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ETNOCENTRISMOS por Edmund Leach

(editado por A. Labale para uso da cátedra)

Resumo
o Todo o grupo dotado de um passado, de mitos (cf. mito/rito), de uma individualidade própria que se
explica através de uma história, de uma religião, de uma cosmogonia (cf. cosmologias), de uma cultura
(d. cultura/culturas), tende a diferenciar as próprias origem das dos outros grupos vizinhos e a apresentar-
se como grupo único formado por verdadeiros homens (cf. anthropos, homo, homem) em confronto com
os outros considerados como qualquer coisa bastante próxima do animal. O etnocentrismo representa,
portanto, uma atitude bastante comum a todos os grupos humanos dotados de certas características e
liga-,se à formação da comunidade através do parentesco, da política, da casta, das classes, da raça, da
língua (cf. dia - lecto), da constituição do ecúmeno e do universo (cf. mundo). A afirmação da própria
identidade transforma-se freqüentemente na negação do outro, seja ele diferente ou não, com o consequente
aparecimento de formas confIituais (d. conflito, guerra), de discriminação, de intolerância (cf.
tolerância/intolerância, heresia) e de valorização negativa de quem está fora do círculo identificado
com o grupo (cf. primitivo, selvagem/bárbaro/civilizado). Com o etnocentrismo nasce também a
exploração de quem é considerado diferente e portanto- inferior (d. servo/senhor/ colônias), e se o
fenômeno parece ter assumido nos tempos modernos um realce e uma extensão nunca
precedentemente verifiçados (d. capital, trabalho, proletariado, burgueses/burguesia), isto não
impede que o etnocentrismo não pareça tanto constituir algo que pertence a um grupo ou a uma
classe, antes representar ainda uma herança bastante comum a cada povo (cf. exclusão / inte gração
).

1. Introdução: o conceito de etnocentrismo


De entre os filósofos ocidentais, Descartes foi o primeiro a defender uma posição rigorosamente
etnocêntrica assente na racionalidade formal. Toda a experiência sensorial está aberta à dúvida, mas o
meu próprio pensamento consciente faz-me ter a certeza de que eu, pelo menos, devo seguramente
existir. Descartes passou, então, a defender que a certeza da existência deste Ego implica, igualmente,
a certeza da existência de Deus. Mas esta limitada certeza mental que me assegura que eu e Deus
existimos e que criá mos o universo entre nós, não implica a ulterior existência necessária de coisas
objectivas no mundo exterior, ou de outros seres humanos.
Alguns dos sucessores de Descartes levaram a filosofia da dúvida a tal ponto que um cepticismo
universal, em relação à «realidade» do modo como as coisas se apresentam, se tornou, hoje em dia,
uma das pedras angulares da ciência moderna. Mas apesar do cepticismo sistemático de Descartes ter
sido uma inovação, o seu egocentrismo não constituiu qualquer novidade. Todo o ser humano,
qualquer que seja a sua identidade cultural, tem a sensação de se encontrar no centro de um universo
privado. Na parte do mundo ocidental contemporâneo que é dominada pela ética do individualismo
competitivo, tal egocentrismo é assinalado pelo uso extremamente frequente de expressões na
primeira pessoa do singular: «Eu faço isto ... », «Eu faço aquilo ... » Nas sociedades com uma
diferente tradição cultural, o indivíduo está mais facilmente disposto a identificar-se com os membros
do seu grupo: «Nós fazemos isto ... », «Nós fazemos aquilo ... »
Face aos objectivos do presente artigo, 'etnocentrismo' será entendido como referência a todo o
âmbito de extensão do egocentrismo em que o «nós» tende a substituir o «eu» como centro de auto-
identificação. O nosso interesse incidirá nas representações simbólicas de tais etnocentrismos e nas
suas consequências no comportamento cultural aos- mais diversos níveis.

