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A etnografia como modo de ensinar e aprender na escola

DOI: http://dx.doi.org/10.21879/faeeba2358-0194.2019.v28.n56.p136-149

A ETNOGRAFIA COMO MODO DE ENSINAR


E APRENDER NA ESCOLA
Graziele Ramos Schweig (UFMG)*
https://orcid.org/0000-0003-0590-9742

RESUMO
Ao explorar maneiras em que a Antropologia pode compor com os modos
de fazer na escola, o artigo discute potencialidades do fazer etnográfico
como práticas docente e discente no Ensino Médio. Para tanto, parte de uma
experiência de pesquisa e ensino com jovens estudantes de uma instituição
de educação profissional de Porto Alegre, Rio Grande do Sul. Neste projeto,
elementos da investigação etnográfica permearam tanto o fazer docente, na
proposição das intervenções pedagógicas, quanto o percurso de aprendizagem
dos estudantes. A partir da análise dos diários de campo produzidos, discute-
se os usos da etnografia enquanto ferramenta de planejamento e intervenção
em contextos educativos. Em específico, entende-se a pesquisa etnográfica
na escola enquanto prática de “educação da atenção” (INGOLD, 2010) – ou de
cultivo da “atenção imanente” (STENGERS, 2017) – operada tanto por parte
dos estudantes quanto da professora, favorecendo a composição de um “plano
comum” de aprendizagem.
Palavras-chave: Etnografia. Diversidade. Aprendizagem pela pesquisa. Ensino-
aprendizagem. Atenção.

ABSTRACT
ETHNOGRAPHY AS A WAY OF TEACHING AND LEARNING IN SCHOOL
By exploring how Anthropology can compose with “ways of making” in school,
the article discusses the potential of ethnography as teacher and student
practices in High School. Therefore, it starts from a research and teaching
experience with young students of a vocational education institution in Porto
Alegre, Rio Grande do Sul. In this project, elements of ethnographic research
permeated both the teaching practice, in the proposition of pedagogical
interventions, and the student learning path. From the analysis of field diaries,
it discusses the uses of ethnography as a tool for planning and intervention in
educative contexts. Specifically, ethnographic research at school is understood
as a practice of “education of attention” (INGOLD, 2010) – or of cultivation of
“immanent attention” (STENGERS, 2017) – operated both by students and
teacher, favoring the composition of a “common plan” of learning.
Keywords: Ethnography. Diversity. Learning through research. Learning-
teaching. Attention.


Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora adjunta da Faculdade
de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). E-mail: graziele.schweig@gmail.com

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Graziele Ramos Schweig

RESUMEN
LA ETNOGRAFÍA COMO FORMA DE ENSEÑANZA Y APRENDIZAJE EN
LA ESCUELA
Al explorar caminos en que la Antropología compone con las “formas de hacer”
en la escuela, el artículo analiza el potencial de la etnografía como práctica en
la escuela secundaria. Por lo tanto, parte de una experiencia de investigación y
enseñanza con jóvenes estudiantes de una institución de educación vocacional en
Porto Alegre, Rio Grande do Sul. En este proyecto, elementos de la investigación
etnográfica impregnaron tanto la práctica docente, en intervenciones
pedagógicas, como el camino de aprendizaje de los estudiantes. Com los
diarios de campo, se discuten los usos de la etnografía como herramienta de
planificación e intervención en contextos educativos. En particular, se entiende
la investigación etnográfica en la escuela como una práctica de “educación de la
atención” (INGOLD, 2010), o de cultivo de la “atención inmanente” (STENGERS,
2017), operada tanto por los estudiantes como por la profesora, favoreciendo
la composición de un “plan común” de aprendizaje.
Palabras clave: Etnografía. Diversidad. Aprendizaje por investigación.
Enseñanza y aprendizaje. Atención.

Introdução
Nos últimos anos, a Antropologia tem se de viver e se relacionar (INGOLD, 2018; JASA-
feito presente na escola básica dentro do com- NOFF, 2004), entende-se que o ensino de ques-
ponente curricular “Sociologia”, o qual abarca tões ligadas a “cultura” e “diversidade” implica
os saberes do conjunto das Ciências Sociais a criação de maneiras singulares de entrar em
– Antropologia, Sociologia e Ciência Política relação. Isto é, além de garantir a presença des-
(BRASIL, 2000, 2006). Além disso, uma série de ses temas nos currículos e normativas oficiais,
questões caras à tradição antropológica acaba- é necessário desenvolver sensibilidades outras
ram por ganhar espaço de modo transversal na e modos de composição com vivências e pro-
escola e nos debates públicos sobre educação blemáticas as mais diversas, que atravessam o
no período recente. Em grande medida, isso espaço da escola e da Universidade. Nesse sen-
é fruto de um contexto no qual movimentos tido, das possibilidades de interlocução entre a
sociais e políticas públicas conferiram visibili- tradição antropológica e a educação, este artigo
dade à questão da “diversidade” na educação, busca evidenciar o fazer etnográfico enquanto
incluindo-se aí o papel das ações afirmativas um modo específico de entrar em relação com o
nas Universidades e da Lei nº 11.645/2008, outro e de produzir conhecimento sobre a cul-
que inclui o ensino de História e Cultura Afro tura. Notadamente, discute-se como elementos
-Brasileira e Indígena nos currículos (BRASIL, da etnografia podem figurar enquanto potentes
2008). Sendo assim, temas como relações ferramentas no planejamento e intervenção em
étnico-raciais, povos indígenas e tradicionais, contextos educativos que busquem promover
identidade cultural, gênero, direitos humanos, a diversidade.
entre outros, passaram a permear documentos Em específico, explora-se os usos da pesqui-
oficiais, planos pedagógicos, práticas escolares sa etnográfica na escola enquanto prática de
e cursos de formação de professores. “educação da atenção” (INGOLD, 2010, 2016a)
Em uma perspectiva de inseparabilidade en- – ou arte da “atenção imanente” (STENGERS,
tre “conteúdos” a serem aprendidos e “modos” 2017). Nesse sentido, o fazer etnográfico é

