Você está na página 1de 7

Apontamentos vários sobre cinema e literatura

Reflexões de um cineasta:
ESCUTAR NUM SOM A SUA REPRESENTAÇÃO PLÁSTICA. Eisenstein escreve que
Prokovfiev fazia isto. “É graças a este talento que lhe é possível descobrir os mais
extraordinários equivalentes sonoros para as imagens que desfilam no seu campo
visual.” Característica indispensável a todos os realizadores, diz.

“De resto, é preciso não esquecer que as cenas por mim montadas com uma
construção muito pormenorizada e com um rigor cuidado de composição, de modo a
que a sua lógica interna, quaisquer que sejam, por vezes, os meandros dessas cenas,
possa nelas ser lida com uma clareza e uma nitidez suficientes.”

“Assim como uma cena filmada do mesmo ângulo é plana e destituída de


profundidade, também a chamada música figurativa se revela vulgar e, do ponto de
vita da expressão, infeliz, sempre que for composta “sem mudança de ângulo”,
reproduzindo uma só característica, um só “aspecto” daquilo que nela estiver
“figurativamente” presente.

“... O cinema não revela apenas a aparência dos fenómenos e a sua essência, mas
também a sua contextura interna.
A lógica da sua existência. O dinamismo da sua evolução.”

“A justaposição dos ângulos de tomadas de vista dá a conhecer a posição do artista em


relação ao fenómeno.
A organização da montagem ali a realidade objectiva do fenómeno à atitude subjectiva
do criador da obra.

Prokofiev sabe apanhar no acontecimento o segredo de estrutura que, por excelência,


traduz afectivamente o seu mais amplo sentido.
Uma vez na posse desse segredo, ele vai recriá-lo nas suas sínteses sonoras da
instrumentação, fazendo-o cintilar no suave deslizar de cada timbre, ...”

“Acredito seriamente que a natureza, o ambiente, e o cenário (no momento da


filmagem) e o material impressionado (no momento da montagem) se mostram,
frequentemente, mais inteligentes que o autor e o realizador.
É uma grande sorte, quase até toda uma arte, conseguir ouvir e compreender o que
significa a natureza ou os detalhes imprevistos dum cenário que se tenha concebido;
escutar o que dizem, ao ajustar-se, os troços de filme por montar; e até as cenas, que
vivem no ecrã duma vida própria, rompendo tantas vezes os quadros do pensamento
de que partiram...
Tudo isto exige uma extrema clareza da ideia directriz para cada cena ou cada fase da
realização. E é necessária, paralelamente, uma não menor agilidade na escolha dos
meios particulares de materialização.

125. “A missão inseparável do seu papel (da montagem) de conhecimento – que é a de


(126) fornecer uma exposição logicamente coerente do tema, do assunto, da acção,
dos comportamentos, do movimento dentro de cada episódio e dentro de todo o
drama. Alguns mestres do cinema (...) parecem (...) ter perdido o sentido da narração
seguida, lógica, às vezes simplesmente coerente.

126. Estar particularidade não pertence em exclusivo ao cinema. Encontra-se,


necessariamente, o mesmo fenómeno em todos os casos em que sejam justapostos
dois factos, dois processos, dois objectos. O hábito quase nos faz elaborar
automaticamente certas generalizações cliché desde que nos sejam apresentados lado
a lado determinados pares de objectos. Consideremos, por exemplo, um túmulo. Se
justapusermos a esta imagem uma mulher de luto chorando ao lado, toda a gente
(127) concluirá: “a viúva”. É desta reacção natural que Ambrose Bierce tira partido
numa das suas Fábulas Fantásticas: A Viúva Inconsolável:
“Uma mulher, de luto pesado, chora sobre um túmulo.
- Consolai-vos, senhora – diz-lhe um desconhecido condoído. – A misericórdia divina é
infinita. Há-de existir em qualquer parte um homem, além do seu defunto marido, com
quem podeis ainda ser feliz.
A mulher desfaz-se em soluços:
- Existia – diz – existia. É esta exactamente a sua campa.”