2. A generalidade do etnocentrismo
Assim definido, o etnocentrismo é uma característica humana universal e não, como por vezes se
supõe, apenas uma peculiaridade do recente imperialismo capitalista.
Ao longo de toda a história humana e até muito recentemente, a grande maioria das comunidades
que funcionaram como colectividades políticas corporativas era de dimensões extremamente
reduzidas. Quando os antropólogosse referem a «um bando de caçadores», «uma tribo», «uma
comunidade aldeã», a população em causa é, geralmente, inferior a quinhentas pessoas e raramente
vai além de alguns milhares. Os traços distintivos comuns a esses micro-sistemas políticos incluem
as seguintes características:
1) Os membros individuais da sociedade acreditam partilhar uma história comum e uma origem
biológica comum. Num sentido que não é precisamente determinado, eles afirmam-se
descendentes de um antepassado comum. O seu sentido de solidariedade depende, pelo menos em
parte, da convicção que daí deriva de que «Nós somos todos parentes».
2) A comunicação de pessoa para pessoa é feita de modo directo através da oralidade, em detrimento
da escrita ou de outros meios de expressão não-verbal.
3) A limitação dos recursos· económicos exclui a possibilidade de existência de uma diferença
substancial entre o nível material de vida daqueles que governam-graças ao seu controlo do
sistema político - e dos que são governados. E, ao mesmo tempo, as restrições económicas impõem
limites aos modos pelos quais as distinções «nós» / «eles» implícitas na hierarquia social e o
etnocentrismo se podem manifestar.
No caso oposto de sistemas políticos de escala relativamente ampla, em que são muito
menores as limitações económicas, a sociedade no seu todo encontra-se geralmente estratifica da
em classes sociais de um ou outro tipo, as quais se tornam então, em diferentes graus, centros de
auto-identificação colectiva. O ernocentrismo da classe dominante, especialmente, manifesta-se
com frequência sob a forma de projectos de construção desmedidos e ostentosos .. Por exemplo, a
colocação do palácio do rei divine no centro geométrico de uma cidade fortificada pode constituir
um modo de representar concretamente a fórmula verbal: «Nós, povo eleito de Deus, estamos aqui
no centro do universo». Exemplos de uma arquitectura grandiosa de templos e palácios, que se
sabe terem sido projectados precisamente para atingir essa especificação cósmica, podem ser
encontrados em qualquer parte do mundo.
Mas a ideologia etnocêntrica também se encontra presente em circunstâncias bem mais
modestas. O efémero simbolismo· de uma sequência, de dança exibida ao ar livre, num espaço
desimpedido, num corrobboree dos aborígenes australianos pode reflectir uma concepção do.
cosmos tão elaborada e tão etnocêntrica como as que presidiram à contrução de monumentos com
a dimensão e a durabilidade de Angkor Wat e das pirâmides do Egipto.
De uma forma ou de outra, colescobrem-se indícios de ernocentrismo em todas as sociedades
humanas. Examinaremos agora com mais pormenor algumas dessas múltiplas formas.

3. Etnocentrismo e parentesco
A parte talvez uma ou duas excepções, todas as sociedades humanas conhecidas submeteram o
seu funcionamento a regras de exogamia que proíbem o matrimónio entre determinadas categorias
de parentes próximos.
Consequentemente, as sociedades mais pequenas em que todos os membros individuais se
concebem como parentes, pelo facto de descenderem de um remoto antepassado fundador, têm
sempre uma forma segmentária. Os subgrupos, que são segmentos de um todo, variam de tamanho,
mas cada um dos segmentos encontra-se, por sua vez, segmentado do mesmo modo. Os membros
de cada segmento e subsegmemo crêem-se descendentes de um antepassado çomum; quanto mais
próximo está o antepassado, mais estreito é o laço entre os descendentes. Mas os segmentos e
subsegmentos entrecruzarn-se então por vínculos de matrimónio, pelo que o todo assume a forma
de uma colectividade endógama.
Uma estrutura deste tipo implica, directameme, pelo menos dois níveis de etnocentrismo: 1)
aquele em que o grupo-«nós» é a totalidade da sociedade endógama; e 2) aquele em que o
gtupo-«nós» é o segmento exógamo ao qual pertence o próprio Ego. Na prática, o etnocentrismo
deste segundo tipo, que geralmente assenta na ideologia de uma essência corpórea comum, e que
forneçe a base para a vendetta e instituições similares, é sempre muito mais forte e duradoiro que o
vínculo mais vago que é instaurado pela afinidade, mesmo quando este se associa a uma indefinida
descendência de um fundador mítico. Por outras palavras, a auto-identificação que me une à
«minha família» é quase sempre muito mais efectiva do que aquela que me liga à «minha nação»
ou à «minha comunidade étnica».
É inegável que aqueles com quem «nós» (isto é, os membros do meu grupo exógamo)
estabelecemos matrimónio são· sempre considerados, até certo ponto, «como nós»; são seres
humanos, não animais, e contudo não são exactamente como nós. Se comparadas com o vínculo de
uma essência comum, estabelecido pela crença numa desc~ndêncía comum, as alianças que se
formam com o matrimónio são relativamente ténues. Há, de facto, nalguns casos,marcadas
diferenças culturais entre os grupos-<mós» que. se unem entre si através da realização de
matrimónios. Há até casos, como entre os Índios da região Vaupés, na Colômbia, em que a mulher
pertence geralmente a uma comunidade linguística diferente da do marido e dos filhos, e há muitas
zonas do mundo onde os etoógrafos foram informados pelos interlocutores indígenas que «nós
casamos com os nossos inimigos!»
As estruturas de parentesco que se incluem neste tipo genérico fornecem um caso
paradigmático de um tipo de oposição segmentária que é muito comum em toda uma vasta gama
de organizações humanas. Durkheim [1893] parece sugerir que se trata de uma característica
exclusiva dos sistemas sociais em que a divisão do trabalho não está muito desenvolvida, mas o
facto é que muitos dos aspectos deste modelo geral se adaptam com igual facilidade· tanto à
organização hierárquica de uma fábrica moderna como à dos bandos nómadas de uma tribo de
aborígenes australianos. O traço essencial de tais sistemas reside em que, a todo e qualquer nível
de auto-identificação, «nós» estamos em condições de reconhecer a nossa
existência como grupo agregado através da percepção de um contraste. «Nós» e «os outros»
formamos um par de grupos, homólogos, mas opostos entre si. Reconhecemos quem são os «nós»,
com base em critérios negativos; nós não somos como «os outros». Mas cada um desses
grupos-«nós» engloba um certo número de subsegmentos a propósito dos quais se pode dizer pre -
cisamente o mesmo, embora numa escala mais reduzida e a um nível de auto-identificação mais
circunscrito. Em Durkheim [1893], este princípio geral da estrutura social é definido como
solidarité mécanique. A mais famosa aplicação destasideiasa uma estrutura segmentá ria de
parentesco encontra-se em The Nuer de Evans-Pritchard [1937].