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aqui considerado, sob uma ótica particular, a cultura, permeada por movimentos de estra-
não apenas como método de descrição ou de nhamento e familiarização, ao não conceber
coleta de dados para análise, mas como uma protocolos de pesquisa replicáveis, constitui-se
forma de se relacionar que possibilita atentar em um campo dinâmico, apresentando práticas
à cultura como “acontecimento” (DELEUZE, concretas bastante variadas e singulares, como
2003), isto é, em sua dimensão emergente. As- atenta João Pacheco de Oliveira (2009).
sim, ao longo do texto, discuto uma experiência Em meio a caminhos possíveis, além de se
realizada com jovens estudantes do Ensino configurar como “descrição da cultura”, dado
Médio,1 na qual se buscou abrir espaço para pelo nome “etno-grafia”, o trabalho do antro-
cultivar a atenção aos processos emergentes pólogo possui uma importante dimensão edu-
vivenciados por eles, compondo processual- cacional, tal como tem enfatizado Tim Ingold
mente um “plano comum” de aprendizagem. (2016a, 2018) em suas produções mais recen-
Ou seja, sem delimitações temáticas prévias, tes. Ao conviver de modo prolongado com os
lançou-se mão de técnicas e problemáticas sujeitos de pesquisa, exercitando uma atitude
contemporâneas que perfazem a etnografia, de suspensão de certezas prévias, os antropólo-
operacionalizando conceitos centrais como gos passam por um processo de aprendizagem
cultura, etnocentrismo, relativismo, poder minuciosa, desenvolvendo habilidades de per-
e violência simbólica, criando-se percursos cepção sensível ao outro. A escrita do diário de
singulares de investigação onde a análise e a campo, prática essencial no trabalho de campo,
intervenção se misturaram. além de sua função de registro, configura-se
em uma ferramenta de apoio a esse processo
educativo, ao longo do qual as seguranças co-
A pesquisa etnográfica e sua tidianas mais banais são postas à prova. Desse
dimensão educacional modo, para além da objetificação dos sujeitos
e situações vivenciadas (ou seja, da produção
A etnografia tem sua origem remontada ao
de “dados”, descrições e afirmações sobre o
trabalho de Bronislaw Malinowski nas Ilhas
mundo), a observação participante diz respeito
Trobriand, no início do século XX. Sua pesquisa
a um movimento existencial de “correspondên-
é considerada uma ruptura com os chamados
cia” com o entorno. Isto é, ela ocorre ao se viver
“antropólogos de gabinete”, os quais teorizavam
“atencionalmente” com as pessoas com quem
sobre a cultura a partir de relatos de “segunda
se pesquisa e se aprende, colocando-se em uma
mão”, isto é, por meio de informações obtidas
constante atitude de abertura ao inesperado
por terceiros, missionários e viajantes. Na obra
(INGOLD, 2016a, 2016b).
“Argonautas do Pacífico Ocidental”, publicada
Nessa abordagem, fazer pesquisa antropoló-
em 1922, Malinowski (1984) lança as bases
gica significa enfrentar um contínuo não-saber,
do que compreendemos como pesquisa de
campo etnográfica: a observação participante. um colocar-se à disposição do movimento do
Realizada por meio da convivência prolongada outro, que pode desmanchar nossas hipóteses
com os sujeitos da pesquisa, a etnografia pas- interpretativas a cada instante. Como reflete
sou a implicar um deslocamento – geográfico Ingold (2016a, p. 408): “Fazê-lo pode ser per-
e epistemológico – com relação ao lugar e às turbador, e implicar riscos existenciais conside-
categorias de pensamento do pesquisador. ráveis. É como lançar o barco na direção de um
Essa maneira de produzir conhecimento sobre mundo ainda não formado – um mundo no qual
as coisas ainda não estão prontas, são sempre
1 Aos sujeitos participantes foi garantido o anonimato. incipientes no limiar da emergência contínua.”
O nome da instituição onde foi realizada a pesquisa-
Sob essa ótica, menos do que mapear traços e
intervenção é citado no texto dada a fácil identificação em
razão de pertencimento institucional prévio da autora. características de uma determinada cultura,

