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Ficha informativa 4 – Pessoa ortónimo

TEMA: A Nostalgia da Infância


A saudade da infância, verdadeiro paraíso perdido,
sentimento psicológico que sedimentaria a sua vera1
personalidade, fora, ao mesmo tempo, a semente que fizera
germinar a sua personalidade de artista. Podia a sua razão ter-
lhe ministrado a ciência engenhosa de um ocultismo ao
mesmo tempo inerente à sua primitiva natureza de poeta e
construção da sua amorosa identidade com o mistério. […] No
seu fado estava ter sido feliz numa parte da sua vida que
vizinhava diretamente com o inconsciente de onde provinha.
Entre o nascimento e a consciência há uma zona intermédia
em que, vivo, o ser humano ainda não pertence a este
mundo: anos decorrem de vida já não intrauterina 2, mas
subconsciente no pleno sentido da expressão. É nesse período
indeterminado da existência – a primeira infância – que se
forma nos sedimentos celulares da personalidade ante-
humana o tecido espiritual de que a consciência do adulto
será revestida.
Foi aí que Fernando Pessoa conheceu sem conhecer a
felicidade do paraíso terrestre, a ventura3 de viver como se
não soubesse que vivia. E, assim, quando um dia se
descobriu consciente, logo sentiu que a consciência era a
grande dor da sua vida. E foi então que se gerou nele a
saudade indefinida de uma ventura passada, ao mesmo
tempo terrena e celeste, terrena porque havia no
1 Vera: verdadeira, genuína.
2 Intrauterina: dentro do útero.
3 Ventura: alegria, felicidade.
subconsciente da sua memória o vinco temporal que a
própria vida nele fizera, celeste porque, sendo remota, e
indeterminada, e inefável4, naturalmente se retrotraía5 a
uma época anterior à do seu próprio nascimento.
Profundamente entranhada na sua vida, a poesia em que
Fernando Pessoa exprimiu a nostalgia desse bem perdido
não representa, pois, o engenhoso traduzir em formas
verbais de uma conceção do mundo mais ou menos
habilmente elaborada. […]
Se alguma coisa há de premeditado na sua obra – não é o
sentimento de que provinha de uma outra pátria e que
nesta fora um desterrado saudoso da felicidade que nesse
remoto paraíso conhecera. Aliás, se bem estudarmos a
poesia dos grandes poetas em cuja obra há alguma coisa
mais que fugitiva emoção carnal – lá encontraremos, em
todos eles, esse mesmo sentimento indefinido, essa mesma
nostalgia de um paraíso perdido. […] Tem toda ela uma
origem comum: o primitivismo de que brota a própria
inspiração em que se gera.
João Gaspar Simões, Fernando Pessoa: Ensaio Interpretativo da sua
Vida e da sua Obra, Alfragide, Texto Editores, 2010, pp. 86-87.

4 Inefável: encantadora.
5 Retrotraía: recuava.
1. Classifica as afirmações que se seguem como
verdadeiras (V) ou falsas (F). Corrige as afirmações
falsas.
a) Os conceitos de felicidade e de inconsciência estão
interligados na poética de Fernando Pessoa.
b) É a saudade de ter sido conscientemente feliz que
conduz à nostalgia da infância.
c) A ideia de um paraíso perdido em Fernando Pessoa
é caso único na literatura.

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