4. Homem: Deus:: Cultura: Natureza


A estrutura segmentária - da solidariedade etnocêntrica, discutida no parágrafo precedente,
pode ainda ser encarada como Um sistema de círculos concêntricos. «Eu» estou aqui no centro do
meu universo, o mundo da cultura e da civilização; à minha volta,em circulos cada vez mais
afastados, estão aqueles que eu reconheço como seres humanos, tal como eu. Alguns são-me.
muito próximos; outros, só longinquamente me são aparentados. Para além disso, há os estranhos
e os-estrangeiros cujos costumes são suficientemente parecidos cornos meus-para que eu
experimente sentimentos de simpatia humana, mas além destes últimos há pessoas ainda mais
estranhas que não me suscitam a mínima resposta; estes estão para além dos limites da
humanidade, são selvagens, animais ferozes, elementos da Natureza. Tais sentimentos são
recíprocos. A partir do século XII (e sem dúvida muito antes), -os viajantes europeus narravam
repetidamente histórias de encontros com canibais com cabeça de cão que se. dedicavam a
práticas da maior depravação. E aqueles assim descritos, quando deixavam algum registo escrito
ou pictórico, descreviam normalmente os seus visitantes como monstros desse gênero. -
O ponto onde nós traçamos a linha de demarcação entre os «homens» (ou seja, aqueles que
são «seres-humanos» na medida em que são reconhecidos, pelo menos vagamente, como
aparentados comigo) eos «animais» (ou seja, as criaturas da natureza que não possuem qualquer
rudimento de cultura humana) é, em última análise, uma questão de preconceito subjectivo.
Mesmo os que estudam a evolução humana com os métodos mais científicos não conseguem
mais do que estabelecer critêrios - inteiramente arbitrários para distinguir o homem primordial do
macaco proto-hominideo. Não há forma de fugir a este dilema; não existe uma linha de
demarcação nítida entre a Natureza e a Cultura. Na realidade biológica, todos os seres humanos
são animais; eles são, simultaneamente, produtos da natureza e produtos da cultura. E, no entanto,
todos nós - senti mós necessidade de nos distinguirmos dos «simples animais» e, por isso,
recorremos ao preconceito etnocêntrico para nos ajudar a decidir qual o tipo de cultura que pode
ser aceite como totalmente humano. Os vários aspectos dessa «cuItura humana», subjectivamente
definida, passam então a ser utilizados como traços distintivos das «pessoas como nós». Por
exemplo, desde há muito que os Europeus têm conhecimento da existência de homens que são
canibais, mas os Europeus consideram _ que o canibalismo _ é absolutamente imoral: os canibais
- nunca poderiam ser «pessoas como nós», não podem portanto ser totalmente humanos. Mas a
categoria residual daqueles que não são seres humanos, que não são «pessoas como nós», é
complexa. Tais criaturas podem ser classificadas como «animais», como «deuses», ou mesmo
ambas as coisas. Sobre isto, importa referir que os juizos feitos pelas diferentes comunidades são
sempre de uma importância religiosa fundamental.
Todas as variedades de pensamento e prática religiosos estão interessadas na possibilidade de
acordos entre o Homem e Deus. A nível especulativo é possível conceber a divindade como uma
entidade puramente abstracta, tal que:

Homem : Deus : : físico : metafísico

mas, a nível prático, os deuses a quem é dirigido o comportamento cultural são sempre mediadores
para-físicos, entidades que são simultaneamente humanas e não-humanas (por exemplo, Jesus
Cristo, a Santíssima Virgem Maria), de modo que, tal como todos os homens são considerados
semelhantes aos animais mas, de alguma maneira, diferentes dos animais, também todos os deuses
são semelhantes aos homens mas, de alguma forma, diferentes dos homens. A delimitação dessas
fronteiras é, mais uma vez, um acto etnocêntrico. A iconografia religiosa é o seu produto final. Em
todo O mundo, em todos os tipos de cultura, a divindade tem sido representada na arte e na
mitologia como uma espécie de homem-animal. Na América central e meridional, o jaguar e a
anaconda preenchem esse papel; na Índia, o avatar de Visnu é um javali; no antigo Egipto, todas as
divindades maiores tinham as suas manifestações animais, e assim por diante.
Dado que estas criaturas da imaginação se situam na fronteira, sem serem totalmente humanas
ou totalmente naturais, mas sobre-humanas e sobre-naturais, elas são «sagradas»; o que significa que
lhes é atribuído um poder misterioso e que são objecto de tabu.
Estas observações sobre a forma como os homens percepcionam a relação entre humanidade e
divindade baseiam-se 00 modo como o etnoceotrismo se manifesta noutras esferas da actividade
humana.
Se «nós» estamos no centro do universo, e somos os únicos verdadeiros seres humanos, logo
«os outros» que se encontram em contraste connosco são, de certo modo, «outra coisa» em relação
ao humano. Isso leva, frequentemente, a que olhemos «os outros» com desprezo e, por vezes, com
temor. Contudo, há invariavelmente elementos de ambiguidade: «os outros» são sagrados. Nas
nossas atitudes em relação a eles, misturam-se o medo e o ódio, mas também a inveja. Nos
clássicos casos de racismo do mundo moderno, seja na África do Sul e nos Estados Unidos, como
noutros lados, o etnocemrismo leva os membros da cultura branca, politicamente dominante, a
desprezar as capacidades intelectuais dos seus vizinhos negros mas, ao mesmo tempo, a atribuir-
Ihes uma potência sexual verdadeiramente excepcional!
Este tipo de comportamento não é exclusivo das modernas sociedades industriais ou coloniais
e pós-coloniais, em que o sector branco da comunidade, económica e politicamente dominante,
está em posição de explorar os . «outros» não-brancos. O fenómeno é geral. Em sociedades
camponesas e tribais nas quais vivem lado a lado, em relações de vizinhança, populações com
níveis de desenvolvimento tecnológico pouco diferenciado - que é a situação normal em toda a
Ásia meridional-, repetidamente se verifica que, se um determinado grupo A é política e
economicamente dominante relativamente a outro grupo B, nesse caso os A atribuem aos B
poderes místicos extraordinários, o que é comprovado pelo facto de os A utilizarem determinados
membros do grupo B como mágicos profissionais, xamãs, curandeiros, ou até como sacerdotes.
Por sua vez, aqueles que, por qualquer razão, são considerados como possuidores de poderes
místicos especiais, são geralmente tratados «como se» constituíssem uma raça à parte, ainda que
sejam, de facto, membros de uma sociedade global que, de um ponto de vista objectivo e externo,
se apresenta racial e culturalmente homogénea. Por exemplo, onde as funções do sacerdócio são
reservadas quer aos membros de um grupo profissional com uma instrução especial, como é, em
geral, o caso das igrejas cristãs, quer aos membros de uma casta hereditária, como no hinduísmo,
a atitude que os «laicos» adoptam perante os «padres» é sempre altamente ambígua; o respeito e
o desprezo combinam-se de uma forma assaz característica; o clero é tratado «como se»
constituísse uma comunidade etnicamente distinta contra a qual é posto em jogo o preconceito
etnocêntrico.
O mais vasto debate científico, cuja questão consistia em saber se o Roma sapiens constituía
uma espécie única criada «à imagem de Deus», ou várias espécies distintas 'apresentando