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o trabalho do antropólogo diz respeito a uma Rio Grande do Sul (IFRS) – Campus Restinga,
“educação da atenção”2 à emergência das coi- em Porto Alegre, onde atuei como professora
sas; à cultura em seu devir. Trata-se do cultivo de Sociologia/Ciências Sociais. As atividades
da “arte da imanência” (STENGERS, 2017), foram realizadas com três turmas em 2016 e
um esforço de não-reificação das identidades, duas turmas em 2017, as quais eram compos-
mas de acompanhamento de seus processos tas por uma média de 25 alunos. Dentro dos
de contínua transformação. limites (e limitações) de aulas semanais de 50
Esse modo de fazer pesquisa antropológica minutos, a proposta de trabalho para cada ano
contribui para a problematização de aborda- se deu em torno da realização de pesquisas de
gens essencialistas e culturalistas – as quais se orientação etnográfica em grupos, por parte
mantém presentes nos debates sobre “cultura” dos alunos. Concomitantemente, acompanhei
e “diversidade” no âmbito da educação. Como as atividades por meio da escrita de diários de
argumentam McDermott e Raley (2011), ape- campo, os quais ajudavam a refletir sobre os
sar dessas abordagens não serem dominantes caminhos percorridos e a tentar “antecipar” o
no campo de debates da Antropologia contem- que emergia (INGOLD, 2012).
porânea, elas parecem persistir em pesquisas O Campus Restinga do IFRS situa-se no bair-
antropológica sobre a educação, ao conside- ro que lhe dá nome, em uma região a 30 qui-
rarem culturas ou identidades enquanto to- lômetros do centro de Porto Alegre, capital do
talidades homogêneas, reificando processos Rio Grande do Sul. A Restinga é um dos bairros
de vida. Dessa forma, abordar a etnografia na mais populosos da periferia da cidade, contan-
escola como prática de atenção à cultura como do com mais de 60 mil moradores regulares.
acontecimento objetiva fazer um contraponto Sua história é contada a partir de processos de
a essas tendências. Aproximando-se da “pro- remoção forçada de comunidades majoritaria-
posição cosmopolítica” de Isabelle Stengers mente negras que habitavam a região central da
(2018), trata-se de “desacelerar” a construção cidade na década de 1960 (ZAMBONI, 2009).
do mundo – das interpretações, dos consensos Em 2006, lideranças comunitárias do bairro
e coerências – dando lugar à hesitação, possi- iniciaram uma campanha pública pela cons-
bilitando maior composição com o outro, sem trução da “escola técnica da Restinga”, a qual
soluções fáceis para o problema da diferença. foi contemplada em edital público no contexto
Com isso, sob uma atitude de abertura ao da expansão da Rede Federal de Educação Pro-
inesperado e ao não-saber, colocamo-nos o fissional, Científica e Tecnológica, criando-se
desafio de fazer a prática etnográfica operar o Campus Restinga como parte do IFRS. Com
como ferramenta de ensino e aprendizagem na início das atividades em 2010, e atendendo em
escola – este espaço do saber objetificado em sua maioria estudantes moradores do bairro,
conteúdos a serem ministrados por especialis- atualmente a instituição oferta três formações
tas. Caminhos para responder a esse desafio na modalidade de técnico integrado ao Ensino
foram experimentados em uma proposta de Médio – Eletrônica, Informática e Lazer –, sen-
pesquisa e ensino com jovens estudantes do do as atividades aqui narradas realizadas com
segundo ano do Ensino Médio do Instituto turmas dos dois primeiros cursos.3
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do
2 Concebendo o processo educativo por meio do engajamento
sensível com o entorno, Tim Ingold (2010) define a 3 O Campus Restinga também oferta regularmente dois
“educação da atenção” como um processo de contínua cursos profissionalizantes na modalidade Educação
afinação do sistema perceptivo do praticante com as de Jovens e Adultos (Comércio e Agroecologia), um
propriedades do ambiente. Segundo ele, a aprendizagem curso técnico subsequente (Guia de Turismo) e cinco
da cultura ocorreria muito mais por educação da atenção cursos superiores (Licenciatura em Letras, Análise e
do que por transmissão ou acúmulo de representações Desenvolvimento de Sistemas, Eletrônica Industrial, Gestão
mentais. Desportiva e de Lazer e Processos Gerenciais).

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Começar pelo meio: acessando tinuaram com alguns olhares e comentários sobre
o cabelo do colega até que direcionei atenção ao
a cultura como acontecimento que se atravessava. Diziam que o colega tinha ali-
sado o cabelo, ao que o menino negava, afirmando
Iniciar uma pesquisa envolve delinear um que seu cabelo era assim mesmo. Logo surgiu a
campo problemático de investigação. Implica classificação ‘cabelo ruim’ e ‘cabelo bom’ em meio
a capacidade de tornar questionável algum as- ao diálogo. Sugeri a eles que ‘cabelo’ daria um óti-
pecto do cotidiano que normalmente é tomado mo tema de pesquisa etnográfica. Eles estranha-
ram, riram. Começamos, então, a pensar o quanto
como banal, óbvio, natural.4 Desde Malinowski,
de etnocentrismo havia na classificação que eles
além da familiaridade com conceitos, métodos tinham acabado de usar. Comentaram sobre como
e técnicas de investigação, vimos que o fazer as pessoas são julgadas pela aparência, sobre o
etnográfico demanda fundamentalmente se racismo implicado nisso. Deram-se conta de que
deslocar, ou seja, envolve desenvolver uma o tipo de cabelo tem influência até no modo como
atenção diferenciada a si e ao entorno. Nas são recebidos nos lugares em que circulam na
cidade. Ao final da conversa, indiquei que eles
primeiras aulas com as turmas de segundo ano,
assistissem ao documentário ‘Good Hair’6 para
nos aproximamos de conceitos introdutórios, a aula seguinte.7
como cultura, etnocentrismo, relativismo e
violência simbólica por meio de filmes, leituras, Assim, cada grupo saiu dessa aula com al-
exercícios teatrais e debates.5 Chegava, então, guma tarefa para a semana seguinte. Enquanto
a hora dos estudantes esboçarem um foco alguns já começaram a elaboração de um texto
problemático em torno do qual caminharia a de justificativa, que relacionava seu tema aos
pesquisa de cunho etnográfico a ser realizada conceitos introdutórios que havíamos discuti-
em grupos de até quatro integrantes. Ao serem dos, outros ganharam indicações para auxiliar
convidados à proposta de investigação, alguns na busca por um foco inicial. Agora eles teriam
estudantes demonstraram dúvidas – alegaram que transformá-lo em um problema de inves-
ser difícil definir o quê pesquisar diante de tan- tigação exequível e que dissesse respeito a um
tas possibilidades. Assim seguiu uma das aulas: grupo ou fenômeno concreto, observável, de
modo que eles pudessem acompanhá-lo por
Nesse dia foi dada a oportunidade de reunirem-se
meio de uma pesquisa. As orientações para
nos grupos, em sala de aula, para trocarem ideias.
A primeira tarefa era escolher um tema de inte- trabalharmos em diálogo com a etnografia
resse e produzir um pequeno texto justificando foram construídas especialmente a partir da
sua relação com os conceitos que vínhamos es- discussão feita no dia em que assistimos ao do-
tudando. Enquanto conversavam, eu ia passando cumentário Babilônia 2000 (2001), de Eduardo
para acompanhar as conversas. Nesses desloca- Coutinho.8 Na ocasião, elencamos caracterís-
mentos, notei que em um grupo de meninos, os
ticas de sua narrativa que se aproximavam da
alunos estavam tocando e comentando a respeito
do cabelo de um dos integrantes. Cheguei mais pesquisa antropológica. Acordamos, portanto,
perto e perguntei como andavam as discussões. que deveriam ser elaboradas perguntas de
Eles comentaram que não tinham ideia sobre pesquisa que buscassem “saber como a pessoa
o que fazer na pesquisa. Mencionaram alguns chegou às ideias que expressa” ou que inten-
temas vagos, mas não pareciam motivados. Con-
6 Dirigido por Jeff Stilson (GOOD…, 2009).
4 Cabe lembrar que as Orientações Curriculares Nacionais 7 Nota do Diário de Campo da pesquisa registrada em abril
para o Ensino Médio indicam que as Ciências Sociais de 2016.
na escola têm como papel a “desnaturalização e o 8 Neste documentário, Eduardo Coutinho e sua equipe
estranhamento” dos fenômenos sociais (BRASIL, 2006, p. acompanham moradores de duas favelas cariocas no dia
107). 31 de dezembro de 1999, em atividades preparativas
5 Não cabendo detalhar neste espaço, ao iniciar o ano letivo, para o réveillon do ano 2000. Ao assisti-lo, reparamos
assistimos a vídeos e documentários para sensibilizar no modo como o entrevistador/pesquisador não está
os estudantes à escuta de narrativas; trabalhamos com ausente da cena, em como as perguntas são colocadas
desenho e realizamos jogos teatrais, de modo a preparar para que o entrevistado pense sobre sua vida, bem como
a atenção do corpo e do olhar. na importância da escuta atenta.

