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Resumo
o Todo o grupo dotado de um passado, de mitos (cf. mito/rito), de uma individualidade própria que se
explica através de uma história, de uma religião, de uma cosmogonia (cf. cosmologias), de uma cultura
(d. cultura/culturas), tende a diferenciar as próprias origem das dos outros grupos vizinhos e a apresentar-
se como grupo único formado por verdadeiros homens (cf. anthropos, homo, homem) em confronto com
os outros considerados como qualquer coisa bastante próxima do animal. O etnocentrismo representa,
portanto, uma atitude bastante comum a todos os grupos humanos dotados de certas características e
liga-,se à formação da comunidade através do parentesco, da política, da casta, das classes, da raça, da
língua (cf. dia - lecto), da constituição do ecúmeno e do universo (cf. mundo). A afirmação da própria
identidade transforma-se freqüentemente na negação do outro, seja ele diferente ou não, com o consequente
aparecimento de formas confIituais (d. conflito, guerra), de discriminação, de intolerância (cf.
tolerância/intolerância, heresia) e de valorização negativa de quem está fora do círculo identificado
com o grupo (cf. primitivo, selvagem/bárbaro/civilizado). Com o etnocentrismo nasce também a
exploração de quem é considerado diferente e portanto- inferior (d. servo/senhor/ colônias), e se o
fenômeno parece ter assumido nos tempos modernos um realce e uma extensão nunca
precedentemente verifiçados (d. capital, trabalho, proletariado, burgueses/burguesia), isto não
impede que o etnocentrismo não pareça tanto constituir algo que pertence a um grupo ou a uma
classe, antes representar ainda uma herança bastante comum a cada povo (cf. exclusão / inte gração
).
2. A generalidade do etnocentrismo
Assim definido, o etnocentrismo é uma característica humana universal e não, como por vezes se
supõe, apenas uma peculiaridade do recente imperialismo capitalista.
Ao longo de toda a história humana e até muito recentemente, a grande maioria das comunidades
que funcionaram como colectividades políticas corporativas era de dimensões extremamente
reduzidas. Quando os antropólogosse referem a «um bando de caçadores», «uma tribo», «uma
comunidade aldeã», a população em causa é, geralmente, inferior a quinhentas pessoas e raramente
vai além de alguns milhares. Os traços distintivos comuns a esses micro-sistemas políticos incluem
as seguintes características:
1) Os membros individuais da sociedade acreditam partilhar uma história comum e uma origem
biológica comum. Num sentido que não é precisamente determinado, eles afirmam-se
descendentes de um antepassado comum. O seu sentido de solidariedade depende, pelo menos em
parte, da convicção que daí deriva de que «Nós somos todos parentes».
2) A comunicação de pessoa para pessoa é feita de modo directo através da oralidade, em detrimento
da escrita ou de outros meios de expressão não-verbal.
3) A limitação dos recursos· económicos exclui a possibilidade de existência de uma diferença
substancial entre o nível material de vida daqueles que governam-graças ao seu controlo do
sistema político - e dos que são governados. E, ao mesmo tempo, as restrições económicas impõem
limites aos modos pelos quais as distinções «nós» / «eles» implícitas na hierarquia social e o
etnocentrismo se podem manifestar.
No caso oposto de sistemas políticos de escala relativamente ampla, em que são muito
menores as limitações económicas, a sociedade no seu todo encontra-se geralmente estratifica da
em classes sociais de um ou outro tipo, as quais se tornam então, em diferentes graus, centros de
auto-identificação colectiva. O ernocentrismo da classe dominante, especialmente, manifesta-se
com frequência sob a forma de projectos de construção desmedidos e ostentosos .. Por exemplo, a
colocação do palácio do rei divine no centro geométrico de uma cidade fortificada pode constituir
um modo de representar concretamente a fórmula verbal: «Nós, povo eleito de Deus, estamos aqui
no centro do universo». Exemplos de uma arquitectura grandiosa de templos e palácios, que se
sabe terem sido projectados precisamente para atingir essa especificação cósmica, podem ser
encontrados em qualquer parte do mundo.