diferentes graus de afinidade com os macacos antropomórficos, foi tema de controvérsia durante
vários séculos. Até 1860, a tese da espécie múltipla (poligenista) era ainda a doutrina dominante
entre os «especialistas» europeus e americanos mais considerados, e ainda se podem encontrar
«cientistas» prontos a negar a unidade da espécie Roma sapiens sapiens. Ainda na última década se
organizaram expedições bastante sérias em busca do abominável homem das neves do Tibet. E
isto, na verdade, não deve surpreender-nos, se tivermos em conta que, até serem desenhados
mapas de toda a superfície geográfica da Terra, processo que só foi completado neste século, os
próprios Europeus não tinham boas razões para presumir que não pudessem existir, algures,
criaturas que não fossem homens nem macacos, mas um elo perdido, não-humano, situado em
qualquer ponto intermédio. Deduz-se assim que a noção de unidade do género humano, como
categoria universal difundida em todo o mundo, é uma invenção muito recente. Sociedades de
todo o género proclamaram a máxima de que «todos os homens são irmãos», mas a categoria de
pessoas assim identificadas era muito restrita; as criaturas que vivem do lado de lá do monte não
fazem necessariamente parte do nosso género humano.
Foram os Malaios, não os Europeus, que primeiro chamaram ao or'ang-utan 'homem da
floresta', mas na Europa, durante todo o século XVIII, houve um grande número de estudiosos,
entre os quais Lineu e Rousseau, que acreditaram que o orang-utan fosse uma subespécie de
homem ou, ao contrário, que os Pigmeus africanos se deveriam classificar como macacos. Tal
incerteza é fácil de compreender. As únicas pessoas sobre as quais temos certezas são as que
estão em contacto connosco, as «pessoas como nós». «Nós», de qualquer maneira, somos mesmo
homens; «nós» somos seres humanos.
Isto acontece em todas as sociedades humanas. O nome tribal que as pessoas se dão a si
próprias tem, frequentemente, a conotação «homens»; se se reconhecem outros grupos tribais,
eles são, contudo, diferentes de nós, não só porque têm costumeS diferentes, mas porque são de
uma espécie diferente. Eles não são homens, verdadeiramente. Tikopia, por exemplo, é o nome
indígena de uma pequena ilha da Polinésia ocidental; tatou nga Tikopia 'nós, os Tikopia' é uma
frase que os habitantes usam para se distinguirem da população de Tonga, de Samoa, ou de Santa
Cruz, ou dessa criatura ainda mais estranha, o papalangi 'o homem branco' [Firth 1936]. Existe
também uma população de cerca de 350000 pessoas, espalhadas por um ter ritório de 130 mil
quilómetros quadrados, na Birmânia setentrional e no Sudoeste chinês, que se designa a si
própria, colectivamente, como anhte Jiinghpaw ni 'nós, os Jinghpaw'. A esse nível, distinguem-se a
si próprios dos seus vizinhos geográficos - os Shan (Sam), os Chineses (Miwa), os Birmaneses
(Myen), os outros montanheses a ocidente (Kang), os outros montanheses a oriente (Nung), e todos
os outros estrangeiros (Kang). Mas é evidente que, da maneira como falam, os «nós» que são
Jinghpaw se consideram totalmente diferentes. dos outros quanto à espécie (ou seja, à subs-
tância). E quanto mais distantes estão os outros, maior é a diferença da espécie. É significativo
que a característica comum daqueles que fazem parte de «nós, Jinghpaw» é sentida em termos de
parentesco. «Nós» somos todos descendentes de um antepassado mítico comum Ka-ang Duwa 'o
Senhor do Centro da Terra', cuja esposa era um crocodilo. Os subcomponentes deste «nós» global
são enumerados numa fórmula retórica frequentemente usada, . que pode ser equiparada a: «Nós,
os membros da nossa linhagem; nós, os membros de linhagens ligadas por afinidades; nós, os
membros de linhagens ligadas por afinidade a linhagens que são ligadas por afinidade; todos nós
Jinghpaw» [cf. Leach 1954].
Quando os brancos da África do Sul se contrapõem aos seus vizinhos negros, ou os Europeus
aos Asiáticos, não usam .propriamente este tipo de linguagem, mas a ideologia é muito
semelhante. O etnocentrismo é justificado pela pretensão de que «nós» constituímos uma estirpe
à parte;

