Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
A memória é uma das funções cognitivas mais fundamentais do cérebro humano, que
permite que os indivíduos retenham informações e experiências do passado e as utilizem para
orientar suas ações no presente ou considerá-las em previsões do futuro. Ela é essencial para
a capacidade de recordar e atribuir significados pessoais para eventos e experiências
consideráveis, tornando possível reviver momentos longínquos na linha do tempo e
permitindo uma reconexão com tais. Sem ela, este passado subjetivo simplesmente não
existiria, tornando a vida humana uma experiência insondavelmente sem sentido ou coesão,
onde a emoção e os sentimentos seriam meras impossibilidades impalpáveis e os elos
interpessoais, por vezes tão influentes na identidade própria e no fomento de vida, não seriam
mais que uma ideia inconcebível. Não é por acaso que esta capacidade indispensável à
condição humana seja o escopo de análise de tantas obras literárias, artísticas, filosóficas e
científicas ao longo da história do pensamento humano. Muito pertinente ao tópico e digno de
uma exploração em contraste, são o longa-metragem “Aftersun” (2022), da debutante
Charlotte Wells, e o acrônico monólogo em poesia “Tintern Abbey”, do poeta romântico
inglês William Wordsworth, escrito em 1798.
Já o filme de Charlotte Wells trata o tema da memória sob uma ótica semelhante em
sua potencialidade de conexão, porém através de uma operação distinta. “Aftersun” traça o
exercício do vivenciar retrospectivamente, no qual a personagem principal acessa as
gravações realizadas pelo seu pai durante uma viagem que realizaram juntos. Seu próprio
título já reflete sobre o espaço idílico em que vivem essas memórias – especificamente, as
memórias acerca de um ente querido que já não está mais presente tangivelmente – isto é, o
espaço “após-sol” daquele passado, forjado pelas nuances perceptivas de se estar presente e
iluminado por sublimes raios de sol pré-nostálgicos – uma luz pura – mas que agora vive sob
a luz artificial de uma lembrança. Dessa forma, Wells nos convida a presenciar uma
melancolia estonteante, por meio de inúmeros momentos de tensão imobilizantes que, ao
invés de darem palco para reviravoltas chocantes comuns a uma narrativa dramática, servem
para aludir à imperfeição concreta que estava velada durante aqueles momentos, inundados
pela luz do presente, e só revelados ao se acessar aquelas memórias. Entretanto, é interessante
perceber que este exercício de revelação não invalida a existência desse espaço-memória; em
uma cena próxima ao terceiro ato do filme, a menina e seu pai estão praticando movimentos
de Tai Chi Chuan à beira de um penhasco, cercados por uma beleza natural incontestável, e
uma placa quase fora do enquadramento diz: “We know a perfect place.” Ou seja, aquele
momento serene experienciado pela garota, que agora existe como memória, é encoberto de
uma tranquilidade tão sublime e um deslumbramento da natureza tão esmerado, que se torna
o espaço mais exemplar e de mais nobre magnanimidade para abrigar a figura de seu pai.
Dessa forma, o filme invoca e demonstra a lucidez que advém do exercício da memória em
retrospectiva, mas também aponta para a potencialidade por trás de um espaço-memória fora
do tempo, fora da plausibilidade e fora do sol.
Posta esta análise, é interessante perceber como os dois autores dialogam e contrastam
suas abordagens acerca da memória. Mais notável, provavelmente, é a forma como cada
personagem interage com o tema: enquanto Wordsworth se insere em uma situação forjadora
de memórias, potencializada por uma esmagadora paisagem natural, e, portanto, passiva em
sua ação, a personagem de Wells se encontra em um cenário pós-experiência, ativamente
exercendo suas memórias. Dessa forma, observa-se um diálogo transmodal direto entre as
duas obras, pois a mesma potencialidade da memória descrita por Wordsworth em seus
versos é revivida – a partir de uma finalidade própria – pela personagem de Wells durante o
filme. Entretanto, enquanto o poeta atribui a força daquele espaço tangível e natural à
potência da memória que será, Wells aponta para a imagem idealizada, banhada por uma
iluminação “pós-sol”, que envolve aquelas lembranças. Isto é, o que pode ser apreendido aqui
neste diálogo é que o exercício da memória não só não reflete exatamente aquilo que de fato
ocorreu em um tempo passado, mas também é uma potencialização capaz de revelar nuances
e significados que não necessariamente existiam durante a experiência sensível que se deu;
trata-se de uma capacidade humana extremamente subjetiva, a qual rege nossas vidas em
silêncio e nos permite refletir e ponderar, de forma construtiva, sobre aquilo que foi ou que
passou, a partir de fabricações mentais ilusórias por natureza e ricas em significância.