Mas a ideologia etnocêntrica também se encontra presente em circunstâncias bem mais
modestas. O efémero simbolismo· de uma sequência, de dança exibida ao ar livre, num espaço
desimpedido, num corrobboree dos aborígenes australianos pode reflectir uma concepção do.
cosmos tão elaborada e tão etnocêntrica como as que presidiram à contrução de monumentos com
a dimensão e a durabilidade de Angkor Wat e das pirâmides do Egipto.
De uma forma ou de outra, colescobrem-se indícios de ernocentrismo em todas as sociedades
humanas. Examinaremos agora com mais pormenor algumas dessas múltiplas formas.
3. Etnocentrismo e parentesco
A parte talvez uma ou duas excepções, todas as sociedades humanas conhecidas submeteram o
seu funcionamento a regras de exogamia que proíbem o matrimónio entre determinadas categorias
de parentes próximos.
Consequentemente, as sociedades mais pequenas em que todos os membros individuais se
concebem como parentes, pelo facto de descenderem de um remoto antepassado fundador, têm
sempre uma forma segmentária. Os subgrupos, que são segmentos de um todo, variam de tamanho,
mas cada um dos segmentos encontra-se, por sua vez, segmentado do mesmo modo. Os membros
de cada segmento e subsegmemo crêem-se descendentes de um antepassado çomum; quanto mais
próximo está o antepassado, mais estreito é o laço entre os descendentes. Mas os segmentos e
subsegmentos entrecruzarn-se então por vínculos de matrimónio, pelo que o todo assume a forma
de uma colectividade endógama.
Uma estrutura deste tipo implica, directameme, pelo menos dois níveis de etnocentrismo: 1)
aquele em que o grupo-«nós» é a totalidade da sociedade endógama; e 2) aquele em que o
gtupo-«nós» é o segmento exógamo ao qual pertence o próprio Ego. Na prática, o etnocentrismo
deste segundo tipo, que geralmente assenta na ideologia de uma essência corpórea comum, e que
forneçe a base para a vendetta e instituições similares, é sempre muito mais forte e duradoiro que o
vínculo mais vago que é instaurado pela afinidade, mesmo quando este se associa a uma indefinida
descendência de um fundador mítico. Por outras palavras, a auto-identificação que me une à
«minha família» é quase sempre muito mais efectiva do que aquela que me liga à «minha nação»
ou à «minha comunidade étnica».
É inegável que aqueles com quem «nós» (isto é, os membros do meu grupo exógamo)
estabelecemos matrimónio são· sempre considerados, até certo ponto, «como nós»; são seres
humanos, não animais, e contudo não são exactamente como nós. Se comparadas com o vínculo de
uma essência comum, estabelecido pela crença numa desc~ndêncía comum, as alianças que se
formam com o matrimónio são relativamente ténues. Há, de facto, nalguns casos,marcadas
diferenças culturais entre os grupos-<mós» que. se unem entre si através da realização de
matrimónios. Há até casos, como entre os Índios da região Vaupés, na Colômbia, em que a mulher
pertence geralmente a uma comunidade linguística diferente da do marido e dos filhos, e há muitas
zonas do mundo onde os etoógrafos foram informados pelos interlocutores indígenas que «nós
casamos com os nossos inimigos!»
As estruturas de parentesco que se incluem neste tipo genérico fornecem um caso
paradigmático de um tipo de oposição segmentária que é muito comum em toda uma vasta gama
de organizações humanas. Durkheim [1893] parece sugerir que se trata de uma característica
exclusiva dos sistemas sociais em que a divisão do trabalho não está muito desenvolvida, mas o
facto é que muitos dos aspectos deste modelo geral se adaptam com igual facilidade· tanto à
organização hierárquica de uma fábrica moderna como à dos bandos nómadas de uma tribo de
aborígenes australianos. O traço essencial de tais sistemas reside em que, a todo e qualquer nível
de auto-identificação, «nós» estamos em condições de reconhecer a nossa
existência como grupo agregado através da percepção de um contraste. «Nós» e «os outros»
formamos um par de grupos, homólogos, mas opostos entre si. Reconhecemos quem são os «nós»,
com base em critérios negativos; nós não somos como «os outros». Mas cada um desses
grupos-«nós» engloba um certo número de subsegmentos a propósito dos quais se pode dizer pre -
cisamente o mesmo, embora numa escala mais reduzida e a um nível de auto-identificação mais
circunscrito. Em Durkheim [1893], este princípio geral da estrutura social é definido como
solidarité mécanique. A mais famosa aplicação destasideiasa uma estrutura segmentá ria de
parentesco encontra-se em The Nuer de Evans-Pritchard [1937].