6. Etnocentrismo, anti-semitismo, genocídio


Tudo isto que foi dito sobre a estrutura de segregação de casta na Índia aplica-se, com a
mesma força, à longa e trágica história do anti-semitismo na Europa cristã.
o etnocentrismo do povo judeu é uma questão central da fé religiosa.
Os judeus são, teoricamente, uma comunidade endógama, uma estirpe à parte, os descendentes de
Abraão, o povo escolhido por Deus, destinado por decreto divino a ter a posse exclusiva de um
território demarcado com precisão, a Terra Prometida do Antigo Testamento. É evidente que, na
prática, ao longo da história, os judeus não aderiram escrupulosamente aos preceitos da sua fé. As
modernas populações judaicas não são geneticamente distintas; num sentido biológico empírico,
os judeus não constituem uma única raça. Mas o que interessa aqui é mais a ideologia do que a
biologia. Colectivamente, os judeus consideram-se diferentes e, como tal, os seus vizinhos
tratam-nos como diferentes, obrigando-os muitas vezes a exibir essa diferença através de
determinados sinais distintivos. A diferenciação dos judeus europeus nos séculos XVIII e XIX-
no vestuário, linguagem, locais de residência, actividades, penteado, alimentação, etc. - foi
determinada por um processo recíproco. Por um lado, tratava-se do etnocentrismo dos judeus que
os levava a orgulharem-se das suas diferenças; por outro, consistia num estigma de infâmia
imposto aos judeus pelos cristãos da altura, devido à sua «alteridade» .
Não será necessário sublinhar a feroz hostilidade que é desencadeada em tais circunstâncias,
mas são muito claras as suas implicações. Grupos de pessoas que vivem em contacto umas com
as outras, em estreita interdependência econômica, mas que recusam, com base em dogmas
religiosos ou outro género de preconceitos, contrair matrimônio entre si, desencadeiam uma
hostilidade etnocêntrica mútua que, com o andar dos tempos, conduz à violência do tipo mais
brutal e irracional. Ambas as partes tratam os «outros» não só como inimigos que, apesar de tudo,
são «pessoas como nós», mas como animais selvagens a exterminar sem hesitações.
Em Israel, a tradicional hostilidade entre judeus e cristãos foi agora transformada numa nova
hostilidade entre judeus e muçulmanos; ambas as partes se comportam como se os outros se
excluíssem da categoria de «seres humanos». Na Irlanda do Norte o modelo é o mesmo; católicos
e protestantes comportam-se uns com os outros como se cada grupo seguisse o princípio segundo
o qual só «nós» é que somos humanos, enquanto «eles» não passam de animais daninhos.
Se um preconceito deste tipo se destina a ter efeitos práticos, os membros dos grupos-«nós»
que se opõem têm de poder reconhecer-se reciprocamente. «Nós» temos de ser diferentes «deles»
de uma maneira facilmente reconhecível. Uma multiplicidade de sinais pode servir como
característica distintiva para esse fim: 1) diferenças raciais evidentes, como a cor da pele e o tipo
de cabelo; 2) maneiras diferentes de vestir e pentear; 3) práticas religiosas; 4) estilo de vida em
geral; 5) língua e dialecto.
A maior parte das tentativas históricas de exterminar «os outros» à escala do genocídio (por
exemplo, as represálias de Hitler contra os judeus e os ciganos) foram justificadas pelas
características raciais e religíosas, mas a ferocidade sem conta com que a actividade bélica
internacional e o terrorismo interno têm sido conduzidos em todo o mundo no último meio século
demonstra claramente que, desde que existam instrumentos especiais de propaganda, os homens
podem ser levados a acreditar que qualquer categoria de seres humanos semelhantes é tão «outra»
que poderá ser classificada de parasitária.
Por volta de 1900, a admiração européia pela cultura japonesa em todos os seus aspectos era
quase ilimitada; contudo, em 1945, os políticos dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha que
autorizaram o bombardeamento de Hiroshima e Nagasaki devem ter-se convencido que todos os
Japoneses, independentemente das suas actividades, tinham de ser eliminados por forma a
assegurar a sobrevivência da civilização européia e do modo de vida americano. O reverso desta
visão etnocêntrica sobre aquilo que constitui a civilização é o facto de que, no âmbito do
anarquismo contemporâneo, praticamente todas as pessoas que podem, de uma maneira ou outra,
ser apontadas como elementos representativos da manutenção da ordem social existente, poderão
ser consideradas merecedoras de assassinato.
A origem de tais atitudes não é necessariamente «etnocêntrica» em sen tido próprio; os «nós»
que estão prontos a destruir os «outros», com base na sua não-humanidade, nem sempre
reivindicam ser descendentes de um antepassado comum ou destinatários, inspirados por Deus, de
uma revelação divina, mas a irracionalidade da sua brutalidade não se diferencia da que caracteriza
as mais clássicas formas de violência etnocêntrica.