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tassem compreender “a perspectiva de quem Significativamente, o “fator de situação”, o


está envolvido no problema” – entendendo “começar pelo meio”, podem ser considerados
que poderiam ser múltiplos e contraditórios a matéria própria da investigação etnográfica,
esses pontos de vista. Sendo assim, indepen- acessados pela prática da observação partici-
dentemente do tema aos quais se referiam, as pante, pelo movimento de acompanhar os pro-
questões de pesquisa tinham por objetivo pro- cessos da cultura em se fazendo; perseguindo
vocar uma determinada atitude, uma posição a diferença em seu caráter emergente. Desse
de escuta de algum “outro”. modo, no âmbito do fazer etnográfico, a ideia
Desde a aproximação conceitual inicial até de “começar pelo meio” liga-se à possibilidade
a elaboração das perguntas de investigação, de sustentar o não-saber, que ocorreu tanto
decorreram-se aproximadamente oito semanas por parte dos alunos quanto da professora.
de aula. Esse tempo foi importante, pois mesmo Em nosso caso, isso aconteceu na medida em
antes de nomear questões de investigação, a que foi feita uma aposta de não delimitação de
pesquisa – enquanto “educação da atenção” – um programa pronto, ou seja, sem definição a
já estava em curso, tanto para os estudantes priori de temas ou autores a serem aprendidos.
quanto para mim. Não houve, portanto, um mo- Houve apenas a proposição de alguns conceitos
mento definido a partir do qual a pesquisa pas- iniciais e, especialmente, a construção de um
saria a ser executada ou os “dados” coletados. determinado modo de trabalhar que aos pou-
Havia, desde o início, um território que vinha cos foi permitindo delinear questões. Nesse
sendo explorado, passo a passo, ao se propi- sentido, elementos do fazer etnográfico ins-
ciar um espaço de sensibilização e de atenção piraram o próprio planejamento pedagógico,
às questões vivenciadas pelos estudantes, as na medida em que houve um esforço de levar
quais nem sempre são de fácil ou imediata a sério e trabalhar com as inquietações dos
explicitação. Para pensar sobre esse processo, próprios estudantes – abrindo oportunidade
nos aproximamos da ideia de “começar pelo para se estudar a cultura “em ato”, viva.
meio”, tal como sugerida por Deleuze e Guat-
tari (1997) e explorada por Eugenio e Fiadeiro
(2013). Ao apostar na atenção à imanência do
O “problema” como dispositivo
acontecimento, a ideia de começar pelo meio de educação da atenção
se opõe ao “plano de princípio ou finalidade”
Do ponto de vista do planejamento pe-
(DELEUZE; GUATTARI, 1997, p. 222), que im-
dagógico e das pesquisas dos estudantes, as
pera nos modos escolares de educação. Isto
questões elaboradas pelos grupos podem
é, na escola, a delimitação de um conjunto de
ser concebidas como “analisadores”,10 dada
conteúdos e objetivos prévios normalmente dá
sua capacidade simultânea de colocarem a
o tom da organização curricular, constituindo
realidade em análise e de se constituírem en-
“modos operativos” que “raramente partem
quanto “operadores de intervenção” (ROSSI;
do ‘fator de situação’ do meio” (EUGENIO;
PASSOS, 2014, p. 19). Da mesma forma em
FIADEIRO, 2013, p. 223, grifo dos autores) para
que foi narrada a situação em que emergiu o
produzir conhecimento. Ou seja, as propostas
“cabelo” como ponto de atenção, seria possível
pedagógicas normalmente constituem-se mais
explorar o processo de formulação de cada um
em torno da “intenção” do professor (ou do
dos problemas de pesquisa. Estes poderiam ser
currículo) que seleciona conteúdos e institui
acionados como ferramentas para investigar as
seu ponto de partida; e menos com base na
tensões que perpassam o cotidiano desses jo-
“atenção” às questões que emergem.9
processos educativos.
9 Conferir o artigo de Tim Ingold O Dédalo e o Labirinto: 10 “Analisador” é um conceito-ferramenta criado por Félix
caminhar, imaginar e educar a atenção (INGOLD, 2015) Guattari, exposto no livro  Psicanálise e transversalidade,
para uma discussão acerca da “intenção” e “atenção" nos conforme Rossi e Passos (2014).