mas, a nível prático, os deuses a quem é dirigido o comportamento cultural são sempre mediadores
para-físicos, entidades que são simultaneamente humanas e não-humanas (por exemplo, Jesus
Cristo, a Santíssima Virgem Maria), de modo que, tal como todos os homens são considerados
semelhantes aos animais mas, de alguma maneira, diferentes dos animais, também todos os deuses
são semelhantes aos homens mas, de alguma forma, diferentes dos homens. A delimitação dessas
fronteiras é, mais uma vez, um acto etnocêntrico. A iconografia religiosa é o seu produto final. Em
todo O mundo, em todos os tipos de cultura, a divindade tem sido representada na arte e na
mitologia como uma espécie de homem-animal. Na América central e meridional, o jaguar e a
anaconda preenchem esse papel; na Índia, o avatar de Visnu é um javali; no antigo Egipto, todas as
divindades maiores tinham as suas manifestações animais, e assim por diante.
Dado que estas criaturas da imaginação se situam na fronteira, sem serem totalmente humanas
ou totalmente naturais, mas sobre-humanas e sobre-naturais, elas são «sagradas»; o que significa que
lhes é atribuído um poder misterioso e que são objecto de tabu.
Estas observações sobre a forma como os homens percepcionam a relação entre humanidade e
divindade baseiam-se 00 modo como o etnoceotrismo se manifesta noutras esferas da actividade
humana.
Se «nós» estamos no centro do universo, e somos os únicos verdadeiros seres humanos, logo
«os outros» que se encontram em contraste connosco são, de certo modo, «outra coisa» em relação
ao humano. Isso leva, frequentemente, a que olhemos «os outros» com desprezo e, por vezes, com
temor. Contudo, há invariavelmente elementos de ambiguidade: «os outros» são sagrados. Nas
nossas atitudes em relação a eles, misturam-se o medo e o ódio, mas também a inveja. Nos
clássicos casos de racismo do mundo moderno, seja na África do Sul e nos Estados Unidos, como
noutros lados, o etnocemrismo leva os membros da cultura branca, politicamente dominante, a
desprezar as capacidades intelectuais dos seus vizinhos negros mas, ao mesmo tempo, a atribuir-
Ihes uma potência sexual verdadeiramente excepcional!
Este tipo de comportamento não é exclusivo das modernas sociedades industriais ou coloniais
e pós-coloniais, em que o sector branco da comunidade, económica e politicamente dominante,
está em posição de explorar os . «outros» não-brancos. O fenómeno é geral. Em sociedades
camponesas e tribais nas quais vivem lado a lado, em relações de vizinhança, populações com
níveis de desenvolvimento tecnológico pouco diferenciado - que é a situação normal em toda a
Ásia meridional-, repetidamente se verifica que, se um determinado grupo A é política e
economicamente dominante relativamente a outro grupo B, nesse caso os A atribuem aos B
poderes místicos extraordinários, o que é comprovado pelo facto de os A utilizarem determinados
membros do grupo B como mágicos profissionais, xamãs, curandeiros, ou até como sacerdotes.
Por sua vez, aqueles que, por qualquer razão, são considerados como possuidores de poderes
místicos especiais, são geralmente tratados «como se» constituíssem uma raça à parte, ainda que
sejam, de facto, membros de uma sociedade global que, de um ponto de vista objectivo e externo,
se apresenta racial e culturalmente homogénea. Por exemplo, onde as funções do sacerdócio são
reservadas quer aos membros de um grupo profissional com uma instrução especial, como é, em
geral, o caso das igrejas cristãs, quer aos membros de uma casta hereditária, como no hinduísmo,
a atitude que os «laicos» adoptam perante os «padres» é sempre altamente ambígua; o respeito e
o desprezo combinam-se de uma forma assaz característica; o clero é tratado «como se»
constituísse uma comunidade etnicamente distinta contra a qual é posto em jogo o preconceito
etnocêntrico.