9. Etnocentrismo, geografia e símbolos da unidade nacional


Num certo plano, a geografia etnocentrica é um reflexo directo de uma política etnocêntrica.
Se a <<nossa» capital é a fonte da civilização, então a <<nossa» terra e o «nosso» mar são o
ponto central da superfície do globo. E isto é perfeitamente lógico. O mundo clássico era orlado
pelo Mediterrâneo, «o mar no meio da terra»; os mapas das estradas usados pelos Romanos
apresentavam sobretudo linhas direitas em vez de círculos e, apesar disso, todos os caminhos iam
dar a Roma; os mapas-múndi da era das Cruzadas, quando ainda se pensava que a Terra Santa
estava predestinada a ser o centro político focal da cristandade unificada, eram elaborados
segundo um plano circular com Jerusalém no centro. Snotlck Hurgronje refere (1931) como a
confraria dos skeiks de Meca, nos finais do século XIX, apesar de não dispor de qualquer tipo de
mapas, adoptou na prática uma espécie de visão geográfica do mundo em que apenas se incluíam
os países que enviavam peregrinos a Meca, excluindo, portanto, toda a cristandade. Chung Kuo, o
nome que os Chineses utilizaram com mais frequência para designar o seu território nacional,
significa 'o Reino Central'.
Estes símbolos de identidade nacional e religiosa têm, na origem, um certo tipo de bom senso
prático que os torna particularmente fáceis de perceber mas, em determinados casos, mantêm o
seu apelo emocional como emblemas nacionais, mesmo quando a lógica da sua origem foi
profundamente obscurecida pelo desenrolar da história. Por exemplo, poucos mexicanos hoje em
dia saberão que as insígnias da república do México - uma águia pousando sobre um cacto, a
devorar uma serpente _ são uma cópia do glifo azteca que representava o nome da sua capital
México - Tenochtitlán, que foi construída no meio de um lago. O glifo fazia referencia a um mito
azteca em que o deus Sol ordenava ao seu sacerdote Quauhcótl - 'Águia-Ser pente' que se
construísse a cidade no sítio onde encontrassem uma águia pousada sobre um cacto tenochtli, «lá
onde nada o peixe, lá onde a serpente é devorada» [Soustelle 1955, trad. it. p: 30]. A parte
México do nome duplo México-Tenochtitlán vem de metzti-xictli 'o umbigo da Lua'. No mito
azteca, o deus Sol aparecia associado à deusa Lua, uma díade que se combinava tam bém de
outras formas como, por exemplo, céu/terra, bom tempo/chuva, paternidade/ maternidade. Tal
como no hinduísmo a deusa tinha muitos nomes e era associada a muitos mitos. Num desses
mitos, a mãe do deus Sol engravidou de uma bola de penas caída do céu; uma história que foi
facilmente assimilada à da miraculosa concepção da Virgem Maria. Na tradição azteca, as
imagens da deusa mãe eram «comparadas, nos hinos, às flores brancas e amarelas que
desabrocham com a vinda das chuvas» [ibid.].
No México moderno, Nossa Senhora de Guadalupe não é só a trans- formação de uma deusa
índia mas, de forma muito evidente, a santa nacional, símbolo da ressurgente consciência étnica
mexiçana. O seu principal santuário está numa localidade onde outrora se situava um templo
dedicado à deusa-mãe azteca Tonantzin. Na época da conquista, este lugar ficava numa ilha
rochosa nas margens do lago que circundava a cidade do México. Hoje, o principal objecto de
culto é uma pintura da Virgem Maria que está representada de pé, sobre um cacto tenochtli; a
pintura teria sido miraculosamente produzida logo a seguir à Conquista espanhola. A lenda conta
como ções para que o seu santuário fosse construído naquele ponto do lago; a pintura operou-se a
partir da transformação milagrosa de um ramo de flores através do qual a Virgem se manifestou
ao camponês.
Hoje em dia, centenas de milhares de peregrinos visitam o santuário de Nossa Senhora de
Guadalupe todos os anos, e podem ver-se reproduções da pintura milagrosa em todo o México.
Os actuais peregrinos católicos ignoram totalmente a relação histórica entre o objecto da sua
devoção e a deusa virgem azteca terrestre-lunar que era a mãe de Deus. Nem sequer imaginam
que a pintura miraculosa seja uma transformação das insígnias da República, ou que o próprio
nome do México se refira à santa deusa Lua. E, no entanto, estas associações e derivações são
muito óbvias, e a força simbólica deste culto completamente etnocêntrico provém desse facto.
Ainda um outro exemplo. Quando, em 1947, a Índia alcançou a independência, tornava-se
necessário encontrar um símbolo de unidade nacional. O símbolo escolhido, que aparece hoje em
várias bandeiras, selos, notas de banco, etc., foi a extremidade superior esculpida da chamada
coluna «de Asoka», que está hoje num museu em Sanchi. Como a Índia moderna é,
essencialmente, um estado hindu, e Asoka foi um monarca budista, tal esco lha poderia parecer
estranha, mas nesse momento histórico os políticos indianos estavam mais preocupados em
sublinhar a unidade política da Índia do que o seu hinduísmo. Asoka foi o primeiro e, a bem
dizer, o último soberano indígena de uma Índia unida. Contudo, sabe-se hoje que as colunas «de
Asoka» não foram, de facto, eregidas por Asoka. Elas pertencem a um precedente período pré-
budista e, na origem, eram substitutos em pedra das colunas de madeira erigidas na mesma
posição em época remota. O simbolismo nelas contido era extremamente denso: compreendia
elementos fálicos, mas cada coluna era também, no seu contexto, o axis mundi, o centro da Terra.
Ao escolherem um tal objecto para representar uma renascente Índia etnocêntrica, os políticos
tiveram mais intuição do que supunham! [cf. Irwin 1973-76].