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vens. Nesse sentido, junto da atitude de levar a 7. Como as escolas do bairro proporcionam
sério as inquietações que os alunos manifestam espaço para a liberdade de expressão dos
alunos?
– similar à postura do antropólogo com seus
8. Por que os usuários recorrem ao uso de
sujeitos de pesquisa – foi importante conferir drogas?
tempo e recursos para que essas inquieta- 9. Por que há tantos movimentos separatistas
ções fossem lapidadas com os estudantes, já no Rio Grande do Sul? Como eles se orga-
que não se apresentavam espontaneamente. nizam?
Sendo assim, a pesquisa teria continuidade ao 10. Como espíritas e evangélicos veem a homos-
sexualidade?
saírem da generalidade temática em direção
11. Como pessoas de diferentes origens perce-
à proposição problemática singular: “o que, bem a cultura aqui no Sul?
neste tema, vocês querem saber mais e com 12. Como a política funciona no Campus? Os
qual justificativa?” alunos e servidores sentem que há espaço
Foi necessário, portanto, um tempo para a para divergências políticas?
13. Como o preconceito afeta os gamers e os
confecção do problema, o qual passou a operar
games?
como dispositivo de educação da atenção, na 14. Como os jogos influenciam na educação?
medida em que indicou um foco de preocu- 15. Que significado os compradores de artesa-
pação ao precipitar uma linha, um caminho nato indígena atribuem a esses artefatos?
de investigação a ser perseguido tanto pelos 16. Qual é a influência da música no comporta-
alunos quanto pela professora. Nesse exercício, mento dos adolescentes e na formação de
sua identidade?
o grupo mencionado anteriormente deu con-
17. Por que são criados estereótipos a partir de
tinuidade à ideia de explorar a problemática estilos musicais?
evocada pelo “cabelo”, transformando-a em 18. Quais as disputas em torno das definições
uma questão específica: “Qual a influência da do rap?
estética na construção da identidade dos jo- 19. Como membros de diferentes religiões ex-
pressam sua fé?
vens?” Após a elaboração das questões iniciais,
20. Por que existem tantos conflitos entre as
fomos traçando percursos metodológicos para diferentes religiões?11
cada grupo, os quais envolviam necessaria-
mente a observação participante com escrita Como podemos ver, a dedicação à confecção
de diário de campo e entrevistas qualitativas – de problemas alinhados às suas inquietações
para as quais discutíamos os roteiros –, além da complexifica possíveis delimitações temáticas
complementação com questionários fechados prévias. Por exemplo, se atentarmos para as
em alguns casos. Podemos observar a seguir questões 16, 17 e 18, podemos identificar um
alguns exemplos de problemas de pesquisa possível tema comum. Nos momentos iniciais
elaborados pelos grupos das cinco turmas, os de conversa em aula, ocorreu para os três gru-
pos um interesse imediato pela música. Contu-
quais esboçam um mapa de suas afecções:
do, mesmo com um aparente começo comum, os
1. Qual a influência da estética na construção
problemas elaborados possibilitaram distintos
da identidade dos jovens?
2. Existem hierarquias na arte da fotografia? caminhos, evidenciando diferentes situações
3. Quais os preconceitos sofridos pelos homos- vivenciadas por eles, as quais puderam ser
sexuais atualmente? trazidas à tona para análise. Os dois primeiros
4. Hoje em dia, qual a credibilidade que a mídia grupos, da mesma turma de 2016, eram for-
passa quando influencia na opinião política mados majoritariamente por estudantes que
dos estudantes do Ensino Médio?
tocavam instrumentos musicais e formavam
5. Quais as dificuldades das pessoas com defi-
ciência em seus cotidianos? bandas de rock com colegas da escola ou de fora
6. Como as pessoas enxergam a cultura do
11 Nota do Diário de Campo da pesquisa registrada em abril
estupro? de 2016.

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dela. O primeiro grupo, com a questão “Qual é primeiro grupo não concordava que se poderia
a influência da música no comportamento dos equivaler os estilos musicais. Para ele funk era
adolescentes e na formação de sua identidade?”, “ruim e pronto”. Evidenciou-se então o foco do
manifestou a vontade de entender os sentidos e conflito mencionado pelos integrantes do gru-
o papel da música na vida de jovens que tocam po, quando justificaram a escolha da questão
instrumentos, cantam ou participam de pro- de pesquisa:
jetos musicais. Alguns deles traziam dúvidas Após um tempo de debate, em que o estudan-
sobre as possibilidades de seguir trabalhando te do primeiro grupo estava irredutível, ele
profissionalmente como músicos.12 menciona: ‘além de tudo meus pais têm uma
Já o segundo grupo, da mesma turma, partia desavença com um vizinho que ouve funk muito
de um incômodo com relação à hierarquização alto’. Ele explica a situação [...]. Imediatamente
a turma acusa-o de estar sendo etnocêntrico,
dos estilos musicais. Diante das discussões
generalizando sobre uma cultura a partir de
sobre relativismo e etnocentrismo, questio- sua visão pessoal. O estudante parecia encarnar
navam-se se haveria critérios objetivos para justamente o foco da crítica que o grupo tinha
definir se um estilo musical era superior a recém apresentado – ou seja, a estigmatização
outro, já que relataram haver conflitos entre operada pela generalização. A aula foi se esten-
seus amigos com relação a isso. Incomoda- dendo além do período de cinquenta minutos.
vam-se com colegas que desprezavam o funk e O professor do horário seguinte já estava espe-
rando à porta. Diante do clima de hostilidade,
o pagode, afirmando a superioridade do rock
tentei intervir dizendo que quando o estudante
e de outros estilos. O grupo, então, buscou nos contava sobre sua situação particular com
referências sobre o tema, realizou entrevis- relação ao vizinho, isso fazia com que pudésse-
tas qualitativas com colegas e professores da mos também nos colocar no lugar dele, lançar
escola e recebeu indicações de leituras sobre um olhar de relativização e compreender por
a origem dos estilos musicais, especialmente que ele vem sendo tão hostil ao funk – estilo
atentando ao recorte étnico-racial e de classe musical ouvido por muitos ali. Restava, agora,
ele próprio fazer esse exercício de relativização
envolvido no histórico dos movimentos artísti-
também, já que tinha responsabilidade sobre o
cos e musicais. Em um dos dias marcados para que dizia, dado que o grupo havia apresentado
compartilharem o andamento da pesquisa com que quando se julga um estilo musical, se julga
a turma, trouxeram a argumentação sobre a também os grupos que estão em sua base e
estigmatização de alguns estilos musicais ba- origem.14
seada em estereótipos: A tensão que apareceu nessa aula não foi
Os entrevistados concordam que existem, em completamente resolvida pelo debate ou pela
nossa sociedade, variados estereótipos musi- minha fala em tom pedagógico, conciliatório. A
cais, e se dão por conta da ação da mídia, que questão retornou a partir de outras conversas
impõe pensamentos como ‘Pagode é coisa de
extraclasse e em novos momentos de compar-
maloqueiro’ ou ‘Funk é coisa de favelado’. Assim,
ela acaba generalizando, dizendo que todos são tilhamento das pesquisas. Surgiram discussões
assim, negando outros fatores presentes.13 sobre o acesso diferenciado aos estilos musi-
cais e a percepção de que a influência da família
Durante a apresentação, uma discussão
e do bairro onde se vive é forte na criação de
acalorada se iniciou, já que um integrante do
um “gosto”. A ideia de que é preciso quebrar
12 Ao longo da pesquisa, compartilharam com a turma os estereótipos, mas também que “deveriam
projetos sociais que envolviam música e, como produto
final, apresentaram uma conta do Instagram onde ter acesso a tudo” foi discutida em algumas
postaram fotos e textos que produziram ao longo do ano ocasiões e apareceu nas entrevistas feitas pelo
e que mostravam diferentes sujeitos e situações em que a
música se fazia presente, desde músicos tocando na rua, segundo grupo.
colegas na escola, músicos se apresentando em bares etc.
13 Trecho do Relatório Parcial da Pesquisa produzido pelos 14 Nota do Diário de Campo da pesquisa registrada em junho de
estudantes, registrado em junho de 2016. 2016.

