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Questão: Compare e contraste o poema "Tintern Abbey” com o filme “Aftersun”.

Aluno: João Guilherme Litwinski (22;1;3027)

A memória é uma das funções cognitivas mais fundamentais do cérebro humano, que
permite que os indivíduos retenham informações e experiências do passado e as utilizem para
orientar suas ações no presente ou considerá-las em previsões do futuro. Ela é essencial para
a capacidade de recordar e atribuir significados pessoais para eventos e experiências
consideráveis, tornando possível reviver momentos longínquos na linha do tempo e
permitindo uma reconexão com tais. Sem ela, este passado subjetivo simplesmente não
existiria, tornando a vida humana uma experiência insondavelmente sem sentido ou coesão,
onde a emoção e os sentimentos seriam meras impossibilidades impalpáveis e os elos
interpessoais, por vezes tão influentes na identidade própria e no fomento de vida, não seriam
mais que uma ideia inconcebível. Não é por acaso que esta capacidade indispensável à
condição humana seja o escopo de análise de tantas obras literárias, artísticas, filosóficas e
científicas ao longo da história do pensamento humano. Muito pertinente ao tópico e digno de
uma exploração em contraste, são o longa-metragem “Aftersun” (2022), da debutante
Charlotte Wells, e o acrônico monólogo em poesia “Tintern Abbey”, do poeta romântico
inglês William Wordsworth, escrito em 1798.

O último na verdade recebe o nome, em português, de “Versos compostos a poucas


milhas acima da abadia de Tintern, ao revisitar as margens do Wye durante um passeio. 13 de
julho de 1798.”, pois o poeta escreveu seus versos enquanto refletia no passeio que realizara
em um ambiente do seu passado. O tema cerne aqui é a memória – especificamente, as
memórias de uma infância em comunhão com a beleza natural. Tanto de forma geral quanto
específica, este tema é extremamente importante na obra de Wordsworth, reaparecendo em
poemas tão tardios quanto a ode "Intimations of Immortality". "Tintern Abbey" é a primeira
grande declaração do jovem Wordsworth sobre seu tema-princípio: que a memória da pura
comunhão com a natureza durante a infância atua na mente até mesmo na idade adulta,
quando o acesso a essa comunhão é perdido, e que a maturidade mental proveniente da
maioridade oferece compensação por essa perda – especialmente na capacidade de "olhar a
natureza" e ouvir a "música humana"; ou seja, ver a natureza se atentando à relação que ela
traça com a vida humana. Em sua juventude – o poeta diz – era desprovido de pensamentos
quando estava em total união com as matas e o rio; agora, cinco anos desde sua última
visualização da cena, ele não é mais descuidado, mas intensamente consciente de tudo o que
a cena tem a lhe oferecer. Além disso, a presença de sua irmã lhe dá uma visão de si mesmo
como ele imagina ter sido na juventude e o enche de felicidade no imaginar a potencialidade
daquele momento; ele sabe que essa experiência atual fornecerá a ambos memórias futuras
capazes de guiá-los e confortá-los, assim como sua experiência passada lhe proporcionou as
lembranças que intermitentemente aparecem em sua vista presente enquanto atravessa o
bosque.

Já o filme de Charlotte Wells trata o tema da memória sob uma ótica semelhante em
sua potencialidade de conexão, porém através de uma operação distinta. “Aftersun” traça o
exercício do vivenciar retrospectivamente, no qual a personagem principal acessa as
gravações realizadas pelo seu pai durante uma viagem que realizaram juntos. Seu próprio
título já reflete sobre o espaço idílico em que vivem essas memórias – especificamente, as
memórias acerca de um ente querido que já não está mais presente tangivelmente – isto é, o
espaço “após-sol” daquele passado, forjado pelas nuances perceptivas de se estar presente e
iluminado por sublimes raios de sol pré-nostálgicos – uma luz pura – mas que agora vive sob
a luz artificial de uma lembrança. Dessa forma, Wells nos convida a presenciar uma
melancolia estonteante, por meio de inúmeros momentos de tensão imobilizantes que, ao
invés de darem palco para reviravoltas chocantes comuns a uma narrativa dramática, servem
para aludir à imperfeição concreta que estava velada durante aqueles momentos, inundados
pela luz do presente, e só revelados ao se acessar aquelas memórias. Entretanto, é interessante
perceber que este exercício de revelação não invalida a existência desse espaço-memória; em
uma cena próxima ao terceiro ato do filme, a menina e seu pai estão praticando movimentos
de Tai Chi Chuan à beira de um penhasco, cercados por uma beleza natural incontestável, e
uma placa quase fora do enquadramento diz: “We know a perfect place.” Ou seja, aquele
momento serene experienciado pela garota, que agora existe como memória, é encoberto de
uma tranquilidade tão sublime e um deslumbramento da natureza tão esmerado, que se torna
o espaço mais exemplar e de mais nobre magnanimidade para abrigar a figura de seu pai.
Dessa forma, o filme invoca e demonstra a lucidez que advém do exercício da memória em
retrospectiva, mas também aponta para a potencialidade por trás de um espaço-memória fora
do tempo, fora da plausibilidade e fora do sol.

Posta esta análise, é interessante perceber como os dois autores dialogam e contrastam
suas abordagens acerca da memória. Mais notável, provavelmente, é a forma como cada
personagem interage com o tema: enquanto Wordsworth se insere em uma situação forjadora
de memórias, potencializada por uma esmagadora paisagem natural, e, portanto, passiva em
sua ação, a personagem de Wells se encontra em um cenário pós-experiência, ativamente
exercendo suas memórias. Dessa forma, observa-se um diálogo transmodal direto entre as
duas obras, pois a mesma potencialidade da memória descrita por Wordsworth em seus
versos é revivida – a partir de uma finalidade própria – pela personagem de Wells durante o
filme. Entretanto, enquanto o poeta atribui a força daquele espaço tangível e natural à
potência da memória que será, Wells aponta para a imagem idealizada, banhada por uma
iluminação “pós-sol”, que envolve aquelas lembranças. Isto é, o que pode ser apreendido aqui
neste diálogo é que o exercício da memória não só não reflete exatamente aquilo que de fato
ocorreu em um tempo passado, mas também é uma potencialização capaz de revelar nuances
e significados que não necessariamente existiam durante a experiência sensível que se deu;
trata-se de uma capacidade humana extremamente subjetiva, a qual rege nossas vidas em
silêncio e nos permite refletir e ponderar, de forma construtiva, sobre aquilo que foi ou que
passou, a partir de fabricações mentais ilusórias por natureza e ricas em significância.

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