O mais vasto debate científico, cuja questão consistia em saber se o Roma sapiens constituía
uma espécie única criada «à imagem de Deus», ou várias espécies distintas 'apresentando
diferentes graus de afinidade com os macacos antropomórficos, foi tema de controvérsia durante
vários séculos. Até 1860, a tese da espécie múltipla (poligenista) era ainda a doutrina dominante
entre os «especialistas» europeus e americanos mais considerados, e ainda se podem encontrar
«cientistas» prontos a negar a unidade da espécie Roma sapiens sapiens. Ainda na última década se
organizaram expedições bastante sérias em busca do abominável homem das neves do Tibet. E
isto, na verdade, não deve surpreender-nos, se tivermos em conta que, até serem desenhados
mapas de toda a superfície geográfica da Terra, processo que só foi completado neste século, os
próprios Europeus não tinham boas razões para presumir que não pudessem existir, algures,
criaturas que não fossem homens nem macacos, mas um elo perdido, não-humano, situado em
qualquer ponto intermédio. Deduz-se assim que a noção de unidade do género humano, como
categoria universal difundida em todo o mundo, é uma invenção muito recente. Sociedades de
todo o género proclamaram a máxima de que «todos os homens são irmãos», mas a categoria de
pessoas assim identificadas era muito restrita; as criaturas que vivem do lado de lá do monte não
fazem necessariamente parte do nosso género humano.
Foram os Malaios, não os Europeus, que primeiro chamaram ao or'ang-utan 'homem da
floresta', mas na Europa, durante todo o século XVIII, houve um grande número de estudiosos,
entre os quais Lineu e Rousseau, que acreditaram que o orang-utan fosse uma subespécie de
homem ou, ao contrário, que os Pigmeus africanos se deveriam classificar como macacos. Tal
incerteza é fácil de compreender. As únicas pessoas sobre as quais temos certezas são as que
estão em contacto connosco, as «pessoas como nós». «Nós», de qualquer maneira, somos mesmo
homens; «nós» somos seres humanos.
Isto acontece em todas as sociedades humanas. O nome tribal que as pessoas se dão a si
próprias tem, frequentemente, a conotação «homens»; se se reconhecem outros grupos tribais,
eles são, contudo, diferentes de nós, não só porque têm costumeS diferentes, mas porque são de
uma espécie diferente. Eles não são homens, verdadeiramente. Tikopia, por exemplo, é o nome
indígena de uma pequena ilha da Polinésia ocidental; tatou nga Tikopia 'nós, os Tikopia' é uma
frase que os habitantes usam para se distinguirem da população de Tonga, de Samoa, ou de Santa
Cruz, ou dessa criatura ainda mais estranha, o papalangi 'o homem branco' [Firth 1936]. Existe
também uma população de cerca de 350000 pessoas, espalhadas por um ter ritório de 130 mil
quilómetros quadrados, na Birmânia setentrional e no Sudoeste chinês, que se designa a si
própria, colectivamente, como anhte Jiinghpaw ni 'nós, os Jinghpaw'. A esse nível, distinguem-se a
si próprios dos seus vizinhos geográficos - os Shan (Sam), os Chineses (Miwa), os Birmaneses
(Myen), os outros montanheses a ocidente (Kang), os outros montanheses a oriente (Nung), e todos
os outros estrangeiros (Kang). Mas é evidente que, da maneira como falam, os «nós» que são
Jinghpaw se consideram totalmente diferentes. dos outros quanto à espécie (ou seja, à subs-
tância). E quanto mais distantes estão os outros, maior é a diferença da espécie. É significativo
que a característica comum daqueles que fazem parte de «nós, Jinghpaw» é sentida em termos de
parentesco. «Nós» somos todos descendentes de um antepassado mítico comum Ka-ang Duwa 'o
Senhor do Centro da Terra', cuja esposa era um crocodilo. Os subcomponentes deste «nós» global
são enumerados numa fórmula retórica frequentemente usada, . que pode ser equiparada a: «Nós,
os membros da nossa linhagem; nós, os membros de linhagens ligadas por afinidades; nós, os
membros de linhagens ligadas por afinidade a linhagens que são ligadas por afinidade; todos nós
Jinghpaw» [cf. Leach 1954].
Quando os brancos da África do Sul se contrapõem aos seus vizinhos negros, ou os Europeus
aos Asiáticos, não usam .propriamente este tipo de linguagem, mas a ideologia é muito
semelhante. O etnocentrismo é justificado pela pretensão de que «nós» constituímos uma estirpe
à parte;