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A etnografia como modo de ensinar e aprender na escola

Um pouco diferente da discussão propiciada ponto de vista da docência, essa prática pos-
por estes dois grupos em 2016, no ano seguin- sibilitou localizar os estudantes como ativos
te, o terceiro grupo interessado em música fez produtores de cultura – isto é, de diferença
surgir outras situações para análise por meio –, bem como de reflexões potentes sobre ela.
da questão: “Quais as disputas em torno das Nesse sentido, o lugar docente ligou-se menos
definições do rap?”. O grupo era composto por à seleção de temas e conteúdos e mais a um
três meninos que ouviam muito esse estilo acompanhar percursos, desenvolvendo uma
musical e começavam a compor e a participar disposição por aprender sobre as questões
de batalhas de rap na cidade. Primeiramente que os alunos traziam e que a princípio não
se interessavam por entender por que existiam constariam nos planos de aula daquele modo.
diferentes estilos do rap, os quais geravam Exigia, portanto, a busca por outros repertórios
divisões e preconceitos no movimento. Proble- teóricos, materiais e referências, em um pro-
matizaram a influência da indústria cultural no cesso dinâmico que se renovava a cada semana
fato de rappers famosos produzirem músicas a partir da troca com os estudantes. Nesse
de cunho “mais comercial e menos engajado”. sentido, menos do que “levar” a diversidade
Quando apresentaram em aula as primeiras enquanto tema a ser debatido, a perspectiva
reflexões da pesquisa, surgiu um debate em etnográfica, tal como experimentada, possibi-
torno do que seria um “rap engajado social- litou “atentar” e trabalhar com a potência que
mente”. Colegas da turma questionaram o fato já estava ali. Os problemas de pesquisa torna-
de músicas que falam de temas como “amor vam-se dispositivos de educação da atenção
e relacionamentos” não serem consideradas tanto discente quanto docente, na medida em
“engajadas”. Isso deu origem a um longo de- que permitiam uma “afinação da percepção ao”
bate: “falar de amor não seria também falar da entorno (INGOLD, 2010).
vida na comunidade e tudo que perpassa ela?
Não seria também ser engajado socialmente?”
Além desse debate provocado pela pesquisa do Experimentar e compartilhar
grupo, ao longo do trabalho de campo, ao ob- o não-saber: etnografia e
servarem eventos de rap e fazerem entrevistas
com frequentadores, o grupo acabou atentan-
intervenção pedagógica
do a outra questão: a pouca participação de No processo de educar a atenção à cultura
mulheres e algumas iniciativas para estimular como acontecimento, percebemos que as oca-
que tivessem mais visibilidade no movimento siões de compartilhamento dos percursos das
hip hop. Levaram essa questão à aula em outro pesquisas com a turma tornaram-se impor-
momento. tantes espaços de troca e aprendizado. Esses
Os exemplos trazidos aqui são um pequeno momentos foram organizados ao longo do ano,
recorte da potência de acompanhar os estudan- de modo que cada grupo deveria preparar
tes a partir de problemáticas forjadas por eles. algo para apresentar à turma, mediando um
Episódios assim ocorreram em diferentes aulas debate. Um aspecto que chamou atenção nesse
nas quais os jovens trouxeram resultados par- processo foi o modo como esses momentos se
ciais e finais das pesquisas. Conflitos latentes tornaram, pela atuação dos grupos, não apenas
e preconceitos velados vinham à tona e eram espaços de intervenção pedagógica, mas tam-
analisados. Observa-se que trazer as questões bém eram tomados por eles como “campo” de
ao debate coletivo na turma não tinha por ob- pesquisa. Para boa parte dos alunos, o momen-
jetivo conciliar diferenças ou dirimir tensões, to de compartilhar seus resultados de pesquisa
mas abordar essas questões de outros modos, envolvia provocar reflexões coletivas que eram
renomeando e colocando-as em evidência. Do incorporadas à própria investigação – seja pela

