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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

FACULDADE DE LETRAS

FABIANA VIEIRA GONÇALVES DE SOUZA (122073892)


JORGIMAR HÉLTER SILVA DO CARMO (122032854)

A RELAÇÃO ENTRE O CORPO E A MEMÓRIA

RIO DE JANEIRO
2022
INTRODUÇÃO

No primeiro capítulo do livro somos apresentados às lembranças do personagem


principal: ele está tentando descobrir quem é acessando suas memórias. Após adormecer em
seu leito, ele perde a consciência de quem é, porém, quando não é capaz de recordar, o seu
corpo é. Nessas primeiras páginas, o corpo é o fiel zelador do passado e, por meio dessas
memórias vivas em seu próprio corpo, ele se redescobre.

E antes mesmo que meu pensamento, hesitante no limiar dos tempos e das formas, tivesse
identificado a habitação, reunindo as diversas circunstâncias, ele — meu corpo — ia
recordando, para cada quarto, a espécie do leito, a localização das portas, o lado para que
davam as janelas, a existência de um corredor, e isso com pensamentos que eu ali tivera ao
adormecer e que reencontrava ao despertar.
( No caminho de Swann, pág 23-24 )

ARGUMENTAÇÃO

“Proust não descreve uma vida como ela de fato foi, mas uma vida lembrada por
quem a viveu” diz Flávio Pereira Camargo (pág 55). Isto se dá por meio de sensações, de
sentidos, os quais estimulam a recordação, levando o personagem principal de volta a sua
infância e recuperando não só o passado – o tempo perdido –, mas também o espaço onde os
eventos aconteceram.

Mas, embora soubesse que não me achava nesses quartos, cuja presença a ignorância do
despertar me apresentara ao menos como possível, sem todavia oferecer-me sua imagem
distinta, a verdade é que me fora dado um impulso à memória; (...) passava a maior parte da
noite a recordar minha vida de outrora, em casa de minha tia-avó em Combray, em Balbec, em
Paris, em Doncières, em Veneza, em outras partes ainda, a recordar os lugares, as pessoas que
ali conhecera, tudo o que delas tinha visto, o que me haviam contado a seu respeito.
( No caminho de Swann, pág. 27 )

A memória armazena todo o conhecimento que ele tem sobre o seu passado e as
informações que possui das pessoas que o cercam – como as recordações de seus temores
infantis ou suas lembranças de quem era o senhor Swann. Essas lembranças foram deturpadas
quando ele de fato conheceu Swann. Revelando, portanto, que o presente tem o poder de
interferir no passado, uma vez que este não é estático, mas pode ser redescoberto.
Além disso, o olfato é usado para acessar as memórias de quando ele esperava pelo
beijo de sua mãe, dos dias em que ele subia a escada triste, porque seu coração não poderia ir
para seu quarto sem receber aquele beijo. Ocorre que isto não acontece e o personagem é
obrigado por seu pai e por seu avô a subir aquelas escadas sem o seu coração. Sob essa
perspectiva, as lembranças desses dias dolorosos podem ser ativadas toda vez que ele sente o
cheiro de verniz, que a escada exalava. Nesse sentido, o odor absorveu e fixou toda a mágoa
que ele sentia e o corpo dele guardou e absorveu essas lembranças.

Essa escadaria detestada, que eu sempre subia tão tristemente, exalava um cheiro de verniz
que havia de certo modo absorvido e fixado aquela espécie particular de mágoa que eu sentia
cada noite e tornava-a talvez ainda mais cruel para minha sensibilidade, porque, sob essa
forma olfativa, minha inteligência não mais podia tomar parte nela.
( No caminho de Swann, pág 50-51 )

A memória voluntária trata-se de uma lembrança-hábito, devido ao fato desta ser


adquirida por meio da repetição de um mesmo esforço ou ação. Estas não são capazes de
ressuscitar as lembranças mais profundas do personagem, pois estas só são ativadas por meio
das sensações (Flávio Pereira Camargo, pág 58, 60). Nesse viés, as memórias voluntárias são
memórias vivas que podem ser acessadas a qualquer momento e conservam apenas algumas
recordações do passado.

Mas como o que eu então recordasse me seria fornecido unicamente pela memória voluntária,
a memória da inteligência, e como as informações que ela nos dá sobre o passado não
conservam nada deste, nunca me teria lembrado de pensar no restante de Combray. Na
verdade, tudo isso estava morto pra mim.
( No caminho de Swann, pág. 70 )

O personagem possuía uma visão limitada acerca do seu passado em Combray, uma
vez que ele acessou essas lembranças por meio da memória de sua inteligência – a memória
voluntária. Entretanto, ao sentir o gosto de madelena, ele atravessa lugares que estavam
mortos e ocultos dentro dele mesmo. Assim, ele é invadido por recordações tão vivas e reais,
que não é capaz de especificar o tempo do passado em que está. Para Paulo Ramirez, a
memória involuntária anula as distâncias temporais e supostamente cognitivas entre o
passado e o presente (pág.119 ). O passado invade o presente de forma tão real e brusca que
se torna audível para ele o som das distâncias atravessadas e reviver todas aquelas lembranças
de Combray que estavam mortas. Essas recordações, que estavam fora da memória e eram tão
fracas que não tinham forças para alcançar a consciência, ressuscitam e agora têm o poder de
suscitar sentimentos reais de alegria e felicidade no presente.

E recomeço a me perguntar qual poderia ser esse estado desconhecido, que não trazia
nenhuma prova lógica, mas a evidência de sua felicidade, de sua realidade ante a qual as
outras se desvaneciam. Quero tentar fazê-lo reaparecer. Retrocedo pelo pensamento ao
instante em que tomei a primeira colherada de chá.
( No caminho de Swann, pág 72 )

CONCLUSÃO

As primeiras páginas do livro trazem à tona a complexidade da memória e das


lembranças, por meio de uma narrativa detalhada e de tempo indeterminado. No primeiro
capítulo são apresentadas dois tipos de memória: voluntária e involuntária. A primeira
trata-se de memórias de inteligência, de hábito, vivas, que podem ser acessadas quando são
requisitadas, já a segunda, é a responsável, somente através das sensações e dos sentidos, por
ressuscitar as lembranças mais profundas do personagem. Diante disso, as sensações e os
sentidos do corpo – como o olfato e o paladar – foram indispensáveis para o desenvolvimento
da narrativa, uma vez que estes proporcionaram ao personagem a ressuscitação de memórias
de sua infância, recuperando o tempo perdido e o espaço onde os eventos aconteceram. Dessa
forma, a relação corpo-memória é fundamental para a obra de Proust, visto que, por meio
dela, as lembranças que se encontravam mortas e apagadas na memória do personagem se
tornaram vivas, reais e impactantes.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CAMARGO, Flávio Pereira. A mitologia da memória literária: a memória voluntária e


involuntária em Proust. Revista da educação, linguagem e literatura da
UEG-Inhamus,2009. Disponível em:
https://www.revista.ueg.br/index.php/revelli/article/view/2781/1762. Acesso em: 20 jul.2022

RAMIREZ, Paulo. A memória e a infância em Marcel Proust e Walter Benjamin. Revista


Aurora,2011.Disponível em:https://revistas.pucsp.br/aurora/article/download/4424/3478/0.
Acesso em: 20 jul.2022
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido: No caminho de Swann. 4.ed. São
Paulo:Biblioteca Azul, 2006.

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