobre mais da metade das mulheres presas nos
ambientes prisionais. A prática deste crime demonstra a dinâmica entre o ato ilícito e os
bastidores, revelando as baixas posições ocupadas pelas mulheres na hierarquia do
tráfico, cuja liderança é dos homens. Dessa forma, o modo pelo qual o poder masculino
coage as mulheres para traficar, aliciando-as para a criminalidade, reforça a teoria de que
os estereótipos de gênero exercem forte influência no crescimento exacerbado do índice
de encarceramento feminino.
Conclui-se que o sexo masculino desempenha um forte poder de dominação sobre
as mulheres, inclusive no tráfico de drogas, se prevalecendo da condição de
vulnerabilidade delas para usufruírem de sua “mão-de-obra” barata. As mulheres, por
outro lado, ao valorizarem as relações pessoais e familiares, optam por abrir mão da
própria liberdade, a fim de proteger os laços afetivos, cujo o grau de importância, para
elas, é maior do que as circunstâncias da própria vida.
Analisar a dinâmica que rege as relações por trás do crime de tráfico de drogas,
responsável por aprisionar mais da metade da população carcerária feminina, se
demonstra imprescindível, a fim de criar políticas públicas direcionadas para o problema
em questão e considerando as principais circunstâncias responsáveis pelo aprisionamento
das mulheres no Brasil, será possível pôr em prática ações governamentais eficazes para
minimizar o índice de criminalidade feminina no Brasil e assim, enfrentar os desafios
invisibilizados pelo Estado.
REFERÊNCIAS
COLARES, Leni Beatriz Correia; CHIES, Luiz Antônio Bogo; Mulheres nas
so(m)bras: inviibilidade, reciclagem, e dominação viril em presídios masculinamente
mistos. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/S0104-
026X2010000200007/13626 Acesso em: 02 jan 2022
DEL PRIORE, Mary. A história das mulheres no Brasil. 10ª ed. São Paulo: Contexto,
2004.
MOURA, Maria Juruena. Porta fechada, vida dilacerada - mulher, tráfico de drogas
e prisão: estudo realizado no presídio feminino do Ceará. Dissertação de Mestrado.
Programa de pós-graduação em Políticas Públicas e Sociedade. Universidade Estadual do
Ceará. 2005. Disponível em:
http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_
obra=132868 Acesso em: 02 out 2021.
SOARES, Bárbara, ILGENFRITZ, Iara. Prisioneiras: vida e violência atrás das grades
.Rio de Janeiro: Garamond. 2002