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troca de experiências realizada ou pela aplica- num museu e uma selfie tirada por mim não é
ção de algum questionário ao final do debate. considerada arte? Quem define o que é arte?”
Da mesma forma, esses momentos tornavam-se Os três integrantes do grupo eram interessados
chave para que eu fizesse intervenções com o em teatro, dança e fotografia; participavam
coletivo e pudesse identificar a necessidade de de atividades artísticas na escola e fora dela.
mediações ou indicação de referências. Cria- Questionavam-se também sobre as razões da
va-se, tanto para os alunos quanto para mim, arte feita na periferia não estar nos museus,
uma indissociável relação entre pesquisa de sendo que eles conheciam vários artistas no
caráter etnográfico e intervenção pedagógica bairro. Além de vídeos e outros materiais, in-
– podendo ser esta a associação que evidencia diquei a eles um texto sobre as ideias de Pierre
a particularidade dos usos da etnografia como Bourdieu acerca do campo artístico. Como
ferramenta na escola. compartilhamento parcial da investigação, o
Nesse sentido, a vivência com os estudantes grupo propôs uma espécie de oficina com a
ia modulando uma forma de fazer pesquisa turma. Entregou a cada colega uma placa de
que envolvia uma busca coletiva por respos- papel onde se lia de um lado “Arte” e do outro
tas, as quais não residiam apenas na interpre- “Não arte”. Iniciaram com um questionamento
tação das narrativas dos estudantes – solução à turma sobre “o que é arte” e foram listando
clássica da etnografia como “escrita sobre a os critérios ouvidos no quadro. Depois disso,
cultura”; nem nas teorias sociais e exemplos apresentaram fotografias e para cada uma
que eu pudesse apresentar enquanto profes- delas os colegas deveriam julgar se eram arte
sora – solução tradicional da educação esco- ou não, levantando as placas, conforme os cri-
lar. Tratava-se de trilhar um caminho juntos, térios criados coletivamente. Um rico debate
compartilhando incertezas e um não-saber, se instaurava a cada divergência de opiniões.
na composição de um “plano comum”15 de Essa oficina serviu, então, de base para que o
aprendizagem. Enquanto construção de um grupo elaborasse os roteiros de entrevista que
determinado modo de fazer Antropologia, foram feitas com um artista, um colega e um
podemos aproximar esse movimento daqui- professor da escola.
lo que Ingold (2016a) defende como caráter Entretanto, em meio aos debates, observa-
“experimental” ou “especulativo” da Antropo- ções, entrevistas e trocas de materiais, o grupo
logia, relacionado a estudar “com” as pessoas se mantinha angustiado com o fato de a pes-
e não “sobre” elas. Isto é, juntando-se aos
quisa não chegar a uma definição mais acabada
sujeitos em busca de respostas fundamentais
de arte. Deparavam-se com obras de artistas
da vida – imaginando mundos possíveis – e
que tinham como propósito justamente des-
não apenas coletando dados para posterior
construir definições. Sentiam que quanto mais
análise (INGOLD, 2016a).
pesquisavam, mais complexa a questão ficava.
Sobre esse compartilhamento de incertezas
Certo dia chegaram com a constatação de que
e percursos que envolvia pesquisa e interven-
“a pesquisa não teria um fim”, como idealiza-
ção, um exemplo interessante ocorreu com
ram, no sentido de uma resposta à questão de
o grupo que em 2016 formulou a pergunta:
pesquisa. Davam-se conta de que a pergunta
“Existem hierarquias na arte da fotografia?”
apenas havia ajudado a orientar o percurso. Ao
Seus questionamentos se davam a respeito da
final do ano, a crise da uma pesquisa que não
pluralidade das definições em torno da arte
tinha fim foi materializada por eles na criação
e suas exclusões. Perguntavam-se: “Por que
de uma performance apresentada à turma, na
uma fotografia tirada por alguém pode estar
qual eles mesclavam frases e percepções ouvi-
15 Inspiro-me aqui na proposta da cartografia enquanto das com provocações a respeito da necessidade
pesquisa participativa, inspirada nas ideias de Gilles
Deleuze e Felix Guattari (KASTRUP; PASSOS, 2013). de definições.

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A etnografia como modo de ensinar e aprender na escola