Todo o efeito da narrativa provém do facto de uma túmulo e uma mulher de luto se
combinarem, de acordo com uma imagem estabelecida, para fornecer a representação
duma viúva que chora o marido, quando, no caso presente, se deplora a perda dum
amante.
Também as adivinhas aproveitam esta circunstância. Um exemplo folclórico: “um corvo
voa; um cão está sentado na sua cauda. Como é possível?”. Automaticamente,
procedemos à justaposição destes elementos para os combinarmos. Lemos a frase
como se o cão estivesse sentado na cauda do corvo. Ora o enigma supõe que as duas
acções são independentes: o corvo voa, e o cão está sentado sobre a sua própria
cauda.
Nada surpreende que uma certa conclusão se forme no espírito do espectador graças à
justaposição de duas pontas de película coladas uma à outra.
128. Parece-nos, portanto, que não é sobre os factos, sua raridade ou universalidade,
que deve fazer incidir-se a crítica, mas sobre as deduções e as conclusões que dela
forma tiradas e às quais daremos os correctivos que se impuserem.

(...) o resultado da justaposição difere sempre qualitativamente de cada um dos


componentes considerados à parte. Para voltarmos ao nosso exemplo, a mulher é um
objecto de percepção, o vestido negro que usa também é um objecto de percepção, e
uma e outro, objectos concretamente perceptíveis. Mas a “viúva” saída da justaposição
destas duas percepções não é concretamente perceptível, é um novo conceito, uma
nova representação, uma nova imagem.

Em que consiste, portanto, o “desvio” que então cometíamos ao tratar este fenómeno
incontestável?
A falta consistia, em acentuar principalmente, as possibilidades de justaposição,
enfraquecendo a importância que a atenção do experimentador deveria ter feito incidir
sobre os elementos da justaposição.
129.
Deparando essencialmente com matéria e com casos desta ordem, éramos
naturalmente levados a reflectir, sobretudo, nas possibilidades da justaposição. E
concedíamos uma menor atenção analítica à natureza própria dos elementos
justapostos. Por si só, de resto, esta atenção não basta. Insistindo somente no
conteúdo interna as sequência, tal atenção tem praticamente por finalidade o
enfraquecimento da montagem, com todas as consequências que daí decorrem.

A que devíamos, antes de mais, estar atentos para reconduzir estes dois excessos à
normalidade?

Impunha-se que nos virássemos para o elemento fundamental que determina, ao


mesmo tempo, o conteúdo interno de cada sequência e a justaposição desses
materiais, isto é, para o conteúdo do todo, do conjunto, daquilo que unifica.

130. Era necessário que nos ocupássemos mais desse princípio unificador, desse
princípio que, para cada obra, gera, na mesma medida, quer o conteúdo da sequência
quer aquele que é revelado pela justaposição das sequências.

131. Se, nesta altura, considerarmos dois elementos lado a lado, a sua justaposição
aparecer-nos-á a uma luz ligeiramente diferente.
O elemento A, tirado do tema a desenvolver, e o elemento B, da mesma proveniência,
originam, quando se justapõem, uma imagem em que o conteúdo do tema se
materializa com o máximo esplendor.
Traduzida de forma normativa, com maior preocupação de precisão e de eficácia, a
proposição pode enunciar-se do seguinte modo:
A representação A e a representação B devem ser escolhidas entre todos os detalhes
possíveis no interior do tema desenvolvido e de tal maneira rebuscadas que a sua
justaposição – a sua e não a de outros elementos – suscite na percepção e na
afectividade do espectador a imagem mais completamente exaustiva do próprio tema.
Para o nosso raciocínio utilizámos dois termos: “representação” e “imagem”.

REPRESENTAÇÃO E IMAGEM:

132. Recordemos Vronski depois de Ana Karenina lhe ter participado que está grávida.
“Na varana dos Karenine, Vronski olhou o pêndulo; estava de tal modo transtornado e
embrenhado nos seus próprios pensamentos que via os ponteiros no mostrador sem
poder compreender que horas eram.”
133. A imagem do tempo fornecida pelos ponteiros já não se formava nele. Via apenas
a representação geométrica dos ponteiros no mostrador.

Ver não é tudo. É preciso ainda que qualquer coisa venha acrescentar-se à
representação, que uma operação seja praticada sobre ela.