10. Conclusão: divisões sociais «reais» e «imaginárias»


Voltamos assim ao ponto de partida. O etnocentrismo não e mato e, contudo, representa algo
de muito essencial na medida em que é apenas uma extensão do egocentrismo, que radica no mais
profundo da natureza humana. O etnocentrismo pode manifestar-se nos mais diversos campos e
das mais diversas maneiras, mas as mais poderosas imagens etnocêntricas são aquelas que aliam a
solidariedade do «nós» étnico às paixões individuais do «eu» etnocêntrico. «Nós» podemos
diferenciar-nos em relação aos «outros» de todas as maneiras reais e imaginárias, mas o tipo de
etnocentrismo que realmente conta e que culmina na guerra santa, a fim de preservar a pureza e a
integridade do. «nosso grupo», do «nosso povo» (com os correspondentes massacre e exploração
dos «outros», em grande escala) extrai sempre os seus símbolos das experiências privadas
directas do «eu»: nutrição/defecação, limpeza/sujidade, erotismo/ascetismo, procriação/esteri-
lidade. -
No mundo real, as relações de domínio intergrupos dizem sobretudo respeito a questões
políticas e econômicas, com a exploração dos recursos naturais ocupados pelos «outros», com a
exploração do trabalho dos «outros» em proveito «nosso»; mas no mundo imaginário dos valores
etnocêntricos, no qual as divisões cruciais são feitas depender da identidade nacional ou étnica, a
atmosfera acha-se altamente carregada de ficções saturadas de conteúdo emocional que pouco
terão a ver com a economia. Na África do Sul contemporânea, os problemas políticos «reais»
residem em saber até que ponto e durante quanto tempo poderá a minoria dominante manter a sua
posição anual de extremo privilégio econômico; as questões etnocêntricas «imaginárias» ligam-se
a quem é que pode ter relações sexuais com quem, quem é que se pode sentar à mesma mesa,
quem é que pode ou não utilizar as mesmas instalações sanitárias. As duas faces da mesma moeda,
a realidade da exploração econômica e a irrealidade da diferenciação étnica, reforçam-se uma à
outra.
O tema geral deste artigo incidiu no facto de o presente estado de coisas ser extensivo a toda a
humanidade. A exploração econômica e política de grupos de seres humanos por outros grupos de
seres humanos sucede por toda a parte, e em toda a parte se verifica que a exploração encontra
expressão simbólica em sintomas que foram aqui apresentados como marcas de etnocentrismo. O
resultado é muitas vezes, ou antes, quase sempre, deplorável, mas somente numa Utopia poderá tal
desvario encontrar o seu fim.
BIBLIOGRAFIA
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