Outro exemplo de encontro entre pesquisa, sitivo de aprendizagem para outros colegas
intervenção e não-saber ocorreu em um dos da escola. Com isso, além de documentários e
compartilhamentos parciais do grupo que performances, surgiram produções na forma
tinha como questão “Quais os preconceitos de blogs, ensaios fotográficos, poemas, mú-
sofridos pelos homossexuais atualmente?”. O sicas, oficinas e instalações. Um exemplo de
grupo, composto por três meninas, escolheu produto que se tornou dispositivo de apren-
apresentar à turma um vídeo chamado Love dizagem foi a oficina chamada “Labirinto da
is all we need? (LOVE..., 2012),16 o qual mexeu desconstrução”, a qual foi criada pelo grupo
com vários alunos que assistiram, com alguns que perseguiu a questão “Quais as dificul-
chegando às lágrimas. No debate que se se- dades das pessoas com deficiência em seus
guiu a ele, surgiu uma discussão interessante cotidianos?”. A pesquisa de campo envolveu
a respeito do caráter natural ou construído observações em uma escola de educação
da homossexualidade. Diante do impasse, especial do bairro, além de entrevistas com
matérias sobre o assunto foram buscadas na professoras e alunos desta instituição e cole-
internet até que os colegas homossexuais da gas da própria escola que tinham familiares
turma foram convidados a contarem o que com deficiência. A oficina consistia em um
achavam, a partir de suas experiências pes- circuito o qual os colegas da turma deveriam
soais. Não chegamos a uma resposta final. percorrer, a cada etapa, com os olhos venda-
No entanto, abriu-se um espaço respeitoso dos, depois utilizando uma cadeira de rodas
no qual os estudantes se sentiram à vontade e, por fim, uma muleta – equipamentos que
para relatar, e pensar juntos, sobre como foi os estudantes conseguiram emprestados
o processo de se perceberem homossexuais e para a atividade. Segundo os estudantes, essa
assumirem isso para a família e amigos. Além oficina teve por objetivo colocar-se no lugar
desta aula, a potência do vídeo trazido pelo das pessoas com deficiência, experimentando
grupo também fez com ele fosse comentado suas dificuldades e testando o quão acessível
por estudantes de outras turmas da escola, a escola era para esses sujeitos.
deixando os alunos curiosos. Isso me fez ter Por sua vez, o grupo que havia iniciado seus
de apresentá-lo em outras turmas interessa- questionamentos sobre o “cabelo” concebeu a
das, associando aos debates que estávamos pesquisa e a intervenção final de uma maneira
fazendo nelas. Ou seja, a intervenção do grupo bastante cuidadosa, dando uma lição sobre
não se restringiu à sua turma, mas acabou “restituição” dos resultados da pesquisa. Após
reverberando pela escola. Como produto final, a formulação do problema – “Qual a influência
as alunas elaboraram um documentário com da estética na construção da identidade dos
depoimentos de colegas, professores e pes- jovens?” –, elaboraram roteiros de entrevistas
soas da comunidade, o qual foi apresentado qualitativas a serem realizadas com colegas de
e debatido em uma sessão aberta. diferentes cursos e etapas, enfocando o modo
Como foi possível perceber, se o percurso como percebiam o impacto social de sua apa-
da pesquisa já foi permeado pela proposição rência, como eram suas escolhas estéticas etc.
de intervenções, ao final do ano os grupos Ao final do ano, propuseram como produto
ainda tinham como tarefa apresentar um uma instalação, na qual expuseram retratos
produto que materializasse as aprendizagens dos colegas que foram entrevistados. Junto
experienciadas na pesquisa. Combinamos que das fotografias havia espaços para o público
esse produto deveria também ser um dispo- escrever palavras que vinham à mente quando
16 O vídeo, criado por Kim Rocco Shields, retrata uma olhavam os retratos. Durante o tempo de exibi-
sociedade reversa na qual relações homossexuais são ção, os integrantes do grupo permaneceram ao
tidas como dominantes e pessoas heterossexuais são
discriminadas. lado das fotografias dialogando com o público,

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mediando a exposição. Por fim, eles se propu- tros. À luz da experiência narrada, possibilita
seram a retornar os retratos com os escritos promover situações de aprendizagem em um
aos participantes com o objetivo de propiciar mundo que ainda não está pronto e, portanto,
uma nova conversa e reflexão sobre estética e no qual os sujeitos podem se sentir responsá-
identidade com os entrevistados da pesquisa. veis por sua confecção.
O caráter variado das trajetórias dos grupos Assim, foi possível perceber que a aposta na
e dos produtos finais nos ensina sobre a po- não delimitação prévia de temas foi levando
tência das relações entre Antropologia e edu- a uma construção conjunta, na qual trajetos
cação. Na experiência de trabalhar “com” e não e problemáticas se entrelaçavam em um tra-
“sobre” os jovens, ou seja, quando nos dispo- balho constante de afinações, trocas e expe-
mos a aprender com eles, modos inventivos de rimentação. Desse modo, “deixar-se afetar”
se fazer pesquisa e educação aparecem. Assim, (FRAVET-SAADA, 2005) pelas questões dos
se o pensar da interface entre Antropologia e estudantes, longe de pôr em risco um projeto
educação demanda problematizar a relação de ensino-aprendizagem pré-definido, tornou-
entre pesquisa etnográfica e intervenção pe- se justamente sua matéria-prima. Escrever
dagógica, os jovens da Restinga foram mestres diários e anotações sobre as aulas, ao mesmo
em nos mostrar potencialidades dessa relação. tempo em que ia se constituindo minha investi-
gação, também ia subsidiando o próprio ato de
planejar; em uma forma de planejamento que
Considerações finais se pretendia atenta aos fluxos e às relações que
Neste texto busquei discutir relações entre se iam tecendo. É nesse instante que a pesquisa
Antropologia e educação a partir de uma ex- deixa de ser apenas coleta de dados ou descri-
periência singular que reflete sobre os usos de ção da realidade, mas permite a composição de
elementos da etnografia enquanto ferramentas um plano comum de aprendizagem – e também
de ensino e aprendizagem na escola. Dentre os de investigação.
caminhos inventivos que a prática etnográfica Por fim, a experiência aqui discutida indica
pode levar, situei-me a partir de perspectivas que uma docência de inspiração etnográfica
que buscam restituir à cultura a dimensão do exigiu resgatar a dimensão propriamente
acontecimento no sentido de se opor a abor- educacional da Antropologia (INGOLD, 2016a,
dagens essencialistas e à lógica escolar do 2018), fazendo com que a professora sustentas-
“plano de princípio ou finalidade” (DELEUZE; se com os alunos um não-saber, recolocando-se
GUATTARI, 1997, p. 222). A aposta foi em não como mais uma aprendiz em campo – como
simplesmente levar – como “intenção” – a uma companheira de jornada na confecção
“cultura” e a “diversidade” enquanto temas de mundos possíveis. Por fim, observo que as
previamente definidos a serem ensinados, mas reflexões desenvolvidas aqui não se pretendem
cultivar a “atenção” aos movimentos já presen- restritas ao recorte disciplinar da Antropologia
tes – começando pelo “meio”. ou à instituição escolar, mas se estendem aos
A abordagem etnográfica à emergência das espaços de aprendizagem que se ocupam da
coisas opera como ferramenta para ajudar os “cultura” e da “alteridade” de forma ampla. Ou
estudantes a formularem seus próprios ques- seja, explorar potencialidades do fazer etno-
tionamentos e a se responsabilizarem por eles gráfico na educação diz respeito não apenas
em seus processos de aprendizagem. Atentar a antropólogos ou professores de Ciências So-
à “imanência” faz “desacelerar” a construção ciais, mas pode subsidiar diferentes atuações
do mundo (STENGERS, 2018), permitindo a que busquem aprofundar as relações entre
hesitação, a dúvida e a composição com os ou- educação e diversidade.

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A etnografia como modo de ensinar e aprender na escola

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