Tolstoi mostra-nos o que acontece quando esse processo não se verifica.


Em que consiste o dito processo? Semelhante configuração dos ponteiros no
mostrador contém uma multidão de conceitos associados à hora a que corresponde o
número indicado. Vamos supor que se trata do número 5. Neste caso a nossa
imaginação é levada a fazer afluir à memória, em resposta a este sinal, o turbilhão dos
acontecimentos que se verificam à hora em questão: refeição, fim do dia de trabalho,
afluência ao metropolitano, fecho das livrarias, ou até a luz crepuscular tão
característica do momento do dia... Em resumo, toda uma série de quadros (de
representações) daquilo que se faz às cinco horas.

Actuam em seguida as leis de economia da energia psíquica. Produz-se uma


“condensação” no interior do “processus” descrito: a cadeia dos elos intermediários
desaparece, elabora-se uma associação imediata, directa, instantânea, entre o número
e a percepção da imagem-hora à qual ele corresponde. (134) No exemplo de Vronski,
vimos que, sob a influência de um choque afectivo, esta associação pode ser
perturbada dissociando-se então a representação da imagem.

136. A obra de arte procura, bem entendido, atingir o resultado. Mas é sobre o
“processus” que ela orienta toda a subtileza dos sesu métodos.

Encarada no seu dinamismo, a obra de arte é um processo de formação das imagens


na sensibilidade e na inteligência do espectador.

É nisto que consiste a essência de uma obra de arte autenticamente viva, é isto que a
distingue das obras mortas, nas quais se leva ao conhecimento (137) do espectador o
resultado representado em vez de se arrastar esse espectador na própria evolução do
“processus” .

137. Esta condição confirma-se sempre e em qualquer lugar, (...). É assim que, para o
actor, “interpretar como na vida” consiste menos em representar o resultado copiado
dos sentimentos do que em fazer nascer esses sentimentos, em fazer com que se
desenvolvam e se transformem, em torna-los vivo perante o espectador.

É por isso que a imagem duma cena, dum eposódio, duma obra, etc. não existe como
um dado pré-fabricado, antes deve desabrochar, expandir-se.

É por isso que uma personagem só dá a impressão de vida quando o seu carácter se
forma no decurso da acção, se não for um fantoche mecânico rotulado a priori.

Em resumo, o método de criação das imagens na obra de arte deve reproduzir o


“processus” pelo qual, na vida, a consciência e a sensibilidade se enriquecem com
novas imagens.

138. Voltemos ao exemplo do relógio.


No caso de Vronski, a figura geométrica não evocou a imagem da hora. Mas
apresentam-se por vezes alguns casos em que o interesse não é perceber que são
astronomicamente zero horas, mas, pelo contrário, sentir que é meia-noite no
conjunto das associações e dos estados afectivos que o autor é levado a suscitar pelas
necessidades do assunto. Pode ser a hora em que esperamos angustiadamente por um
encontro à meia-noite, pode ser a hora duma morte à meia-noite, ...
Então, o que deve sair da representação das doze badaladas é a imagem da meia-noite
“hora do destino”, uma meia-noite plena de sentido especial.

-- O exemplo do encontro gorado que Eisenstein da de Bel Ami é muito bom. Alguém
espera um encontro à meia-noite. Às onze anda na carroça. Vem a meia-noite, nada,
batem as horas em vários relógios da cidade. Depois um quarto, depois a meia hora, a
uma. A hora é a imagem do desespero, da diminuição da esperança.

Como ele escreve, 140:


As representações isoladas combinam-se numa imagem.

Por meio desse dissonância (dos relógios), o que permanece como obsessão é a
imagem afectiva “meia-noite, hora do Destino”, e não o simples aviso: “zero horas”.

...

A alusão em vez da representação total da acção:

-- O desposamento do actor é o oposto da representação e exageração do traço, da


representação.
-- O exagero da representação, a representação total da acção é o oposto da alusão.

Volto a ele:
142. Ora, o que é a alusão senão um elemento, um detalhe da acção, um “grande
plano” desta que, justaposto a outros, serve de determinante a todo um momento da
acção?

Ao combinar-se, geram uma imagem do conteúdo da interpretação e não uma simples


representação desse conteúdo.

....

148. Passando desta definição ao “processus” da criação, verificamos que este se


desenrola como a seguir veremos. A intuição interior do autor, a sua sensibilidade,
são dominadas por uma imagem que materializa afectivamente o tema. A tarefa que
lhe falta realizar é a de transformar esta imagem em duas ou três representações
fragmentárias, cuja soma e justaposição vão despertar na inteligência e na
afectividade daquele que as recebe uma imagem sintética final, aquela mesmo que
dominava o autor.

Que haverá de notável neste método? Antes de mais, o seu dinamismo, o facto de a
imagem que se quer obter não ser dada, mas que essa imagem surja, que nasça. A
imagem desejada pelo autor, pelo realizador, pelo artista e por eles fixada em
elementos representativos descontínuos, deve formar-se de novo e definitivamente
na percepção do espectador, aquilo para que tende todo o seu esforço de artista.
150. A virtude deste método consiste ainda em que o espectador é arrastado num acto
de criação no decorrer do qual a sua personalidade, longe de estar escravizada pela do
autor, se alarga, fundindo-se com a ideia deste, (...). Trata-se da imagem que o autor
tinha imaginado e criado mas, ao mesmo tempo, retocada pela criação própria do
espectador.

151. Cada espectador ouve igualmente dar a meia-noite. Mas cada espectador forma a
sua própria imagem, a sua própria noção de meia-noite e o seu significado. Todas estas
noções representam imagens individuais, diferentes, ainda que tematicamente
idênticas.

....
Eisenstein, Da REvolução à Arte, da Arte à Revolução, Editorial Presença, 1974

50. A arte nova deve acabar com o dualismo das esferas do “sentimento” e da “razão”.
Dar à ciência a sua sensualidade, ao processo intelectual a sua chama e a sua paixão.
Mergulhar o processo mental abstracto no turbilhão da vida prática activa.
Dar à fórmula especulativa estéril todo o esplendor e riqueza da forma carnalmente sentida.
Dar ao arbitrário formal a nitidez duma formulação ideológica.
É esse o desafio que lançamos. São essas as exigências que fazemos à era da arte futura.
52. A cinematografia pode e, por conseguinte, deve – levar à tela dum modo tangível, sensual, a
dialéctica da essência dos debates ideológicos no estaod puro. Sem recorrer à efabulação, À
história, ao homem vivo.

SOBRE A COMPOSIÇÃO:

174. A construção de obas clássicas – musicais, dramáticas, cinematográficas ou picturais –


assenta quase sempre na luta de contrários ligados na unidade do conflito.

193. A arte consiste em saber onde se deve dar o acento.

194. A composição duma cena deve realizar-se sempre a partir do trecho que mais
emociona, quer pelo seu conteúdo quer pela sua originalidade. Mais: deve ter-se em conta
que o trecho que geralmente mais emociona é o que, além de ter um efeito imediato,
contém a expressão dinâmica, interior do tema.

195. Chegamos assim ao segundo processo fundamental para pôr nitidamente em relevo
na composição o que nos interessa fundamentalmente (o primeiro consistia, como
dissemos, em desembaraçar o importante do acessório ou de pouco valor).
O processo que quero referir consiste em preparar, antecipadamente, o sobressair do
essencial. Para isso, o meio mais eficaz será a inserção do ponto. Culminante numa linha
de repetições, linha bem definida que, uma vez descoberta, será por nós conduzida por
uma série de pontos de apoio de que facilmente nos recordaremos.

203. Tratando estes materiais, devemos “auscultar” as diferentes possibilidades de


estrutura, potencialmente colocadas nos diversos fragmentos e, consoantes essas
possibilidades, determinar a estrutura, compreender, tratar, repartir e agrupar os
fragmentos e os pormenores segundo as exigências da composição.

204. Devemos ainda ter cuidado de exprimir organicamente as nossas ideias em


imagens, pô-las em evidência nos materiais, adquirir a mestria técnica.
É esta a maneira mais justa de abordar a composição. s

Você também pode gostar